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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.191 Lisboa abr. 2009

 

Susana de Matos Viegas, Terra Calada — Os Tupinambá na Mata Atlântica do Sul da Bahia, Coimbra, Almedina, 2008, 344 páginas.

 

 

Terra Calada é uma investigação de base etnográfica sobre processos de identidade e socialidade entre os tupinambá de Olivença que habitam a região da Mata Atlântica no sul da Bahia, perto da vila de Olivença, no município de Ilhéus. Assenta numa pesquisa de campo feita entre 1997 e 1998, com regressos ao terreno em 2003 e 2004 para prossecução do trabalho de identificação da terra indígena para a FUNAI. A motivação inicial deste estudo prendia-se com questões de etnicidade e de politização da identidade, algo que o trabalho de campo viria alterar. Susana de Matos Viegas defende uma interpretação de formas de identificação que, em vez "de se fundamentarem em noções substancialistas e classificatórias estanques de `tipos de pessoa', dizem respeito a modos de criar afecto, de viver e habitar e a modos de conceber como a vida social se faz no tempo" (p. 18).

O trabalho insere-se numa antropologia da vida quotidiana (explorada por autores como Peter Gow, Janet Carsten ou Cecilia McCallum), assente numa crítica ao conceito de sociedade, preterido a favor de uma abordagem da socialidade. Parte igualmente de uma perspectiva processual, conjugando aspectos sociais e culturais numa análise micro-histórica e regionalmente específica, tentando "derrubar o muro erguido entre a etnografia dos povos ameríndios que habitam o Nordeste brasileiro e a dos que habitam na Amazónia" (p. 49) e gerando antes uma perspectiva comparativa. Assente em premissas fenomenológicas, o trabalho parte do princípio de que o social não pode ser visto como um processo "pós-facto e o indivíduo como um agente que começa por surgir no mundo de modo a-social e a-histórico", rejeitando ainda a noção de que "para que o social exista tenha que ser susceptível de uma reificação como entidade agregativa de partes num todo" (p. 50). O mundo social é, outrossim, conhecido por meio da "experiência vivida", a qual se constitui na intersubjectividade, na esteira das aproximações entre antropologia e fenomenologia propostas por antropólogos como Christina Toren ou Peter Gow.

A análise etnográfica propriamente dita tem um dos seus momentos de grande fôlego na abordagem da dinâmica dos sentidos de habitar, surgindo em torno da casa "um conjunto de sentidos sobre processos de sociabilidade, nos quais os actos alimentares ganham uma posição de destaque…" (p. 98). É, aliás, no corpo — enquanto locus de afecções — que se desencadeiam certos aspectos de diferenciação entre os índios-caboclos e a restante população vizinha, demarcando "um certo tipo de pessoa […] próximo ao que Viveiros de Castro identifica ser central a alguns contextos ameríndios" (p. 99). Para Susana de Matos Viegas, "pertencer a uma casa não diz respeito a uma ordem de relação entre pessoas e coisas, mediada pelo direito de umas sobre as outras. Significa, sim, que a casa é aqui melhor descrita por meio de conceitos como o de `unidade social primária' [proposto por Pina Cabral] em alternativa ao `grupo doméstico' […] por fugir à conceptualização da ligação entre pessoas e casas pela relação entre sujeito e objecto, mediada pela posse alienável" (p. 99).

Estabelecendo uma diferenciação entre os significados do parentesco para os tupinambá de Olivença e para as populações dos contextos social ou regionalmente próximos, a autora defende que o que está em causa nas práticas de parentesco dos tupinambá permite escapar à presunção de que uma abordagem do parentesco nos obriga necessariamente a pensar em termos de equilíbrios entre aspectos ditos "biológicos" e aspectos ditos "construídos", crítica que partilha com Carsten (Cultures of Relatedness: New Approaches to the Study of Kinship, Cambridge, Cambridge University Press, 2000). Para Viegas, uma das consequências importantes de um modo de produção do parentesco assente na prática de "agradar", como é o caso dos tupinambá de Olivença, "é a sua ligação a uma temporalidade marcada pela persistência da vida diária, rejeitando-se que a vida social se faça de modo epifenomenal" (p. 138). Esta é, aliás, uma das linhas de força do argumento, sustentada por riquíssimas vinhetas etnográficas, como, a mero título de exemplo, a das pp. 128-129, que demonstra como para uma dada pessoa a sua mãe é quem conjunturalmente cumpre as funções de sustento, alimentação e cuidado, para lá da normatividade.

Uma das preocupações centrais presentes nesta obra é a busca daquilo "que estrutura a vida social quando, à luz dos modelos convencionais juralistas, lidamos com uma propensão específica para a informalidade" (p. 175). Neste estudo, teoria e etnografia conjugam-se de forma feliz na capacidade de oferecer um entendimento alternativo da vida social. A informalidade local aplica-se, por exemplo, também ao casamento, o qual não só não se celebra nem ritualiza, como não existem quaisquer tipos de prestações entre as famílias do noivo e da noiva. A união conjugal é tida inicialmente como experimental, apesar de a informalidade não poder ser confundida nem com uma concepção liberal das uniões matrimoniais nem com a carência de disposições estruturantes. Na realidade, não se trata de dar conta da ausência de forças estruturantes da vida social, mas sim de apresentar a necessidade de uma abordagem que, mantendo um ponto de vista sócio-estrutural, "se liberte, no entanto, das suas âncoras sistémicas" (p. 177), num exercício a que eu chamaria de transmutação teórica, isto é, de inovação sem deitar fora o proverbial bebé com a água do banho. Daí decorre a necessidade explicitada de procurar "`disposições estruturantes' da vida social sem que, no entanto, as encerremos em lógicas de convergência ou divergência" (p. 177). Essas disposições são-nos apresentadas e sistematicamente demonstradas com rigor etnográfico: o facto de o núcleo reprodutivo mínimo corresponder à relação mãe/casa; a importância do lugar como unidade social primária; a tendência agnática que, no entanto, não impede uma relação entre géneros mais igualitária do que nas outras populações da região; o "ideal de viver junto num lugar" (p. 179), em contraposição com a tendência agnática; e a valorização dos atributos da feminilidade hegemónica, em especial o da transitividade feminina.

Aprofundando a ideia de que não devemos procurar um "tipo de pessoa", Susana Matos Viegas demonstra como a teoria local se manifesta "em comportamentos de inconformismo, na sensação do quanto a existência pode ser falível, e na alternância entre estar ébrio e alegre ou sóbrio e cismado […] Essa ideia de pessoa complementa a de temporalidade reversível, [presente] na produção do parentesco. O parentesco é a marca de que a vida fixa muito pouco, se não for continuamente repetida e reiterada na rotina diária, por meio de laços intersubjectivos" (p. 203, na linha de Viveiros de Castro, que distinguiu entre uma teoria do "ente" e uma teoria de um "entre-dois"). É também por isso que, para Viegas, o conceito de etnicidade é insuficiente para falar sobre os processos de construção da identidade local: "Em vez da referência a origens comuns ou autoclassificações de descendência, entre os tupinambá, além dos aspectos ligados ao género e ao parentesco (no sentido da reiteração quotidiana do afecto e sustento) e ao que normalmente se chama a organização social (reforçando a importância da casa e do lugar), são também os modos de estar e de falar que marcam processos de identificação" (p. 203).

Em consonância, as pessoas de diferentes lugares entrelaçam-se por meio de casamentos preferenciais, mas não existe sentimento de união entre tupinambás de localidades dispersas, "excepto no caso de se fundarem em laços interpessoais" (p. 229). Isto não se explica "nem por sentimentos de enraizamento num espaço territorial, nem pela invocação de uma origem nativa (ou indígena), como seria o caso se o que estivesse em questão fosse a constituição de um `grupo étnico', mas pelo estreitamento continuado de relações fundadas em laços interpessoais" (p. 230). Insatisfeita com a interpretação clássica de Pierre Clastres sobre a aversão à autoridade ou ao uno, ou com a de Peter Rivière sobre o carácter atomístico das sociedades indígenas da América do Sul, Viegas subscreve Viveiros de Castro (Arawete: Os Deuses Canibais, Rio de Janeiro, Jorge Zahar/ANPOCS, 1986), para quem "a dispersão — diferir/dispersar — ganha um sentido denso na sua articulação com formas de ver o poder, o qual deixará de ser pensado como uma `aversão ao uno' para ser visto como o cerne de um sentido de viver socialmente sem viver colectivamente" (p. 231). Não se trata de colocar o indivíduo no centro da vida social em detrimento do colectivo, porque o que está em causa é precisamente a anulação de ambos: "um mundo `individualista' sem indivíduo, e uma vontade colectiva sem sociedade" (p. 232), nas palavras de Viveiros de Castro (1986).

Terra Calada é apresentada como expressão-síntese da história da vivência do espaço e das estéticas de acção dos tupinambá, descritas em riquíssimas análises das práticas quotidianas do parentesco, do género, da sociabilidade, do espaço: "os sentidos da terra… partem da tranquilidade como aspiração e ideal de socialidade […] a capacidade de criar compatibilidades, as quais expressam melhor uma história feita `pelas caladas' do que na guerra e na rebelião" (p. 271). É por isto que a autora repensa a ideia feita sobre a questão indígena como uma questão de luta entre povos indígenas e Estado-nação. O espaço, para os tupinambá, está mais de acordo com uma noção fenomenológica, "no sentido de que `estar-no-espaço' (place) tem um estatuto epistémico antecedente ao de espaço enquanto extensão [...] Os dois sentidos de espaço (place e space) foram-se transformando, sobrepondo e ressignificando, de tal forma que, para os tupinambá de Olivença, o espaço é hoje também terra, no sentido material…" (p. 272). É por esta razão que eles reivindicam hoje uma terra indígena.

Terra Calada será, sem dúvida, um marco na antropologia dos povos indígenas do Brasil e muito particularmente das configurações identitárias aparentemente ambíguas que surgem nas zonas, como o Nordeste, menos "tradicionais" do que a referência amazónica.

 

Miguel Vale de Almeida

Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa

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