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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.196 Lisboa  2010

 

Pessoas sem voz, redes indizíveis e grupos descartáveis: os limites da teoria do actor-rede[**]

 

José Manuel de Oliveira Mendes*

* CES, Universidade de Coimbra, Colégio de S. Jerónimo, apartado 3087, 3001-401 Coimbra, Portugal. e-mail: jomendes@ces.uc.pt.

 

Neste artigo procede-se a uma reflexão crítica sobre a teoria do actor-rede de Michel Callon e Bruno Latour. Salienta-se a necessidade de incorporar no estudo do social as emoções e a imponderabilidade.Tendo como referência a análise de situações de catástrofe ou de acontecimentos extremos, propõe-se uma reflexão sobre o trabalho político que coloca fora das redes sociais, como irrecuperáveis e descartáveis, todos os que não criam ou não possuem valor na perspectiva hegemónica e que, por conseguinte, não são construídos como portadores de direitos sociais e políticos, tornando-se invisíveis e ausentes das análises convencionais propostas pela teoria do actor-rede.

Palavras-chave: teoria do actor-rede; emoções; acontecimentos extremos; grupos descartáveis.

 

Voiceless people, unnamable networks and disposable groups: the limits of actor-network theory

In this paper a critical analysis of Bruno Latour and Michel Callon’s actor-network theory is proposed. It is argued that studies about the social must incorporate emotions and imponderability. Focusing on the analysis of catastrophes and extreme events, a reflection on the political work that excludes from the social networks, as irretrievable and disposable, all those that do not create or do not carry value in the hegemonic perspective and, therefore, are not construed as having social and political rights is presented. These irretrievable and disposable persons and groups become invisible and absent in the conventional analyses proposed by actor-network theory.

Keywords: actor-network theory; emotions; extreme events; disposable groups.

 

Introdução

Neste artigo procuro estabelecer um diálogo crítico com alguns dos pressupostos da teoria do actor-rede (TAR) e, de forma mais lata, com os estudos sociais de ciência e de tecnologia. Argumento que estas correntes analíticas, ao enfatizarem a componente sociomaterial, a simetria dos actantes e a lógica reticular do poder, subestimam a importância da ordenação dos factos pelas narrativas e o papel da imaginação emocional[1]. Seguir os actores ou incorporar as entidades materiais, princípios basilares da TAR, implica a inclusão num tipo qualquer de associação ou de rede. Colocar em ordem implica escolhas epistemológicas e uma epistemologia política (Latour, 2005, pp. 249-253), não atendendo aos que ficam fora das redes-actores. As estratégias analíticas e de narração da TAR, baseadas em positividades, omitem ou esquecem os não-ditos, os silêncios, as ausências, o trabalho urdido nos interstícios das redes para ser e fazer valer, um trabalho baseado no cuidado e na gestão das emoções, para além das redes e da lógicas de poder.

Partindo do exemplo de dois acontecimentos extremos, o furacão Katrina, em 2005, e a onda de calor em França em 2003, procurarei mostrar como os indivíduos e grupos descartáveis são colocados no exterior das redes e dos agenciamentos sociotécnicos e, dado que esses indivíduos e grupos são vistos como não-produtores de valor, não são construídos socialmente como portadores de direitos, tornando-se invisíveis e difíceis de incluir nas análises convencionais da TAR. Mostrarei que os princípios de agnosticismo, simetria e livre associação propostos por Michel Callon (1986) parecem recomendações difíceis ou impossíveis de aplicar no caso da onda de calor de 2003 ou no caso do furacão Katrina.

Como bem mostrou Boaventura de Sousa Santos (2006, p. 97), a razão metonímica produziu e legitimou cinco formas de não-existência: o ignorante, o residual, o inferior, o local e o improdutivo. Poderá a sociologia, como conhecimento social humilde e produtor de conexões parciais e situadas, trazer de volta esses indivíduos e grupos descartáveis? A resposta de Boaventura de Sousa Santos é positiva quando afirma que “[a] sociologia das ausências visa identificar o âmbito dessa subtracção e dessa contracção de modo a que as experiências produzidas como ausentes sejam libertadas dessas relações de produção e, por essa via, se tornem presentes”.

Ao analisar os princípios e a metodologia da TAR apresentados por Michel Callon e Bruno Latour, apoio-me em Carlo Ginzburg (2003, p. 34), quando propõe que estudemos as implicações cognitivas das escolhas narrativas que simultaneamente abrem e proíbem explicações alternativas possíveis. Isto é, o hors-texte, o fora-do-texto está totalmente imerso no texto, acoplado nas suas dobras, e vale a pena procurar e confrontar o fora-do-texto e fazê-lo falar (Guinzburg, 2003, p. 32)[2].

 

O social é plano e transitório: a teoria do actor-rede (TAR)

Os princípios básicos da teoria do actor-rede (TAR) foram estabelecidos por Michel Callon no seu artigo seminal publicado em 1986. Esses princípios eram os seguintes: agnosticismo, simetria e associação livre. Os mesmos podem ser resumidos no já famoso dito “seguir e respeitar os actores”.

Agnosticismo significa que o cientista social não avalia, critica ou julga os actores quando falam e argumentam sobre o social, elaboram as suas identidades ou mobilizam casos e entidades para ilustrarem os seus argumentos. A simetria, para além do que propunha David Bloor (1976), assume que o papel do cientista é o de um tradutor que escolhe deliberadamente que afirmações e perspectivas incluir na sua análise. A associação livre implica que o cientista social não aplica um esquema ou um protocolo analítico preestabelecido, mas, pelo contrário, que se apoia nas montagens e composições do mundo feitas pelos actores, seja com entidades e materiais naturais, sociais, tecnológicos ou outros.

Vinte anos depois, duas obras vão ser marcantes na consolidação desta perspectiva analítica. Reassembling the Social (2005), da autoria de Bruno Latour, e o artigo de Michel Callon “Le renouveau de la question sociale: individus habilités et groupes concernés” (2003)[3].

O livro de Latour é mais um manifesto do que um manual ou uma introdução à TAR. Um manifesto convincente e de grande impacto. A sociologia é aí definida como uma prática que liga e está atenta às associações e às conexões. A sociedade é um resultado, um produto, um efeito de múltiplas montagens. Tal fica demonstrado nos cinco capítulos que nos devolvem as fontes da incerteza sobre o social e nos três capítulos que se apresentam como movimentos que procuram ultrapassar as lacunas da sociologia tradicional.

A primeira fonte de incerteza identificada por Latour prende-se com a natureza integralmente performativa do social. Não existem grupos, mas sim formações de grupos, e os actores, no seu afã de formação de grupos, estabelecem fronteiras para estabilizarem o social. A segunda fonte de incerteza é que o social é submergido, tomado de surpresa, isto é, a acção é sempre surpreendente, uma mediação, um acontecimento (2005a, p. 45). A terceira fonte de incerteza deriva do facto de que os objectos agem, têm agência e, como consequência, emerge a quarta fonte de incerteza: a sociologia deveria concentrar-se nas questões que interessam e preocupam, em vez de atender às questões de facto. A quinta e última fonte de incerteza, apresentada como a escrita de relatos arriscados, incita o cientista social a tomar tudo como dados e a arriscar a incorporação nos seus escritos de actores recalcitrantes[4].

Os três movimentos que permitirão a concretização dessa nova escrita sobre o social são: localizar o global; redistribuir o local e conectar os lugares. O objectivo é manter a ideia de que o social é plano e descrever a produção contínua dos lugares, das escalas e das dimensões (Latour, 2005, p. 171). O primeiro movimento relaciona-se com a produção de trilhos contínuos, seguindo os processos de delegação e de tradução. O segundo movimento permite estar atento aos laços e ligações que os actores estabelecem e à inter-objectividade. O terceiro movimento baseia-se nos móveis imutáveis que circulam de lugar em lugar e, através de mediadores, constituem o plasma que molda a forma como acontecem as coisas no social.

Penso que a obra de Bruno Latour La fabrique du droit (2002) é uma aplicação virtuosa dos princípios atrás referidos. A metáfora do título transmite-nos a frieza e a rigidez do processo de produção de leis e de legislação. Latour, enquanto etnógrafo, aceita as leis de ferro que pautam as práticas dos seus sujeitos do Conselho de Estado francês. Latour conforma-se e cumpre as regras do silêncio e do segredo sobre o que está a ser discutido neste espaço quase sagrado da justiça francesa. Mas, apesar da sua postura como cientista social, pressentimos que, embora produza uma descrição convincente e elucidativa sobre o fabrico das leis, há um mal-estar pessoal, um sentimento de insignificância que não é totalmente explorado. Sabemos que ele se sentiu, durante o seu trabalho de campo, como uma mosca invisível na parede. Mais ainda, Latour (2002, p. 268) deplora a ausência de reflexividade de tão venerável instituição. E, em vez de explorar este mal-estar causado pela recalcitrância ostensivamente demonstrada pelos seus sujeitos, desvia a sua análise e a sua escrita da instituição que estava a estudar para uma reflexão mais geral sobre a lei como um regime específico de enunciação[5].

Talvez o seu mal-estar e a sua sensação de invisibilidade e de insignificância fossem um indicador daquilo que sentem os cidadãos comuns quando confrontados com a lógica opaca da lei e do direito. E, se para o etnógrafo era só uma questão de escrita e de estudo, para os que são afectados pelas decisões dos tribunais tais são questões de preocupação que permitem ou não uma plena participação na construção de uma esfera pública e num mundo comum.

O livro de Latour, com fotografias de Emilie Hermant, Paris ville invisible (1998), é igualmente uma aplicação exemplar de uma sociologia de montagens e de associações. A materialidade de Paris e o carácter plano do social ficam bem demonstrados nas suas ruas, becos, lugares, praças, mercados, cafés, secções de voto e monumentos. A consistência do social assenta nas múltiplas e variadas práticas quotidianas, nos objectos, artefactos e representações que circulam e se cristalizam. Mas, conforme os autores viajam da École des Mines até uma esquadra de polícia, do gabinete do presidente do município para uma mesa de voto, de um café parisiense para um mercado, parece estranho que, apesar da referência aos trabalhos permanentes no Pont Neuf, Latour não mencione as pessoas que dormem debaixo dessa ponte ao longo do Sena; que essas não estejam presentes na narrativa ou nas fotografias, invisíveis tanto como as suas tendas, que assinalam a sua incontornável presença naquele lugar. Esta cegueira do sociólogo e da fotógrafa deve-se à visibilidade ostensiva dessas pessoas desprovidas no espaço público? Ou tal é uma consequência inerente da TAR, dado que os sem-abrigo não participam directamente em nenhuma montagem sociotécnica que pareça relevante?

 

Uma tipologia de grupos e a possibilidade de participação

No seu artigo “Le renouveau de la question sociale”, Michel Callon (2003, p. 209) estabelece as bases para uma nova análise da questão social, nomeadamente da exclusão social. O primeiro aspecto prende-se com a noção de que o indivíduo só pode ser compreendido a partir dos conceitos de acção distribuída e de agenciamentos sociotécnicos[6]. No lugar de indivíduos dotados de capacidades, temos indivíduos capacitados para a obtenção de poder e definidos pelas modalidades distribuídas da acção.

Callon propõe uma oposição entre uma política protética e uma política de capacitação. A política protética deriva da noção de que ao indivíduo portador de uma deficiência será aplicada, de uma forma ad hoc, uma simples compensação ou prótese. A política de capacitação, por outro lado, sustenta uma adaptação estrutural para que cada indivíduo possa mobilizar as suas capacidades e o seu potencial de acção. Tal conduz-nos à famosa frase “somos todos deficientes”.

Relacionada com a discussão de indivíduos capacitados para a obtenção de poder, produzindo e sendo produzidos por agenciamentos sociotécnicos, Callon propõe uma tipologia de grupos que são construídos pela dinâmica contínua de enquadramento/extravasamento. Os grupos que estão inseridos em agenciamentos sociotécnicos, com mediadores e delegados, são definidos como grupos interessados. Estes grupos estão mobilizados e podem projectar-se na esfera pública e generalizar as suas causas.

Quando ocorrem extravasamentos nos agenciamentos sociotécnicos, alguns grupos podem ser afectados, mobilizando-se, ou não, para enfrentarem os desafios que lhes são colocados. Os últimos tipos de grupos, não afectados pelos extravasamentos e não interessados pelos agenciamentos sociotécnicos, são os grupos órfãos. Estes são produzidos pelas dependências tecnológicas e pelos fechamentos das redes na construção dos agenciamentos. Para que estes grupos se tornem visíveis é necessário que o aspecto singular das causas que os excluem do espaço público seja ultrapassado e que um destino colectivo se torne manifesto (Callon, 2003, pp. 232-233).

Esta proposta de Callon tem a vantagem de apresentar de forma clara as condições para a participação dos indivíduos e dos grupos na produção do colectivo e de acentuar o papel central dos agenciamentos sociotécnicos nesse processo. Contudo, este modelo analítico, marcado por relações e materialidades densas, pressupõe, como o substantivo “agenciamento” indica, uma capacidade para agir e para dar significado à acção que exige investimentos específicos. Os agenciamentos sociotécnicos são proactivos e implicam positividades e a criação de laços consistentes[7]. Como analisar, neste quadro epistemológico e metodológico, os desfasamentos, os espaços e os tempos vazios, o quebrar de laços, o afastamento lento e penoso da vida ruidosa e da obrigatoriedade de ter um projecto de vida?

 

Para além das tecnologias e das narrativas: o papel da vulnerabilidade, das emoções e do cuidado

O que está ausente neste quadro analítico da TAR é uma atenção às emoções envolvidas na acção, às fragilidades e às vulnerabilidades constituintes dos laços que tecemos uns com os outros. Os agenciamentos sociotécnicos ganharão com a incorporação do lema sugerido pela ética do cuidado de Patricia Paperman, “somos todos vulneráveis” (2005).

Ao arrepio de metáforas comuns nas ciências sociais, como construção, pilares, engenharia, tecnologia, Patricia Paperman sugere que uma ética do cuidado (care) é central para o reconhecimento das nossas próprias vulnerabilidades e dependências[8]. O cuidado, numa perspectiva sociológica, permite a definição de problemas morais e os modos para enfrentar os mesmos, como, por exemplo, a vontade de manter uma relação mesmo quando confrontado com interesses e desejos divergentes; dar atenção às particularidades da pessoa e da situação em que se está imerso; responder a necessidades concretas; atender ao papel dos sentimentos e das emoções na compreensão (e não na explicação) das situações.

De forma análoga, Talal Asad sugere que uma análise assente na dor e na acção abre novas formas de pensar a acção incorporada, para além da abordagem tradicional que a dor e a acção tomam como meras expressões holísticas de identidade ou como respostas a oportunidades que se apresentam nas situações vividas. Asad (2003, p. 73) afirma que há formas de experiência em que nos ligamos ao mundo através dos nossos corpos e que implicam “a desire to allow one’s self to be controlled by the world in certain ways”.

Reflectindo sobre o impacto do 11 de Setembro e a necessidade de reinventar uma ética não violenta, que se apresente como uma alternativa à governamentalidade hegemónica, Judith Butler (2004, pp. 20-21) propõe os conceitos de perda e da mágoa associada a essa perda, e de vulnerabilidade como fundadores da reimaginação da possibilidade de comunidade. A perda fornece um sentimento de comunidade política complexa, pois invoca os laços relacionais que têm implicações para uma teorização da dependência fundamental e da responsabilidade ética. Contra as definições identitárias de uma ontologia liberal, Judith Butler sugere que devemos incorporar nas nossas análises os efeitos contraditórios, dilacerantes, da paixão, da mágoa, da dor e da raiva: “[…] passion and grief and rage, all of which tear us from ourselves, bid us to others, transport us, undo us, implicate us in lives that are not our own, irreversibly, if not fatally” (Butler, 2004, p. 25).

Tal passa por uma teorização do corpo como materialidade implicadora de mortalidade, vulnerabilidade e acção. O corpo, constituído como um fenómeno social na esfera pública, é e não é meu. E é a vulnerabilidade de um corpo singular, de vários corpos, de grupos e de comunidades que deve ser reconhecida para que a atenção que lhes é dispensada seja potenciadora de um encontro ético. A vulnerabilidade depende das regras existentes de reconhecimento (Butler, 2004, p. 43).

 

A teoria do actor-rede e as emoções

Se os escritos de Michel Callon não incluem explicitamente qualquer posição pessoal ou emocional[9], o seu artigo, escrito em co-autoria com Vololona Rabeharisoa (2003), sobre Gino, um doente com distrofia muscular que recusou as deixas de diálogo propostas por estes dois sociólogos e pela sua família em torno da sua doença e que se recusou sempre a recolher informações sobre a genética da doença e o seu impacto nos seus filhos é um dos trabalhos mais empáticos alguma vez escritos por cientistas sociais.

Callon e Rabeharisoa (2003, p. 24) utilizam de forma magistral a posição de Gino para explorarem as suas consequências para o papel do sociólogo no acto de investigação, bem como para uma análise crítica da eficácia das metodologias da sociologia enquanto disciplina científica. Simultaneamente, procedem a uma crítica da noção ocidental de arena pública, que pressupõe um sujeito individual livre, autónomo e responsável. O caso de Gino conduz os autores a proporem as bases de uma sociologia que promova a emergência de formas variadas e diferentes de nos comportarmos como humanos[10].

Embora o caso de Gino seja mobilizado pelos autores para reflectirem sobre questões gerais que se colocam à sociologia, às ciências sociais e à humanidade como um todo, pouca ou nenhuma atenção é dada à pessoa particular que encontraram. Pergunto-me que teriam descoberto os autores sobre a maneira de produzir laços alternativos e significantes, sobre a maneira de se tornar humano e moral, se tivessem seguido a pista dada por Gino na transcrição da entrevista que apresentam (Callon e Rabeharisoa, 2003, p. 4):

Sociologists: Do you participate in the ARM’s[11] activities?

Gino: No, I don’t participate in the ARM. When I was working I didn’t have the time. Now I prefer going to a football match. I like football.

Esta resposta quase insultuosa é um sinal de recalcitrância, mas também uma indicação de que, como salientam Callon e Rabeharisoa, Gino não é maluco ou um monstro. Na situação particular de Gino, na sua vida específica, na sua localização política local e pessoal, confrontado com um formato de entrevista que reproduz um imaginário de teletecnologia, Gino afirma a sua diferença ao declarar que não se interessa sobre as últimas descobertas genéticas e médicas sobre a sua doença e afirma a sua mundaneidade ao declarar candidamente que gosta de futebol. Que tipo de entrelaçamentos, de cumplicidades, de qualidades humanas, de emoções, teriam Callon e Rabeharisoa constatado se tivessem acompanhado Gino a um jogo de futebol?

Retomando a tipologia de grupos de Callon, e para incluir os que se definem pelo seu desenraizamento e pelo seu afastamento do espaço público, devemos incorporar outra categoria: a dos grupos descartáveis. O conceito de populações descartáveis foi avançado por Henri Giroux (2006, p. 10) quando analisou a biopolítica do furacão Katrina[12]. A biopolítica do Katrina reforçou a ideia de que as populações pobres e afro-americanas afectadas constituíam um fardo para o estado federal norte-americano e teriam de arranjar soluções por elas próprias. Os indivíduos que compunham esses grupos eram percepcionados como não tendo laços sociais estáveis, direitos de cidadania, carreiras contributivas ou capacidades produtivas. A sua classificação inicial como refugiados era um indicador e uma designação “[…] which suggests that an alien force inhabited the Gulf Coast” (Giroux, 2006, p. 55). A noção de grupos descartáveis não implica positividades, uma vontade ou capacidade para agir ou se mobilizar ou a existência de agenciamentos sociotécnicos a que se ancorar.

 

Um relato do Katrina: o método e as emoções

A análise das causas e impactos do furacão Katrina, na perspectiva dos estudos da ciência e da tecnologia, está bem representada no conjunto de artigos coligidos na edição de Fevereiro de 2007 da revista Social Studies of Science. O objectivo desta secção especial da revista era reflectir sobre a inversão infra-estrutural ocorrida depois da passagem do Katrina e sobre a disrupção provocada no quotidiano das pessoas na costa do estado da Luisiana (Sims, 2007a). Os acontecimentos catastróficos de 2005 em Nova Orleães são pensados a partir de conceitos como o de culturas tecnológicas (Bijker, 2007), distribuição de redes (Wetmore, 2007), infra-estrutura (Sims, 2007b), descrição de processos (Hilgartner, 2007) ou o de justiça ambiental (Allen, 2007). O único artigo escrito num tom denunciatório é o de Chandra Mukerji (2007). No conjunto dos artigos não há tons líricos emocionais e, estranhamente, nenhum dos autores nos relata os destinos e as lutas dos milhares que foram afectados pessoalmente pela catástrofe[13].

Um relato lírico e pungente do Katrina é-nos oferecido por Spike Lee no seu documentário When the Levees Broke Down: A Requiem in Four Acts (2006). Embora o documentário seja um género que exige um guião e uma narrativa, Spike Lee conseguiu interpor pequenas histórias pessoais, baseadas em entrevistas, com imagens de vídeo e fotografias reveladoras da destruição e dos cadáveres em Nova Orleães.

A utilização ampla de fotografias derivou da necessidade de ultrapassar o movimento contínuo inerente a todo o filme, em que o futuro se especula ao nível do argumento ou dos arranjos técnicos e cénicos formais. Como afirma Ulrich Baer (2002, p. 24) em relação à fotografia, “[p]hotographs compel the imagination because they remain radically open-ended”. Cada fotografia está radicalmente exposta ao futuro desconhecido e imprevisível dos sujeitos retratados e faz apelo a uma concepção democriteana do mundo e do tempo, baseada no momento, no acontecimento e na particularidade (Baer, 2002, pp. 5-7).

O documentário de Spike Lee, dividido em quatro actos de uma hora cada um, é uma apresentação caleidoscópica do sofrimento humano, da destruição das infra-estruturas, das lutas políticas, do efeito de uma biopolítica da raça, do desconjuntar dos agenciamentos sociotécnicos, de engenharia falhada, de pânico mediático, de boatos, de indivíduos e grupos desprovidos e considerados descartáveis, de uma biopolítica de Estado cínica e cruel.

O documentário de Spike Lee é um relato cheio de emoção que, através de histórias pessoais e trágicas, nos transmite o sentimento de impotência das pessoas (somos todos portadores de deficiência, somos todos vulneráveis e dependentes) quando confrontadas de uma forma nua e crua com acontecimentos que as esmagam e sobretudo quando se apercebem da ausência de um colectivo social e político.

O documentário de Spike Lee é uma demonstração plena da importância dos lugares e da noção de casa (home). Duas sequências marcam de forma inolvidável a importância da ancoragem territorial. Na primeira, o músico de jazz Terence Blanchard toca clarinete em frente da casa destruída da mãe. Logo a seguir, ele acompanha-a no regresso doloroso e intolerável para lhe mostrar a destruição deixada pelo Katrina. No plano imediato, quando está a ser entrevistado para o documentário, Terence Blanchard não aguenta as lágrimas e diz: “Já não posso mais voltar a casa”.

Na outra sequência, Kimberley Polk, agora a residir no Texas, conta como perdeu o seu bebé, Serenna, quando as águas subiram de forma inesperada. O corpo foi encontrado e devolvido à mãe meses depois da passagem do furacão. Vemos filmagens do funeral da criança, e Kimberly Polk declara: “Não quis que o funeral fosse em Nova Orleães porque culpo Nova Orleães pela sua morte”.

Os dispositivos mobilizados por Spike Lee para reforçar a ideia forte de lugar e do direito dos antigos habitantes ao território de Nova Orleães[14] materializaram-se na encenação de um funeral de jazz na 9th Ward e na filmagem do Carnaval (Mardi Gras) de 2006 numa cidade totalmente destruída. Com estas sequências, Spike Lee pretendia afirmar enfaticamente, através dos esquemas e práticas culturais, o direito ao lugar e às raízes.

O documentário de Spike Lee é um exemplo estético ímpar de uma sociologia lírica, atenta ao momento, às emoções e ao inacabado do social, que incorpora também a ciência e a tecnologia, as infra-estruturas, a engenharia e as materialidades do social. Contudo, os seus comentários pessoais em voz off quanto às escolhas feitas durante a realização do documentário, quanto aos eventos retratados e às personagens que aí aparecem, assumem um carácter denunciatório, de raiva, que divergem muito do lirismo e da relevância moral e política. Os comentários pessoais exigem um posicionamento por parte de Spike Lee que incontornavelmente culpam, denunciam e justificam.

Sem dúvida que Spike Lee está consciente do seu ponto de vista e termina o documentário recorrendo a um artifício magistral. Cada participante que foi entrevistado, de frente para a câmara, enuncia o seu nome, profissão e lugar de nascimento enquanto segura frente à face uma moldura vazia. E esta localização reforça a ideia do social como um emaranhado de práticas, de instituições e de agenciamentos sociotécnicos que se concatenam e se fecham em biografias pessoais e colectivas, em relatos, fotografias, filmes, corpos e infra-estruturas materiais.

 

Os idosos como pessoas descartáveis e o silêncio das ciências sociais

Como segundo estudo de caso, abordarei de seguida o impacto da onda de calor que atingiu a França em 2003 e do silêncio quase total das ciências sociais quando confrontadas com a morte de milhares de cidadãos franceses.

No Verão de 2003 assistimos na Europa a uma sobremortalidade de mais de 40 000 óbitos provocados pelas temperaturas elevadas (Sardon, 2006). Embora as ondas de calor afectassem praticamente todos os países europeus, o impacto demográfico mais devastador fez-se sentir em Espanha (13.7%)[15], França (11.8%), Itália (11.6%) e Portugal (8.7%) (Robine et al., 2007). Em números frios, tivemos um excesso de mortes de 29 980 em Itália, 19 490 em França, 5290 em Espanha e 2310 em Portugal.

A amplificação dos acontecimentos pelos meios de comunicação social e a resposta da opinião pública foram cruciais na produção de um sentimento de crise durante a onda de calor em França. Os acontecimentos, enquadrados como um teste ao Estado francês, revelaram a sua fraqueza enquanto terapeuta global imaginário dos seus cidadãos (Sloterdijk, 2006, p. 266). O palácio de cristal, com a sua endosfera quente e autocomplacente, abriu fendas e os cidadãos franceses sentiram-se completamente desmunidos, vulneráveis e à mercê dos elementos naturais. Embora os acontecimentos do Verão de 2003 nunca tenham corrido o risco de se tornarem uma situação de deslocação e subversão cívicas (Jasanoff, 1997; Hilgartner, 2007), o impacto moral foi enorme, trazendo “surpresa”, “desconforto”, “consternação”, “perplexidade” e “um sentimento de perda, no país, dos direitos humanos”. A onda de calor de 2003 constituiu-se como um caso em que o Estado francês foi impotente para demonstrar o poder do poder (Gilbert, 1992, pp. 13-18 e 239-250).

Os cadáveres, empilhando-se lentamente aos milhares nas câmaras frigoríficas de Rungis, o mercado abastecedor de Paris, contrariamente ao que aconteceu na onda de calor de Chicago de 1995, em que as autoridades conseguiram naturalizar e somatizar os acontecimentos, tornaram-se sinais do falhanço e de ruptura moral e política do Estado, sinais de uma biopolítica inversa. Por oposição aos efeitos do Katrina, ou de outras catástrofes naturais, as infra-estruturas mantiveram-se intactas (Sims, 2007b), afectando pessoas que não podiam ser rotuladas ou categorizadas conforme as suas características raciais ou médicas (Briggs e Mantini-Briggs, 2003), normalizadas sociologicamente numa classe social, ou até oficialmente etiquetadas como descartáveis (Giroux, 2006) ou como marginais (Declerck, 2003).

A categoria abrangente de “idosos”, na sua materialidade de cadáveres que se acumulavam diariamente, afectou de forma profunda o fio que simbolicamente liga cada cidadão à comunidade imaginada nacional. Esta ruptura moral tinha de ser reparada rapidamente. Esta brecha no palácio de cristal, imaginado como seguro, em que os corpos dos idosos mortos funcionavam como autênticos reguladores da temperatura, como indicadores da disfunção do sistema, como sinédoque do falhanço do Estado e do corpo político, conduziram os políticos de todos os partidos, a Assembleia Nacional e o Senado à elaboração de múltiplos relatórios — muitos dos quais em tom confessional — e de medidas concretas, que caracterizo como de expiação, de forma a que um acontecimento de tal magnitude nunca mais se repetisse em França[16].

E, se os factos ocorridos em Agosto de 2003 foram classificados por jornalistas e académicos como um evento simbólico e traumático na história recente da França, poucos foram os artigos ou livros publicados por cientistas sociais que directamente os abordassem.

Estes trabalhos académicos mobilizaram quadros analíticos convencionais. Alguns interpretaram os acontecimentos a partir de uma antropologia da morte, da dor e do luto (Le Grand-Sébille e Véga, 2005). Outros concentraram o seu trabalho numa análise das origens sociais daqueles que morreram, e cujos corpos nunca foram reclamados, bem como numa sociologia da memória (Collet, 2005). Os processos mediáticos e as estratégias activadas para construir o evento também foram detalhadamente analisados (Breard, 2004) ou, numa perspectiva mais clássica, os quadros políticos de contestação activados durante a crise (Millet, 2005). A sociologia das crises proposta por Patrick Lagadec (2005) ou uma análise organizacional (Laroche, 2005) foram aplicadas aos relatórios políticos e administrativos produzidos pelas instâncias oficiais.

Recorrendo ao vocabulário de Michel Callon, as ciências sociais não se mostraram muito performativas na configuração analítica sobre a onda de calor de 2003 em França. Mesmo se a sociologia das crises de Patrick Lagadec marcaria explicitamente a narrativa da comissão de inquérito da Assembleia Nacional, os trabalhos publicados assumiam uma dicotomia clara entre natureza e sociedade, ou um tom de denúncia, como no artigo de Millet (2005).

Como refere Timothy Mitchell (2002, pp. 28-31), sempre que as ciências sociais são confrontadas com agentes desconhecidos ou com agências que não são exclusivamente humanas, como no seu estudo de caso sobre o Egipto, que envolvia o mosquito Anopheles e o parasita Plasmodium falciparum, recorrem a epistemologias e metodologias poderosas, conhecidas e reconfortantes. Em França, a configuração da canícula de 2003 restringiu-se, de facto, a um jogo científico exclusivo jogado pela epidemiologia e pela demografia.

Os princípios de agnosticismo, simetria e livre associação propostos por Michel Callon (1986) pareciam difíceis ou impossíveis de aplicar no caso da onda de calor de 2003. Quando há uma obrigação de incorporar actantes, como o clima, dados meteorológicos, como a temperatura, o vento e a humidade, a morbilidade e a mortalidade por golpe de calor, o Senado, a Assembleia Nacional e milhares de cadáveres, as categorias analíticas e as dicotomias tradicionais parecem falhar ao investigador. Há, na verdade, coisas que modificam as pessoas e as entidades às quais estas estão ligadas. Tal exige a atenção dos cientistas sociais para a multiplicidade das coisas sociais, que se apresentam como modos de existência ou como modos de conexão múltiplos e contraditórios (Latour, 2005). Não se trata de trazer de volta o social, mas de estudar o modo como o social é reconfigurado pelos acontecimentos, incorporado e activado pelos quadros analíticos dominantes.

Da onda de calor de 2003, outra questão intrigante emerge: por que não gerou movimentos sociais ou protestos? Quais as condições sociais, políticas e morais que estavam ausentes, ou excessivamente presentes, que não permitiram que se tornasse um tema mobilizador? A resposta rápida e radical das autoridades à crise não constitui uma resposta satisfatória.

Conforme assinalam Jean-Paul Vilain e Cyril Lemieux (1998) no seu importante artigo sobre a constituição de “grupos circunstanciais” sobre as vítimas de acidentes e os seus familiares, estes grupos representam uma nova forma de participação pública e de construção de cidadania que, centrada na figura da vítima, afirma novos direitos e uma nova relação com o Estado. E a França tem assistido nos últimos anos a uma proliferação de affaires dos quais emergem diversos, e muitas vezes conflituantes, movimentos sociais e protestos (Boltanski e Claverie, 2007)[17].

Apesar dos impressionantes números da sobremortalidade de 2003, não se constituíram movimentos sociais ou grupos circunstanciais. Estamos na presença de um affaire criado pelos meios de comunicação social e que conduziu somente a mudanças endógenas nas esferas política, científica e técnica, não extravasando para o espaço público alargado de contestação ou mobilização social. Os acontecimentos originaram um choque moral, no sentido proposto por James Jasper (1998, pp. 408-420), mas tal não foi suficiente para mobilizar as pessoas.

A minha hipótese para que não tenha havido mobilização pública no caso da onda de calor em França prende-se com o facto de que os familiares das vítimas se remeteram a um silêncio que reflectia a ausência de luto. O ritual da morte não foi inteiramente cumprido, pois, como salienta Magali Molinié (2006), há necessidade de soigner les morts pour guérir les vivants (tomar conta dos mortos para curar os vivos). A demora na recolha e identificação dos corpos, a urgência de os enterrar em valas comuns, perturbaram todos os rituais associados à morte e produziram uma ruptura profunda no desenrolar normal dos acontecimentos.

E aqui cabe invocar a cultura do medo que grassava entre os pobres do Egipto descritos por Timothy Mitchell (2002) e o silêncio de Gino relatado por Michel Callon e Vololona Rabeharisoa (2003). Estes silêncios forçados não são exclusivos de pessoas que habitam em países considerados menos desenvolvidos ou em regimes repressivos. Podem também estar presentes numa cidade imaginada como cosmopolita, Paris, onde foi retirado às famílias o direito ao luto ou onde os mortos não tinham ninguém a quem se ligarem[18].

A propósito destes silêncios impostos, Michel Callon (2006, p. 8) escreve: “[o] que conta não é tanto a palavra a libertar mas sim o trabalho sobre os mecanismos que impõem o silêncio, quer se trate do silêncio produzido pelos deficientes ou pelos doentes graves ou daquele que é imposto por um terror palpável que paralisa a palavra”.

 

Conclusão

Neste artigo procurei mostrar os limites da teoria do actor-rede e dos estudos sociais da ciência e da tecnologia[19]. A partir de textos programáticos e empíricos de Michel Callon e Bruno Latour, enunciei os limites de estratégias narrativas não reflexivas e não inclusivas das pessoas e dos grupos que não estão inseridos em redes e agenciamentos sociotécnicos. Esses limites evidenciam-se na abordagem convencional a acontecimentos extremos, em que as pessoas e os grupos descartáveis são remetidos ao silêncio e à invisibilidade. Com o caso do furacão Katrina, em 2005, a abordagem pelos estudos da ciência e da tecnologia quedou-se por uma análise do impacto da ruptura dos sistemas sociotécnicos e infra-estruturais, não se relatando ou invocando os destinos e as lutas dos milhares que foram afectados pessoalmente pela catástrofe. Como alternativa, foi analisado o documentário de Spike Lee, que, mobilizando a ciência e a tecnologia, as infra-estruturas, a engenharia e as materialidades do social, atende também ao momento, às emoções, ao inacabado do social e às trajectórias pessoais e colectivas dos afectados.

Quanto à onda de calor de 2003 em França, a tipologia de grupos de Michel Callon mostra-se insuficiente, por não incorporar os grupos descartáveis, desprovidos de positividades ou materialidades significativas e apreensíveis pelas ciências sociais. A invisibilidade dos idosos na sua morte lenta na grande metrópole parisiense não mobilizou o interesse generalizado dos cientistas sociais e a produção científica em torno deste acontecimento pautou-se por análises do falhanço do sistema político e das organizações sociopolíticas francesas. As ciências sociais não se mostraram muito performativas na configuração analítica sobre este assunto.

Uma sociologia crítica deve estar atenta às potencialidades e limites das estratégias narrativas adoptadas, ao posicionamento e à força do analista e, para além das positividades, dos agenciamentos sociotécnicos, deve identificar, a partir dos indícios, dos silêncios, dos fora-de-textos presentes nos textos, as pessoas e os grupos que se situam nos interstícios dos agenciamentos sociotécnicos e contribuir para o trabalho colectivo sempre necessário para os tomar em conta, para os nomear, para os relatar e para os personificar em processos políticos que permitam que os mesmos sejam tratados como pessoas e grupos interessados. Trata-se da construção e aplicação de um versão da sociologia e das ciências sociais que se apresente como abordagem humilde, situada, difractária e parcial das coisas sociais e da diferença que todos podemos fazer.

 

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Notas

[1] Para uma proposta inovadora do papel da narrativa e do lírico nos estudos sociológicos, v. Abbott (2007).

[2] Todos os ensaios incluídos no livro de Carlo Ginzburg mostram claramente esta postura metodológica e analítica, mas o ensaio sobre o quadro Les demoiselles d’Avignon, de Picasso, é desta um exemplo magistral (2003, pp. 101-112).

[3] Em termos metodológicos, o livro de John Law After Method (2006) pode também ser incluído nas obras importantes nesta fase de afirmação da teoria do actor-rede.

[4] Já Durkheim (1980, p. 15) havia referido como as explicações da sociedade pareciam fáceis quando comparadas com a resistência que a natureza apõe às análises científicas.

[5] O desenvolvimento por Latour de uma metafísica prática baseada em catorze modos de existência ou de enunciação foi apresentado num colóquio em Cerisy-La-Salle realizado em torno da sua obra (Latour, 2007).

[6] Os agenciamentos sociotécnicos são construídos pelos discursos, pelos procedimentos, pelas formas organizacionais e pelas tecnologias (Callon, 2003, p. 217). O social que é mobilizado pelos agenciamentos sociotécnicos é caracterizado pelos seguintes componentes: localidade, complexidade, heterogeneidade, materialidade e distributividade.

[7] Noel Castree (2002, p. 135) propõe uma versão fraca da TAR que, sendo crítica do binarismo, da assimetria, das concepções restritas sobre a acção e das visões centradoras do poder, mantém, contudo, que processos similares marcam diferentes actores-redes, que estes processos podem ser globais e sistemáticos, que a componente social é desproporcionadamente directiva e que o poder, sendo disperso, pode ser mais dirigido por alguns.

[8] As correntes feministas recorrem à metáfora óptica de difracção (para significar o esforço para marcar uma diferença no mundo) (Haraway, 1997, p. 16), à noção de conexões parciais (Strathern, 1991) ou de política de localização (Rich, 1986), de forma a combaterem o poder globalizante da teletecnologia e da tecnociência, da tecnocultura e da tecnonatureza (Clough, 2000, pp. 183-186). Para uma análise da possibilidade de criação de um colectivo a partir de uma situação de vulnerabilidade, v. Callon (2005).

[9] Na tradição da TAR, uma excepção pode ser encontrada no artigo profundo e comovente sobre a eutanásia que nos oferece Antoine Hennion (2005).

[10] Este tipo de sociologia implica a aplicação dos seguintes requisitos: a atenção às opções morais locais em confronto com as reivindicações morais de cariz universal; a apreensão de projectos singulares emergentes; a construção de espaços públicos onde os actores possam escolher os seus entrelaçamentos mútuos, aceitando a necessidade e a importância de uma certa opacidade e a recusa explícita de articulação por parte dos actores sociais (Callon e Rabeharisoa, 2003, p. 24). Charles Lemert (2002), por sua vez, propõe uma recuperação da acepção de raiz grega do termo “teoria” (theoros), que significa “aquele que viaja para ver pessoas, lugares e coisas”. A teoria social, para Lemert, contrapõe-se à teoria sociológica, pois privilegia o desatar lento e laborioso de relações e processos, e não a produção de cortes analíticos arbitrários e impositivos aos sujeitos estudados.

[11] Associação da Ilha da Reunião contra a Distrofia Muscular.

[12] Uma análise brilhante do capitalismo de desastre pode ser encontrada no último livro de Naomi Klein (2007).

[13] Os planos de evacuação dos afro-americanos seguiram um processo meticuloso de dispersão dos membros das famílias afectadas por estados tão distintos como Utah, Oklahoma, Texas e, inclusive, o Alaska. Cerca de 200 000 habitantes ainda hoje não voltaram a Nova Orleães e é pouco provável que algum dia venham a ter condições de o fazerem (Kroll-Smith, 2009).

[14] Como mostra Naomi Klein (2007), esta é uma questão controversa, pois os planos oficiais para a reconstrução de Nova Orleães prevêem a demolição das habitações públicas onde anteriormente viviam milhares de famílias afro-americanas e o seu consequente afastamento do centro da cidade. Entre as diferentes organizações que lutam pelos direitos dos habitantes de Nova Orleães figuram a Common Ground e a ACORN (Association of Community Organizations for Reform Now).

[15] Os valores em percentagem representam a sobremortalidade para 2003 quando comparada com o valor médio de mortes para o período de 1998-2002 para cada um dos países.

[16] As medidas implementadas levaram a um aumento da esperança de vida média de 6 meses nos idosos em França. Na onda de calor de 2006, o dispositivo montado a partir de 2004 permitiu que a sobremortalidade verificada se situasse 11 000 mortes abaixo das projecções.

[17] Para as lições políticas da SIDA em França, v. Dodier (2003). Sobre as controvérsias e indecisões em torno da opção pela energia nuclear, v. Barthe (2006). Para a polémica em torno do sangue contaminado, v. Hermitte (1996).

[18] No seu importante livro, Catherine Le Grand-Sébille e Anne Véga (2005) descrevem quão difícil foi para elas convencer seis famílias a relembrar as experiências vividas em 2003. O sentimento geral era de culpa e de abandono. Este era um quadro interpretativo avançado por políticos da altura, como o primeiro-ministro Jean-Pierre Raffarin, e o presidente da república, Jacques Chirac, quando declararam que as famílias falharam nos cuidados prestados aos seus idosos.

[19] Com bem refere Michael Ryan (2003), não podemos seguir a falácia de Foucault quando afirma que o poder constrói os sujeitos. É a resistência que constrói os sujeitos e que constitui o poder.

 

[**] O artigo insere-se no âmbito do projecto de investigação “Risco, cidadania e o papel do Estado num mundo globalizado” (ref.ª PTDC/SDE/64369/2006), financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia e a decorrer no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Uma primeira versão deste artigo foi apresentada no colóquio Experimenter, éprouver, assembler, realizado no Centre Sociologie de l’Innovation (École des Mines), Paris, 27 e 28 de Setembro de 2007.

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