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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.194 Lisboa  2010

 

Elizabeth Pissolato, A duração da pessoa: mobilidade, parentesco e xamanismo mbya (guarani), São Paulo, UNESP, ISA, Rio de Janeiro, NuTI, 2007, 446 páginas.

O livro de Elizabeth Pissolato corresponde a uma versão levemente modificada da sua tese de doutoramento defendida no programa de pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A sua pesquisa de campo, realizada entre 2001 e 2004, foi desenvolvida junto aos Mbya (Guarani) das aldeias de Araponga e Parati Mirim, localizadas no município de Parati, no litoral do estado do Rio de Janeiro, Brasil. As duas aldeias somavam menos de 150 pessoas à época da pesquisa, de um universo mbya (guarani) calculado em aproximadamente 20 000 pessoas distribuídas entre o Paraguai, que concentra a maior parte dessa população, a Argentina, o Uruguai e os estados do sul e sudeste do Brasil.

O título do trabalho já evidencia os temas centrais desenvolvidos ao longo do texto. A “duração da pessoa” seria a principal preocupação dos Mbya; já a “mobilidade, parentesco e xamanismo” correspondem aos três elementos principais da análise. A tese da autora, ao considerar os deslocamentos entre diferentes localidades, os comportamentos esperados entre parentes e as acções e relações com as divindades, argumenta que esses estão relacionados com a busca de sabedoria e alegria, formas de prolongar a vida na Terra.

O livro inicia-se com uma caracterização geral das aldeias mbya do Rio de Janeiro, descreve as relações que se estabelecem com os jurua (brancos), a venda de artesanato, a participação em projectos, a obtenção e circulação do dinheiro e a necessidade de comprar os alimentos. O modo actual de vida, impensável sem a relação com os recursos que vêm dos brancos, é marcado por uma maior autonomia da família nuclear, sendo oposto pelos nativos ao modo “antigo” quando então se trabalhava para o cacique.

A autora argumenta que a relação com os brancos alimenta a instabilidade interna das aldeias, ora resultando num agrupamento para a realização de grandes trabalhos voltados para o colectivo, ora levando à atomização dos núcleos familiares que, por exemplo, produzem e vendem artesanato na cidade. Essa oscilação entre estados de concentração e dispersão seria devida à autonomia do indivíduo, que, do seu ponto de vista, veria como vantajoso agir colectivamente ou não. A ênfase colocada na agência vai seguir presente em todo o livro. Essa opção metodológica da autora conduz, por um lado, a uma análise original dos temas guarani presentes na literatura antropológica, anteriormente apontados como resultantes da aculturação.

O segundo e terceiro capítulos abordam o tema da mobilidade e do parentesco. A mobilidade começa a ser tratada através de uma extensa revisão bibliográfica sobre o assunto, na qual são apresentadas as hipóteses a respeito da relação desta com a religião (pp. 97-105). A interpretação da autora propõe que a mobilidade, a religião e a sociedade estão todas subordinadas ao pensamento mbya, que procura o aperfeiçoamento, as boas condições de vida, que permitem a continuidade dos humanos num mundo imperfeito. Os deslocamentos, elemento omnipresente nas histórias de vida, correspondem à procura de contextos locais melhores para a convivência, quando são aproximados parentes antes distantes, para que se realize o ideal de vida. As rezas e cantos, por sua vez, teriam por objectivo afastar as potências negativas causadoras de doença e morte que povoam o cosmos e ameaçam a vida na Terra.

A mobilidade seria geradora de uma dinâmica matrimonial que resulta numa configuração multilocal. A existência de parentes em diferentes localidades forneceria um estímulo para a visita e possível migração para outra aldeia. Essa estada pode levar a relações sexuais e à gravidez, gerando novos parentes. Um dos pais pode, porém, descolar-se, abandonando a família, indo para novas regiões, onde pode vir a fazer novos filhos, o que resulta em parentes localizados em diferentes aldeias que figuram como possíveis pontos para novos deslocamentos.

A imagem fornecida por Pissolato é a de que as pessoas se ligam a diferentes aldeias por vínculos de consanguinidade potencial, relação que pode ou não ser efectivada, dependendo da disposição individual para se deslocar, e cuja efectivação pode gerar laços de afinidades. No esquema da autora a afinidade pode ser desfeita, já a consanguinidade mantém-se como vinculo de certa forma natural, isto é, os filhos de um mesmo pai, que podem, inclusive, não ter sido criados por ele, podem vir a visitar-se e coabitar. No contexto mbya, ao que parece, não é necessário trabalho de fabricação do parentesco.

A preponderância da consanguinidade entre os mbya pode ser influência não apenas da visão nativa, que definiria o parentesco em termos da consanguinidade, mas das teorias que embaçam a argumentação. A aproximação com os estudos de convivialidade de Overing (p. 173) resulta na ênfase num ideal de convivência aldeão tido como a relação entre parentes. O vínculo estruturante das boas relações seria a consanguinidade, já a afinidade é tomada como fonte de feitiçaria. Não há consanguinização dos afins co-residentes; contudo, é o ideal da relação entre consanguíneos que pauta o comportamento entre co-residentes.

Como chama a atenção a própria autora, à diferença dos Piro, não há ênfase na co-residência, os vínculos intra-aldeia são frágeis, sendo mais importantes os laços de consanguinidade interaldeias. Co-residir não leva a transformações entre os moradores de uma localidade, mas o ideal seria co-residir com os parentes, sendo motivação para a mobilidade.

A troca de local de residência para se aproximar de alguns parentes é também o abandono de outros. Esse movimento resulta nma estrutura aberta do parentesco e na instabilidade dos agrupamentos, não existindo colectivo dado. Este princípio estaria tanto no deslocamento de corpos entre localidades quanto no deslocamento da perspectiva, que varia entre o ponto de vista individual e o de um colectivo, isto é, o do líder.

A aparente contradição entre abandonar parentes para se viver o parentesco não se coloca, já que é a autonomia individual e a busca por contextos onde se pode ficar contente o que está na base do pensamento nativo. A busca por ficar alegre, elemento que permite prolongar a existência, causa oscilação entre diferentes perspectivas, já que o que os líderes e xamãs sabem, o seu ponto de vista, pode ser apoiado ou não, dependendo do que acredita o indivíduo.

Tanto o parentesco quanto o xamanismo teriam por função a protecção, a obtenção e disponibilização das forças fornecidas pelos deuses. Idealmente, o xamã seria o chefe de uma família; porém, não é somente o primeiro que realiza o trabalho xamânico. A liderança associa-se ao poder de comunicação com as divindades e à possibilidade de transmitir sabedoria, que permite agir bem orientado e prolongar a vida.

Nesse sentido, é interessante a teoria mbya da agência humana, que parte de uma indistinção entre exterior ao socius e as mentalidades individuais. Toda a acção humana ocorre a partir de saberes que a orientam, sendo a origem destes as divindades e entidades malignas que povoam a Terra, o que resulta em boas ou más orientações, respectivamente. Estas, entretanto, só podem ser avaliadas a posteriori, os resultados da acção é que vão determinar se os conhecimentos que a causaram eram de boa ou má origem.

A liderança será seguida na medida em que as pessoas acreditem no líder. O xamã não detém poder, ele só transmite os conhecimentos que vêm da divindade. Assim, o que diz pode ser contestado, na medida em que a mensagem é aberta para interpretação. A oscilação entre perspectivas estaria em acção aqui também, já que ora a pessoa optaria por acreditar em alguém e colocar-se sob a sua protecção, ora duvidaria desse entendimento e seguiria a sua própria interpretação.

A produção de conhecimento define o processo da vida humana, a pessoa e o socius decorrem da sua produção. A vida só está assegurada, por exemplo, se o xamã consegue escutar o seu nome e transmiti-lo. Este nome é alma, é o que garante a capacidade de adquirir as potencialidades que estendem a vida, sendo essas potencialidades palavras divinas.

O ritual de reza, que recebe destaque no livro, beneficia toda a comunidade, pois é o momento no qual as palavras vindas da divindade são distribuídas. Todos são beneficiados, pois as palavras de origem divina são espalhadas mesmo entre aqueles que não participam no ritual. Essa sabedoria traz alegria e prolonga a vida, propicia a continuação da humanidade, permitindo evitar aquilo que vem das subjectividades perigosas, que causam os males, e a transformação em animal, que pode afastar a pessoa da condição humana.

O livro, de uma maneira geral, limita as suas considerações comparativas a outras populações de origem tupi-guarani. A abordagem de temas como a morte, doenças, escatologia, géneros de fala, presentes em quase toda a etnografia recente sobre os ameríndios, é isolada, não dialoga com as descrições de outras regiões do continente. Se, por um lado, essa estratégia contribui para a ampla discussão existente acerca das populações tupi-guarani, por outro, ela mantém o isolamento dos estudos tupi, que se desenvolvem em paralelo com outras etnografias regionais.

 

Marcelo Pedro Florido

Departamento de Antropologia, Universidade de São Paulo

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