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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.193 Lisboa out. 2009

 

Risco e incerteza no pensamento biomédico: notas teóricas sobre o advento da quantificação e da prova experimental na medicina moderna**

 

Hélder Raposo*

* ICS, Universidade de Lisboa, Av. Professor Aníbal de Bettencourt, 9, 1600-189 Lisboa, Portugal. e-mail: helder.raposo@ics.ul.pt.

 

A biomedicina é um domínio do saber no qual a proliferação do conceito de risco se tem evidenciado de forma expressiva, o que revela uma preocupação em proceder ao controlo sistemático dos problemas através de um modelo de racionalização instrumental. Tal procedimento é elucidativo do investimento que é feito na interpretação das incertezas como riscos. Consequentemente, a dimensão estatística que lhe está associada é cada vez mais um dos principais traços do seu perfil científico.

Palavras-chave: risco; incerteza; quantificação; biomedicina.

 

Risk and uncertainty in biomedical thought: theoretical notes about the rising of quantification and experimental proof in modern medicine

Biomedicine is a field where the concept of risk has shown an impressive increase in its importance. This fact demonstrates a concern with a systematic problem control through an instrumental rationalizing model, expressing eloquently the investment being made in interpreting uncertainty as risk and the consequent statistical dimension as an ever-more quintessential feature of its scientific profile.

Keywords: risk; uncertainty; quantification; biomedicine.

 

Introdução

A crescente ênfase na padronização, e o empenho na racionalização da medicina constituem alguns dos traços essenciais que nos permitem pensar o tipo de dinâmicas e transformações que, no decorrer das últimas décadas, têm reconfigurado a epistemologia científica da medicina contemporânea. Com este artigo, pretende-se contribuir para a discussão sobre o significado dessas mutações, apresentando-se alguns dos principais elementos que permitem caracterizar e contextualizar a natureza desta nova abordagem “paradigmática”.

Neste sentido, um exercício fundamental será o de se tentar identificar e compreender de que forma, a montante das actuais estratégias de normalização da prática clínica promovidas pelos defensores da medicina baseada na prova (evidence-based medicine), como forma de conferir maior objectividade a esta prática, estão já inscritas algumas das condições que viabilizaram a consolidação das metodologias científicas de base estatística. Em rigor, estamos a falar de um processo muito gradual, descontínuo e fracturante. Porém, a proeminência da actual abordagem biomédica apresenta um lastro histórico suficientemente rico para que possamos dar conta das principais dinâmicas de desenvolvimento da sua racionalidade científica.

Na reflexão que aqui se apresenta, mais do que nos limitarmos a fazer um mapeamento deste processo, importa equacionar de que modo a indispensabilidade da prova estatística corresponde a uma estratégia para gerir a incerteza (Timmermans e Angell, 2001) num contexto fortemente marcado por imperativos de racionalização e de padronização científica (Cambrosio et al., 2006; Timmermans e Berg, 2003). A abordagem que aqui se empreende é fundamentalmente teórica e o seu horizonte de indagação sociológica visa identificar alguns eixos de problematização que permitam esclarecer melhor a questão da incerteza médica (Fox, 1998 [1959] e 2003). Esta funciona, afinal, como o grande pretexto que justifica o desenvolvimento e a promoção de metodologias científicas que procuram ultrapassar a efectiva variação e contingência da prática médica.

 

Risco e quantificação: breve panorama

A moderna noção de risco alicerça-se numa abordagem e num entendimento racionalista da realidade que pressupõe o controlo da incerteza através do desenvolvimento de procedimentos estatísticos e de probabilidades matemáticas. Efectivamente, é possível considerar que esta categoria assume uma grande centralidade no contexto da modernidade, pois a crescente industrialização e criação de instituições de controlo e regulação social tornaram imperativa a necessidade de conhecimentos objectivos e o desenvolvimento do pensamento racional. Nestas circunstâncias, é frequente argumentar-se que o risco se cientificizou através de uma abordagem probabilística e estatística e que adquiriu um perfil técnico associado ao cálculo matemático (Lupton, 1999, pp. 5-6).

Assim, se até à emergência da época moderna a noção de risco tinha um sentido neutro, dizendo apenas respeito às probabilidades de ocorrerem ganhos ou perdas (Gabe, 2004), a verdade é que com o advento de um discurso e de um entendimento determinista da realidade social e natural ganha preponderância uma nova acepção deste conceito, o qual passa a estar vinculado à ideia de que o mundo é regido por leis causais e universais que podem ser determinadas e previstas através de dispositivos de probabilidade matemática (Gabe, 2004; Green, 1997). Desta forma, não só se verificou a transformação do conceito de risco em termos do seu significado — estando agora vinculado a uma conotação negativa que decorre da ideia de perigo (Gabe, 2004) —, como também se revelou assinalável a crescente capacidade técnica de “domesticação do acaso”, fortemente ancorada na expansão dos desenvolvimentos do cálculo probabilístico.

Num contexto em que a arquitectura institucional e a racionalidade técnico-científica das sociedades modernas exigem lógicas de previsão, cálculo e controlo, operou-se a consolidação da abordagem científica, principalmente através da obsessão com a prevenção do risco[1], dando origem ao que alguns autores designam como “mito da calculabilidade” (Lupton, 1999, p. 7) ou da prevenção do acidente[2].

Tendo em conta esta afinidade electiva entre “risco” e “modernidade”, pode-se considerar, portanto, que a profusa utilização e aplicação das estatísticas em vastos domínios da vida social, bem como um intenso entusiasmo pelos números e a respectiva multiplicação de classificações, parecem traduzir a ideia de que na modernidade o acaso passa a ser desvalorizado em benefício da ideia de controlo e de regularidade. Todo o investimento intelectual que então se produz (nomeadamente nos estudos matemáticos que estiveram na base do desenvolvimento da ideia de probabilidade) é uma expressão nítida dessa tendência, na medida em que o acaso passa a ser enquadrado como um horizonte disruptivo que importa dominar. Aliás, a obsessão em controlar essa dimensão acabou por permitir que se consolidasse uma espécie de imperialismo da probabilidade, uma vez que o mundo se tornou cada vez mais numérico e submetido a modos gradualmente mais sofisticados de mensurabilidade e de categorização estatística.

Um domínio do saber em que a tendência para a proliferação do conceito de risco se tem evidenciado são as ciências da saúde e, em particular, a biomedicina, o que representa, desde logo, um indicador da própria cientifização que tem vindo a caracterizar este campo. De facto, olhando para a forma como esta categoria foi incorporada nos discursos e nas práticas biomédicas, podemos considerar que os procedimentos de avaliação e gestão do risco que se têm desenvolvido traduzem uma forma de apropriação da incerteza através de um conhecimento pericial caracterizado por procedimentos de cálculo baseados na ideia de probabilidade. De acordo com Nunes (2002, p. 290), a biomedicina adoptou o conceito de risco num sentido muito próximo do que propõe a Royal Society britânica, segundo a qual o risco é “a probabilidade de que um acontecimento adverso particular ocorra durante um dado período de tempo ou em resultado de um desafio particular. Enquanto probabilidade no sentido em que a entende a teoria estatística, o risco obedece a todas as leis formais da combinação de probabilidades”.

Por essa razão, a preocupação em proceder ao controlo sistemático dos problemas através de um modelo de racionalização instrumental é elucidativa acerca do investimento que é feito na interpretação das incertezas como riscos (na sua conversão em probabilidades), dado que este processo permite estabelecer fronteiras que delimitam e controlam o acaso[3].

Deste modo, a quantificação na biomedicina representa actualmente um processo ambivalente: para além das potencialidades e dos benefícios que confere, há um imenso conjunto de dúvidas e interrogações que fazem com que esta reconfiguração seja olhada sob uma perspectiva crítica e simultaneamente prudente. Autores como Marques (2002, pp. 15-16) desenvolvem a este respeito reflexões de grande pertinência, problematizando os impactos que a tendência de crescente quantificação tem na medicina. De facto, como lembra este autor, a medicina é, desde as suas remotas fundações, uma ciência do indivíduo que sempre procurou privilegiar e valorizar a singularidade e a determinação do contingente na arte de cuidar do doente, o que significa que, não obstante ter sido um saber carecido de critérios objectivos de verdade, procurou sempre proceder com acribia em relação ao doente e não só à doença. Assim, perante os progressos exponenciais das ciências biomédicas, torna-se relevante perceber que estão em causa inversões fundamentais na própria medicina clínica e na sua relação privilegiada com o doente individual, pois são cada vez mais voláteis as tensões entre o critério clínico e o critério estatístico decorrente da assinalada tendência da quantificação. Neste sentido, e como refere o autor, “a estatística tira o seu poder da medição de tudo pela mesma bitola, exactamente o revés da determinação da diferença e da procura da singularidade que toda a clínica desde sempre exigiu e exige” (Marques, 2002, p. 32).

 

Acerca da genealogia da medicina experimental

Esta dimensão estatística, que parece ser hoje um dos principais traços que caracterizam a biomedicina, não deixa, todavia, de ser o resultado de transformações teóricas e cognitivas relativamente recentes operadas no campo da clínica médica. A obra de Michel Foucault (1994 [1980]) sobre o nascimento da clínica oferece, precisamente, algumas pistas importantes relativamente ao conjunto das transformações referidas. Segundo este autor, é fundamentalmente a partir do século xix que se assiste a uma reorganização profunda do saber médico e da sua prática, em particular ao nível dos seus objectos, conceitos e métodos, que passam a configurar um novo tipo de medicina (científica) fundada na objectividade e em medições instrumentais da quantidade. A emergência de um novo olhar médico, que já não se detém apenas nas qualidades dos objectos, mas que passa a ser um olhar empírico alicerçado numa linguagem racional, levanta a velha proibição aristotélica de submeter o indivíduo a um discurso de estrutura científica (Foucault, 1994 [1980], p. 13). Tal abertura do indivíduo à experiência clínica — a primeira na história ocidental — significou, deste modo, o início da observação positiva do doente no seu leito, ou seja, num “espaço” que se passará a assumir como campo de investigação, no qual são observadas, de modo preciso e sistemático, todas as informações respeitantes ao indivíduo.

Essa nova linguagem, que é parte constitutiva do método anátomo-clínico que caracteriza a então emergente medicina experimental, passa a deslocar a sua atenção do indivíduo doente para o seu corpo, sobretudo para o seu interior, ou seja, para os seus órgãos, procedendo assim a um reducionismo metodológico centrado no órgão e nos elementos infinitamente pequenos, afastando-se progressivamente da preocupação com a singularidade dos indivíduos tomados na sua unidade somatopsíquica.

Um dos corolários importantes que decorrem deste conjunto de transformações da ciência médica é a mudança conceptual relativamente ao tratamento da incerteza, nomeadamente a partir do final do século xviii. Nessa altura assiste-se à importação do saber probabilístico e à consequente reconfiguração da medicina, que, a partir de então, “não tem mais que ver o verdadeiro essencial sob a individualidade sensível; está diante da tarefa de perceber, e infinitamente, os acontecimentos de um domínio aberto” (Foucault, 1994 [1980], pp. 110-111).

De facto, esta mudança nos saberes constitui um elemento de fulcral importância. Com a instauração do tratamento analítico da incerteza em medicina — sob forte influência do trabalho de figuras como Laplace —, a noção de incerteza passa a ser tratada como a soma de um certo número de graus de certeza isoláveis e susceptíveis de um cálculo rigoroso. No fundo, é através da incorporação do cálculo probabilístico no saber médico e nos valores perceptivos da experiência clínica que podem ser assinaladas as mudanças mais significativas no campo da clínica na medida em que os factos observados no âmbito desta nova lógica de investigação passam a ser isolados e postos em confronto com uma série de acontecimentos que podem ser mensuráveis, o que significa que a nova estrutura do campo clínico, tal como refere Foucault (1994 [1980], p. 110), passa a ter outros contornos: “o indivíduo posto em questão é menos a pessoa doente do que o facto patológico indefinidamente reprodutível em todos os doentes igualmente afectados”.

Neste sentido, a crescente importância concedida à ideia de certeza médica acabou por ter implicações consequentes no modo de entender o indivíduo, em particular porque a determinação da individualidade se desloca da identificação da singularidade do indivíduo para a ordenação, em série, das multiplicidades dos factos individuais que suprimem, espontaneamente, as variações individuais. Neste novo quadro da experiência clínica, as variações passam a ser integradas no domínio da probabilidade, o que significa que, se por um lado, estas não são afastadas, por outro, elas anulam-se na configuração geral, isto é, ocultam-se sob as médias e os limites das regularidades estatísticas. Como refere Foucault, “na sombra, e sob um vocabulário aproximado, circulam noções em que se pode reconhecer o cálculo de erro, o desvio, os limites, o valor da média. Todas elas indicam que a visibilidade do campo médico adquire uma estrutura estatística e que a medicina se dá como campo perceptivo, não mais um jardim de espécies, mas um domínio de acontecimentos” (Foucault, 1994 [1980], p. 116).

 

Os novos imperativos científicos e o (lento) triunfo das estatísticas na medicina

Mas será que, no contexto da sua emergência, estas transformações alteraram radicalmente a medicina? Será que as rupturas introduzidas no pensamento médico anterior foram imediatas e inelutáveis? Terá o pensamento probabilístico penetrado na medicina de uma forma linear, num processo isento de resistências e contradições? Tomando estas interrogações como fonte de indagação relativamente à emergência da medicina experimental caracterizada pela racionalidade científica, é relevante convocar, ainda que de modo breve e algo panorâmico, alguns elementos de natureza histórica quanto à introdução dos métodos quantitativos e de inferência estatística na medicina. Tal abordagem poderá proporcionar alguma elucidação sobre a crescente tendência para a quantificação na medicina, processo não só pouco linear, mas sobretudo marcado por profundos debates que dividiram as principais academias médicas entre o início do século xix e meados do século xx.

Uma característica que deve ser salientada prende-se com o facto de as diferenças que separavam os clínicos, os fisiologistas e os bacteriologistas não obstarem a que a grande maioria partilhasse uma postura de antipatia e de recusa em relação aos métodos estatísticos, dado que o julgamento médico era visto como uma forma de “conhecimento tácito” que não se coadunava com as inferências quantitativas dos métodos estatísticos que foram sendo gradualmente introduzidos na medicina.

Tomando como referência o estudo de Matthews (1995) acerca da quantificação na medicina, é possível considerar que as várias tentativas de tornar este saber mais “científico” e “objectivo” por via da incorporação das metodologias estatísticas colidiram com profundas resistências que consideravam que essa perspectiva de transformação da medicina a desvirtuava e afastava da sua especificidade, isto é, da experiência clínica centrada no indivíduo e baseada em avaliações qualitativas, que a aproximavam mais de uma “arte” do que de uma ciência.

Aliás, os exemplos apresentados pelo autor são a esse nível bastante paradigmáticos, mostrando com detalhe quais os principais argumentos em confronto, fruto da emergência de um novo clima intelectual a partir do qual se prefiguram transformações na ciência ocidental, em geral, e na medicina, em particular. Um dos primeiros contributos para a emergência de uma medicina científica foi levado a cabo pelo clínico francês Pierre-Charles-Alexandre Louis, através dos seus trabalhos sobre a comparação numérica em medicina. O método numérico que defendia, embora não fosse metodologicamente muito inovador, dado que consistia na comparação directa entre valores médios de terapias concorrentes, representa um dos esforços mais sistemáticos, no contexto da comunidade médica parisiense, no sentido de (re)fundar a medicina numa base científica. O investimento intelectual que dedicou à enumeração, entendida como sinónimo da razão científica, era fortemente inspirado nos trabalhos de Laplace sobre probabilidade e neles encontrou justificação para o seu método. Considerava que a observação cuidadosa, a recolha sistemática de dados, a análise rigorosa de múltiplos casos, a prudência nas generalizações e a verificação através de autópsias eram procedimentos fundamentais para dotar a medicina de um método empírico que assegurasse que os factos decorrentes das observações apontavam para resultados exactos e isentos de incerteza (Matthews, 1995, pp. 15-16).

De facto, esta posição colidia com o ethos humanitário da medicina e por essa razão deu origem a um debate que punha em confronto posições irredutíveis acerca do entendimento sobre a função da tradição profissional da medicina. Se, para os críticos da quantificação, a ênfase era colocada na habilidade única do clínico para diagnosticar a doença e para aliviar o sofrimento individual, para os indivíduos com alguma formação matemática, a ênfase deslocava-se para a necessidade de tornar a medicina uma ciência empírica, dotando-a, para isso, de métodos de análise numérica.

Uma das oposições mais consistentes ao método de Louis partiu dos fisiologistas. Desde a sua emergência em meados do século xix, estes haviam sustentado que o modo de conferir uma base científica à medicina passava pela experimentação em laboratório de organismos vivos, e não pela compilação de estatísticas.

Um dos principais expoentes da fisiologia experimental foi Claude Bernard, para quem a experimentação era indispensável para obter factos comparáveis e isentos de causa de erro. Para este pensador, a medicina não se devia basear nas estatísticas, uma vez que isso pressupunha que se tratava de uma ciência de observação passiva, em vez de uma ciência experimental e intervencionista. Somente pela experimentação em laboratório (os locais por excelência onde poderiam ser desenvolvidas as investigações) seria possível garantir o domínio de todas as condições vitais que influenciam determinado evento fisiológico (Matthews, 1995, p. 71).

Assim, para a fisiologia[4] era de grande importância a valorização dos organismos vivos individuais, pois, ao contrário daquilo que decorre do uso de médias em medicina — que ocultam as relações complexas e variáveis entre os fenómenos —, a experimentação permite estudar as várias circunstâncias dos fenómenos e, a partir dos dados experimentais, interpretar o que os fisiologistas designavam por “lógica dos factos”. Esta oposição às estatísticas não significava, contudo, que os fisiologistas considerassem que a medicina devia ser entendida como uma “arte”. Também eles estavam profundamente empenhados em conferir-lhe cientificidade. Aquilo que aproximava a posição dos fisiologistas relativamente aos críticos do uso das estatísticas em medicina prendia-se com o facto de estes considerarem que qualquer conclusão baseada num pensamento populacional deveria ser recusada; tais resultados não seriam mais do que conhecimento probabilístico, desprovidos da objectividade determinística fornecida pela investigação experimental dos organismos vivos individuais.

De uma forma mais específica, era preconizada a ideia de que as médias introduzem uma falsa precisão aos resultados, ocultando a complexidade dos fenómenos fisiológicos. A estatística, tal como era vista por Claude Bernard, só poderia gerar ciências conjecturais (probabilidades) e nunca ciências activas e experimentais, as únicas que, segundo o próprio, poderiam ser entendidas como tal. É por essa razão que defende de forma empenhada que a medicina se deveria converter numa ciência exacta baseada no determinismo experimental, e não numa ciência conjectural caracterizada pelo indeterminismo e pela ausência de leis absolutas. Tornar a medicina uma ciência através do método experimental era, em síntese, o que ambicionava:

O estado científico levará mais tempo a organizar-se e será mais difícil consegui-lo em medicina, por causa da complexidade dos fenómenos; mas o objectivo do médico sério é reduzir, tanto na sua ciência como nas outras, o indeterminado ao determinado. A estatística só se aplica, portanto, em casos em que existe ainda indeterminação na causa do fenómeno observado. Em tais circunstâncias, só pode servir, na minha opinião, para dirigir o observador na pesquisa desta causa indeterminada, mas nunca pode conduzi-lo a nenhuma lei real” [Bernard, 1978 (1865), p. 171].

No entanto, e não obstante as críticas e as reservas relativamente às generalizações estatísticas, o que se irá verificar a partir do último terço do século xix é a gradual consolidação do prestígio da quantificação, nomeadamente com a emergência da escola biométrica na Grã-Bretanha. Efectivamente, a partir deste período assistiu-se a um importante conjunto de inovações no papel dos métodos estatísticos na medicina, sobretudo porque a estatística deixou de ser uma ciência social empírica, essencialmente preocupada com a recolha e descrição dos fenómenos sociais, para passar a ser uma ciência matemática aplicada (Matthews, 1995, p. 86). Esta transformação derivou em grande medida da tradição biométrica britânica, na qual se destacaram nomes como Francis Galton e Karl Pearson, os quais exerceram grande influência junto de vários membros da profissão médica, empenhados em dotar a medicina de métodos científicos tanto no diagnóstico como na terapêutica. Gradualmente, começaram a aparecer profissionais médicos que, em complemento à sua formação médica, também se interessavam e dominavam as estatísticas matemáticas.

Um aspecto importante que se destaca neste novo clima intelectual prende-se com o facto de emergirem nesse período várias especialidades profissionais que formam uma espécie de rede de cientistas interessados na formação de um novo campo, algo que se faz sentir com particular acuidade na comunidade médica e estatística (Matthews, 1995, pp. 86-87).

É neste contexto específico que ocorrem as principais inovações teóricas, sobretudo as introduzidas por Galton, considerado um dos principais responsáveis pela fundação da moderna teoria estatística ao estabelecer, nomeadamente, a “autonomia da lei estatística”. Também Pearson, enquanto leal colaborador de Galton, desempenhou um papel importante na consolidação da “nova” visão estatística, dado que durante praticamente toda a sua carreira universitária, enquanto professor de matemáticas aplicadas no University College de Londres, utilizou a sua posição institucional para tentar garantir a ampla difusão dos modernos métodos estatísticos. A fundação em 1901 do jornal Biometrika, em conjunto com Galton e Weldon, é um dos exemplos das tentativas por si empreendidas no sentido de persuadir a comunidade científica do valor e da importância das estatísticas matemáticas, sobretudo quando aplicadas aos problemas das ciências da vida (Matthews, 1995, pp. 90-91).

A receptividade da profissão médica aos métodos estatísticos biométricos não foi, todavia, uniforme. A posição dos médicos que se consideravam representantes de uma ciência clínica baseada nas suas fundações clássicas (a defesa da arte da medicina), em que a perícia técnica tinha uma importância muito diminuta, coexistia com a daqueles que, pelo contrário, enfatizavam a importância dos métodos e técnicas da fisiologia (diagnósticos baseados em observações mais objectivas) como algo de indispensável e que deveria figurar no curriculum médico. Em contraste com estas abordagens mais clínicas, estava a posição dos bacteriologistas, cujos métodos maioritariamente laboratoriais se assemelhavam aos dos fisiologistas e para os quais a estatística providenciava uma escassa evidência científica.

No entanto, o verdadeiro impacto dos métodos estatísticos na medicina só acontece no início do século xx por via do trabalho de um dos colaboradores de Pearson, Major Greenwood. Este será o primeiro indivíduo a desenvolver uma carreira profissional (em virtude da sua formação médica e matemática) em que aplica com sucesso e eficácia os métodos estatísticos matemáticos aos problemas médicos. De facto, o trabalho de Greenwood constitui a primeira tentativa consequente na formação de médicos estatísticos com treino matemático: consegue que a estatística médica passe a ter um novo papel profissional no âmbito da investigação médica e é bem sucedido ao tentar ligar os métodos estatísticos matemáticos ao domínio da investigação laboratorial[5].

Todavia, a expressão mais clara destes esforços ocorrerá na década de 40 do século xx, quando um dos estudantes de Greenwood, Austin Bradford Hill, se destaca pelo seu trabalho em estatística médica, criando as bases do primeiro ensaio clínico —sobre o efeito da estreptomicina[6] na tuberculose —, usando o princípio da aleatorização para seleccionar os doentes que ficavam no grupo experimental e os que ficavam no grupo de controlo, ou seja, incorporando elementos do “acaso” numa experiência científica baseada na ideia de probabilidade. Por conseguinte, a sua importância não só se prende com o facto de ter sido o precursor dos ensaios clínicos, mas também, e sobretudo, por ter definido a estrutura básica dos que foram posteriormente realizados.

Assim, nas décadas de 50 e 60, Bradford Hill conseguiria convencer a comunidade médica acerca da enorme utilidade de introduzirem os ensaios clínicos aleatorizados duplamente cegos[7] como procedimento normal para determinar a eficácia e a segurança de novas drogas. No decorrer das décadas subsequentes, estes procedimentos revelar-se-iam decisivos na emergência e consolidação de novas formas de racionalização da medicina, em que os princípios da epidemiologia clínica instauram a prova estatística como um dos requisitos fundamentais para a validação da nova base científica do conhecimento médico.

Com efeito, esta importância concedida aos ensaios clínicos aleatórios (randomised controlled trials) como a melhor forma (gold standard) para medir a eficácia das acções médicas com base na investigação será activa e enfaticamente preconizada a partir da década de 70. Neste contexto, destaca-se o trabalho, hoje clássico e seminal, do epidemiologista Archie Cochrane (1972)[8], que apresenta os princípios subjacentes à medicina baseada na prova (MBP) (evidence-based medicine). Aqui a ênfase é posta na importância das revisões sistemáticas dos referidos ensaios clínicos aleatórios para que os profissionais possam ter acesso a informação de qualidade sobre as provas que justificam ou refutam as opções terapêuticas, evitando assim o mau uso das técnicas e dos recursos disponíveis. Nesse mesmo sentido, um outro momento-chave é o trabalho de David Sacket e dos seus colaboradores. Numa conhecida obra, que constitui hoje também uma referência (Sackett et al., 1991 [1985]), sustentam o desenvolvimento de métodos para testar as inovações médicas, sob o imperativo de reunir a melhor evidência científica através da investigação. É também este grupo que promove e difunde activamente o termo evidence-based medicine, juntamente com os seus princípios. De uma forma relativamente rápida e bem concertada, embora não isenta de controvérsia, esta estratégia revelar-se-á bem sucedida e em pouco tempo a noção de MBP torna-se, de facto, praticamente ubíqua no campo da medicina contemporânea.

 

A medicina baseada na prova: consagração de uma nova epistemologia científica

Esta recente reconfiguração da medicina, traduzida na tendência para o desenvolvimento de perspectivas orientadas para o colectivo e alicerçadas na quantificação estatística (e já não exclusivamente centradas no indivíduo), é indicativa de um novo perfil que veio transformar profundamente os conceitos de individuação e subjectividade, centrais na experiência clínica. Nessa medida, o foco privilegiado da medicina tem-se deslocado para as análises populacionais baseadas na experimentação biomédica e estatística, permitindo mensurar e comparar os fenómenos clínicos, com vista à determinação de regras universais (Cronje e Fullan, 2003, pp. 256-357).

De facto, a MBP[9], enquanto tentativa de aplicar de forma mais uniforme e padronizada as provas científicas decorrentes da utilização das análises populacionais a certos aspectos da prática médica — como a validação das terapêuticas ou as recomendações clínicas —, corresponde a um processo que visa diminuir a importância da intuição e da experiência clínica não sistematizada, bem como do raciocínio fisiopatológico, enquanto a única (ou a principal) base para a prática clínica. Entendida pelos seus promotores como uma nova metodologia que permite conferir maior objectividade e validade aos processos de decisão clínica, tem vindo a ganhar terreno como um dos principais critérios de intervenção clínica e também como requisito indispensável na promoção da eficiência e eficácia dos investimentos em saúde, na avaliação de tecnologias, e na própria alocação dos recursos, sempre com base em estimativas probabilísticas de custo/benefício, que constituem hoje, e cada vez mais, uma ferramenta indispensável para a implementação de políticas baseadas nos princípios da nova gestão pública.

Apesar de a epidemiologia clínica não ter sido inicialmente bem vista e de se ter confrontado com uma recepção não consensual na comunidade médica, foi-se gradualmente consolidando o que Pope designa por “espírito de corpo” (Pope, 2003, pp. 270-271) em alguns segmentos profissionais descontentes com a prática clínica, convictos que estavam de que esta poderia ser melhorada com a incorporação de princípios epidemiológicos. Rapidamente se assistiu à multiplicação de estratégias com vista à prossecução dos intentos da MBP, nomeadamente a garantia de que esta passaria a ser incorporada na educação formal da medicina, bem como o incentivo à divulgação em revistas e publicações médicas dos resultados baseados nesta nova metodologia. Outra das estratégias consistiu na generalização dos protocolos de investigação clínica (guidelines), com vista à produção de recomendações para a boa prática clínica, baseadas na prova (Pope, 2003, p. 272).

Para todos os efeitos, e sendo verdade que não há um padrão homogéneo na forma como estas metodologias vão sendo disseminadas e aplicadas aos vários campos de intervenção, o que se pode destacar como um dado particularmente relevante e estruturador no panorama da medicina contemporânea prende-se com a ideia da emergência de uma nova forma de objectividade marcada pela produção colectiva da prova. Esta análise, condensada na noção de regulatory objectivity (Cambrosio et al., 2006), mostra-nos como a circunstância histórica de a medicina moderna do pós-guerra se ter tornado biomédica — ou seja, em mais estreita articulação e interdependência com as novas áreas da biologia —, nos permite falar hoje em modos de produção de convenções, normas e protocolos que tornam possível a objectividade na prática clínica. Esse carácter colectivo da prova, baseado em sistemas de convenções tornados possíveis pelos estudos inter-laboratoriais, pelos ensaios clínicos multicêntricos, pelos consórcios internacionais de investigação, é fundamental para procedimentos de controlo de qualidade, recomendações e normas de orientação clínicas. Como referem os autores, “para a biomedicina, é menos importante alcançar a verdade (analítica ou outra) do que assegurar a compatibilidade entre diferentes laboratórios e hospitais [...] A objectividade regulatória também reflecte os valores da globalização e dos fluxos da livre informação que têm conduzido à padronização internacional desde a Segunda Guerra Mundial”[10] (Cambrosio et al., 2006, p. 195).

Deste ponto de vista, e uma vez que a análise sugere que as lógicas de regulação têm marcado, e viabilizado, o desenvolvimento da biomedicina contemporânea, ao ponto de não serem apenas o resultado de intervenções externas, mas também de práticas endógenas que reflectem a necessidade de existirem convenções e critérios padronizados, é agora possível compreender melhor em que medida o panorama actual reflecte o sucesso da estratégia de gradual consolidação da MBP. Indicadores claros deste argumento são, por exemplo, o crescimento exponencial de artigos médicos (num total de 1255) sobre MBP verificado entre 1992[11] e 2002 (Weisz et al., 2007); a intensa proliferação de normas de orientação clínica (as chamadas guidelines)[12]; o aparecimento de novas instituições e estruturas, com especial destaque para as revistas e publicações (Timmermans e Berg, 2003), e o crescente interesse de outros actores pela MBP, como os governos, as seguradoras, a indústria farmacêutica, o que parece ser coerente com os pressupostos da importância estratégica da padronização e racionalização da prática científica.

 

Prova estatística e individualidade: mutações na clínica moderna

Embora se possa considerar que esta perspectiva se difundiu com grande sucesso, não têm deixado de surgir críticas e resistências por parte de alguns clínicos. Em termos genéricos, os argumentos dos críticos da MBP vão no sentido de considerar que a natureza do trabalho médico diário, nomeadamente a especificidade do julgamento clínico baseado em casos individuais, contrasta com a lógica hegemónica dos ensaios clínicos aleatórios duplamente cegos. Sobretudo porque as provas em que estes se baseiam apenas conferem uma validade externa, isto é, somente descrevem os benefícios de uma intervenção clínica aplicada a um grupo de indivíduos, enquanto um clínico tem de decidir se essas medidas podem beneficiar o indivíduo doente que o consulta. Tal facto constitui, portanto, uma diferença substancial no que diz respeito ao tipo de conhecimento usado e privilegiado em cada uma destas perspectivas, pois os clínicos não baseiam o seu conhecimento em provas de natureza técnica que permitem a formulação de recomendações ou guidelines, mas sim em julgamentos que valorizam as variações e as singularidades.

Enquanto ciência da predição do estado futuro do doente individual, baseada na comparação quantitativa de eventos clínicos, a epidemiologia clínica tem merecido críticas contundentes. Estas enfatizam que a decisão médica racional, fundada exclusivamente em estatística aplicada e na teoria das probabilidades, faz desaparecer o indivíduo na amostra, subvertendo, consequentemente, o próprio saber clínico, marcado desde as suas remotas origens pelo respeito da singularidade e valorização das diferenças. Ao ser entendido como subjectivo, impreciso, não replicável nem mecanizável (Marques, 2003, p. 8), o saber clínico é visto como uma experiência que carece de rigor científico. Em simultâneo, são desvalorizados os aspectos que lhe conferem identidade, nomeadamente a clínica como ciência prudencial, como exercício da faculdade de julgar, em que, mais do que a existência de sistemáticas e exaustivas recomendações terapêuticas, o que importa é o julgamento das necessidades particulares de cada indivíduo doente.

Estas considerações remetem para a questão relativa às limitações da prova estatística e à consequente confusão dos vários regimes de prova. De facto, a vontade de basear todas as decisões médicas na prova experimental e na manipulação estatística pode revelar-se problemática. A natureza deste tipo de prova não é adequada à contingência do acto médico-cirúrgico, pelo que as estimativas muito dificilmente têm poder demonstrativo relativamente à complexidade e indeterminação de casos raros que só a posteriori podem ser verificados. Deste modo, no entender de Marques (2003, p. 9), são quatro os pontos fracos da prova estatística médica: a elisão da causalidade e da fisiopatologia; o enfraquecimento do esteio da prova; a falta de atenção aos casos singulares; por fim, a não consideração das diferenças.

Nesta acepção, não obstante a crescente valorização do método experimental — que, de resto, é fundador da ciência moderna — e a consequente procura de leis universais (método nomotético) através de pesquisas quantitativas[13] e populacionais (Wilson, 2000, pp. 204-205), é importante notar que as decisões clínicas lidam e confrontam-se efectivamente com zonas de indeterminação e contingência próprias da singularidade e da individualidade. Isto significa que, apesar de o enfoque da moderna biomedicina privilegiar o geral e o universal em detrimento do particular e do existencial — em que os indivíduos tendem a ser vistos como casos ilustrativos das patologias —, o objectivo original da medicina é o de lidar com doentes individuais através de faculdades de julgamento prudenciais que valorizam a diferença e a singularidade.

Esta gradual secundarização da clínica reflecte, portanto, o impacto dos rápidos e profundos avanços da técnica moderna sobre o perfil da medicina e acaba por ser um indicador expressivo da tendência cientificizante que pretende conferir objectividade à clínica, negligenciando, para usar uma expressão de Marques, a sua “espessura antropológica”. Neste sentido, o perfil estatístico e os cada vez mais amplos recursos informacionais à disposição dos médicos parecem destacar-se como uma das expressões mais visíveis de uma nova cosmologia médica que passa a estar no centro de “rivalidades epistemológicas” (Harrison, 2004, pp. 335-336) entre um modelo clínico “tradicional”, em que predomina a decisão médica baseada numa epistemologia realista/naturalista, e um modelo epidemiológico que se alicerça em formas de inferência estatística, decorrentes de modelos probabilísticos.

Os diferentes pressupostos que estão subjacentes a cada um dos modelos remetem para entendimentos dicotómicos e são, por consequência, produtores de novos paradoxos que complexificam o campo da medicina contemporânea através de mutações compósitas que, de facto, obrigam a repensar qual o seu lugar e quais as suas especificidades no contexto actual. No âmago desse “confronto” parece jogar-se o gradual abandono de um modelo enformado por um ethos humanitário e por uma ética individualista construída a partir da experiência dos casos individuais e dos exemplos decorrentes da prática clínica (do próprio ou dos colegas), em benefício da consolidação de um outro modelo baseado num conhecimento científico de novo tipo em que o recurso à informação disponível surge ampliado por novas possibilidades tecnológicas que valorizam a procura das normas de orientação clínica e informação para a resolução concreta e padronizada dos problemas[14].

 

Conclusão

No decurso da trajectória histórica aqui sumariamente assinalada, um dado que ressalta é o que se prende com a gradual importância atribuída à quantificação e à objectividade enquanto estratégias para a consolidação de uma concepção empírica e racional do conhecimento médico. Todavia, embora essa concepção corresponda à visão epistémica dominante (Malterud, 1995), acaba por ser forçoso constatar que a incerteza é uma dimensão constitutiva da medicina. Apesar de o desenvolvimento médico ser responsável pela resolução eficaz de vários problemas, não deixa, contudo, de desocultar incertezas não formalmente reconhecidas, ou até de criar novas áreas de incerteza através da sua acção.

Assim, e conforme é salientado por Fox (1998 [1959]), os dois tipos de incerteza mais comuns com que os médicos se confrontam são os que derivam das limitações do conhecimento médico e os que resultam da incapacidade de dominar completamente o conhecimento disponível, nomeadamente quanto aos benefícios, perigos e limitações de novas técnicas ou drogas. Deste modo, a circunstância de o bem-estar dos doentes depender estreitamente das decisões clínicas dos médicos confere, de acordo com a autora, uma maior visibilidade às consequências humanas que decorrem da incerteza, das limitações e da falibilidade médica.

Acresce a isto um outro nível de incerteza, que resulta do facto de as estratégias de padronização poderem ser, paradoxalmente, geradoras de novos problemas no contexto da socialização profissional dos médicos (Timmermans e Angell, 2001, pp. 348-349), dado que implicam novas formas de pesquisa e recolha de informação que exigem competências técnicas de natureza estatística. Isto significa, portanto, que as recomendações terapêuticas e as revisões sistemáticas da literatura nem sempre são acessíveis, suficientes ou adequadas para lidar com a complexidade de muitas situações concretas, circunstância que pode justificar o recurso complementar à experiência clínica e, deste modo, conduzir à reapreciação do julgamento clínico e à valorização de preocupações de teor humanista (Timmermans e Angell, 2001, pp. 352-356).

Neste sentido, face à constatação da impossibilidade de controlar e remover a incerteza por via da racionalidade científica, tem sido discutida e problematizada por alguns autores a importância de se promover uma relação dialéctica entre a prática clínica e o conhecimento científico (Malterud, 1995). Ao fazê-lo, procura-se mostrar que o tipo de conhecimento tácito que é característico da clínica repousa sobre dimensões interpretativas e interaccionais que devem exigir o desenvolvimento de rigorosas investigações qualitativas que integrem, de forma validada, os “particulares nos universais” (Malterud, 2001), ou seja, que mostrem que, em absoluto, a arte não é o oposto da ciência.

Do ponto de vista das considerações e das indagações que aqui foram articuladas a propósito do significado e do alcance das transformações científicas da biomedicina, é importante considerar, em suma, que a complexidade e a vastidão do tema oferecem um terreno fértil que, em rigor, transcende as críticas do humanismo médico (Malterud, 2006) face aos perigos da elisão do sujeito individual[15] na actual abordagem epidemiológica. Embora a discussão tenha pertinência, torna-se importante delimitar outros questiona-mentos que não estejam reféns da retórica e das ideologias profissionais e que, pelo contrário, consigam identificar e contextualizar as condições que estão subjacentes a uma cultura de racionalização e a um discurso da prova científica. Aí poderão radicar os fundamentos que sustentam e alimentam os imperativos da padronização no contexto da medicina baseada na prova.

 

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Notas

[1] No entanto, e como mostram Lupton (1999, p. 7) e Martins (1998, pp. 42-45) através do exemplo da teoria económica clássica, a “incerteza” corresponde a uma noção que contrasta claramente com este entendimento moderno do risco, dado que se refere ao que não é previsível nem passível de se conhecer pelo cálculo racional.

[2] Como refere Green (1997, p. 143), “such a possibility is a myth in that techniques of calculation based on statistical probabilities can never predict specific individual events […] Accidents no longer demonstrate the proper limits of rational explanatory systems, but rather individual failure”.

[3] Relativamente às diferentes consequências de lidar com o risco ou com a incerteza, Nunes (2002, p. 291) argumenta que cada um deles aponta para modos diferentes de actuação. Segundo este autor, a distinção entre estas categorias constitui um desafio sério, dado que numa situação de risco é possível desenvolver acções preventivas, ao passo que numa situação caracterizada pela incerteza se deve remeter para uma acção de tipo cautelar, de forma a evitar abordagens simplificadas com efeitos potencialmente contraproducentes.

[4] Segundo a definição de Claude Bernard (1978 [1865], p. 9), a fisiologia deve ser entendida como “o conhecimento das causas dos fenómenos da vida no estado normal, ou seja, a fisiologia ensinar-nos-á a manter as condições normais da vida e a conservar a saúde”.

[5] Com efeito, este empreendimento científico de Greenwood é algo a que este autor se dedicará intensamente, juntamente com um colaborador americano, Raymond Pearl, o que os leva a desencadearem várias estratégias no sentido de estabelecerem as estatísticas na investigação médica, nomeadamente através da produção de manuais, publicação em vários jornais científicos e formação de estudantes.

[6] A estreptomicina foi o primeiro fármaco a surgir em 1942 com eficácia clínica no tratamento da tuberculose.

[7] Esta expressão designa um procedimento utilizado na condução das experiências médicas, sobretudo em sujeitos humanos, com o objectivo de evitar enviesamentos e de assegurar um maior rigor científico. Na prática, significa que na maioria dos ensaios clínicos nem os investigadores nem os próprios sujeitos que participam nas experiências sabem se pertencem ao grupo de controlo ou ao grupo experimental, dado que foram determinados aleatoriamente. Só quando o estudo termina e os resultados são analisados é que a entidade promotora identifica os respectivos grupos e apresenta as suas conclusões.

[8] A importância do texto de Cochrane foi tão lapidar que hoje o seu nome surge associado a um dos mais vastos empreendimentos científicos internacionais no campo da biomedicina: a Cochrane Collaboration. Esta é uma organização internacional que produz e reúne as revisões sistemáticas dos resultados decorrentes dos ensaios clínicos aleatórios (www.cochrane.org).

[9] “The practice of evidence-based medicine means integrating individual clinical expertise with the best available external clinical evidence derived from the basic sciences of medicine, and from patient centred clinical research conducted via large, randomized, controlled clinical trials, or from the systematic review (including meta-analysis) of a number of smaller, more disparate published clinical studies” (cit. in Fox, 2003, pp. 417-418).

[10] Trad. do autor.

[11] Ano em que pela primeira vez apareceu a referência ao termo evidence-based medicine  na literatura médica.

[12] Até 2006 estavam listados no sítio electrónico da National Guideline Clearinghouse — estrutura criada pela U. S. Agency for Healthcare Research and Quality — mais de 2000 guidelines (Weisz et. al 2007).

[13] Sobre as razões da valorização da medida e do quantitativo, Marques refere que “qualquer realidade material ou espiritual ganha com a visibilidade e a exteriorização, isto é, com a expressão. Sobretudo quando se consegue traduzir numa língua universal numérica ou lógica. A medida tende a ignorar as singularidades, instala-se sobre uma métrica […] e oferece-nos do que era inapreensível, ou menos incompreensível, uma imagem quantitativa” (Marques, 2002, p. 336).

[14] Num artigo em que procura discutir a existência de afinidades electivas entre a cosmologia da medicina contemporânea (“informacional”) e as mudanças sociotécnicas, Nettleton mostra como a crescente multiplicidade de recursos técnicos, característica de um perfil informacional da medicina, de facto reconfigura o modelo clínico, sobretudo ao nível da erosão da autoridade da arte médica e da secundarização da experiência clínica, que é ameaçada por novos fenómenos, como a perda da presença física do corpo e a resolução de problemas com base em formas de acesso sofisticadas à informação clínica (problem-based learning) (Nettleton, 2004, pp. 670-672).

[15] Curiosamente, no âmbito das novas inovações tecnológicas no campo da genética, o discurso orienta-se hoje para uma inversão desta lógica, sobretudo quando é apresentado como um dos horizontes “revolucionários” da farmacogenética o retorno ao indivíduo, por via do design de fármacos em função das características genéticas individuais.

 

** Este artigo tem como ponto de partida algumas das questões trabalhadas no enquadramento teórico da minha dissertação de mestrado em Sociologia (Raposo, 2006). Apresenta agora uma reflexão mais sistematizada e alterações substanciais resultantes de sugestões dos referees da revista, a quem estou grato pelos comentários críticos. Naturalmente que qualquer insuficiência ou imprecisão só a mim poderá ser imputada.

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