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Análise Social

Print version ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.195 Lisboa  2010

 

Cristiana Bastos, Miguel Vale de Almeida e Bela Feldman-Bianco (orgs.), Trânsitos coloniais. Diálogos críticos luso-brasileiros, Campinas, Editora da UNICAMP, 2007, 446 páginas.

 

Kelly Cristiane da Silva

Universidade de Brasília

 

No momento em que assistimos à expansão dos horizontes analíticos das ciências sociais brasileiras, a publicação de Trânsitos Coloniais: diálogos críticos luso-brasileiros no Brasil é mais do que oportuna. Entre outras coisas, o livro atesta a fecundidade dos intercâmbios académicos entre o Brasil e Portugal. Composta por um conjunto de 16 artigos, organizados em quatro secções, “Lusofonias críticas”, “Poder e margens”, “Ideologia e etnicidade” e “Trânsitos e tráficos”, a obra é um caleidoscópio que revela, sob diferentes ângulos, complexos cenários que se compuseram a partir de conexões com a expansão colonial portuguesa em África, na Ásia e na América. É possível observar entre os artigos perspectivas comuns, os quais dão organicidade e unidade à obra. Proponho-me, ao longo dessa recensão, identificar algumas delas.

Embora abordando objectos distintos, todos os textos do livro os qualificam como produto de efeitos de poder. Respondem, assim, às expectativas de Miguel Vale de Almeida no primeiro artigo da colectânea. Nele o autor apresenta uma didáctica revisão da genealogia, preceitos, potenciais e fraquezas das críticas pós-coloniais. Sublinha-se a fertilidade de certas dimensões de tais críticas, sobretudo o preceito da “mútua constituição das representações sociais de colonizadores e colonizados” (p. 32), desde que se considerem as condições históricas em que tal fenómeno é experimentado.

O processo de fabricação de identidades é um dos grandes temas desta obra. Figura como resultado de articulações ideológicas e materiais e das suas dinâmicas históricas, de entre as quais se destacam as múltiplas configurações locais do Estado colonial português e/ou dos seus intermediários e das suas redes de apoio. A partir de universos distintos, o livro revela-nos como os portugueses, a colonização portuguesa e o repertório associado a tais agências — o cristianismo, a escravidão e a língua portuguesa, por exemplo — foram e são tomados como fonte de mobilização política entre diversos actores. Em diferentes densidades e posições, de Goa ao Rio de Janeiro, em cenários coloniais e pós-coloniais, como fonte de virtudes ou de vícios. A esse respeito, a análise de Jill Dias é exemplar. Mostra como a constituição e o poder dos ambakistas no espaço a que hoje chamamos Angola se configuraram pela apropriação de certos capitais simbólicos associados à colonização portuguesa e ao cristianismo. Representações cinematográficas de práticas de resistência à colonização portuguesa e algumas das suas implicações constituem o fio condutor da análise de Ana Maria Galano. A autora discute conjunções, mediações e disjunções dos processos de produção e recepção de Os Inconfidentes, Mueda e O Fio da Memória. Entre outras coisas, pontua-se, no artigo, a distinção do lugar ocupado pela experiência colonial no Brasil e em Moçambique contemporâneos.

Nas abordagens de fenómenos relacionados com a invenção do Brasil, alguns textos indicam que o lugar a ser atribuído ao legado da colonização portuguesa foi parte central das preocupações das elites envolvidas naquele empreendimento. Para o contexto do então recém-independente império brasileiro, Gladys Sabina Ribeiro discute como se impôs aos quadros da sua elite a tarefa de se diferenciarem dos portugueses. Demonstra-se como tal agenda, transfigurada por alguns em antilusitanismo, se transformou em munição nas disputas entre diversos grupos sociais. A intricada rede de comércio que unia diferentes partes do império colonial, na qual a praça do Rio de Janeiro aparecia como mediadora importante nas rotas transoceânicas e entre o litoral e o interior do Brasil, tal como é retratada por João Fragoso e Manolo Florentino, evidencia, de outra forma, a porosidade das fronteiras entre brasileiros e portugueses nas décadas que antecederam a independência. Robert Rowland, por sua vez, tematiza a transformação dos estereótipos associados aos portugueses no Brasil ao longo do tempo por meio da análise de obras literárias e outras formas de expressão cultural. O seu artigo indica como a imagem dos portugueses como simplórios e ingénuos é recente e reversa às identidades a eles atribuídas noutros momentos.

Giralda Seyferth, por seu lado, explora as respostas forjadas pelas elites e pelo Estado brasileiro a certas demandas e discursos apresentados pelos migrantes alemães entre o final do século xix e primeiras décadas do século xx. A autora analisa a constituição do germanismo como ideologia étnica teuto-brasileira e a sua interpretação por sectores da elite brasileira como “perigo alemão”, um conjunto de discursos que ameaçavam o projecto assimilacionista de nação “luso-brasileira”. No momento em que o Brasil se constituía também como um país de imigração, a nacionalidade dos migrantes a serem trazidos ao país era objecto de debate entre as elites, dando origem a hierarquias de preferências (p. 298). Naquele contexto, vimos configurar-se, ao longo das décadas, uma transformação das imagens associadas aos portugueses e à colonização portuguesa. A análise de John Monteiro das mitografias de Ellis Jr. e de Germano Correia revela como nelas são edificadas diferentes “raças de gigantes” em diálogo com o paradigma racialista do início do século xx: (1) os mamelucos paulistas, forjados a partir da mestiçagem entre índios e portugueses, no caso do Brasil; (2) os portugueses que, em diáspora pelo mundo, teriam dado origem aos lusodescententes na Índia. Contudo, ainda não estamos, em tais casos, diante de discursos luso-tropicais, tal como formulados por Gilberto Freye.

Ao debruçar-se sobre a gestação e posterior difusão do luso-tropicalismo, Omar Ribeiro Thomaz indica, a este respeito, que a sua adopção enquanto ideologia imperial se deu somente a partir de meados de 1950. Entre outras coisas, o autor mostra-nos as relações de continuidade entre a ideologia luso- -tropical e os pressupostos que alicerçam a Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) (p. 62). A este respeito, Bela Feldman-Bianco situa a criação da CPLP como uma acomodação das disputas contemporâneas entre as elites políticas portuguesas em torno do lugar de Portugal no mundo, situado, no limiar do século xxi, entre um projecto atlântico — que prevê relações privilegiadas com as suas ex-colónias — e a sua pertença à Europa. A partir da análise dos discursos de similaridade e diferença entre portugueses e brasileiros, no âmbito das particularidades das relações históricas e de uma crise diplomática entre os dois países nos anos 90, a autora apresenta um insight esclarecedor: “[o] ‘território’ supranacional da língua portuguesa passou progressivamente a representar uma nova face do império português em tempos de globalização” (p. 437).

Considerada na sua totalidade, outro ponto alto da obra, sobretudo para uma audiência brasileira que pouca ideia tem sobre as condições históricas reais do III Império, diz respeito ao modo frágil e débil pelo qual o colonialismo português é apresentado, sendo caracterizado, já na introdução do livro, como um poder subalterno.

Esforços teóricos e etnográficos bastante profícuos são então empreendidos por certos autores para qualificar tal experiência. Cristiana Bastos, por exemplo, sugere ter sido o colonialismo português tardio estruturado sobre subalternizações sucessivas, produzidas pela condição de “centro fraco” da própria metrópole (p. 159). As bases emocionais do poder colonial são discutidas por João de Pina Cabral. Sugere-se estar ele alicerçado no que é denominado zumbificação do subalterno (p. 117) — o olhar do colonizador a desumanizar o colonizado, que o ameaça, como a toda a humanidade — e de agorafobia colonial (p. 119) — medo produzido pela constatação da grandeza e potencial do império e dos parcos meios disponíveis para o explorar. Propõe o autor que o poder colonial se constituía emocionalmente em resposta a ameaças simbólicas, geográficas e a projectos de poder por ele mesmo formulados. Ao discutir a dinâmica dos mocambos nas fronteiras entre o então Grão-Pará e a Guiana Francesa, Flávio Santos Gomes permite-nos entrever a relativa fragilidade do domínio português no Brasil entre os séculos xviii e xix e a complexidade dos mecanismos envolvidos na sua constituição, negociados em arenas transnacionais por colonizados e colonizadores.

Nuno Porto, ao analisar a formação do Museu do Dundo, em Angola, e a sua excepcionalidade no quadro das possessões portuguesas, propõe que a ausência de arquivos e museus de vulto em Portugal é mais uma expressão da fraqueza da administração colonial. Resgatam-se, assim, as ideias de Thomas Richard, para quem os impérios coloniais são, de certa forma, uma ficção e desafio administrativo, que tem como lugar privilegiado de objectivação os museus e arquivos. O cruzamento das argumentações de Pina Cabral e Porto fazem-nos pensar a respeito de serem os museus também tecnologias de zumbificação dos subalternos e respostas a agorafobias coloniais.

As formas de conhecimento e os sistemas classificatórios elaborados em diferentes cenários da administração colonial são também tematizados noutros artigos. António Carlos Sousa Lima propõe que a genealogia da administração indigenista no Brasil pode ser traçada a partir dos legados deixados pelo Estado português em quatro distintas tradições de conhecimento colonial: (1) sertanista; (2) missionária; (3) mercantilista; (4) escravista. Silvia Hunold Lara discute o sistema classificatório de gestão da diversidade étnica e cultural africana praticado em Minas Gerais no século xviii. Demonstra-se que o mesmo estava ancorado em princípios de diferenciação fenotípica, nacional, linguística, de aptidão a certos tipos de trabalho, de porto de origem, local de nascimento, entre outras, que a senhoria deveria observar para boa gestão de seus plantéis.

Por fim, cabe destacar que a aparição de Trânsitos Coloniais no mercado editorial brasileiro, como de Moçambique (2001), organizado por Peter Fry, Ecos do Atlântico Sul (2001), de Omar Ribeiro Thomaz, entre outros, é de fundamental importância para a emergência de uma leitura mais historicista do colonialismo e das críticas pós-coloniais no país, dada a riqueza dos lastros sociológicos mediante os quais tais fenómenos são discutido nessas obras. E que venham outras...

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