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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.194 Lisboa  2010

 

Marcos Cueto, The value of health: a history of the Pan American Health Organization, Washington, D. C., Pan American Health Organization, 2007, 239 páginas.

Fazer a história de instituições é sempre uma tarefa difícil. Perante a abundância de material surgem dilemas sobre o que incluir ou relegar, que níveis de análise privilegiar e que ênfase dar à documentação oficial, diários ou testemunhos orais. Esta tarefa agudiza-se quando se trata de uma instituição como a Organização Pan-Americana de Saúde (PAHO — no acrónimo inglês), a mais antiga agência de saúde pública internacional activa que, como o nome indica, opera em todo o continente americano. Como fizera em trabalhos anteriores (Cueto, 1995 e 2004a), Marcos Cueto lida bem com estas dificuldades, apresentando, assim, em Value of Health um trabalho coeso (Cueto, 2004b).

Metodologicamente, o autor utiliza trilhos familiares da historiografia recente. Consulta fontes secundárias, mergulha na imensidão do material de arquivo presente em inúmeros países e continentes e recorre à história oral. O uso de material secundário — monografias e artigos — permite um primeiro olhar sobre as acções da PAHO. O recurso às fontes primárias — documentação institucional, diários e correspondência dos directores-gerais — outorga um colorido ao desenvolvimento da instituição, dos seus programas e acções, enquanto os testemunhos orais humanizam a imagem dos directores.

A abrangência temporal do livro, desde o século xix até à contemporaneidade, permite apreender a génese e evolução de uma miríade de questões que ainda hoje são objecto de análise e discussão, contribuindo assim para uma melhor compreensão do conhecimento de programas e práticas de saúde actuais em diversos contextos: ocidentais ou em desenvolvimento.

Cueto revela como as medidas sanitárias adoptadas no século xix e centradas nos portos foram importantes para a criação de instituições internacionais de saúde pública; como as descobertas de Pasteur, Koch, Leveran e Ross promoveram a transição paradigmática das ideias legadas aos miasmas para a bacteriologia, reforçando a crescente hegemonia dos médicos, precipitando a criação da PAHO em 1902 e, posteriormente, a uniformização das regras de saúde marítima-portuária no continente.

De facto, com o intuito de proteger o comércio, uniformizaram-se as medidas sanitárias, nomeadamente a regulação das acções de quarentena e notificação de doenças como a cólera, a febre-amarela e a peste bubónica, expandindo-se as regras de saúde pública internacional para as cidades contíguas aos portos, bem como para os mercados e os matadouros.

A consolidação da medicina social a partir da segunda década do século xx, que apontava para soluções ambientais e educacionais no quadro das problemáticas de saúde, leva a uma crescente actuação de instituições públicas independentes nas cidades, particularmente no período de entre guerras.

O contexto do pós-Segunda Guerra Mundial, moldado pelo aparecimento de várias organizações internacionais, pela declaração de Truman de 1949 sobre o desenvolvimento, pela presença de novos valores — universalidade da experiência humana; ênfase no profissionalismo e na capacidade técnica em detrimento da improvisação e politização das acções —, sublinhava a possibilidade de desenvolvimento dos países “subdesenvolvidos”. É neste contexto que a PAHO desenvolve políticas de formação na área da medicina, das ciências de saúde, da saúde pública e administrativa; aumenta e diversifica a nacionalidade do seu pessoal; incrementa a profissionalização das mulheres em áreas de saúde; descentraliza-se através da criação de novos centros de pesquisas em vários países membros.

Estas políticas intentavam transferir a acção em saúde para fora dos ministérios de saúde nacionais e, paralelamente, reforçando a PAHO, possibilitar, assim, a produção de informação com indicadores quantitativos, a realização de pesquisa e a adequação de programas às condições locais. No entanto, segundo o autor, esta política de construção de uma identidade institucional, alimentada por elementos dos serviços nacionais de saúde, provocou tensões com as instituições locais.

As acções no pós-guerra reveladas por Marcos Cueto são importantes para uma melhor percepção da genealogia de muitos dos actuais programas de saúde. Esta foi a época em que as campanhas verticais e de erradicação ganharam mais visibilidade. A fé na ciência e na técnica conduziu à ideia de erradicação de doenças como a malária, a febre-amarela e a tuberculose. No entanto, uma míriade de problemas afectou estes programas verticais, transformando a natureza das próprias campanhas. A campanha de erradicação da malária do início de 1950, por exemplo, debateu-se com a resistência de certas espécies de Anopheles; com a transmissão da doença em hospitais através da transfusão de sangue infectado; com a criação de novos locais para a gestação de mosquitos, consequência da desflorestação, operações mineiras e abertura de estradas; com o efeito nefasto do DDT nos ecossistemas locais; com a persistência do contacto vector-homem corolário das paupérrimas condições de vida das populações; com a tenacidade de conceptualizações locais sobre o corpo, febres e sangue vis-à-vis acções biomédicas. Estes factores fizeram com que a malária reemergisse mais tarde como um problema de saúde pública e as campanhas para a sua erradicação se transformassem, no início da década de 60, em campanhas de controlo.

Apesar destes reveses, são corolários das campanhas verticais ideias como a incorporação dos programas de saúde no desenvolvimento socioeconómico e a participação da comunidade nas actividades de saúde. A campanha contra a boubas no Haiti foi das mais prolíferas para a relevância da cultura e práticas médico-sanitárias no terreno. Por exemplo, o sistema de identificação de casas teve de ser modificado devido ao conflito com simbologias e significados locais; a acção das equipas passou a ser pro-activa, procurando-se pacientes de casa em casa. Ilações como a integração da comunidade e respeito pela cultura local tiveram origem nesta campanha vertical, assim como metáforas como a do Dr. Leviatan que afirmava que “a melhor propaganda é feita pelos doentes”. Mais, estas campanhas tornaram visíveis os problemas específicos de populações até então longe dos alvos das acções de saúde, caso das populações rurais. Como consequência, nos anos 60 a PAHO recentrou a sua atenção nas áreas rurais onde a maior parte da população da américa latina vivia e que até então tinham sido negligenciadas.

Na década de 70 testemunhou-se em Alma Ata o aparecimento dos cuidados de saúde primários. Esta abordagem enfatizava o uso de tecnologias apropriadas a contextos em desenvolvimento, reforçando o conceito de saúde como parte importante e ímpeto para o desenvolvimento económico. No entanto, a posterior criação por parte de agências internacionais de programas selectivos de saúde pública, como GOBI-FFF (estratégias selectivas dos cuidados de saúde primários centrados na saúde materna e infantil) e GOBI, a formação médica de pessoal de saúde, bem como o parco investimento estatal na saúde primária, levaram a que surgissem inúmeras críticas, argumentando-se que se criara uma medicina pobre para gente pobre.

Nas décadas de 80 e 90 foram criados novos caminhos para os programas de reajustamento estruturais no campo da saúde vis-à-vis as directrizes dos organismos financeiros internacionais. Os programas de ajustamento estrutural aplicados localmente eram corolários de directrizes globais. Dito isto, a centralidade do interesse político das acções de saúde, presente desde o final da segunda guerra mundial, e a importância da participação da comunidade para a sustentabilidade das acções em saúde permaneceram como elementos centrais dos programas de saúde. O relatório da Organização Mundial de Saúde de 2008 — Cuidados de Saúde Primários — Agora Mais Que Nunca — parece dar razão aos defensores de Alma-Ata quando estes afirmam que os seus princípios não foram aplicados, falhando-se em factores específicos, como a perspectiva de género, a falta de fundos para programas de saúde para todos e a aliança entre a saúde e a sociedade civil.

Apesar da sua relevância, este livro apresenta alguns calcanhares de Aquiles. Ao utilizar os directores da PAHO como guias para a história da instituição, Marcos Cueto privilegia uma visão de topo, perdendo-se por vezes em detalhes da vida dos directores e mesmo da arquitectura dos edifícios da PAHO, matéria com pouco interesse para o argumento central do livro. Outro ponto negativo a considerar é a parca ilustração das vozes dos diversos intervenientes em programas de saúde — médicos, enfermeiros e outros técnicos — e das reacções das populações.

Esta obra ganharia muito se aos dados financeiros e estatísticos fornecidos estivesse subjacente um argumento. Ou seja, para melhor compreender os investimentos, as ênfases dadas a certas regiões, populações e programas de saúde pública, reais e/ou retóricas, ao longo da existência da instituição, o leitor é forçado a saltar constantemente de capítulo em capítulo e a fazer ele próprio as comparações, pois os dados encontram-se dispersos em diversos capítulos e subcapítulos e em bruto. O autor poderia ainda enfatizar as tensões, negociações ou diferentes soluções aplicadas nas mais diversas regiões da PAHO; revelar qual o papel dos técnicos e autoridades locais na aplicação e negociação de práticas higiénicas ou em determinados planos verticais junto das populações; ilustrar como a PAHO lidou com os diferentes conceitos de saúde presentes no continente; mostrar como as várias populações respondiam às acções biomédicas; tornar visível a relevância das redes existentes a diferentes níveis para a aplicação dos mais diversos programas.

Apesar destas críticas, Value of Health é um livro que permite uma miríade de leituras centradas no aparecimento, crescimento e hegemonia da saúde internacional, ou na influência da transição de paradigmas nas políticas de saúde, ou ainda na arqueologia da presente conceptualização e aplicação de programas de saúde, revelando-se, assim, como uma importante contribuição para a melhor compreensão de programas e práticas de saúde contemporâneos.

 

Jorge Varanda

CRIA-ISCTE

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