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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.193 Lisboa out. 2009

 

Maria Carlos Radich e A. A. Monteiro Alves, Dois Séculos da Floresta em Portugal, Lisboa, CELPA, 2000, 226 páginas.

 

Amélia Branco Dias

Instituto Superior de Economia e Gestão

 

Com este livro o leitor tem oportunidade de aceder à história recente da floresta portuguesa, abrangendo os séculos xix e xx, não só na vertente relacionada com a evolução da sua área e composição em termos de espécies, mas sobretudo na sua dimensão social e política. Trata-se, antes de mais, de uma obra muito relevante e completa no quadro da problemática que aborda, onde se cruzam elementos de uma história política, económica e social da floresta, enriquecida com os conhecimentos da ciência florestal, apresentando, igualmente, uma componente bibliográfica muito rica e variada.

Na primeira parte, Maria Carlos Radich ocupa-se da floresta oitocentista. Numa breve introdução são apresentados os principais argumentos que moldaram o “rumo” seguido no tratamento do tema. Sobressaem, desde logo, duas preocupações fundamentais: em primeiro lugar, a necessidade de conhecer a dimensão física da floresta portuguesa; em segundo lugar, a teia institucional que foi sendo construída em torno da floresta.

Em relação ao primeiro aspecto referido, a autora compartimentou temporalmente o seu tratamento, considerando três períodos: desde os finais de setecentos até 1868; de 1868 a 1878; e depois de 1878. A periodização fixada teve em conta o grau de profundidade e rigor no conhecimento do espaço, com base na cartografia e estatística, enumerando Maria Carlos Radich, de forma minuciosa e crítica, um conjunto de trabalhos fulcrais para a percepção da realidade oitocentista da floresta portuguesa.

Até 1878, porquanto ainda não tivesse sido alcançado o consenso quanto às diferentes áreas de uso do solo, nomeadamente do espaço que cabia à floresta, todavia a identificação e conhecimento das essências que a compunham eram já muito completos e, neste campo, o nome de Bernardino Gomes surge como incontornável, dando-lhe a autora o devido relevo.

Já no terceiro período, Radich refere a Carta Agrícola e Florestal de 1910 como fundamental para a determinação das áreas correspondentes à divisão cultural do território, atingindo-se “um limiar de precisão que o próprio século xx teve dificuldades de ultrapassar”.

No dealbar do século xix, consolidado que estava o conhecimento da floresta em termos físicos, as preocupações com a dimensão social e política puderam então afirmar-se, surgindo esta segunda temática abordada por Radich num ponto designado por “Estado e a floresta”. Do conjunto de trabalhos que foram sendo elaborados ao longo do século xix, e tal como a própria autora nos refere, teve lugar a “aceitação corrente” de dois factos inquestionáveis. Por um lado, o de que grande parte da área florestada pertencia a particulares, cabendo apenas uma pequena parte ao Estado. Por outro, o facto de existirem áreas incultas de alguma dimensão que poderiam ser aproveitadas, algumas para fins agrícolas, outras destinadas à floresta, como eram os casos dos cumes e dos areais.

Ora, é nas dunas e nas serras arborizáveis — que, numa expressão feliz, Maria Carlos Radich designa como “floresta virtual” — que as dimensões física, social e política da floresta se cruzam: caberia ao Estado a tarefa de arborização, devendo, para isso, criar a estrutura institucional necessária para as novas funções em relação à floresta, assim como formar o pessoal técnico necessário para concretizar a tarefa. Surgiam, deste modo, os serviços florestais e a criação e organização do ensino florestal.

Finalmente, a arborização das serras estava também ligada à questão dos baldios, onde os conflitos com as populações podiam ser mais acesos em razão da conhecida função social e económica dos mesmos. Neste âmbito, no início do século xx o regime florestal iria permitir ao Estado exercer diferentes graus de controlo sobre a área florestada e a florestável.

Concluindo, e tal como Radich nos refere, a floresta entra no século xx com uma base de partida bastante sólida, em termos de conhecimento físico e de enquadramento institucional e organizativo.

A ii parte desta obra, da autoria de A. A. Monteiro Alves, ocupa-se da história da floresta portuguesa durante o século xx. Nela podemos identificar muitas apreciações qualitativas, deixando transparecer uma “história” contada na primeira pessoa, de alguém envolvido, afectivamente e efectivamente, nas questões florestais. Contudo, não deixa de ser bastante enriquecedor para o cientista social mais atento, já que permite percepcionar algumas das controvérsias e impasses da acção estatal sobre este recurso renovável.

No primeiro capítulo da ii parte, que se intitula “Transição e tradição do século xix”, o autor aprofunda o conceito de floresta, enunciando as suas funções e objectivos, assim como as bases institucionais em que assentou a intervenção do Estado sobre a mesma.

No início do século, o pacote legislativo relativo à floresta, com destaque para o regime florestal, emanou dos avanços da ciência florestal, que a primeira geração de licenciados portugueses absorveu, não só quanto à influência da floresta sobre a conservação do solo, clima, regularização do regime hidrológico, etc., mas também no que concerne a novas concepções técnicas de engenharia. De igual modo, a estrutura da administração pública florestal foi sofrendo várias transformações ao longo do século xx, acompanhando a evolução das metas fixadas em termos de política florestal.

De salientar a síntese feita quanto às grandes transformações da floresta desde o início da nacionalidade, onde se comparam os diferentes trabalhos efectuados, desde o último terço do século xix até 1990, no âmbito da determinação da área dos grandes estratos de ocupação do solo em Portugal, assim como da evolução das áreas das principais espécies florestais. Apesar da riqueza e rigor dos dados, sente-se a falta de uma referência cartográfica onde estivesse patente a distribuição espacial das diferentes espécies florestais e a respectiva evolução.

O autor termina este capítulo com a referência à questão dos incultos, ligados à floresta pela via da sua arborização, dando o mote para o capítulo seguinte: “A floresta pública e comunitária — a arborização dos baldios”.

A florestação dos incultos ganhou grande incremento com o Plano de Povoamento Florestal (1938-1968), que incidiu nos baldios a norte do rio Tejo. A abordagem efectuada pelo autor a este Plano é muito interessante e elucidativa das vicissitudes que a arborização feita pelo Estado acabou por desencadear e a leitura de alguns parágrafos levanta o véu em relação às polémicas que envolveram a florestação. Tal é o caso da disputa da liderança dos baldios entre agraristas e florestais, estes últimos ganhando algum terreno com o crescente triunfo dos industrialistas a partir de meados dos anos 30. Mas também no seio dos serviços florestais existiam divergências quanto ao grau de coercividade do processo de arborização. Da mesma forma, a escolha das espécies florestais a utilizar nas tarefas de arborização acabou por gerar divergências, onde se defrontavam os ideais de protecção da natureza e uma visão mais economicista da floresta.

Do balanço final efectuado pelo autor relativamente à arborização dos baldios destaca-se a referência à necessidade de conhecer mais profundamente a história dos confrontos e das polémicas em que o Plano esteve envolvido, bem como dos custos e benefícios da sua concretização.

A segunda metade do século xx representou uma viragem na política florestal do país, e até da composição da área florestal, com a crescente importância do eucalipto glóbulo, mudanças que o autor sintetiza no título de um novo capítulo: “A grande meta da segunda metade do século — a florestação dos terrenos particulares”. Esta viragem, em termos de objectivos da política florestal, correspondeu também a uma mudança geográfica substancial quanto à região alvo da expansão da arborização, que passa a ser dominada pelos “campos do sul, do Alentejo”.

Neste novo enquadramento, Monteiro Alves destaca a Lei n.º 2069, de 1954, como a primeira medida legislativa que procurou dar resposta ao esgotamento dos solos alentejanos após décadas de campanha do trigo. Mas marca, sobretudo, o reforço da ligação entre a floresta e a industrialização, nomeadamente com as celuloses. O apoio à arborização da propriedade privada teve igualmente lugar com a recriação e dinamização do Fundo de Fomento Florestal de 1963.

É talvez neste capítulo que o autor melhor concretiza a problemática em torno de um recurso renovável, como a floresta, atendendo ainda às especificidades da sua presença em território português. Em primeiro lugar, o facto de predominar a pequena e muito pequena propriedade florestal, num recurso onde está presente a problemática do longo prazo, quanto à obtenção dos resultados produtivos, bem como as normais rentabilidades baixas da exploração. Acrescem os elevados custos de arborização, “as taxas de juro tão penalizantes e os períodos de recuperação tão dilatados”.

Finalmente, de destacar ainda a referência ao uso múltiplo das florestas, aplicado ao caso português, onde está presente um certo grau de competição entre os diferentes usos da floresta, directos e indirectos, conferindo ao uso do solo com esta finalidade a necessidade de planeamento.

Termina o autor com “Interrogações no caminho do terceiro milénio”. Os últimos vinte e cinco anos do século persistem marcados, em termos de política florestal, pela florestação da propriedade privada, mas, desta feita, com novos suportes institucionais e financeiros. Na concretização deste objectivo de política florestal destaca-se o Projecto Florestal Português, sob a égide do Banco Mundial, e que terminou em 1988. Já no âmbito da adesão à CEE, destacam-se o Programa de Acção Florestal, com a duração de dez anos, e o Programa de Desenvolvimento Florestal, em vigor de 1994 a 1999.

Do balanço feito pelo autor quanto à sua aplicação sobressai a ideia de “paralisia” em termos de actuação sobre a floresta, cuja origem se situa no confronto entre os defensores de uma floresta ligada à protecção do ambiente e os defensores de uma floresta produtiva.

O autor finaliza a ii parte com uma interrogação para o novo milénio, relativa à importância do destino da floresta em Portugal, desde sempre envolvido em controvérsias. Mas o que não deixa de ser irrefutável é, sem dúvida, o relevo da fileira florestal, como o refere o autor, ocupando Portugal o 3.º lugar na importância relativa do sector florestal na economia, cabendo à Finlândia e à Suécia o primeiro e o segundo lugares, respectivamente.

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