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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.193 Lisboa out. 2009

 

Fernando Pessoa e a invasão da Abissínia pela Itália fascista

 

José Barreto

ICS, Universidade de Lisboa, Av. Professor Aníbal de Bettencourt, 9, 1600-189 Lisboa, Portugal. e-mail: jose.barreto@ics.ul.pt.

 

Pouco antes da sua morte (30 de Novembro de 1935), Fernando Pessoa escreveu dois artigos sobre a invasão da Etiópia pela Itália fascista que a censura de Salazar não deixou passar. Esses escritos ajudam a esclarecer as ideias políticas do escritor na fase final da sua vida, nomeadamente sobre o fascismo e o colonialismo. A posição de Pessoa é vista no contexto das reacções portuguesas ao conflito da Etiópia.

Palavras-chave: Fernando Pessoa; Salazar; Etiópia; fascismo; guerra ítalo-abissínia. 

 

Fernando Pessoa and the invasion of Abyssinia by fascist Italy

Shortly before his death (November 30, 1935), Fernando Pessoa wrote two articles on the Italian invasion of Ethiopia that the censorship of the Salazar regime would not let pass. These writings help to illuminate the political ideas of the great Portuguese writer in his later years, including on such topics as fascism and colonialism. Pessoa’s position is seen in the context of the Portuguese reactions to the Ethiopian conflict.

Keywords: Fernando Pessoa; Salazar; Ethiopia; fascism; Italo-Abyssinian War.

 

 

Nós todos, homens, que neste mundo vivemos opressos pelos vários desprezos dos felizes e pelas diversas insolências dos poderosos — que somos todos nós neste mundo, senão abexins? [Fernando Pessoa, Outubro de 1935].

 

A pouco mais de um mês da sua morte, ocorrida a 30 de Novembro de 1935, Fernando Pessoa escreveu dois textos sobre a invasão da Abissínia (Etiópia) pela Itália fascista, destinados à imprensa lisboeta, mas que não puderam ser publicados. Pode neles constatar-se o mesmo ânimo crítico com que o escritor vinha produzindo, desde Fevereiro desse ano, uma série de escritos em prosa e em verso contra Salazar e o Estado Novo. Nessa torrente de escrita política de 1935, em que se define claramente o perfil de um opositor não só do salazarismo, como também do fascismo, incluem-se, entre outros: o artigo “Associações secretas”[1], em defesa da Maçonaria, a que se podem juntar numerosos fragmentos deixados inéditos pelo autor, relacionados com a polémica que o seu artigo desencadeou na imprensa[2]; uma dúzia de poemas satíricos contra Salazar e o Estado Novo[3]; diversos textos e poemas anticatólicos, visando a crescente influência da Igreja na política portuguesa; um longo artigo crítico sobre Salazar, em francês; uma carta ao presidente da República, Óscar Carmona, de protesto contra o governo; uma crítica contundente a um discurso de tom totalitário do ministro da Justiça Manuel Rodrigues[4]. Estes escritos, bem como os artigos sobre a invasão da Abissínia e ainda outros textos produzidos ao longo do ano de 1935 mostram o crescente empenhamento político de Pessoa, na fase final da sua vida, em defesa da liberdade e da dignidade do homem, que ele julga então ameaçadas tanto em Portugal como no mundo.

Embora nunca tivesse consagrado ao tema do fascismo, como doutrina ou regime político, uma análise mais elaborada, Pessoa deixou entre os escritos impublicados da famosa arca numerosos fragmentos e trechos alusivos a Mussolini e ao fascismo, que olhava com desdém e sarcasmo[5], embora a personalidade do Duce, pelo seu carisma (ou magnetismo, como então se dizia), lhe tivesse merecido uma referência vaga e indirectamente elogiosa, ainda que num contexto de rejeição das ideologias fascistas e nazis[6]. O nacionalismo liberal do “conservador de estilo inglês” Fernando Pessoa não se confundia com o “nacionalismo animal” ou “nacionalismo mórbido” do fascismo italiano — assim o definiu em duas notas que deixou inéditas[7]. Desde logo, o desprezo do fascismo pelas liberdades individuais e a condição de submissão do indivíduo ao Estado totalitário nunca permitiriam a identificação de Pessoa com o regime de Mussolini, tal como não permitiriam a sua identificação com o comunismo. O escritor sustentava, aliás, que havia uma “identidade fundamental” entre os regimes fascista e comunista, em virtude do “anti-liberalismo comum”[8].  Num texto dos anos 20, Pessoa considera o fascismo e o comunismo como forças dissolventes da civilização europeia[9]. Num texto inédito de 1933-1935, Pessoa acrescenta aos dois o nazismo: “Sovietes, comunismo, fascismo, nacional-socialismo —tudo isso é o mesmo facto, o predomínio da espécie, isto é, dos baixos instintos, que são de todos, contra a inteligência, que é do indivíduo só”.[10] Os textos que em 1935 escreveu sobre a guerra ítalo-abissínia, de que adiante se tratará, exprimem a oposição do escritor não só à agressão imperialista da Itália contra a Etiópia, como também ao próprio regime fascista, em que Pessoa via a origem da política agressiva italiana. Não se pretende aqui decidir se estas inequívocas posições do escritor permitem ou não rotular Fernando Pessoa de “antifascista”, questão que já ocupou vários autores, mas viciada à partida por uma definição peculiar de “antifascismo”. As conotações específicas que essa expressão possa ter não invalidam o facto da oposição essencial de Pessoa ao fascismo, ainda que de um ponto de vista conservador liberal. O antifascismo, nacional e internacionalmente, nunca foi propriedade de nenhuma corrente política. 

Na primeira secção deste artigo faz-se uma resenha dos acontecimentos, salientando a importância de que se revestiu a guerra ítalo-abissínia, como antecedente da Segunda Guerra Mundial. Na secção seguinte, passa-se em revista as reacções públicas de diversos sectores portugueses à invasão da Etiópia, desde aqueles que a condenaram frontalmente até aos que a apoiaram com entusiasmo, passando pela atitude lacónica e ambígua do governo de Salazar, dividido entre a simpatia pelo regime de Mussolini e o cuidado inspirado pela integridade do império português. A terceira secção expõe a posição de Fernando Pessoa. Em apêndice, reproduzem-se os seus escritos sobre o tema, parcialmente inéditos.

 

A invasão da Etiópia pela Itália fascista

A crise ítalo-abissínia teve o seu início em Dezembro de 1934, com o incidente de Ual-Ual, localidade fronteiriça etíope que forças italianas vindas da Somália haviam previamente ocupado. A crise culminaria, a 3 de Outubro de 1935, na invasão do Império Etíope (ou Abissínia) pela Itália fascista, objectivo há muito anunciado por Mussolini. A guerra prolongou-se por sete meses até à conquista de Adis Abeba, em Maio de 1936. Ignorando os seus compromissos internacionais, Mussolini justificou a invasão invocando razões contraditórias: por um lado, o direito de a Itália defender as fronteiras das suas colónias dos alegados ataques da vizinha Abissínia (a realidade era a inversa) e, por outro, o direito abstracto de alargar o império italiano, argumentando com o excedente demográfico do seu país e as necessidades de expansão económica. A Abissínia era então, com a Libéria, um dos dois únicos países africanos livres do domínio colonial. Esquecendo o apoio que a Itália dera em 1923 à entrada da Etiópia na Sociedade das Nações (SDN, sediada em Genebra) e o tratado de amizade celebrado entre os dois países em 1928, Mussolini proclamava agora a urgência de pôr fim à escravatura e de levar a civilização àquelas paragens “bárbaras”, no quadro da “missão italiana em África”. Os bombardeamentos aéreos contra a população etíope e a utilização de armamento químico suscitaram uma onda de condenação da Itália na imprensa europeia.

O conflito ítalo-abissínio é considerado um dos acontecimentos precursores da Segunda Guerra Mundial. Antes mesmo da guerra civil espanhola (1936-1939), foi esse conflito que primeiro fez falar da iminência de uma nova guerra na Europa pós-1918. A aventura abissínia, que serviu primeiramente objectivos internos do regime fascista (Smith, 1997, p. 385), suscitou um conflito internacional protagonizado também pela Grã-Bretanha, potência tutelar da SDN. Esta liga, criada em 1920 na sequência do Tratado de Versalhes, viu-se incapaz de resolver o conflito e de impedir a guerra entre a Itália e a Etiópia, dois países membros da organização. A tentativa de arbitragem do incidente fronteiriço no quadro da SDN, as propostas franco-britânicas de conciliação, a concentração de forças navais inglesas no Mediterrâneo, a ameaça de sanções económicas da SDN contra a Itália, tudo foi ineficaz para evitar a agressão italiana ou para repor a paz.

Este insucesso representou uma viragem nas relações internacionais, deitando por terra as esperanças postas nos mecanismos de segurança colectiva criados no fim da Grande Guerra e lançando definitivamente o descrédito sobre a SDN. Os Estados Unidos nunca tinham aderido à organização e o Japão e a Alemanha hitleriana tinham-na abandonado em Fevereiro e Outubro de 1933, respectivamente. A oposição das potências democráticas europeias à aventura imperial de Mussolini contribuiu para afastar a Itália da frente que a Grã-Bretanha pretendia liderar para fazer face ao rearmamento alemão e à política revanchista de Hitler. A França, governada então pelo futuro colaboracionista Laval, estava mais disposta a fazer cedências à Itália do que a cooperar militarmente com a Grã-Bretanha. Hitler, por seu turno, perante a ausência de uma firme reacção concertada dos governos aliados à invasão da Etiópia, ganhou coragem para o episódio da remilitarização da Renânia, em 7 de Março de 1936, quando ainda decorria a guerra da Abissínia. Por seu turno, a ocupação militar da Renânia teve o condão de dissuadir a Grã-Bretanha de propor novas sanções contra a Itália, abandonando assim a Etiópia à sua sorte.

A reacção inglesa à invasão foi, pois, frouxa e inconsequente — Mussolini chamou-lhe bluff e tinha boas razões para o pensar (Smith, 1997, p. 386) —, como se a Grã-Bretanha se não importasse tanto com o destino dos etíopes e desejasse principalmente evitar fornecer à Itália fascista um pretexto para cortar com as potências aliadas e cair nos braços de Hitler. Divergências entre os conservadores britânicos e o receio de precipitar de imediato uma guerra europeia foram factores que desencorajaram o uso da força naval pela Grã-Bretanha. A secreta esperança de ver a Itália embrenhada numa guerra longa e difícil em África também pode ter influenciado a atitude britânica. Esta mesma ideia perpassou pela mente do então ministro dos Negócios Estrangeiros português, Armindo Monteiro (Oliveira, 2000, pp. 131-147). Mas a frouxidão, a prudência e o hipotético maquiavelismo britânicos não conseguiram evitar a aproximação da Itália à Alemanha de Hitler, que, contrariamente às potências democráticas, não se opôs à invasão da Etiópia e rejeitou as sanções económicas da SDN contra a Itália. A aproximação assim gerada entre a Itália e a Alemanha reforçar-se-ia, pouco depois, com a intervenção de ambas na guerra civil espanhola ao lado de Franco, culminando, em Outubro de 1936, na assinatura de um tratado de amizade entre os dois países. A partir de Novembro desse ano, Mussolini começaria a falar no “eixo” Roma-Berlim, abrindo caminho para o reconhecimento italiano do Anschluss (1938), para o “Pacto de Aço” (1939) e para o Tratado Tripartido (1940), que ligaram definitivamente a Itália fascista aos destinos da Alemanha nazi.

 

Reacções portuguesas à invasão

Em Portugal, perante a anunciada e, depois, efectiva invasão da Abissínia, é possível destacar três tipos de reacções, com mais ou menos eco na imprensa. Diga-se que a censura salazarista, quer por razões de afinidade política dos dois regimes, quer também devido a frequentes reclamações e pressões do chefe da legação italiana em Lisboa (Oliveira, 2000, 142), estava pouco disposta a deixar passar na imprensa ataques ao regime e à pessoa de Mussolini[11].

A condenação da invasão parece ter sido o sentimento mais comum da opinião pública portuguesa, tanto à esquerda como à direita, ainda que com justificações diversas ou só parcialmente coincidentes. Essa condenação teve, porém, um eco algo apagado na imprensa, pelos motivos indicados. Foram seus arautos, entre outros, Julião Quintinha, no semanário O Diabo[12], e Tomás Ribeiro Colaço, no semanário Fradique[13], o que revela que o governo, apesar de tudo, tolerou alguma expressão pública do sentir anti-italiano. Uma polémica jornalística teve mesmo lugar — facto já então muito raro sob Salazar —, iniciada por Tomás Ribeiro Colaço, no Fradique, com o artigo “A guerra dos conservadores”, em que visava a “estupidez” dos “chamados conservadores” portugueses que apoiavam a guerra conquistadora de Mussolini. Colaço era ele próprio um nacionalista conservador, mas com ligações a Rolão Preto, o que não parece ajudar a explicar a inusitada tolerância da censura perante uma polémica pública sobre temas políticos, expressa em termos muito vivos. Colaço comparava os conservadores portugueses apoiantes da invasão italiana da Abissínia com aqueles mesmos conservadores lusos que, durante a Grande Guerra, se haviam mostrado germanófilos — e destacava um deles, Alfredo Pimenta. Para este, segundo Colaço, o único aspecto relevante do conflito da Abissínia residia no facto de Mussolini ser um ditador e um monárquico (qualidades louváveis para Pimenta) que defrontava “um preto com uma coroa” (o imperador etíope Hailé Selassié) e se opunha às “ambições da democracia inglesa” (detestáveis para Pimenta). Ora, segundo pensava Colaço, por mais “extraordinário Homem” (sic) que fosse o ditador italiano, diante da invasão italiana da Abissínia a “alma portuguesa só podia vibrar de uma forma:contra Mussolini.” Os interesses portugueses em África assim o ditariam, dada a ameaça que os “argumentos de força” do imperialismo mussoliniano podiam representar para as colónias portuguesas. Mas a essa razão portuguesa Colaço acrescentava outras, estabelecendo mesmo um confronto entre o fascismo italiano e o conservadorismo britânico, favorável a este último. “A posição da nossa alma tem de ser ao lado da Inglaterra”, concluía Colaço, precisando assim o seu partido e desfazendo qualquer eventual suspeita de que se opusesse, por princípio, a todos os imperialismos ou assumisse a defesa do direito etíope à independência.

O jornal católico e monárquico A Voz, pela pena do seu director Fernando de Sousa, assumiu as dores de Pimenta e dos conservadores “estúpidos” ofendidos por Colaço, numa nota de primeira página em que o distinguiu com o epíteto de trolaró, sinónimo de pateta.[14] A réplica de Colaço ainda pôde ser publicada, insistindo na acusação de estupidez[15], mas a polémica não continuou, aparentemente devido à censura. O semanário Fradique (em que Fernando Pessoa chegara a colaborar) também não durou muito mais, extinguindo-se em Dezembro.

O apoio declarado a Itália, bastante mais raro na imprensa portuguesa do que a sua condenação, ficou sobretudo representado pelo próprio Alfredo Pimenta em artigo publicado um mês antes da invasão no diário A Voz — jornal apoiante de Salazar e simpatizante das ambições imperiais italianas. Pimenta, publicista monárquico, apoiante de Salazar e conhecido entusiasta do fascismo italiano, proclamava aí, nas vésperas da guerra que se esperava: “Todos os nossos votos vão para a vitória rápida e decisiva da Itália. Porque a vitória da Itália é a vitória de Mussolini [...] Se houver guerra, que a Itália vença — triunfalmente, imperialmente, e que ocupe, com energia e decisão, o que precisa para a expansão e valorização do seu povo renovado pelo milagre mussoliniano.”[16] Os direitos da Etiópia não mereciam qualquer consideração a Pimenta: “A Etiópia, na Sociedade das Nações, a falar em pé de igualdade com a Itália — é de a gente rebentar a rir”. Pimenta exigia também um maior rigor da censura portuguesa contra a imprensa, alegadamente maçónica, que apoiava o Negus etíope e atacava Mussolini porque, explicava ele, não podia “morder em Salazar”. Sobre Alfredo Pimenta, conviria aqui acrescentar que Fernando Pessoa nutria por ele uma profunda antipatia. As razões do desprezo de Pessoa por Pimenta eram várias e antigas, mas em 1934-1935 novos motivos se lhes tinham juntado: a plausível intervenção de Pimenta junto do júri do prémio de poesia do Secretariado da Propaganda Nacional para que a obra A Romaria fosse preferida à Mensagem[17] e, na sequência do artigo de Pessoa em defesa da Maçonaria, um artigo de Pimenta em A Voz em que atacava o escrito de Pessoa e fazia insinuações malévolas a seu respeito.[18] Pimenta é alvo de vários ataques violentos em escritos de Pessoa de 1935 deixados inéditos (Barreto, 2009, pp. 253-255 e 277-279).

Em atenção, provavelmente, à atitude apaziguadora, se bem que ambígua, com que o papa Pio XI prevenira, em 26 de Agosto de 1935, contra uma “guerra injusta”, o católico director de A Voz, Fernando de Sousa, coibiu-se de adoptar uma posição editorial de apoio declarado à invasão, preferindo manifestar o seu apoio de modo menos explícito. Numa série de artigos de tom racista, intitulados “Quadros vivos da Abissínia”, Fernando de Sousa descreveu o país africano membro da Sociedade das Nações como “barbárie mascarada de civilização” e “acervo de povos bárbaros dominados e explorados por verdadeiros sobas, sob a suserania nominal de um tiranete guindado à categoria de imperador”.[19] Enquanto cem mil soldados italianos se iam concentrando nas fronteiras da Etiópia com a Eritreia e a Somália, o director de A Voz tentava provar a incapacidade do país africano para se governar segundo os padrões do mundo civilizado. Na sua opinião, teria sido um erro e até um “acto juridicamente nulo” a admissão do Império Etíope na SDN[20]. Esta organização, por sua vez, estaria dominada pela “Maçonaria Universal”, que, através dela, planearia “reinar sobre o mundo”.[21] Também no plano religioso procurou Fernando de Sousa encontrar motivos, já depois de iniciada a invasão, para diminuir a Abissínia, contestando a sua qualidade de país cristão e rotulando de heréticos os cristãos coptas etíopes.[22] O cristianismo etíope seria, além de herético, “grosseiro e supersticioso”, ainda assim professado apenas por uma minoria da população, diante de uma maioria de “maometanos, pagãos, feiticistas e judeus”.[23] Numerosas caricaturas tiradas da imprensa fascista italiana foram reproduzidas na primeira página de A Voz, tentando mostrar uma Abissínia miserável, caótica, esclavagista e belicista. Em todo o caso, Fernando de Sousa também cedeu a tribuna do jornal a Alfredo Pimenta, que a aproveitou, como vimos, para dar largas ao seu entusiástico apoio a Mussolini e à invasão da Etiópia.

Distinta tanto da condenação inequívoca como do apoio declarado à invasão, a posição do governo português foi lacónica, ambígua e constrangida. Nem Salazar nem os membros do seu governo se pronunciaram publicamente a favor ou contra a invasão, tentando criar, apesar do alinhamento português pela posição inglesa em Genebra, uma aparência de alheamento e neutralidade. Evitando fazer quaisquer declarações públicas sobre a crise ítalo-abissínia e, em particular, sobre a guerra, o governo remetia a posição de Portugal para a sua qualidade de membro do Conselho da SDN. A orientação geral em matéria de política externa e colonial fora oportunamente definida por Salazar numa nota oficiosa publicada na imprensa a 20 de Setembro, quando já se esperava a todo o momento o início da invasão. As bases dessa orientação eram o não envolvimento de Portugal nas “contendas” e “desordens” europeias (embora se estivesse perante a iminente agressão de um país europeu a um país africano), a continuada adesão de Portugal ao espírito da Sociedade das Nações (desde que esta não interferisse nos assuntos coloniais portugueses), a reiterada confiança na aliança inglesa e, por fim, a expressão de boa fé nas declarações com que Mussolini recentemente desmentira qualquer pretensão italiana em relação às colónias portuguesas.[24]Desta orientação genérica, porém, nada se podia inferir inequivocamente acerca do sentimento do governo português sobre a invasão da Abissínia. Assim, a condenação da invasão por Portugal, se de condenação se pode falar, ficou meramente implícita na actuação do representante português em Genebra, apresentada pelo ministro Armindo Monteiro como decorrendo das obrigações “jurídicas” de Portugal no quadro da SDN e, assim, diluída na acção colectiva dos países membros da organização. Com essa actuação, o governo português procurava sobretudo garantir, apoiado na aliança inglesa e no mecanismo colectivo da SDN (liderada, de facto, pela Grã-Bretanha), a integridade e a segurança das colónias portuguesas contra futuras tentativas de conquista. Era esta uma ameaça hipotética, mas não totalmente fantasista, dados os insistentes rumores que circulavam, em 1935, sobre a exigência italiana e alemã de revisão do mapa de África, rumores de que a imprensa portuguesa se fazia eco.

Em Genebra, após o início da invasão, o ministro Armindo Monteiro vira ser-lhe confiada, por influência britânica, a presidência de um subcomité, o chamado “comité dos Seis”, encarregado de examinar a agressão italiana à luz da Carta da SDN e de elaborar o respectivo relatório. Mais tarde, também o delegado português na SDN, Augusto de Vasconcelos, assumiria a presidência do comité incumbido de formalizar as sanções económicas contra a Itália (Oliveira, 2000, p. 140). Estas circunstâncias, algo imprevistas, eram lisonjeiras para a imagem da diplomacia e do governo portugueses, mas criavam uma espécie de protagonismo formal de Portugal na condenação da Itália fascista que o governo de Salazar estaria longe de desejar. Em Lisboa, para atenuar essa impressão, o órgão oficioso do regime, o Diário da Manhã, insistia em que a posição de Portugal não era “a dos antifascistas contra o fascismo”, mas sim “a da SDN”, contra os países membros que faltassem ao “cumprimento das suas obrigações”.[25] Simultaneamente, Armindo Monteiro, numa das suas raras declarações à imprensa sobre a invasão, tentava assegurar que a “posição jurídica” de Portugal, decorrente dos seus compromissos internacionais, não afectava a “simpatia” do seu governo para com a Itália de Mussolini. O ministro confessava a “pena infinita” e a “mágoa” que lhe causava o cumprimento das obrigações decorrentes da Carta da SDN, especialmente no capítulo das sanções económicas contra a Itália.[26] Era uma posição que, segundo Monteiro explicou num despacho de Novembro de 1935 para o embaixador português em Roma, acarretava “sacrifícios”, de ordem até “sentimental”[27], atendendo às afinidades existentes entre os dois regimes autoritários. Com efeito, a condenação da Itália num fórum internacional comportava um risco de contágio político para o governo de Salazar, que Armindo Monteiro exprimiu com alguma clareza no mesmo despacho: “O amesquinhamento do regime mussoliniano pode atingir os mais governos de tipo autoritário e conservador da Europa”.[28] Na conjuntura de 1936, após a remilitarização da Renânia por Hitler, o ministro português passaria a advogar junto do ministro dos Estrangeiros da Grã-Bretanha, Anthony Eden, a desistência pura e simples das sanções contra a Itália (Oliveira, 2000, pp. 145-146).

 

A tomada de posição de Fernando Pessoa

É neste cenário que Fernando Pessoa — desde Fevereiro de 1935 em ruptura pública com o Estado Novo — decide escrever, em Outubro, a pouco mais de um mês da sua morte, dois artigos destinados à imprensa lisboeta, tomando claramente posição contra a invasão da Abissínia. Esses escritos, que não chegaram a ser publicados, foram conservados no seu espólio e são aqui reproduzidos em apêndice.

Um deles, intitulado “Profecia italiana”, um curto artigo de duas páginas dactilografadas, deixou-o o autor em versão final, assinado e pronto a publicar[29] (v. apêndice 1). A razão da sua não publicação pelo Diário de Lisboa só pode ter sido a intervenção da censura[30], da qual Pessoa se queixou nesse ano repetidamente. Desde que, em 4 de Fevereiro desse ano, publicara no Diário de Lisboa o artigo “Associações secretas”, tomando posição contra o projecto de lei que visava extinguir a Maçonaria, Fernando Pessoa tornara-se persona non grata para o regime, que até havia pouco o cortejara e que, em Dezembro de 1934, lhe concedera mesmo um prémio literário pela Mensagem. Por instrução transmitida aos serviços de censura, segundo o próprio Pessoa apurou em 1935, quaisquer referências favoráveis ao seu nome, mesmo puramente literárias, deveriam ser omitidas na imprensa, como consequência da sua intervenção a favor da Maçonaria.[31] Tinham também aumentado desde o início da invasão da Abissínia, como já foi referido, as pressões diplomáticas italianas sobre as autoridades portuguesas contra alusões desfavoráveis à Itália ou ao regime de Mussolini.

O outro artigo de Pessoa, mais extenso, mas que visivelmente não foi concluído, é composto por um texto dactilografado de três páginas, sem título, inacabado (apêndice 2), ao qual se anexam aqui seis fragmentos manuscritos de apontamentos ou rascunho, “material genético” para o artigo (apêndice 3). O título projectado deste artigo era, segundo se pode deduzir, “O caso é muito simples”. Com efeito, num projecto editorial desta mesma altura, certamente dos últimos que Pessoa elaborou, figura um artigo com esse título, destinado ao jornal R[epública] ou ao D[iário] de L[isboa][32]. Ora a frase do título projectado aparece no primeiro parágrafo do original dactilografado, circunstância que, juntamente com a coincidência temporal, estabelece a correspondência entre os dois.

Em “Profecia italiana”, Fernando Pessoa quase se limita a citar e comentar umas considerações muito críticas sobre o nacionalismo, o militarismo e o imperialismo italianos, respigadas de um número antigo do jornal socialista Avanti, de Turim, datado de Janeiro de 1913, ou seja, vinte e dois anos antes. Num artigo desse jornal, cuja autoria só no final é revelada por Pessoa, troçava-se da conquista da Líbia pela Itália, em 1911-1912, “reles guerra de conquista” que o governo italiano celebrava então “como se fosse um triunfo romano”. Depois de desvendar a autoria de Benito Mussolini (que, em 1913, era o director do Avanti), Pessoa observa ironicamente que tais considerações se haviam revelado proféticas, em vista do que em Outubro de 1935 estava a acontecer com a Itália — uma alusão à guerra de conquista da Abissínia, ordenada pelo mesmo Mussolini. E a rematar, este desabafo de Pessoa sobre o ditador italiano: “Não ter ele fixado residência em profeta!”

A fonte que Pessoa utilizou na feitura de “Profecia italiana” encontra-se no seu espólio. As considerações de Mussolini no Avantide 1913 tinham sido recentemente citadas em jornais ingleses, nomeadamente no Daily Express, de 19 de Outubro de 1935. Um recorte deste jornal tinha chegado às mãos de Pessoa, proveniente de um luso-britânico, Amsinck Allen[33], que o enviara para a redacção do Diário de Lisboa juntamente com uma carta datada de Lisboa de 23 de Outubro. A carta, juntamente com o recorte, encontra-se no espólio de Pessoa,[34] o que permite conjecturar que o artigo “Profecia italiana” foi escrito a convite do jornal nos dias que se seguiram à recepção da carta de Amsinck Allen, na última semana de Outubro.

Com o artigo “O caso é muito simples” (de que é apenas possível dizer que foi escrito depois de 7 de Outubro[35], podendo, pois, ser anterior à “Profecia Italiana”), Pessoa pretendia tomar resolutamente posição contra a invasão da Abissínia, denunciando-a como uma agressão injustificável à luz da moral e do direito. O artigo propunha-se abordar três pontos principais: a agressão da Itália, a reacção da Sociedade das Nações e, em particular, da Inglaterra e, por fim, a atitude que Portugal deveria tomar. Apenas o primeiro ponto ficou aparentemente concluído. 

Começa Pessoa por se interrogar a que luz haveria de se considerar os problemas postos pela invasão da Etiópia. Até que ponto se deveria ter em conta os factores demográficos e os interesses expansionistas da Itália? Seria aceitável, nos tempos modernos, a conquista de uma nação por outra? Poderiam os critérios políticos — nacionais ou internacionais — ter primazia sobre os critérios da moral e do direito? Pessoa sustenta que não:

Os progressos da nossa civilização, por estorvados que tenham sido e constantemente o estejam sendo, levaram-nos todavia a não aceitar por bons, na ordem nacional ou na internacional, critérios que antigamente seriam, quando não aceitáveis, pelo menos admissíveis. Se na ordem prática muitas vezes se faz o que se não admitiria em teoria, continua a estar de pé a teoria, ainda que violada ou postergada [...] Resulta que não temos que considerar os interesses de Itália, ou de qualquer outra nação, senão à luz de saber se eles estão ou não de acordo com a moral e com o direito, e isso vem a dar em se estão de acordo com os superiores interesses da humanidade.

Ninguém, segundo Pessoa, poderia ter dúvidas de que se tratava de uma agressão de um país forte a um país fraco e, como tal, de um acto condenável “por todos os sistemas morais humanamente aceitáveis”. A própria Sociedade das Nações confirmara já “o que desde o princípio todos vimos”, isto é, que a Itália fora a agressora. Poderia a Itália invocar algum argumento para justificar tal acto? — pergunta Pessoa. Os motivos avançados pela Itália são de seguida por ele analisados. O argumento de que a Itália, porque sobre-populada, teria direito a expandir-se é refutado por Pessoa com a afirmação de que “os outros países, selvagens ou não, não têm culpa da sobrepopulação da Itália”. E acrescenta:

[...] há que notar que a sobrepopulação é um indício de baixo nível civilizacional, pois que os povos altamente civilizados tendem para a baixa da natalidade [...] O que um país sobrepopulado tem que fazer, na ordem moral, isto é, para resolver adentro da moral esse problema, é tratar de baixar a sua natalidade. A Itália está mais precisada de que lhe preguem doutrinas neo-malthusianas do que lhe preguem fascismo.

Outra justificação italiana para a agressão era, diz Pessoa, o alegado direito de, como país civilizado, a Itália “tomar conta de um país como a Etiópia, que é selvagem ou semi-selvagem”. Pondo em causa o próprio conceito de civilização e a legitimidade de “qualquer nação dever civilizar outra”, Pessoa aborda, por fim, a questão da escravatura alegadamente praticada na Etiópia para confrontar essa acusação italiana com a situação da liberdade e dignidade humanas na própria Itália fascista:

[...] a escravatura é imoral, para nós hoje, porque considera o homem como uma coisa, porque considera a alma humana como subordinável a uma potência material — o dinheiro com que compre esse corpo —, ou seja, em ultima análise, porque despreza a dignidade e a liberdade humanas. Ora a Itália fascista considera o homem como uma coisa, pois o considera subordinado ao Estado, a Itália fascista despreza todas as liberdades individuais.

Neste ponto se interrompe o artigo, que ficou inacabado. Nas notas e fragmentos de rascunho que Pessoa escreveu para este artigo (apêndice 3) há mais algumas observações que se podem reter aqui. Num trecho, discutindo aparentemente a posição defendida pela imprensa governamental portuguesa, segundo a qual, com o seu voto em Genebra, Portugal não condenara o fascismo, mas sim a infracção italiana à Carta da SDN, Pessoa declara:

Se com isto se pretende dizer que não há relação entre o imperialismo agressivo dos italianos e o fascismo, a resposta é que isso é falso, e, o que é mais, que é estupidamente falso.[36]

A ligação entre o imperialismo e o fascismo italianos é abordada noutro trecho onde afirma: “É a fatalidade de todos os povos imperialistas que, ao fazer os outros escravos, a si mesmo se fazem escravos.”[37] Num outro fragmento, rebatendo o argumento de que também a Inglaterra oprimira a Irlanda no passado, Pessoa afirma:

O problema ítalo-abexim é o que está diante de nós: é esse que temos que examinar [...] Nem o ter a Inglaterra procedido mal com a Irlanda no passado serve de justificação à Itália para que proceda mal no presente [...] Quando se dá uma série de crimes, torna-se, a certa altura, necessário pôr-lhes cobro[38].

Noutro fragmento, reforçando esta mesma ideia, Pessoa escreve que “a hora da opressão, moralmente, passou”[39].

Pessoa não chegou a abordar, como projectara, a questão da posição que Portugal deveria adoptar em face da guerra ítalo-abissínia. Nos apontamentos respeitantes a este artigo que foi possível localizar no espólio também não há nenhuma observação sobre os interesses portugueses em África ou, em particular, sobre a ameaça que para Portugal poderiam significar a política imperialista da Itália e os crescentes rumores sobre reivindicações coloniais da Alemanha hitleriana. Ora, foi precisamente esse o tema principal do debate que se verificou na imprensa portuguesa em relação com a invasão da Etiópia, como no caso da polémica de Tomás Ribeiro Colaço com Alfredo Pimenta e Fernando de Sousa. A própria posição do governo português  pode primeiramente explicar-se pela preocupação com a integridade das colónias portuguesas, uma vez que não faz sentido ver na actuação do governo de Salazar uma atitude de puro seguidismo em relação à Grã-Bretanha ou, ainda menos, à SDN. Fosse qual fosse a razão de não ter escrito sobre esse aspecto “português” da questão, é de sublinhar que Pessoa defendia, como se pode ler na primeira parte do seu artigo, que a questão ítalo-abissínia, no seu conjunto, tinha de ser considerada à luz da moral e do direito, num plano “extranacional”, e não segundo os critérios nacionais deste ou daquele país. Dando, assim, prioridade ao tratamento do tema à luz de princípios gerais e universais, é natural que Pessoa concedesse menor relevo aos aspectos relacionados com os interesses portugueses.

 

Conclusão

As posições de Fernando Pessoa sobre a invasão da Etiópia pela Itália fascista, que a censura impediu de tornar públicas, confirmam o crescente empenhamento político do escritor, na fase final da sua vida, numa luta individual contra as ameaças à liberdade que, por meados dos anos 30, se faziam sentir cada vez mais em Portugal, como parte e reflexo de uma vaga que percorria toda a Europa. Analisando com a sua habitual independência um conflito internacional de magna importância — em que Portugal assumiu um protagonismo inesperado, no quadro da Sociedade das Nações —, os escritos de Pessoa aqui em exame revelam aspectos pouco conhecidos, ou até agora deixados na penumbra, do seu pensamento político. Sobre este, desde a década de 50 que se vem esboçando um debate, tornado mais vivo e documentado a partir de 1974, com a gradual revelação de centenas de páginas de escritos inéditos[40]. O intelectual e artista em cujo ideário vários autores se empenharam, nas últimas décadas, em destacar afinidades com as correntes autoritárias (apontando na sua obra o elitismo antiplebeu e anti-democrático, a recuperação modernista de temas tradicionais do nacionalismo e o incensamento de soluções políticas messiânicas e ditatoriais[41]), aparece nos textos apresentados a defender posições e princípios de sentido claramente oposto às ideologias dos regimes autoritários então triunfantes: a defesa da liberdade e do indivíduo perante o Estado; o primado do direito e da moral sobre os interesses nacionais nas relações internacionais; a condenação da força como fundamento do direito[42]; a condenação do expansionismo territorial e das suas clássicas justificações; o questionamento do direito de civilizar “povos bárbaros” e do próprio conceito vigente de civilização; a ideia de uma conexão essencial entre fascismo, imperialismo agressivo e opressão política nos próprios países imperialistas; a defesa dos mecanismos de prevenção e solução dos conflitos internacionais no quadro da SDN.

Não se pode também deixar de relacionar a posição condenatória de Pessoa sobre a aventura africana da Itália fascista com a posição expressa pelo escritor sobre o império colonial português em 1926, nas suas respostas a um inquérito de Augusto da Costa[43], republicadas em 1934 no livro deste último, Portugal Vasto Império (Costa, 1934,29-36). Respondendo à pergunta se Portugal, “amputado das suas colónias”, perderia ou não “toda a razão de ser como povo independente no concerto europeu”, Pessoa começava por declarar: “Para o destino que presumo que será o de Portugal, as colónias não são precisas.” Num rascunho ou primeira versão das respostas, um manuscrito inédito existente no espólio do escritor, datável, pois, com segurança, de 1926, Pessoa é ainda mais categórico: “A manutenção ou perda das nossas colónias em nada pode afectar o nosso destino de grande potência espiritual, se tivermos que tê-lo, ou que poder tê-lo. O inverso daquelas palavras do Evangelho é verdadeiro tambem: podemos bem perder o mundo, desde que ganhemos a alma[44]

Os escritos de Pessoa sobre a questão da Etiópia esclarecem e completam, pela sua perspectiva e fundamentos mais vastos, as posições tomadas por Pessoa ao longo de 1935, quer em escritos públicos, quer em escritos deixados inéditos, sobre a situação política portuguesa. Completam e, de certo modo, esclarecem também a posição expressa por Pessoa, já em 1926, sobre o próprio império colonial português. 

 

Bibliografia

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APÊNDICES

Na transcrição dos textos conservou-se a ortografia dos originais.

Foram adoptados os seguintes sinais na transcrição dos textos:

 

No corpo do texto

[  ] palavra, letra ou sinal em falta no original/ variante

 espaço deixado em branco pelo autor

 

Nas notas de rodapé

<  > segmento autógrafo riscado

<†> riscado ilegível

/ \ superposição de letra

<  > / \ substituição por superposição, na relação <substituído>/substituto

[↑   ] acrescento> ou variante na entrelinha superior

<  >[↑  ] substituição por acrescento na entrelinha superior

[↓   ]  acrescento ou variante na entrelinha inferior

[←  ]  acrescento na margem esquerda

 ] no original palavras existentes no original

 

APÊNDICE 1

Profecia Italianaa

A existência do dom da profecia é afirmada por muitos e negada por muitos. Na maioria dos casos, ou a linguagem profética é tam obscura que dela se póde fazer aplicação a qualquer facto, ou a abundância é tam grande que dificilmente se encontrará um facto a que um ou outro dos pormenores se não possa ajustar. De sorte que o problema fundamental fica na mesma. Os que afirmam a existência do dom profético apontam o facto justificativo; os que lhe negam a existência apontam que qualquer facto, ainda que fôsse o contrário do que se deu, serviria igualmente, e portanto com igual inutilidade, de justificação.

Ha contudo profecias que são simples e claras, como a da célebre quadra das Centúrias de Nostradamo, em que, com mais de dois séculos de antecedência, o advento de Napoleão se indica e o seu carácter se define. É a quadra que começa: “Um Imperador nascerá ao pé de Italia” — Un Empereur naistra près d’Italie...

Estas poucas profecias que são claras versam em geral factos: são como pequenos artigos de pequena enciclopédia, resumindo a história às avessas, isto é, antes de ela existir.

Há, porém, um caso curioso de profecia clara, que contém, com vinte e dois anos de anticipação, não a indicação de factos futuros, mas o comentário justo e preciso dêles, como se os supuzesse conhecidos. E esse vaticinio tem ainda de mais curioso o não ser, suponho, de um profissional da profecia.

No jornal italiano Avanti, de 21 de Janeiro de 1913, vem inserto um artigo em que se lê o seguinte, que peço ao leitor que, palavra a palavra, acompanhe e medite:

“Estamos na presença de uma Italia nacionalista, conservadora, clerical, que se propõe fazer da espada a sua lei, e do exercito a escola da nação.

“Previmos esta perversão moral: não nos surpreende.

“Erram porém os que pensam que esta preponderância do militarismo é sinal de fôrça. As nações fortes não têm que descer à espécie de carnaval estúpido a que os italianos hoje estão entregues: as nações fortes têm o sentido das proporções. A Italia nacionalista e militarista mostra que não tem êsse sentido.

“E assim sucede que uma réles guerra de conquista é celebrada como se fôsse um triunfo romano.”

Ignoro a que propósito imediato se escreveram essas linhas. Ignoro e não importa. São elas o mais justo, o mais claro e o mais cruel comentario de quanto hoje, vinte e dois anos depois, se está passando na Italia, ou, melhor, com a Italia. Ao jornalista casual coube um lampejo de verdadeiro espírito profético.

Felizmente o artigo é assinado, de sorte que não falta o nome, nem portanto a honra, ao iluminado dessa súbita inspiração.

O autor do artigo do Avanti

Não ter êle fixado residência em profeta!...

 

Fernando Pessoa

 

a BNP/E3, 92X-78 a 79. Transcrição fiel do original dactilografado, mantendo a respectiva ortografia. Publicado pela primeira vez, com ligeiras diferenças, em Cunha e Sousa (1985, pp. 121-122).

 

 

APÊNDICE 2

[O CASO É MUITO SIMPLES]a

Quando foi posto em vigor, no xadrez das ruas de Lisboa[45], a presente regulamentação do transito de peõesb, as regras de marcha e contramarcha pareceram a principio, a muitos, de uma complicação extrema. O caso, porém, é muito simplesc: andar sempre pelo passeio a atravessar as ruas em linha recta. Nisto, que não é complicado, se resume[46] toda a complicação.

A Sociedade das Nações, fundada louvavelmente para evitar quanto possivel as guerras e as desintelligencias entre povos, que possam levar à guerra, adoptou desde o inicio o mesmo criterio para os paizes que o Municipio lisbonense adoptou para os peões: devem os paizes andar sempre pelo passeio e atravessar as suas difficuldades em linha recta.

Vêm estas considerações a proposito do[47]conflicto entre a Italia e a Abyssinia, ou seja, em linguagem mais justa, o conflicto que a Abyssinia é obrigada a ter com a Italia. Ora o problema suscitado por esse conflicto divide-se em trez problemas: a attitude da Italia, e se essa attitude é justificavel; a attitude da[48] Sociedade das Nações, e, particularmente, da Inglaterra ante essa attitude da Italia; a attitude que cada nação deve tomar perante o conflicto e a situação em que está posto. Para nós, portuguezes, este terceiro problema vem a ser: qual a attitude que Portugal deve tomar.

Consideremos, pela ordem exposta, estes trez modos[49] do problema. Mas, antes de mais nada, vejamos a que luz os temos de considerar. Tudo[50] quanto involve a politica das nações entre si cahe necessariamente sob trez criterios distinctos. O primeiro é o internacional[51], isto é, o da entre-relação das nações e do resultado, em qualquer lance, d’essa entre-relação. Esse problema escapa às previsões e aos projectos: a sua solução[52] não póde ser dada senão pelos factos, e não ha homem, a não ser que pretenda ser propheta ou deus, que possa contar[53] o numero de forças que entram ou poderão entrar em jogo, calcular as maneiras[54] como agirão essas forças, deduzir o que[55] resultará d’esse e ntrechoque de coisas que não sabe quantas são nem o que são[56].

O segundo criterio é o criterio nacional, isto é, o de que cada nação tem de considerar os seus interesses e agir de accordo com elles. Como, porém, os interesses de uma nação são sempre, por um lado, obscuros a ella mesma, podendo ser prejudicados, involuntariamente, pelos seus proprios governantes, e como são frequentemente, por outro lado, oppostos aos interesses de outras nações, quando não ao conjuncto das outras nações todas, o criterio nacional resulta inutil e fóra de caso na consideração de um problema que, por sua natureza, tem de ser considerado extra-nacionalmente[57], pois que affecta outras nações além da de que se trate.

O terceiro criterio é o criterio moral, que necessariamente antecede[58], na ordem humana, todo criterio politico, seja nacional, seja internacional. Os progressos da nossa civilização, por estorvados que tenham sido e constantemente o estejam sendo, levaram-nos todavia a não acceitar por bons, na ordem nacional ou na internacional, criterios que antigamente seriam, quando não acceitaveis, pelo menos admissiveis. Se na ordem practica muitas vezes se faz[59] o que se não admittiria em theoria, continúa a estar de pé a theoria, ainda que violada ou postergada. É na vida nacional[60] como na individual: podemos achar comprehensivel, e por comprehensivel[61] desculpavel, que um homem mate outro em certas circumstancias; não erigimos todavia em doutrina acceitavel o homicidio voluntario.

Somos forçados, pois, em ultimo mas natural recurso, a examinar estes problemas nacionaes e internacionaes à luz do criterio moral. A essa luz os vê instinctivamente qualquer homem que o interesse não cegue ou a paixão não turve; a esse criterio os vê[62], ou procura ver, a Sociedade das Nações.

Fixemos bem o resultado[63] de tudo isto. Resulta que não temos que considerar os interesses de Italia, ou de qualquer outra nação, senão à luz de saber se elles estão ou não de accordo com a moral e com o direito, e isso vem a dar em se estão de accordo com os superiores interesses da humanidade.

Posto isto, podemos entrar na consideração dos trez problemas particulares em que o problema geral se divide. Começaremos, segundo a ordem exposta, que é a natural, pela attitude da Italia.

Trata-se de um conflicto armado entre um povo presumido fraco, e com certeza materialmente quasi desapetrechado[64], e um povo que se presume forte, quer porque de facto o seja, quer porque hypnoticamente se o supponha, quer porque[65] funde em seus recursos e productos de sciencia applicada uma superioridade que talvez organicamente não possua.

Tal conflicto viola desde logo o mais rudimentar instincto[66] moral humano[67] — o que impelle cada homem, independentemente de saber de causas ou razões, [a] estar pelo fraco contra o forte num conflicto que entre os dois se dê.

Passado, porém, este movimento primitivo do coração, ha que examinar as causas que motivaram o conflicto; pois, se o forte não tem direito de abusar da sua força, tampouco tem o fraco o direito de abusar da sua fraqueza — isto é, das sympathias que como tal cria, e os appoios[68] practicos que d’ella se derivem — para vexar ou provocar o forte. Temos[69] pois de saber se neste caso italo-abexim, se deu tal vexame ou tal provocação; e a resposta, como todos sabemos, é negativa. Todos vimos, desde o principio, que a Italia era a aggressora; e a investigação[70] da Sociedade das Nações confirmou o que desde o principio todos vimos.d

Condemnada assim a Italia, desde o principio e a essencia do problema, por todos os systemas moraes humanamente acceitaveis[71], resta saber se essa nação apresenta qualquer argumento, moralmente acceitavel, para justificar a innegavel aggressão[72] que a privou do argumento[73] fundamental. Até agora appareceram dois d’esses argumentos, e o chamar-lhes argumento é favor que lhes fazemos. O primeiro é de que a Italia, sobre-populada, tem de expandir-se. O segundo é que a Italia, paiz civilizado, tem todo o direito a tomar conta de um paiz como a Ethiopia, que é[74] selvagem ou semi-selvagem. Melhor do que isto não se[75] pôde arranjar. Infelizmente, o melhor é do peor que ha.

Quanto ao primeiro argumento, a todos será evidente que os outros paizes[76] , selvagens ou não, não teem culpa da sobre-população da Italia — e ha que notar que a sobre-população é um indicio de baixo nivel civilizacional, poisque os povos altamente civilizados tendem para a baixa da natalidade, quer por motivos organicos, quer por motivos moraes e intellectuaes, que se reflectem em practicas artificiaes. O que um paiz sobre-populado tem que fazer, na ordem moral, isto é, para resolver a dentro da moral[77] esse problema, é tratar de baixar a sua natalidade. A Italia está mais precisada de que lhe preguem doutrinas neo-malthusianas do que lhe preguem fascismo.

Se, porém, a situação[78] presente exige de facto essa “expansão” — o que não sei se será rigorosamente exacto, pois[79] não tenho sobre o assunto outra informação que não seja a de Mussolini e dos fascistas, de cuja veracidade e imparcialidade não é illicito duvidar —, ponha a Italia o problema, devidamente fundamentado, perante a Sociedade das Nações. Ou essa encontra uma solução satisfactoria, ou não a encontra.  Se a encontra, está o caso arrumado, e, ainda que a solução desagrade a este ou àquelle paiz, não póde a Italia ser culpada de tal situação. Se a não encontra[80], ou procede justa ou injustamente. Se procede justamente, é que o problema é insoluvel: a Italia que o não arranjasse. Se procede injustamente, tem a Italia o direito de proceder, bem ou mal, como entender, pois, do ponto de vista moral e da salvaguarda da paz, começou por proceder como devia[81].

Quanto ao segundo argumento, succede-lhe o [que] os inglezes chamam cahir entre dois bancos, como alguem que se sentasse no ar, entre os dois. Em primeiro logar, não ha argumento inteiramente plausivel em favor de qualquer[82] nação dever civilizar outra. Em segundo logar, ninguem entregou à Italia o encargo de civilizar a Ethiopia. Accresce que ninguem sabe ao certo o que quere[83] dizer a palavra “civilização”, que, como a maioria dos termos correntes, significa para[84] cada qual o que elle quere ou lhe convém. Os etiopes são[85] incivilizados[86], ao que parece, porque teem lá[87] a escravatura e porque não teem um alto nivel de hygiene e de cultura. Ora a escravatura é immoral, para nós hoje[88], porque considera o homem como uma coisa, porque considera a alma humana como subordinavel a uma potencia material — o dinheiro com que compre esse corpo —, ou seja, em ultima analyse, porque despreza a dignidade e a liberdade humanas. Ora a Italia fascista considera o homem como uma coisa, pois o considera subordinado ao Estado, a Italia fascista despreza todas as liberdades individuaese

 

a BNP/E3, 92X”74r a 76r. Dactiloscrito de três páginas numeradas, sem indicação de título, datável de 1935, com uma correcção do punho do autor. Sobre o título proposto para o texto, veja-se aqui a nota c.

b A 1 de Outubro de 1935 entrou em vigor em Lisboa um novo regulamento de trânsito.

c Num projecto editorial de 1935 (48B”90r), Fernando Pessoa incluiu um artigo intitulado “O caso é muito simples”, destinado ao R[epública] ou ao D[iário] de L[isboa]. Deve tratar-se do presente artigo, em virtude da frase usada aqui. O projecto editorial em causa é citado por Luís Prista em Pessoa (2000, p. 456).

d Este período permite situar o escrito depois da primeira semana de Outubro de 1935. Com efeito, após o início da agressão italiana à Abissínia (3 de Outubro), o “comité dos seis”, nomeado pela Sociedade das Nações e presidido pelo ministro português Armindo Monteiro, aprovou a 7 de Outubro um relatório sobre o conflito, a “investigação” de que Pessoa fala aqui.

eA ausência de ponto final, bem como a própria construção da frase, mostram que o texto não foi acabado. Pessoa também não cumpriu o plano elaborado no terceiro parágrafo do texto, tendo tratado apenas do primeiro dos “três problemas” que pretendia abordar.

 

APÊNDICE 3

[BNP/E3, 92W-5]

Aqui ha trez pontos a considerar: a aggressão a um fraco por um forte; a tentativa de occupação de um territorio que legitimamente pertence a outro, independentemente de forças e de fraquezas; e o caso particular da aggressão da Italia à Abyssinia, nas circunstancias presentes do mundo.

[BNP/E3, 92X-72]

O conflicto entre a Italia e a Abyssinia, ou seja, em linguagem mais logica, o conflicto[89] que a Abyssinia é obrigada a ter com a Italia, apresenta para nós portuguezes, como diversamente para todos os povos que não sejam aquelles dois, cinco aspectos distinctos.

O primeiro, não na ordem politica mas na humana[90], que necessariamente antecede a politica, é o aspecto moral. Trata-se[91] da aggressão de um povo presumido fraco por um povo que se presume, a si mesmo, forte, quer porque de facto o seja, quer porque artificialmente/hypnoticamente se o supponha, quer porque funde em seus recursos e[92] productos de sciencia applicada uma superioridade que organicamente não possue . Neste ponto a Italia está condemnada por todos os systemas moraes humanamente acceitaveis: em nenhum codigo moral, escripto ou intuitivo, se considera a força como fundamento[93], embora se possa considerar como garantia, do direito. Em nenhum se considera a força como direito.

[BNP/E3, 92X-73]

Une-nos a elles, num[94] mais largo e mais ironico conceito[,] uma vasta e larga fraternidade[95] humana. Nós todos, homens, que neste mundo vivemos oppressos pelas/pelos varias violencias/desprezos do[s] felizes[96] e pelas diversas insolencias dos poderosos — que somos todos nós neste mundo, senão abexins?

Se com isto se pretende dizer que não ha relação entre[97] o imperialismo aggressivo dos italianos e o fascismo, a resposta é que isso é falso[98], e, o que é mais, que é estupidamente falso.

[BNP/E3, 92W-6]

É a fatalidade de todos os povos imperialistas[99] que, ao fazer os outros escravos, a si mesmo se fazem escravos.

[BNP/E3, 92W-8]

Não nos deixemos levar por esses argumentos. O problema italo-abexim é o que está diante de nós: é esse que temos que examinar.

Não se discute para antes de hontem.

Nem o ter a Inglaterra procedido mal com a Irlanda no passado serve de justificação à Italia para que proceda mal no presente. Dois males não fazem/formam um bem, diz o proverbio inglez[100].

Quando se dá uma série de crimes, torna-se, a certa altura, necessario por-lhes cobro. Não se põe cobro aos que já foram feitos,

Conservemos o juizo, leitor, como homens simples que somos.

[BNP/E3, 92W-9]

O mundo está já um pouco cansado dos que, por terem/porque teem[101] as mãos frias, as mettem> nas algibeiras... dos outros[102].

A grande natalidade —

E assim um phenomeno puramente animal, em que as femeas/senhoras[103] dos coelhos facilmente superam, sem nacionalidade alguma, as dos homens, serve[104] para explicar[105] toda especie de offensas ao direito, à justiça e à humanidade.

Estão, selvagens[106] ou não, socegados em suas casas, e desce/cahe/desaba [107] sobre elles civilização de crear bicho.

Ha horas para tudo, e a hora da oppressão, moralmente, passou.

 

 

FONTES

 

Arquivo

BNP/E3 (Espólio Fernando Pessoa).

 

Jornais

A Voz

Diário da Manhã

Diário de Lisboa

Diário de Notícias

Fradique

Jornal do Comércio e das Colónias

O Diabo

 

Notas

[1]Diário de Lisboa, 4 de Fevereiro de 1935, pp. 1 e centrais.

[2] Parte destes manuscritos foi publicada em Pessoa (1979a).

[3] Pela primeira vez reunidos em Pessoa (2000), com a revelação de alguns poemas inéditos.

[4] Sobre esta produção de textos políticos pessoanos, v. José Barreto (2008, no prelo e 2009).

[5] V., por exemplo, Pessoa (1979a, pp. 357-358, 365 e 396, 1979b, p. 85, e 1993, p. 371). Vários textos ainda inéditos de Fernando Pessoa contêm referências críticas ou depreciativas sobre Mussolini e o seu regime. Nenhum texto conhecido de Pessoa, de qualquer fase da sua vida, elogia a política de Mussolini ou o fascismo.

[6] “Plagiamos o fascismo e o hitlerismo, plagiamos claramente, com a desvergonha da inconsciência, como a criança imita sem hesitar. Não reparamos que fascismo e hitlerismo, em sua essência, nada têm de novo, porventura nada de aproveitavel, como ideias; o que não sabemos imitar, porque seria mais difícil, é a personalidade de Mussolini” (BNP/E3, 55I-524, publicado em Pessoa (1979b, p. 85). 

[7] Respectivamente em BNP/E3, 92M-62 a 63 (manuscrito intitulado “Nacionalismo”, datável de 1935) e em BNP/E3, 26-20 (fragmento sob a epígrafe “300”).

[8]BNP/E3, 92L-97 (fragmento intitulado “A traição dos democratas”, datável de 1933-1935). Em BNP/E3, 53B-67 (sob a epígrafe “300”), Pessoa sustenta igualmente as semelhanças entre, por um lado, o bolchevismo e o anarquismo e, por outro, o corporativismo (fascista), que seriam “dois bandos de loucos, opondo-se furiosamente, mas falsamente, e parecendo obscuramente combinados para a ruina da civilização”.

[9] “Quem hoje prega a sindicação, o estado corporativo, a tirania social, seja fascismo ou comunismo, está dissolvendo a civilização europeia; quem defende a democracia e o liberalismo a está defendendo” (BNP/E3, 20-60 a 61, texto publicado pela primeira vez em Pessoa (1966, pp. 74-79).

[10] BNP/E3, 55B-5 (fragmento sem título).  

[11] Disso mesmo se queixava o semanário O Diabo, de 29 de Setembro de 1935, na rubrica “Ecos da semana”, usando do eufemismo “certos países” para se referir a Portugal.

[12] Julião Quintinha, “Algumas considerações à margem do conflito ítalo-etíope”, O Diabo, 20 de Outubro de 1935, p. 4. O Diabo divulgou também uma série de desenhos de Roberto Nobre contra a invasão da Etiópia.

[13] Tomás Ribeiro Colaço, “A guerra dos conservadores”, Fradique, 10 de Outubro de 1935, p. 1.

[14] Fernando de Sousa, “Estupidez? Não! Trolarolismo”, A Voz, 15 de Outubro de 1935, p. 1.

[15] Tomás Ribeiro Colaço, “Trolaró e o Sagrado Coração. Estupidez? – Sim!”, Fradique, 24 de Outubro de 1935, pp. 1 e 6.

[16] Alfredo Pimenta, “A Itália e a Etiópia”, A Voz, 24 de Agosto de 1935, p. 6.

[17] Esta hipótese é sugerida por Blanco (2007). 

[18] “A verdade sobre a Franco-Maçonaria”, A Voz, 7 de Fevereiro de 1935, p. 1.

[19] Fernando de Sousa, “Quadros vivos da Abissínia – Barbárie mascarada de civilização”, A Voz, 25 de Agosto de 1935, p. 1.

[20] Fernando de Sousa, “As mentiras convencionais”, A Voz, 4 de Novembro de 1935, p. 1

[21] Fernando de Sousa, “A Sociedade das Nações”, A Voz, 22 de Setembro de 1935, p. 1.

[22] Fernando de Sousa, “As religiões na Etiópia”, A Voz, 20 de Outubro de 1935, pp. 1-2.

[23] Fernando de Sousa, “O que tem sido a SDN”, A Voz, 29 de Outubro de 1935, p. 1.

[24] “O momento político”, nota oficiosa do governo publicada nos jornais de 20 de Setembro de 1935.

[25] V. os editoriais não assinados “Atitude de Portugal em Genebra” e “Portugal perante o conflito ítalo-abexim”, Diário da Manhã, de 7 e 15 de Outubro de 1935.

[26] Entrevista de Armindo Monteiro ao Diário de Notícias de 19 de Outubro de 1935.

[27]Cit. in Oliveira (2000, p. 143).

[28] Id., ibid.

[29] Este texto foi publicado pela primeira vez por Cunha e Sousa (1985, pp. 121-122).

[30] Cunha e Sousa (1985, p. 122, nota de rodapé).

[31] BNP/E3, 53B-1rv, publicado em Pessoa (1993, p. 336). Uma instrução do director-geral dos Serviços de Censura, a 8 de Fevereiro de 1935, ordenara aos censores que não fossem permitidas notícias ou citações do artigo “Associações secretas” (v. a reprodução da mesma em Zenith (2008, p. 164.) Assim, a 10 de Fevereiro, O Diabo apenas pôde manifestar o seu apoio a Pessoa reproduzindo o seu retrato na primeira página, sob o lacónico título “Figuras da actualidade”.

[32] BNP/E3, 48-90r.

[33] O nome de Amsinck Allen e o seu endereço londrino figuram numa agenda de Fernando Pessoa por ele usada em 1935 (BNP/E3, 144F-14r). Trata-se, provavelmente, de Virgílio Amsinck Allen (1869-1947), homem de negócios luso-britânico.

[34] BNP/E3, 1151-2.

[35] O texto refere-se à “investigação da Sociedade das Nações” sobre as causas do conflito ítalo-abissínio, uma alusão ao relatório do “comité dos seis”, nomeado pela dita organização e presidido pelo ministro português Armindo Monteiro, que foi aprovado pela assembleia geral da SDN a 7 de Outubro de 1935.

[36] BNP/E3, 92X-73.

[37] BNP/E3, 92W-6.

[38] BNP/E3, 92W-8.

[39] BNP/E3, 92W-9.

[40] Contribuíram para esse debate, numa lista forçosamente incompleta, por ordem tentativamente cronológica: João Gaspar Simões, Pedro Veiga (Petrus), Georg Rudolf Lind, Jacinto do Prado Coelho, Jorge de Sena, Pedro da Silveira, Alfredo Margarido, Joel Serrão, António Quadros, José Augusto Seabra, Eduardo Lourenço, Teresa Sobral Cunha, Teresa Rita Lopes, António Apolinário Lourenço, Brunello de Cusatis, Raul Morodo, Onésimo Teotónio de Almeida, Manuel Villaverde Cabral, João Medina e António Costa Pinto. Para uma bibliografia actualizada sobre o pensamento político de Fernando Pessoa, v. Blanco (2008).

[41] V., especialmente, a “Introdução” de Margarido em Pessoa (1986, pp. 9-90), Pinto (1996) e Cabral (2000, pp. 181-211).

[42] Quão longe está Pessoa, em 1935, neste ponto, de posições tomadas uma década e meia antes, como por exemplo num escrito de 1919 em que, embora num contexto diferente, incensava a “vontade do Destino” e o “direito da Força” (BNP /E3, 92B-56). 

[43] As repostas de Pessoa foram primeiramente publicadas no Jornal do Comércio e das Colónias, de 28 de Maio de 1926, p. 1.

[44] BNP / E3, 55J-37.

[45] no xadrez [↑ das ruas] de Lisboa

[46] Nisto <se resume>, que não é complicado, se resume

[47] de] no original

[48] <das> da

[49] <aspectos> modos

[50] <A lo> Tudo

[51] distinctos <:> /.\ <um é o internacional> O primeiro é o internacional

[52] <nasce a sua sol> a sua solução

[53] <medir> contar

[54] <as ma> calcular as maneiras

[55] deduzir <que> o que

[56] sâo] no original

[57] <extra-> extra-nacionalmente

[58] necessariamente [ ←  antecede]

[59] <pr> faz

[60] <social> nacional

[61] comprehensivel <que um homem mate outro em certas circumstancias>, e por comprehensivel

[62] <pro> vê

[63] resulta] no original

[64] com certeza <quasi desaptrechado> materialmente quasi desapetrechado

[65] por que] no original

[66] rudimentarinstincto] no original

[67] <moral de uma civilização, como a nossa, baseada longinquamente na moral christã, apoiada de perto no liberalismo, que <é> não é mais que <a> o prolongamento laico dessa moral> moral humano

[68] cria <–para>, e os appoios

[69] <Resta saber> Temos

[70] <confirmo> e a investigação

[71] acetaveis] no original

[72] aggressâo] no original

[73] argumen to] no original

[74] que <não> é

[75] de] no original

[76] <ninguem tem culpa da sobre-população da Italia> os outros paizes

[77] <moralmente> a dentro da moral

[78] <o problema> [↑ a situação]

[79] <—,>, pois

[80]Se a <Italia> a não encontra

[81] <procedeu como devia> começou por proceder como devia

[82] <ser> qualquer

[83] querer] no original

[84] <o que> para

[85] sâo] no original

[86] inciviilizados] no original

[87] lê] no original

[88] <porque consiste>, para nós hoje

[89] <a aggressão da Italia à Abyssinia> o conflicto

[90] O primeiro <é o aspecto moral>, não <nessa> [↑ na] ordem [↑ politica] mas na humana

[91] <é o de se tratar > [↑ é o aspecto moral. Trata-se]

[92] <de> [↑ e]

[93] como <um direito> fundamento

[94] /...\ [↑ Une-nos a elles,] /n\um

[95] conceito[,] <de> [↑ uma vasta e larga] fraternidade

[96] pelas [↑ pelos] varias violencias [↑ desprezos] do <Destino> felizes

[97] que [↑ não ha relação]

[98] que [↑ isso] é falso

[99] todos os [↑ povos] imperialis<mos>tas

[100] Dois males não fazem [↑ formam] um bem, <dizem os ingl> diz o proverbio inglez

[101] por terem [↑ porque teem]

[102] as mettem nas algibeiras... dos outros. [↓... as querem aquecer mettendo-as nas algibeiras dos outros.]

[103] femeas [↑ senhoras]

[104] <†> serve

[105] para explicar [↑ de justificação (em falso)]

[106] <socegados> [↑ selvagens]

[107] desce [ cahe  ↑desaba]

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