SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número196Filosofia política e democraciaA ideia de democracia digital na obra de Heidegger índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.196 Lisboa  2010

 

Democracia e representação democrática

 

António Baptista*

* ICS, Universidade de Lisboa, Av. Professor Aníbal de Bettencourt, 9, 1600-189 Lisboa, Portugal. e-mail: alsbaptista@gmail.com

 

Neste artigo sustenta-se que a democraticidade é o fundamento da legitimidade da representação. Assim, debater normativamente o problema da representação passa pela elucidação e defesa prévias de um modelo de democracia. Defende-se a democracia como o ideal (processual) da igualdade política (isocracia). Analisam-se e rejeitam-se as objecções às concepções processuais de democracia e expõem-se as debilidades das concepções substantivas rivais. Finalmente, à luz do ideal da isocracia, demonstra-se a superioridade democrática da democracia directa e sustenta-se que os sistemas eleitorais proporcionais são os que melhor se coadunam com a representação fidedigna das preferências dos cidadãos, isto é, a representação democrática.

Palavras-chave: democracia processual; igualdade política; democracia directa; representação proporcional de preferências.

 

Democracy and democratic representation

In this article, democracy is conceived as the source of legitimacy of political representation. Thus, in order to debate representation, one must previously clarify and uphold a specific model of democracy. Democracy here is understood as the procedural ideal of political equality (isocracy). Arguments contrary to procedural concepts of democracy are analyzed and rejected, and the weaknesses of rival substantive concepts are explored. Finally, in accordance with isocracy’s ideal, direct democracy is considered democratically superior, and proportional electoral systems are held to be those most compatible with a democratic sort of representation: the accurate representation of citizens’ preferences.

Keywords: procedural democracy; political equality; direct democracy; proportional representation of preferences.

 

Introdução

O conceito de representação tem uma longa história. Não faz parte dos objectivos do presente texto debruçar-se sobre a evolução semântica e normativa do termo. Já há, aliás, quem o tenha feito (Pitkin, 1967; Manin, 1997; Vieira e Runciman, 2008).

Podem, no entanto, em síntese, extrair-se desse percurso histórico-semântico as seguintes conclusões. O conceito não “nasceu” originalmente para designar realidades políticas, tendo, pelo contrário, emigrado de outros domínios, onde primeiro se desenvolveu (como o estético, o jurídico e o religioso), para o mundo da política. Esse facto determinou a permanência, latente, de ambiguidades semânticas que foram exploradas com sucesso por pensadores políticos nas suas disputas político-ideológicas. Em todo o caso, poder-se-á considerar, sem risco de incorrer em excessiva simplificação, que genericamente se assistiu a uma progressiva “democratização” do entendimento da representação. Por outras palavras, a representação como instituição política (pelo menos no âmbito do Estado-nação) passou a ser entendida como legítima na medida em que fosse “democrática”. Se, num primeiro momento, o conceito de representação foi usado para legitimar, por exemplo, os agentes dos monarcas ou papas junto dos respectivos súbditos com o objectivo de os submeter à sua autoridade, alguns séculos mais tarde, o conceito de representação foi aproveitado num sentido “subversivo”: agora eram as decisões políticas dos monarcas que, sob pena de ilegitimidade, estavam submetidas ao escrutínio crítico dos representantes dos súbditos. O sentido original, “descendente”, da representação (o poder, concentrado no topo, na figura do monarca, irradiava para outros “dependentes” mais abaixo na escala hierárquica) fora totalmente invertido: era agora “ascendente”. O parlamento inglês oferece uma preciosa ilustração deste movimento “democratizante”. Se o rei o utilizara, nos primórdios, para garantir o acatamento das suas ordens em todo o território, agora os súbditos exigiam ser ouvidos e mesmo progressivamente “obedecidos” pelo monarca (ou, pelo menos, negativamente, não serem “ofendidos” nos seus direitos pelas decisões reais) através dos seus representantes parlamentares. A tensão entre as duas interpretações, aliás, atinge o paroxismo com a guerra civil e a execução de Carlos II. A democratização da representação prossegue a sua senda com a Revolução Francesa e com a ideia de que os afectados pelas decisões políticas deveriam ser todos incluídos, em termos de igualdade, no processo que leva à sua adopção (por meio da expansão do sufrágio).

Desde então e até hoje, a democraticidade da representação tornou-se o elemento legitimador da mesma. Assim sendo, qualquer discussão normativa da representação e dos modelos de representação tem de passar por uma definição prévia e clara do que se entende por democracia.

O objectivo do presente texto é o de identificar uma concepção de democracia específica, delineando os seus contornos gerais, defendendo-a de objecções e de concepções rivais, e, finalmente, especificar as consequências deste ideal para a compreensão do que deve ser a representação política democrática ou “a boa representação”.

 

Uma concepção de democracia: a isocracia

A concepção de democracia de que se partirá aqui é o ideal da isocracia. Por isocracia entende-se a igualdade de recursos políticos dos cidadãos ao longo de todo o processo decisional. Noutros termos, mais gráficos, pode-se imaginar a realização absoluta deste ideal da seguinte forma: uma circunferência perfeita traçada a partir de um centro. O centro representa o poder político e os inúmeros pontos que constituem a linha da circunferência, os cidadãos da comunidade. Todos os cidadãos, por definição, estão equidistantes em relação ao poder político. Como se verá com mais profundidade, aquando da resposta às objecções dworkinianas às concepções processuais de democracia, o conceito de poder de que aqui se parte engloba tanto a capacidade de influir directamente (poder de impacto), como indirectamente (por meio da influência exercida sobre terceiros), no processo de produção das normas e práticas que governam a comunidade política. Acrescente-se: a isocracia é o ideal da tendencial eliminação dos obstáculos à igual participação política e não o da efectiva igual participação. É a igualdade de recursos políticos, e não o exercício igual desses mesmos recursos, que se busca com a isocracia.

Note-se: o ideal não se refere a uma realidade estática; refere-se a um processo contínuo (a política não começa ou acaba com os períodos eleitorais, por exemplo) caracterizado pela igualdade política das partes ao longo do mesmo.

O carácter processual, contudo, não deve ser confundido com minimalismo ou formalismo democrático. Para qualquer concepção processual de justiça, o que releva para aferir da equidade do resultado (a decisão política, no caso) é o respeito pelas condições de partida. Estas condições de partida específicas (ou o seu conteúdo) podem variar, contudo, de concepção para concepção. Por óbvias razões de espaço, não se poderá explorar todo o conjunto de condições necessárias à preservação no tempo (já que o processo democrático é perspectivado como algo de contínuo) da igualdade política efectiva entre os cidadãos. Todavia, pode e deve-se sublinhar, a mero título de exemplo, que a isocracia exige a realização tão completa quanto possível da “isegoria”, ou igualdade de palavra dos cidadãos. Ou seja, além da dimensão negativa das liberdades políticas tradicionais (liberdade de associação, pensamento e expressão), a isocracia requer a realização da dimensão positiva das mesmas, mormente da liberdade de expressão. Esta dimensão positiva da liberdade de expressão implica, por seu turno, um repensar e reestruturar da organização dos mass media, na linha de autores como John Keane (2002) e Edwin Baker (2002), no sentido de assegurar não apenas a impossibilidade de censura governamental (condição necessária, mas não suficiente), mas também impedir a hegemonização do espaço informativo-ideológica por segmentos sociais privilegiados. Por outro lado, a desigualdade económica pode traduzir-se facilmente em desigualdades políticas relevantes (Dahl, 1985) e a questão que se põe é que grau de desigualdade económica é ainda tolerável pela isocracia e que mudanças no sistema socioeconómico são necessárias para realizar de forma mais profunda esta condição de partida da igualdade política.

 

Os trunfos da isocracia

Ao propor como definição de democracia o ideal da isocracia, não se devem ignorar quatro “vantagens” fundamentais da mesma.

Em primeiro lugar, a concepção isocrática encontra alguma sustentação histórica nas práticas democráticas da Grécia clássica. A ideia de igualdade era parte intrínseca da concepção de justiça política nas democracias gregas (Vlastos, 1984) e exprimia-se claramente num tríptico indissociável: a isonomia (igualdade de todos perante as leis), isegoria (ou igualdade de palavra) e a isocracia, finalmente, ou a igualdade de poder político. Nenhum argumento histórico resolve uma contenda normativa, mas a história pode constranger um pouco as arbitrariedades semânticas.

Em segundo lugar, ao tomar como ponto de partida a igualdade política dos cidadãos individuais, a isocracia arrima-se num pressuposto individualista e esquiva-se às críticas que se puderam dirigir a outras concepções de democracia assentes em noções mais vagas e potencialmente totalitárias como a “autodeterminação política do povo” (Arblaster, 1988), povo esse por vezes concebido de modo algo mítico como uma entidade colectiva, orgânica e com vontade própria. Com efeito, e a título de exemplo, seria flagrantemente incompatível com um regime isocrático a violação das liberdades políticas fundamentais de qualquer minoria, na medida em que isto inferiorizaria politicamente os afectados e violaria automaticamente o ideal de igualdade política. Resulta da própria noção de isocracia, como o ideal da igualdade das partes num processo político contínuo, que têm de existir limites constitucionais à vontade da maioria. Esta é a razão pela qual se pode falar em limites intrínsecos ou endógenos à própria democracia. Estes são os limites que permitem a preservação no tempo da própria igualdade política. Não se pode assim acusar a isocracia de ser o “regime dos pobres” nem a tirania das maiorias sobre as minorias.

Em terceiro lugar, a isocracia não é necessariamente incompatível com a preservação de vários direitos cuja fundamentação última não se encontra no próprio ideal da igualdade política, mas noutros princípios éticos ou ideais de justiça. Na verdade, as sociedades contemporâneas tentam garantir um conjunto de direitos que se sedimentaram durante um longo trajecto histórico e cujo fundamento filosófico se encontra noutros ideais. Por exemplo, direitos decorrentes de um harm principle milliano, segundo o qual ninguém deve poder interferir sobre os actos que dizem respeito apenas ao próprio indivíduo (ou que o afectam primacialmente), podem ser protegidos por disposições constitucionais adequadas sem que uma sociedade deixe de ser considerada isocrática. Afinal de contas, a isocracia é um ideal “gradativo”, o que quer dizer que não há, em rigor, apenas “democracias” e “não-democracias”, mas sim sociedades com graus de democraticidade diversos[1]. Naturalmente, estes (e outros) limites constitucionais referidos são já exógenos ao ideal da isocracia. Não se justificam tendo em vista a preservação da igualdade política no tempo, mas são verdadeiras “entorses” aos princípios da mutabilidade permanente e da decisão maioritária, inerentes ao ideal democrático, justificadas pela prioridade ética de outros direitos e valores.  

Em quarto lugar, tendo em conta o que acima se escreveu, podem extrair-se as seguintes conclusões. A primeira: o ideal da isocracia é apenas um valor, entre muitos, a articular e compatibilizar com outros (os valores e direitos da tradição liberal e outros decorrentes de princípios de justiça social). A democracia não deve ser absolutizada como único bem político. A segunda: não apenas não é um valor absoluto, mas relativamente subordinado a outros, hierarquicamente superiores. Não se trata de considerar que o direito à igualdade política tem um valor meramente instrumental face a outros direitos — justificando-se a sua defesa apenas porque sem ele seria mais difícil defender outros direitos mais valiosos —, mas tão-somente reconhecer que, não obstante ser um ideal com valor intrínseco, a igualdade política é, do ponto de vista axiológico, um ideal hierarquicamente menos relevante ou menos prioritário do que outros. A terceira, finalmente: a isocracia não é uma teoria da justiça global e essa é uma das suas vantagens. As concepções substantivas de democracia, ou as que se recusam a distinguir os elementos processuais dos elementos substantivos — assim sucede com Gutmann e Thompson (1996) —, tendem a identificar a democracia com uma concepção global de uma sociedade justa: a dos autores. A definição de democracia como o ideal da igualdade política tem a vantagem de evitar essa colonização arbitrária do conceito de democracia por uma qualquer teoria global da justiça. As pessoas podem aceitar o princípio da igualdade política independentemente de divergências substanciais que mantenham quanto ao que constitui uma sociedade globalmente justa.

 

Objecções às concepções processuais de democracia

O carácter processual deste ideal coloca a isocracia em directa oposição às concepções substantivas de democracia. Estas concepções rivais, genericamente, partem do princípio de que a democracia carece de uma concepção socialmente partilhada de justiça assente num ideal mais abrangente e profundo do que a mera igualdade política. Por outro lado, recusam-se a ver na democracia uma mera justiça processual, indiferente à substância dos resultados: alguns são simplesmente inaceitáveis, incompatíveis com a democracia, com os valores que necessariamente lhe subjazem.

Segundo Ronald Dworkin, representante paradigmático deste tipo de concepções, ultrapassado um certo limite de injustiça, traduzido em resultados que, pela sua iniquidade, desrespeitam o ideal de “igual consideração” dos indivíduos, a comunidade política deixará de poder considerar-se uma “democracia genuína” (Dworkin, 1990, p. 339).

Torna-se necessário, porém, considerar mais de perto as objecções que este autor dirigiu às concepções processuais de democracia assentes na ideia de igualdade política. Ao discutir o significado de “igualdade de poder”, sustenta que tanto o conceito de “igualdade” como o de “poder” não são unívocos e carecem de clarificação. Distingue, assim, a igualdade “vertical” da igualdade “horizontal”. Por igualdade horizontal entende-se a igualdade entre os cidadãos comuns. Por igualdade “vertical” quer o autor sublinhar a distinção e diferença de poder entre esses cidadãos comuns e os dirigentes políticos, mormente os representantes.

Por outro lado, identifica dois sentidos possíveis para a noção de poder: poder como “impacto” e poder como “influência”. O poder como impacto significa a capacidade que cada um tem para, isoladamente, determinar um resultado político específico: é o poder que cada um tem para, directamente, como cidadão individual, contribuir para as decisões comunitárias. A igualdade de poder enquanto impacto, na dimensão horizontal, traduz-se, num sistema representativo, na regra “um homem, um voto”. Segundo o autor, contudo, já não faz sentido falar em igualdade de impacto “vertical” nestes mesmos regimes. O poder como influência significa a capacidade que cada um tem para conjugar esforços (pela liderança e persuasão) de vários outros cidadãos no sentido de se adoptar uma ou outra decisão política (Dworkin, 1990, p. 332). Trata-se da capacidade de reunir vontades e “poderes de impacto” colectivos para o bem de uma determinada causa.

Feitas estas precisões, Dworkin analisa o que poderão exactamente os defensores da igualdade política pretender dizer com esse termo e em que medida será o ideal correspondente exequível ou desejável.

Começa por sublinhar que a igualdade de impacto num sentido vertical é incompatível com um sistema representativo tal como os que predominam nas sociedades contemporâneas[2]. Isto é inteiramente verdadeiro, com efeito. Por exemplo, um deputado português vota directamente vários assuntos que um cidadão normal não pode votar. Mais ainda: quando vota, o seu voto representa 1/230 avos do poder (como impacto) total detido pelo conjunto do órgão representativo e não a ínfima parcela de poder que cada voto do eleitor comum representa.

A igualdade de impacto em termos horizontais realiza-se pela regra “um homem, um voto”, mas não justifica a necessidade de assegurar a liberdade de pensamento, expressão e associação. Estas liberdades são justificadas com base na necessidade de assegurar a igualdade de influência.

A igualdade de influência vertical, segundo Dworkin, poderia ser relativamente assegurada desde que houvesse eleições regulares, uma comunicação contínua entre representantes e representados (o que, desde logo, justifica a necessidade de proteger as liberdades políticas fundamentais: de pensamento, expressão e associação) e mecanismos de responsabilização eficientes e não muito onerosos que “constrangessem” os representantes ao respeito das preferências dos cidadãos.

Resta saber, porém, se a igualdade de influência, vertical e horizontal, é “desejável”. Segundo Dworkin, não, ou não necessariamente. Coloca, então, uma questão retórica: “do we not rather want our officials to lead rather than follow our views at least on preference-insensitive issues?” (Dworkin, 1990, p. 334). O que o autor pretende sublinhar é simplesmente que as preferências dos cidadãos representados podem ser moral ou factualmente “erradas” e podem levar a resultados desastrosos. Nada garante (e há provas abundantes em sentido contrário) que os juízos de facto e valor de uma maioria sejam necessariamente melhores do que os de uma minoria. Sobretudo no domínio moral, a concordância de uma maioria quanto à justeza de uma medida ou norma (o exemplo dado é o da pena de morte) nada nos diz acerca da moralidade (ou justiça) da mesma (Dworkin, 1990, p. 331). As opiniões e crenças dos cidadãos comuns também nada nos dizem acerca da verdade de certos pressupostos técnicos que subjazem a muitas decisões políticas: a opinião da maioria não “decide” da verdade científica de um facto. Assim sendo, pretender reduzir os representantes a autómatos que reproduzem fidedignamente as preferências dos cidadãos surge como política e eticamente pouco atraente[3].

Por outro lado, a aparente atractividade do ideal da igualdade de influência horizontal deve-se, segundo o autor, à intuição moral de que é injusto certas pessoas terem muito mais influência do que as outras em razão de serem muito mais ricas. Este facto (a desigualdade de influência), nos termos de um ideal de igualdade política, é censurável per se, independentemente da “fonte” dessa desigualdade (o dinheiro sendo apenas uma das fontes). Contudo, é possível, e mais desejável para Dworkin, atacar a desigualdade de influência provocada por diferenciais de riqueza, invocando um ideal mais geral de igualdade: neste caso, a influência desproporcionada que um milionário exerce na política é moralmente inaceitável porque resulta de uma distribuição injusta dos recursos económicos e porque, se não for combatida, tenderá a perpetuar as situações de desigualdade económica ou opressão que subjazem à desigualdade de influência. A desigualdade política, neste caso, só é “imoral” porque é fruto da injusta desigualdade socioeconómica. Ora, segundo Dworkin, é isto que nos preocupa, ou deve preocupar, na desigualdade de poder: não ela, em si mesma considerada, mas o problema social (e moral) de que ela é sintoma, isto é, a injustiça socioeconómica. Tudo isto, finalmente, tornaria insustentáveis eticamente as concepções processuais ou “estatísticas” de democracia e remeter-nos-ia para a necessidade de defender uma concepção “comunal” de democracia em que o regime político esteja assente em princípios comuns e substantivos de justiça. Na “democracia comunal” de Dworkin, os cidadãos da comunidade política vêem-se como partes integrantes e iguais de um todo (colectivamente responsável pelas decisões que toma): o “povo”. Regem esta sociedade três princípios estruturantes. O princípio da participação significa que na comunidade todos têm uma igual oportunidade de exercer cargos políticos independentemente da sua origem ou condição social e de influir efectivamente no processo decisional sem serem tolhidos por estruturas e disposições incompatíveis com o igual respeito dos cidadãos. Este princípio justifica o sufrágio universal e a protecção (negativa) das liberdades políticas básicas, mas não implica a igualdade de influência dos cidadãos. O segundo princípio, ou princípio da igual consideração dos interesses (principle of stake), dissolve a distinção entre o processo e o resultado: uma sociedade em que exista uma distribuição grosseiramente injusta dos recursos e encargos não pode ser democrática. A sociedade não precisa de ser perfeitamente justa para ser democrática, mas as instituições económicas, sociais e jurídicas do país devem poder ser justificáveis à luz de uma interpretação de boa fé do princípio da igual consideração. Por fim, o princípio da independência reserva uma esfera de autonomia (uma “área privada”) dos cidadãos face à sociedade. As decisões da sociedade não podem interferir com o direito de cada um de autodeterminar a sua vida nessa área reservada. Daqui resulta que uma sociedade nunca será democrática quando não haja a protecção de determinados direitos mais tradicionalmente associados com o liberalismo tout court: quando não esteja garantida a liberdade sexual dos homossexuais, ou o direito ao aborto das mulheres, por exemplo.

 

Democracia, liberalismo e sociedade justa

A crítica ao ideal da igualdade de influência mostra-se relevante, na medida em que suscita a necessidade de uma precisão. Com efeito, para uma concepção processual como a isocracia, o que importa, efectivamente, não é o facto, tout court, de existirem desigualdades na capacidade de influência. As desigualdades na capacidade de influência política podem resultar de vários factores e nem todos têm a mesma relevância moral à luz da concepção de justiça processual igualitária que enforma o ideal isocrático. Assim, as pessoas podem não ter a mesma influência porque, pura e simplesmente, não têm tanto interesse como outros cidadãos na política. A especialização técnica de alguns pode determinar a sua maior “credibilidade” (e, consequentemente, a sua maior influência) junto do público. A mera superioridade oratória pode determinar maior influência política. Estes factos, em si mesmos, não são contraditórios com o ideal de isocracia. O que é problemático para a isocracia são as condições que possam ter levado à desigualdade de influência, isto é, as desigualdades económicas, sociais e políticas. As diferenças de habilidade oratória, de capacidade de compreensão e aprofundamento de uma matéria (especialização) e até o interesse pela res publica podem ter origem em condições de partida desiguais e atribuíveis a características institucionais essencialmente mutáveis e perfectíveis. Isto é, as capacidades intelectuais necessárias à discussão e compreensão das temáticas no debate político e o próprio (des)interesse podem ser a consequência de oportunidades desiguais de aceder ao ensino e à cultura, ou, mais genericamente, de uma estrutura socioeconómica e institucional que desincentiva arbitrariamente (a uns mais do que a outros) a participação política. Quando seja este o caso, pode falar-se numa violação das condições processuais de base para o exercício de uma igual influência e, assim, numa violação da isocracia. Quando as desigualdades de influência existentes resultem, não da violação destas condições igualitárias de partida, mas de opções verdadeiramente livres e voluntárias, não será violada a isocracia. Para a isocracia o que releva é a existência de condições reais para a participação igual, não a efectiva participação igual de todos os cidadãos. Na verdade, a isocracia é o “ideal da realização das condições processuais de base igualitárias possibilitadoras do igual exercício do poder (enquanto influência e impacto) dos cidadãos”.

Ao contrário de Dworkin, porém, não se entende por que se há-de identificar o ideal democrático com uma teoria global da justiça. A contemporânea incapacidade do cidadão comum em dissociar a noção de democracia da de justiça social (e do liberalismo) não constitui um bom argumento para, no âmbito da teoria política, não se efectuar a distinção que se impõe, por motivos lógicos e axiológicos, entre o elemento propriamente democrático (que justifica determinadas instituições políticas nas sociedades contemporâneas) e os elementos liberais e outros (que justificam outras características das nossas sociedades). O termo “democracia”, outrora tão vilipendiado, veio, por vicissitudes históricas, a adquirir popularmente um sentido muito lato e impreciso, designando aparentemente “sociedade genericamente justa”. Porém, se “democracia” significa apenas “sociedade justa”, então o termo perderá qualquer autonomia e, portanto, qualquer relevância teórica. Dizer que uma sociedade é democrática (ou não) significará tão-só que o autor da afirmação a considera globalmente justa (ou injusta). A utilidade do conceito será nula.

O próprio autor reconhece, ao discutir o princípio da igual consideração dos interesses, que existe um risco latente na identificação da democracia com a realização deste princípio: o de fazer da democracia “um buraco negro no qual todas as outras virtudes políticas colapsariam” (Dworkin, 1990, p. 339). E o facto de se dizer que a democracia não exige a “perfeição” na realização deste princípio (bem como o princípio da participação e independência), mas apenas a realização “adequada” do mesmo, não resolve nada. Se democracia significa “sociedade minimamente justa”, ou ainda “sociedade que respeita adequadamente a igual consideração dos seus cidadãos”, então não significa nada de distinto ou útil para a teoria política. Até porque, e ao contrário do que Dworkin possa pensar, o “igual respeito” dos cidadãos pode ser interpretado de variadíssimas maneiras: pode, com inteira boa fé, considerar-se que diferentes e mesmo opostas instituições e direitos realizam o princípio de igual respeito. A cláusula do igual respeito, tal como interpretada por Dworkin, é a sociedade justa tal como a concebem os liberals americanos semelhantes a Dworkin. Todavia, pessoas colocadas à direita de Dworkin podem pensar que é compatível com o igual respeito dos cidadãos um liberalismo económico extremo (à la Nozick) e que a única coisa que o princípio exige é a garantia de liberdade negativa para todos os cidadãos. Paralelamente, o oposto pode ser pensado e sugerido por defensores do socialismo. E é sempre possível pensar-se também que a igual consideração dos homossexuais ou das mulheres não implica a aceitação dos actos homossexuais ou a legalização do aborto, mas apenas um princípio genérico de não discriminação em função do género ou orientação sexual.

A concepção substantiva de democracia que Dworkin apresenta retira a utilidade (ou a autonomia conceptual) do termo “democracia” e, ao identificar a “igual consideração” com o seu regime favorito de liberalismo social-democrata, expõe-se a todo o tipo de críticas de autores, à direita e à esquerda, que podem vir reclamar, com igual legitimidade, serem os defensores da “democracia verdadeira”.

Ora, como acima se referiu, o conceito de democracia de que aqui se parte tem a particularidade (e a vantagem) de não pretender ser mais uma teoria da justiça global. Uma sociedade justa tem, provavelmente, de ser (entre outras coisas) democrática para poder ser perfeitamente justa, mas uma sociedade democrática não é, por definição, justa. Defender o ideal da isocracia não significa defender que uma sociedade justa não carece de mais nada que não seja a igualdade política. Em última análise, aliás, sublinha-se que, constituindo uma forma de justiça processual, a isocracia não deve ser senão um elemento da justiça política numa sociedade e, mais ainda, um elemento relativamente subordinado a outros que detêm primazia axiológica. Isto significa que a preocupação com a igualdade política terá, muitas vezes, de ceder o passo perante a necessidade de protecção de outros direitos e valores que se revelem hierarquicamente superiores. Não se trata apenas de reconhecer a necessidade de trade-offs entre princípios para obter um equilíbrio de direitos: é que os direitos, e os princípios que lhes dão fundamento, não têm todos o mesmo valor. Alguns são hierarquicamente superiores. Estes, em caso de conflito, devem prevalecer. É isso que fazem as constituições (e bem) quando, contra futuras maiorias democráticas e contra o princípio da igualdade política, bloqueiam juridicamente a possibilidade de destruir ou diminuir alguns direitos fundamentais. O problema da justiça na sociedade, assim, é colocado “entre parêntesis” (o que não quer dizer que seja resolvido), e o conceito de democracia é autonomizado, podendo ser aceite mesmo por quem discorde sobre o que é uma sociedade justa. Assim, se, por exemplo, alguém considerar moralmente repugnante a pena de morte (por violar a “igual consideração” devida a todos), nem por isso poderá considerar os EUA “uma falsa democracia” pelo mero facto de a permitir. Nem se poderá considerar que muitas das democracias liberais não eram democráticas pelo mero facto de, até há relativamente pouco tempo, criminalizarem actos homossexuais, ainda que possam ser tidas por injustas, desumanas e iliberais.

Note-se, finalmente, que, ao autonomizar o conceito de democracia e ao identificá-lo com o ideal da igualdade política, não se está a responder à questão de saber o que é que justifica eticamente o próprio ideal da igualdade política. Não se pretende responder à questão: “por que é que alguém deve querer que uma sociedade seja organizada democraticamente?” ou “por que é que a igualdade política é eticamente valiosa?”. Aquilo que leva alguém a pensar na democracia como algo de valioso pode residir, de facto, num princípio mais lato de justiça. Que o valor da igualdade política para a maioria dos cidadãos se fundamente, por exemplo, num princípio mais amplo como o da “igual consideração das pessoas e dos seus interesses”, do qual também se poderia retirar, por exemplo, um princípio de “não-discriminação” dos indivíduos em função de género, raça ou orientação sexual, não parece implausível. Por outro lado, também se pode argumentar convincentemente que a democracia pode ter valor na medida em que se mostra o regime mais consentâneo com a realização de um ideal de autonomia e auto perfectibilidade humana, numa linha de pensamento milliana. A democracia, nesse caso, seria o regime que ofereceria as melhores oportunidades para o desenvolvimento da capacidade de pensamento e acção autónomos nos seres humanos, ao assegurar o respeito por algumas liberdades essenciais e garantir um tratamento aproximadamente igual dos cidadãos, pelo menos nalguns domínios (Pennock, 1989, pp. 20-24). Contudo, ainda que se possa considerar o precedente válido, não se vê em que medida fica impedido o reconhecimento da autonomia conceptual do ideal da igualdade política. Trata-se, simplesmente, de questões distintas.

 

A democracia directa e a democracia representativa

A isocracia enquanto ideal aponta, simultaneamente, para a realização da igualdade de poder de impacto dos cidadãos e para a realização das condições processuais necessárias ao exercício igual da influência política.

Quanto à igualdade de impacto, o ideal da isocracia aponta, tendencialmente, para a eliminação de qualquer desigualdade, vertical ou horizontal. Na verdade, ceteris paribus, e abstraindo-nos da questão da sua factibilidade ou desejabilidade, a democracia directa é mais democrática do que formas de democracia representativa, na medida em que elimina a desigualdade vertical de impacto. Deixa, aliás, de fazer sentido, numa democracia directa, falar numa dimensão vertical por oposição a uma dimensão “horizontal”, na medida em que são eliminados os representantes e são os cidadãos que votam com igual peso os vários assuntos. Por isso, os argumentos contrários à democracia directa devem ser sempre de tipo “exógeno”, exteriores à própria ideia de democracia. A não realização ou a restrição da democracia directa só se pode justificar em nome da realização de outros ideais que não o democrático: impossibilidade prática de o realizar, problemas de ineficiência económica, ou outras razões.

Esta proposição, contudo, foi sujeita à crítica de vários autores, determinados em revalorizar a ideia de representação. Brennan e Hamlin (1999), por exemplo, tentam desenvolver um first best argument em favor da superioridade política da democracia representativa.

Segundo estes autores, a democracia representativa possibilita uma melhor performance política do que qualquer outro regime. Brennan e Hamlin (1999, p. 118) vêem no voto uma forma de expressão do eleitor e não propriamente uma forma de defesa de interesses por interpostas pessoas. Dão, por isso, relevância a elementos como a “lealdade” a partidos e candidatos, ao efeito da personalidade e comportamentos anteriores dos candidatos, bem como às posições assumidas por estes em temas polémicos. Contudo, se os votos não exprimem os interesses dos votantes, mas captam antes entusiasmos, sentimentos de repugnância ou preconceitos e outros elementos emocionais e “irracionais”, um sistema político que permitisse a votação directa pelos cidadãos de cada proposta de política pública multiplicaria as oportunidades de a comunidade tomar decisões irracionais e contraditórias (Brennan e Hamlin, 1999, pp. 119 e 125), por oposição a um sistema representativo que estabelece um filtro “virtuoso” ou “racionalizante” entre o voto e a tomada de decisões. Esse filtro, naturalmente, é constituído pela elite dos representantes, cuja superior racionalidade não decorreria de uma mera presunção “pró-elitista” defendida em termos apriorísticos: pela própria natureza dos mecanismos representativos, os representantes receberiam fortes estímulos para agir de modo mais racional. Os autores comparam o representante a uma espécie de “empresário político”: num momento ex ante assume um determinado risco, pondo em prática determinadas políticas públicas e, num segundo momento, responde pelo risco tomado quando as mesmas são avaliadas retrospectivamente pelos eleitores (Brennan e Hamlin, 1999, pp. 114-115). Como os eleitores seriam genericamente capazes de discernir até que ponto “as coisas estão a correr melhor ou pior do que anteriormente”, poderiam, muito racionalmente, reeleger os representantes cujas políticas tenham redundado numa melhoria do país e afastar aqueles cuja política deixou a comunidade no mesmo ou em pior estado (Brennan e Hamlin, 1999, p. 116). Assim, estaria garantido um relativo sucesso das políticas públicas. O fundamento desta capacidade dos cidadãos encontrar-se-ia no facto de a quantidade de informação e o custo de obtenção da mesma serem, supostamente, muito menores quando estes têm de conhecer apenas os candidatos, em vez de se informarem sobre vários assuntos complexos e profundos, que requerem conhecimentos técnicos “caros” (em termos de disponibilidade, de tempo).

Por outro lado, os representantes da oposição teriam forte incentivo para fiscalizar e denunciar junto dos cidadãos politicamente mais desatentos e passivos os “males” da estratégia e acção do partido adversário. Ou seja, o sistema representativo seria menos exigente relativamente aos cidadãos, do ponto de vista “informativo”, do que um sistema de democracia directa. Resultaria destas características e dinâmicas internas ao sistema representativo que este tenderia a seleccionar sistematicamente como decisores políticos um conjunto de indivíduos estatisticamente “acima da média” em termos de virtude (entendida como dedicação genuína ao interesse público) e competência: justamente por ser, supostamente, fácil para os cidadãos discernir quão “virtuosos” e competentes são os candidatos e porque os cidadãos tenderiam sistematicamente a escolher os mais virtuosos.

 

A superioridade da representação ou a superioridade de um princípio aristocrático?

Para saber se alguém é competente será necessário saber algo de substancial acerca da área de conhecimento específica em que esse candidato supostamente é competente. O cidadão só sabe se alguém, de facto, é competente se souber que posições defende o candidato e que fundamentação (mais ou menos sólida) tem ele para apresentar e defender essas posições. Caso contrário, o cidadão não “sabe”, ele “confia”. Se as pessoas são “racionalmente ignorantes”, como Downs (1957) e Brennan e Hamlin (1999) presumem que sejam, então o que as pessoas fazem é “confiar” nos representantes, presumindo, por exemplo, que, se o candidato x se formou em gestão, ou se está numa empresa de sucesso, deve ser porque alguma competência em matéria económica ele terá. Mas, rigorosamente, eles nada sabem sobre o candidato x. Quanto à virtude, o cenário não é muito melhor: antes que se descubra algo sobre a corrupção (que é um fenómeno sempre difícil de detectar, quanto mais de ser provado, pelo menos em tribunal) ou falta de compromisso com o interesse público de um candidato, como é que se pode ter certezas sobre a “virtude cívica” do mesmo? O problema é tanto maior quanto se sabe que uma imprensa livre não é necessariamente uma imprensa neutra: o passado de determinado candidato pode ser esquadrinhado maliciosamente no sentido de criar suspeitas infundadas sobre a sua honestidade; pelo contrário, outros candidatos podem ver sublinhados apenas aspectos positivos do seu percurso de vida e ignorados todos os momentos mais obscuros; e, no caso de candidatos sem grandes “máquinas” ao seu serviço, o mais provável é ser a sua honestidade e vida inteiramente desconhecidas dos cidadãos, porque ignoradas pelos media.  

Na verdade, poder-se-á argumentar até que, ao exigir-se de um cidadão que conheça uma multiplicidade de rostos e percursos políticos que se estendem ao longo de períodos relativamente alargados de tempo, em detrimento de saber qual a ideologia e programas políticos que mais coincidem com a sua mundividência e valores, se está a multiplicar a informação necessária para a tomada de decisões.

Assim, toda a estrutura do argumento que pretende atribuir ao processo eleitoral-representativo a característica de processo “selectivo”, redundando na “sobrerrepresentação” da “virtude cívica” na assembleia (Brennan e Hamlin, 1999, p. 122), parece ter fundações titubeantes.

Em todo o caso, o problema principal prende-se com a concepção de democracia de que partem: para os autores, a democracia é essencialmente um “mechanism for producing political outcomes in the public interest” e, portanto, o tipo de democracia (directa ou indirecta) a escolher deverá ser aquele que produzir um melhor resultado do ponto de vista desse interesse público.

No entanto, a democracia, quando entendida como isocracia, não tem a ver com os resultados finais, com obter as melhores e mais racionais decisões. A democracia tem a ver com a preservação da igualdade política dos cidadãos ao longo do processo de tomada de decisões. No limite, o ideal democrático, em si mesmo, é compatível com decisões irracionais e até injustas, desde que as condições processuais que levaram a essas decisões tenham sido respeitadas e sejam preservadas para o futuro. Os autores defendem a “superioridade da democracia representativa”, não em função de esta ser “democraticamente superior”, mas antes porque se compatibiliza mais facilmente com um outro ideal: “Our view is that government by the relatively good and the relatively wise is good if you can have it” (Brennan e Hamlin, 1999, p. 126). Assim, a atitude desejável do cidadão face aos representantes será: “[…] to leave them to get on with the business of government, free of costly constraints on their discretion” (Brennan e Hamlin, 1999, p. 126).

Este é um princípio aristocrático. A superioridade da democracia representativa para os autores reside, afinal, no seu enviesamento aristocrático face a formas directas de democracia.

David Plotke (1997) não partilha desta orientação elitista. No entanto, também este autor pretende revalorizar a representação política como um mecanismo de credenciais democráticas, contra alguns radicais da participação que vêem nos mecanismos representativos um mero compromisso (insatisfatório) entre um ideal de democracia directa (tida como a forma da democracia genuína) e as necessidades impostas pela realidade (complexa) da vida moderna.

A legitimidade democrática da representação política em Plotke assenta sobretudo no seguinte argumento: o contrário de representação seria a exclusão e o contrário da participação a abstenção. Nesse sentido, e contra o pressuposto dos radicais da participação, a democracia representativa não seria contraditória com a participação dos cidadãos. Como sublinha, correctamente, aliás, finda a Guerra Fria, seria essencial entender que há alternativas para além de conceber a democracia representativa em termos minimalistas, schumpeterianos (ou seja, como uma competição e rotação de elites sob o olhar passivo das massas amorfas), ou rejeitar, por essa mesma razão (o minimalismo democrático inerente à representação), toda e qualquer forma de representação. Aceite isto, a “missão” dos democratas seria a de “improve and expand representative practices” (trazendo para dentro da democracia os até então excluídos) e apresentar um “reformed scheme of representation” caracterizado por uma dinâmica participativa acentuada (Plotke, 1997, p. 24).

Para Plotke, propostas como a de Barber (1984) são paradigmáticas da incompreensão desta realidade. Barber não entenderia que as suas “assembleias de bairro”, não obstante a sua reduzida dimensão, não seriam, não poderiam ser, de facto, senão representativas. Em primeiro lugar, por ser impossível a comparência física regular na assembleia da totalidade dos cidadãos: seja por pura impossibilidade (doença, compromissos inadiáveis), seja por mera falta de interesse (já que o tempo é um bem escasso). Em segundo lugar, dada a escassez de tempo, seriam muito poucos os que poderiam efectivamente falar nessas assembleias. A tendência natural seria a de se entrar num processo de “auto-selecção” dos oradores e participantes, com a formação de uma “elite participante” e de uma maioria passiva, ausente, auto-excluída. Este processo agravar-se-ia à medida que os temas se tornassem mais técnicos e que os “custos de oportunidade” de participar continuamente na discussão aumentassem até níveis incomportáveis para o comum dos cidadãos: até ao ponto em que estes ficariam tão arredados do processo político como aqueles que vivem nas actuais democracias representativas.

A conclusão de Plotke, pois, é a de que a democracia directa é um ideal, de todo em todo, implausível (já que, ou é impossível, ou resulta em mecanismos de facto representativos) e que a representação é crucial “in constituting democratic practices.” (Plotke, 1997, p. 27).

Ora, se a representação é o mecanismo da democracia, seria essencial entendê-lo correctamente. Desde logo, a representação não deveria ser entendida nos termos do “paradoxo da presença” (fazer presente alguém que está ausente). Esta perspectiva metafórica inquinaria a compreensão do conceito. A representação implicaria, em primeiro lugar, a “não-identidade” entre representante e representado. Se houvesse identidade, aliás, nunca poderia haver representação, na medida em que é impossível encontrar um indivíduo que seja idêntico em todos os aspectos relevantes a outro (Plotke, 1997, pp. 28 e 31 e Young, 2000, p. 133). Não sendo idênticos, prossegue Plotke, o que existe é uma relação dinâmica entre os dois pólos[4]. O representante não age apenas sobre o representado (por meio da decisão política, da criação legislativa), impondo-lhe deveres e conferindo-lhe direitos: ele é também orientado e constrangido pelo representado. Este último autoriza o representante, escolhe-o, num primeiro momento, e desaprova, a posteriori, o desvio deste em relação às suas preferências profundas. Ambos os envolvidos na relação de representação devem ser considerados indivíduos autónomos, com margem de manobra e capazes de escolha.

Segundo Plotke, o erro de alguma literatura militantemente participativa está em conceber a relação de representação como necessariamente unidireccional, com um lado activo, dominador (o representante), e outro, o do representado, passivo, indefeso e incapaz de influir sobre o primeiro. Para os defensores de uma democracia mais “robusta”, o que relevaria seria, por um lado, reforçar o aspecto dinâmico da relação de representação, fortalecendo a conexão entre representantes e representados (isto é, garantir maior responsiveness daqueles) e, por outro, chamar à participação os até agora “excluídos” do processo representativo.

 

Uma crítica construtiva do argumento de Plotke

Plotke está parcialmente correcto. Não é propriamente o sistema representativo o grande adversário da participação e, sobretudo, da igualdade de recursos políticos dos cidadãos — aliás, o sistema representativo e os partidos políticos que nele se organizam ajudam a contrariar parcialmente, com a organização e a conjugação de esforços dos mais fracos, desigualdades de recursos incapacitantes da participação política. Representação e participação não são, assim, termos contraditórios, sendo possível e necessário pensar que a representação apenas funciona bem se complementada com um processo intensamente participativo.

No entanto, a democracia directa continua, ceteris paribus, a ser uma forma democraticamente superior ao mecanismo da representação (Hansen, 1992, p. 24). Em primeiro lugar, como acima se viu, ao eliminar os intermediários, a democracia directa realiza, por esse simples facto, a igualdade de poder como impacto. Por outro, um sistema representativo, pelo menos à primeira vista, enferma em grau superior do problema da desigualdade de influência. Num sistema representativo existe uma tendência para o aprofundamento da diferenciação entre as preferências dos cidadãos e as decisões políticas, tanto maior quanto maior for a dimensão da comunidade e maiores as desigualdades económicas e sociais. Esta diferenciação tende a privilegiar determinados interesses que conseguem chegar mais facilmente, pela abundância de recursos de que dispõem, aos representantes, bem como ser por estes considerados mais seriamente. O “corte” que a democracia representativa tende a estabelecer entre representantes e representados tende a beneficiar aqueles que já dispõem de mais recursos. Quanto mais profundo o corte, maior a possibilidade de os interesses de ínfimas minorias, estruturalmente privilegiadas, serem defendidos (à custa das preferências da maioria dos representados) na democracia representativa. Estas dificuldades tornam-se manifestas quando se aborda o tema de saber até onde deve ir a autonomia (relativa) dos representantes face aos representados.

Antes, porém, de prosseguir com o tópico da autonomia dos representantes crê-se necessário considerar outro tipo de argumentos usados a favor da superioridade democrática da democracia representativa face à democracia directa. Nadia Urbinati (2006, pp. 30-31) considera que a democracia representativa permite reflectir fidedignamente as ideologias dos cidadãos. Ao votar num partido, e não num “assunto específico”, o cidadão permite a representação de uma certa coerência ideológica, de uma continuidade ou unidade, entre um conjunto de posições políticas e um conjunto de decisões tomadas em momentos diferentes. A democracia directa não operaria essa ligação “ideológica”, não permitiria a continuidade ideológica, por causa do seu carácter imediatista: cada decisão sobre cada tópico é tomada autonomamente e não conseguiria ser conexionada com outras, anteriores e posteriores. A votação directa produziria, além disso, um ambiente desfavorável à reflexão, à deliberação e, em última análise, ao pluralismo ideológico. As questões na democracia directa são colocadas em termos simplistas e dicotómicos: “sim” ou “não”. Isto permite uma mera agregação de preferências, mas representa mal as “mentes dos cidadãos”, isto é, a sua densidade ideológica (Urbinati, 2006, p. 113). Além disso, um sistema decisório dicotómico estimularia uma cultura política antipluralista, na qual as decisões seriam vistas como questões de facto (as respostas só poderiam ser “certas” ou “erradas”) e não como juízos de valor. A democracia directa seria hostil à ideologia e tenderia a identificar a opinião dissidente com um verdadeiro erro epistemológico (à maneira do que Rousseau diz sobre quem vota contra a “volonté generale”), o produto da ignorância (Urbinati, 2006, pp. 114-115).

Não se poderá responder detidamente à argumentação da autora. Contudo, não se podem deixar de assinalar alguns problemas. Indubitavelmente, a democracia directa é “imediatista”: o voto em cada assunto é “autónomo” de outros, enquanto o voto num partido é um voto num “pacote de ideias” relativamente coerente. E, em última análise, as medidas políticas propostas só são susceptíveis de uma resposta dicotómica: ou são aprovadas com um sim, ou rejeitadas com um não. Mas os diplomas legais num parlamento também, por muitas alterações que se façam ao longo do processo negocial que antecede a votação, são sujeitos, no final, a escolhas dicotómicas dos representantes. Porque não poderá haver numa democracia directa debate prévio a cada proposta política (tendo como “palco” não apenas a assembleia de representantes, mas o conjunto da “sociedade civil”), em que se considerem várias alternativas, várias redacções e soluções possíveis? Rejeitada uma medida, pode “aprender-se” politicamente e apresentar uma nova proposta que tome em conta os resultados de anteriores propostas, bem como os debates que antecederam e sucederam a sua rejeição. Não há qualquer relação lógica entre a democracia directa e uma concepção antipluralista, antideliberativa e anti-ideológica da política. A deliberação e o debate ideológico têm simplesmente de mudar de cenário (da assembleia de representantes para a população geral). A deliberação só tem valor especificamente democrático se não se limitar a uma assembleia que altera, sem consulta popular e contra as preferências populares[5], as políticas públicas que prometeu levar por diante, mas antes for alargada ao conjunto da sociedade e potenciais cidadãos interessados na discussão. Associações similares a partidos poderão, de resto, continuar a existir numa democracia directa (Budge, 2006), não já para apresentarem candidatos a representantes políticos, mas para conduzirem debates, para criarem núcleos ideologicamente coerentes de cidadãos e defenderem no espaço público determinadas causas. Num certo sentido, continuarão a “representar” ideologias e preferências, mas não através de representantes formalmente “autorizados” a agir politicamente pelos representados. Entende-se a rejeição do ataque aos partidos e do elogio da era da audience democracy[6] (Urbinati, 2006, p. 242). Na verdade, em sociedades com elevada desigualdade de influência, com ambientes mediáticos pouco favoráveis ao pluralismo igualitário de opiniões e à deliberação, os partidos podem desempenhar um papel positivo, reequilibrador. Mais ainda, a autora tem razão quando identifica o que faz da democracia representativa ainda uma democracia (por oposição a um mero “governo representativo”): é a conexão ideológica entre cidadãos representados e representantes e não uma relação de “confiança”. Na verdade, ela considera que a ideia da representação como algo que assenta apenas numa vaga relação de confiança e num mandato plenamente livre se baseia num “vício platónico” (Urbinati, 2006, p. 156) (leia-se aristocratizante) de raciocínio e não pode dar origem a um genuíno “governo representativo[7]: porque nesse caso a representação não passa de um mecanismo formal de designar dirigentes políticos. A questão coloca-se, então, uma vez mais: que grau de autonomia dos representantes é ainda compatível com a democracia (pelo menos quando concebida como isocracia)?

 

Autonomia dos representantes, paternalismo e proporcionalidade

Numa democracia, diz-nos Plotke, há a necessidade de compromisso, porque os representantes de uma determinada sensibilidade encontrar-se-ão com os de outras sensibilidades e terão que efectuar alguma negociação. Neste contexto de negociação, segundo Plotke, os representantes não podem levar em conta apenas as preferências daqueles que representam. Resta saber se a latitude interpretativa concedida ao representante, em função deste contexto, não corre o risco de subverter a representação, tal como a concebe o autor (isto é, representação de preferências):

A political representative looks toward the preferences of those they represent, toward others’ preferences, and toward their own view of overall welfare. Political representatives recognize the existence of competing and general interests alongside those of their constituents. And they consider whether their constituents’ choices are the best way to get what those constituents want [Plotke, 1997, p. 29].

Este problema não é, obviamente, apenas de Plotke, nem é de fácil resolução[8]. No entanto, uma coisa é admitir a legitimidade de os representantes ponderarem se as preferências dos eleitores serão as mais adequadas aos fins que pretendem alcançar, tendo, aliás, em consideração a necessidade de negociar compromissos; outra, completamente diferente, é reconhecer um direito de alterar as preferências dos representados para as pôr em consonância com a concepção que os representantes têm do interesse geral (“their own view of overall welfare”). Admitir esta segunda hipótese como legítima é abrir a porta aos “cheques em branco”, algo que dificilmente se compatibiliza com o ideal da representação democrática. A democracia, neste sentido, é um ideal antipaternalista: os cidadãos têm de determinar, de forma directa ou indirecta, as políticas que consideram relevantes implementar. Se outros decidirem por eles e contra eles, estaremos a abandonar o território da democracia representativa e a entrar num sistema representativo de cunho mais ou menos acentuadamente aristocrático.

O que a democracia exige (mas Plotke aparentemente não) da representação é que mantenha a ligação entre as decisões políticas e as preferências dos eleitores, por meio de mecanismos institucionais desenhados para promover a participação e, assim, a consonância entre umas e outras, reforçando a igualdade política e fazendo de cada cidadão (e suas respectivas preferências) um indivíduo com igual peso no processo decisório[9].

É manifestamente impossível, por razões de espaço, argumentar detidamente sobre as condições que facilitam a democraticidade da representação. Mas esta passa seguramente, no plano das instituições políticas e eleitorais stricto sensu, pela existência e promoção da proporcionalidade dos sistemas eleitorais (fórmula de conversão de votos em assentos parlamentares, dimensão dos círculos eleitorais, dimensão relativa do parlamento, inexistência de cláusulas-barreiras, etc). Os sistemas proporcionais permitem que exista uma correspondência mais exacta entre a força dos partidos (e respectivos programas) e a força das ideias e preferências[10] dos cidadãos (Christiano, 1996, pp. 220-239; Arblaster, 1987, p. 129). Aproximam quem representa daquilo que deve ser representado (Young, 2000, p. 152) por duas vias. Por um lado, ao contrário dos sistemas maioritários, não constrangem (pelo mecanismo do voto útil) os cidadãos a “segundas escolhas” (Rae, 1998, p. 157; Sartori, 1998, pp. 233 e segs.). Permitem, pois, que cada um encontre aquele partido que corresponde mais genuinamente aos seus interesses, tal como ele os perspectiva. Por outro, coloca os representantes num “terreno nivelado”: não beneficia artificialmente e a priori nenhum partido (e nenhuma perspectiva ideológica) na disputa eleitoral.

 

Conclusões

A representação política tem uma longa história. No entanto, normativamente, nem todas as formas de representação política (ou nem todos os regimes representativos) podem reclamar igual legitimidade política. O fundamento legitimador dos regimes políticos foi-se tornando progressivamente o princípio democrático e a representação é, ou deve ser, legítima apenas na medida em que seja democrática. Por isso, qualquer debate em torno da representação deve ser precedido pela discussão do conceito de democracia. O objectivo deste artigo foi duplo. Por um lado, defendeu-se uma concepção processual de democracia assente na ideia da igualdade política (a isocracia) das críticas das rivais teorias substantivas da democracia (tomando-se a democracia “comunal” de Dworkin como paradigmática). Por outro, tentou-se explorar, à luz da concepção isocrática de democracia, as ambiguidades do presente debate sobre a representação. No intuito de revalorizá-la, alguns autores erroneamente atacaram o valor democraticamente superior da democracia directa e raramente apontaram o real problema do sistema representativo: o risco de incoerência (inerente à ideia de autonomia do representante) entre as preferências dos cidadãos e os comportamentos dos seus representantes. A isocracia exige a tendencial correspondência entre preferências dos cidadãos, corpo representativo (a atingir, nomeadamente, pela proporcionalidade dos sistemas eleitorais) e políticas públicas praticadas.

 

Bibliografia

Arblaster, A (1988), ADemocracia, Lisboa, Editorial Estampa.

Baker, C. E. (2002), Media, Markets and Democracy, Cambridge, Cambridge University Press.

Barber, B. (1984), Strong Democracy, Berkeley, University of California Press.

Brennan, G., e Hamlin, A. (1999), “On political representation”. British Journal of Political Science, 29, pp. 109-127.         [ Links ]

Budge, I. (2006), “Deliberative democracy versus direct democracy – plus political parties!”. In M. Saward (ed.), Democratic Innovation, Deliberation, Representation and Association, Londres, Routledge, pp. 195-212.

Christiano, T. (1996), The Rule of the Many. Fundamental Issues in Democratic Theory, Boulder, Colorado, Westview Press.

Converse, P. (1964), “The nature of belief systems, in mass politics”. In David Apter (ed.), Ideology and Discontent, Nova Iorque, Free Press, pp. 206-261.

Dahl, R. A. (1957), “Decision-making in a democracy: the supreme court as a national policy-maker”. Journal of Public Law, 6, pp. 279-295.

Dahl, R. A. (1985), A Preface to Economic Democracy, Berkeley, University of California Press.

Dahl, R. A. (2006), On Political Equality, New Haven, Yale University Press.

Downs, A. (1957), An Economic Theory of Democracy, Nova Iorque, Harper and Row.

Dworkin, R. (1990), “Equality, democracy, and constitution: we the people in court”. Alberta Law Review, 64, pp. 324-346.

Gutmman, A., e Thompson, D. (1996), Democracy and Disagreement. Why moral Conflict Cannot be Avoided in Politics, and What Should be Done about it, Cambridge, Massachusetts, Harvard University Press.

Hansen, H. M. (1992), “The tradition of Athenian democracy”. Greece & Rome, 39 (1), pp. 14-30.

Keane, J. (2002), A Democracia e os Media, Mafra, Temas e Debates.

Manin, B. (1997), The Principles of Representative Government, Cambridge, Cambridge University Press.

Mansbridge, J. (2003), “Rethinking representation”. American Political Science Review, 97 (4), pp. 515-528.

Pennock, R. (1989), “Justifying democracy”. In G. Brennan e L. E. Lomasky (eds.), Politics and Process: New Essays in Democratic Thought, Cambridge, Cambridge University Press, pp. 11-41.

Pitkin, H. F. (1967), The Concept of Representation, Berkeley, University of California Press.

Plotke, D. (1997), “Representation is democracy”. Constellations, 4 (1), pp. 19-34.

Rae, D. W. (1998), “A lei eleitoral como instrumento político”. In Sistemas Eleitorais: o Debate Científico, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, pp. 155-168.

Sartori, G. (1998), “A influência dos sistemas eleitorais: leis defeituosas ou defeitos metodológicos?”. In Sistemas Eleitorais: o Debate Científico, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, pp. 223-247.

Saward, M. (2006), “Less than meets the eye, democratic legitimacy and deliberative theory”. In M. Saward (ed.), Democratic Innovation, Deliberation, Representation and Association, Londres, Routledge, pp. 66-77.

Urbinati, N. (2006), Representative Democracy: Principles and Genealogy, Chicago, Chicago University Press.

Vieira, M. B., e Runciman, D. (2008), Representation, Cambridge, Polity Press.

Vlastos, N. G. (1984), “Justice and equality”. In Theories of Rights, Oxford, Oxford University Press, pp. 41-76.

Young, I. M. (2000), Inclusion and Democracy, Oxford, Oxford University Press.

 

Notas

[1] Naturalmente, podem ser concebidos limites mínimos de democraticidade abaixo dos quais não será correcto falar em “democracia”. O que já não parece aceitável, quando se parte de um conceito como o da igualdade política, é pensar em termos binários ou dicotómicos, como se só pudessem existir dois tipos de regimes políticos, sem possibilidade de distinção interna dentro das categorias.

[2] Aparentemente, Dworkin comete aqui um erro metodológico, fazendo do real medida do ideal e não o contrário: as sociedades contemporâneas, organizadas em termos representativos e mais ou menos democráticas, são tidas como o próprio paradigma ou ideal da democracia. Fazendo da democracia a mera abstracção das características gerais de alguns regimes, deixamos de ter uma medida para avaliar esses mesmos regimes que serviram de base à formação do conceito: como a democracia não é mais do que a abstracção das suas instituições, eles são democráticos por definição e, logo, insusceptíveis de uma crítica democrática. O raciocínio, nesse caso, torna-se patentemente circular e arbitrário (Dahl, 2006, p. 6). Ora, pode justamente defender-se que, à luz de um ideal da democracia como igualdade política, os regimes políticos contemporâneos são menos democráticos do que poderiam ou deveriam ser, na medida em que, por definição, implicam uma forte desigualdade vertical de impacto. Em abstracto, esta desigualdade seria inexistente numa democracia directa e fortemente limitada, mesmo nos limites de um sistema representativo, por meio do mandato imperativo ou da revocabilidade permanente dos representantes. A validade desta afirmação mantém-se, ainda que se considere indesejável ou inexequível a realização destes mecanismos institucionais.

[3] Dworkin parece assumir implicitamente que os dirigentes políticos, bem como os magistrados dos tribunais (em particular do Supremo Tribunal Federal americano, cuja legitimidade democrática se empenha em defender), tenderão a revelar-se mais competentes, razoáveis e virtuosos do que a média dos cidadãos comuns e que, por isso, as suas decisões serão, regra geral, melhores do que aquelas que as “massas” tomariam por si próprias numa democracia directa. Naturalmente, é fácil demonstrar a superioridade média das habilitações académicas dos representantes face à população geral. Isto, contudo, é parca garantia de que os primeiros tomariam sempre melhores decisões do que os segundos. Seria bom imaginar que um título académico pudesse constituir um atestado fidedigno de competência genérica para entender qualquer tema técnico ou ainda uma garantia de que o seu titular tomaria as decisões eticamente mais correctas (nomeadamente, protegendo os direitos das minorias). Simplesmente, nem mesmo o Supremo Tribunal nos EUA, cujos representantes teriam as melhores qualificações para assim agir, parece ter sido particularmente sensível a este objectivo: na maioria dos casos, não alargou, antes constrangeu, direitos fundamentais (Christiano, 1996, p. 100; Dahl, 1957, pp. 291-292) e raramente contrariou as posições social e politicamente dominantes na sociedade americana (Dahl, 1957, pp. 285 e 293). Nem esta instituição foi tão contra maioritária quanto se poderia esperar (Dahl, 1957, pp. 291 e 293). Logo, por que deveremos querer que os nossos representantes “liderem”, em vez de seguirem, as nossas preferências?

[4] Afirmar (como faz Plotke) a não-identidade entre representantes e representados é pouco mais do que um truísmo, não apenas inútil, mas potencialmente nocivo à correcta compreensão da problemática da representação democrática. Porque a representação, pelo menos se interpretada em consonância com o ideal da isocracia, é essencialmente a representação de um tipo específico de identidade (nunca de uma identidade total), ou, mais rigorosamente, de uma similitude: a “representatividade”, ou a democraticidade da representação, obtém-se se houver similitude e na exacta medida em que haja uma aproximação constante (já que a política é um fenómeno dinâmico e não estático) das políticas públicas efectivamente praticadas pelos representantes em relação às preferências dos cidadãos. Quanto menor a identidade ideológica entre representantes e representados, mais o regime se abeira de um “paternalismo representativo” e menos de uma democracia representativa.

[5] O enviesamento elitista e “excludente” de muita literatura deliberativista já foi criticado por alguns autores (Saward, 2006).

[6] O termo é usado por Manin (1997, pp. 218 e segs.) e designa a evolução dos sistemas políticos ocidentais de um modelo centrado no voto em partidos de massas e respectivos programas (com relativo constrangimento da liberdade dos representantes eleitos pelos programas e pelas orientações da direcção partidária) para um novo modelo (que terá começado a emergir a partir dos anos 70) centrado em personalidades mediáticas, que se distinguiriam pelo domínio das técnicas de comunicação de massas e comunicariam “directamente” com os eleitores, sem a intermediação dos activistas partidários (uma tecnologia “obsoleta” a partir de então).

[7] Em rigor, há um governo representativo, mas que assenta num modelo de representação diferente (e não democrático): o modelo fiduciário, ou trustee (que a autora, implicitamente, rejeita), caracterizado pela relação de confiança e não pela vinculação e responsabilização do representante face aos representados. Aquele pode representar os interesses dos representados, mas representa-os paternalisticamente, tal como ele os entende, e não como os próprios representados o entendem. Isto é, não representa as preferências dos cidadãos.

[8] Thomas Christiano (1996) tenta, sem sucesso, contornar o mesmo problema. Este autor introduz uma distinção entre a definição dos “fins gerais” e a escolha dos “meios” concretos de execução dos fins gerais. Numa sociedade baseada na igualdade política, aos representantes nunca poderia caber a definição dos fins gerais: se não forem os representados a defini-los, o sistema será de puro paternalismo. Uma escolha racional dos meios de execução, contudo, pode requerer o conhecimento prévio de elementos técnicos de difícil acesso ao cidadão comum. Confrontado com a realidade empírica da ignorância e incompetência técnica dos cidadãos nas sociedades contemporâneas, Christiano reserva a escolha dos meios de execução aos dirigentes políticos. Esta é uma resposta insatisfatória, porém. Em primeiro lugar, a distinção entre meios e fins é muito intuitiva, mas igualmente enganadora. Aquilo que constitui um determinado meio (a constituição de um sistema nacional de saúde universal, eficiente e sustentável, por exemplo) para a realização de um fim mais geral (assegurar o direito à saúde a todos os cidadãos) pode, para outros efeitos, ser considerado um fim, também ele susceptível de realização por mais do que um meio (ex: o SNS deve ter um estatuto hegemónico ou subsidiário em relação aos privados; o SNS deve ser gratuito, “tendencialmente gratuito”, ou “proporcional aos rendimentos”; a sua gestão deve ser pública ou privada?). Assim, a distinção, se bem que sedutora, não permite saber o que é competência legítima dos representantes e o que efectivamente só deve ser escolhido imperativamente pelos cidadãos representados. Em segundo lugar, muitas vezes as pessoas concordam quanto aos fins gerais, mas o pomo da discórdia ideológica mais acirrada reside justamente nos meios de efectivá-los. Por fim, não se nega que seria irrazoável pretender imaginar uma sociedade em que os cidadãos fossem “sábios ilustrados” ou “competentes em tudo”. No entanto, em vez de se “capitular” perante as realidades existentes (como se elas fossem todas a priori imutáveis, como uma ordem natural das coisas), conviria sublinhar que a isocracia aponta para a necessidade de a sociedade despender um esforço substancial no sentido de elevar as capacidades intelectuais (o que implica perspectivar como prioritária a realização dos direitos ao ensino, à cultura e à informação) e a competência dos cidadãos comuns, justamente para que estejam em condições mínimas de escolher racionalmente, em consciência (directamente ou por intermédio de representantes), as políticas públicas que melhor servem as suas preferências profundas.  

[9] A limitação do número e prazo dos mandatos é produto da mesma preocupação e destina-se a mitigar os potenciais efeitos “distanciadores” que a reeleição constante possa exercer sobre a relação entre eleitor e eleito (Mansbridge, 2003, p. 518).

[10] Pode argumentar-se que presumir a existência de “ideologias” no conjunto da população é discutível. Até se pode discutir se existem verdadeiramente preferências. Quanto às ideologias, enquanto conjuntos relativamente articulados e coerentes de ideias acerca do mundo e concepções de justiça, é muito provável que muitos dos cidadãos comuns não as possuam (Converse, 1964). A existência de preferências é discutível, decerto, mas não mais discutível do que sustentar a sua não existência. Em todo o caso, se isso for verdade, então não haverá nenhuma razão para o uso de mecanismos democráticos e, em particular, das eleições. Se as pessoas nem são capazes de formar preferências, se não têm conjuntos de valores estáveis, então, que sentido ou interesse há em auscultá-las? É mais racional deixar que outros decidam por elas. As eleições só poderão ter uma função meramente instrumental: a de constituírem um mero simulacro destinado a legitimar a rotação de elites. A ideia de democracia implica a de que os homens são, ou podem ser, capazes de decisões autónomas, de expressarem as suas preferências ou ideologia. Doutra forma, um regime político paternalista é tão justificável como a democracia.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons