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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.196 Lisboa  2010

 

A ideia de democracia digital na obra de Heidegger[**]

 

Jonatas Ferreira*

* Universidade Federal de Pernambuco,  Rua Ourém, 175, apto 403 — bloco Jacobina; San Martin — Recife — PE Brasil; CEP 50.761-340. e-mail: ferreirajonatas@uol.com.br

 

O tema da inclusão digital tem mobilizado a atenção dos que percebem na ciência e na tecnologia um espaço privilegiado para a discussão da democracia nas sociedades contemporâneas. Os vínculos teóricos fortemente consolidados que unem a ideia de inclusão social ao que se convencionou chamar justiça distributiva impedem-nos de pensar a democratização das tecnologias num terreno suficientemente profundo. O que é a tecnologia da informação e comunicação para que a sua apropriação social se tenha tornado um imperativo cultural nas últimas décadas? Ao reflectir acerca da essência da técnica e da cibernética, os textos heideggerianos da década de 60 ajudam-nos a enfrentar essa indagação. O presente ensaio é uma contribuição para esta discussão.

Palavras-chave: tecnologias de informação e comunicação; democracia; inclusão digital; Heidegger.

 

The idea of digital democracy in the work of Heidegger

The issue of digital inclusion has been mobilizing the attention of those who perceive in science and technology a favored space for discussing democracy in contemporary societies. However, the theoretical and highly consolidated ties that connect the idea of social inclusion to what has been named distributive justice bar the possibility of conceiving of the democratization of technologies sufficiently. What are information and communication technologies that their social appropriation has become a cultural imperative in recent decades? Reflecting upon the essence of technique and cybernetics, the heideggerian texts of the 1960s help us to engage this question. The following essay is a contribution to such a discussion.

Keywords: information and communication technologies; democracy; digital inclusion; Heidegger.

 

Introdução

Em Março de 2009, o Comité Gestor da Internet no Brasil publicou os primeiros resultados da Pesquisa sobre o Uso de Tecnologias de Informação e Comunicação no Brasil realizada no ano de 2008. Esses primeiros resultados indicam que continuamos a avançar na difusão de tecnologias de informação e comunicação (TICs), embora os problemas apresentados nas avaliações anuais anteriores ainda não tenham sido suficientemente equacionados: (i) “o custo elevado continua a ser a principal barreira para a posse do computador e da conexão à internet nos domicílios”; (ii) “a falta de disponibilidade de internet passa também a figurar como um dos principais desafios para a inclusão digital em todo o país”; (iii) a “posse do computador nos domicílios cresceu mais rapidamente do que a posse da conexão à internet; a diferença entre domicílios com computador e domicílios com conexão à internet era de 4 p. p. em 2005 e passou para 8 p. p. em 2008”; (iv) o acesso à telefonia móvel apresenta uma penetração consideravelmente superior à da telefonia fixa em todo o país; (v) a “falta de habilidade foi, mais uma vez, apontada como a principal barreira para o uso da internet”; vi) as lan houses[1] ainda são a única possibilidade de acesso à internet para uma parte considerável da população (pobre) brasileira, o que significa pagar mais pelo acesso à internet quem menos pode pagar[2]. Além de tudo isto, a velocidade de transmissão continua lenta, o que restringe fortemente o acesso a conteúdos que exijam uma maior largura de banda.

Este quadro ajuda-nos, sem dúvida, a traçar os contornos mais gerais daquilo a que se convencionou chamar exclusão digital e dos resultados das políticas de inclusão tentadas até o momento no Brasil. Evidentemente, este panorama requer uma análise ampla das políticas governamentais neste campo, do modo como os estados vêm assumindo os compromissos da Federação no que toca ao ingresso de largas parcelas da população na sociedade da informação, do modo como entidades da sociedade civil e organizações não governamentais se têm dedicado a atenuar as desigualdades no acesso às TICs. No que se refere à necessidade de analisar os obstáculos que se colocam à inclusão digital, em particular nas regiões de maior pobreza e entre as parcelas mais pobres da população, acredito que pensar a desigualdade a partir da perspectiva da inclusão/exclusão digital é insuficiente (Warschauer, 2003). A desigualdade nesse, como noutros casos, não deve ser tratada apenas do ponto de vista da restrição ao acesso, mas da possibilidade de apropriação criativa que essas tecnologias demandam (Maciel e Albagli, 2007). Apropriação é uma chave importante para que possamos reflectir criticamente acerca do significado daquilo que se convencionou chamar inclusão digital, ou, mais propriamente, para que possamos tratar a questão política implicada na democratização da tecnologia. Dessa perspectiva, o que garantiria exactamente a democratização das tecnologias de informação e comunicação na sociedade brasileira? A resposta parece óbvia, mas não é.

Primeiro, reafirmo, a questão da democracia não pode ser reduzida à questão da inclusão. Incluir significa tirar alguém de um lugar de falta para outro de plenitude e cidadania. Num ensaio dedicado a esta questão tivemos a oportunidade de propor uma crítica ao conceito de inclusão digital a partir da constatação do seu débito para com as noções de justiça distributiva (que vem orientando o tratamento da questão da desigualdade no mundo moderno, ao menos desde Adam Smith) e de informação (tal como o conceito é definido pela teoria da informação a partir da década de 40). Nesse outro texto afirmámos:

A redução dos conceitos de informação e de comunicação a uma dimensão francamente performativa, tal como encontramos nas ciências da informação desde seus primórdios [...] apresenta uma considerável “afinidade eletiva” com a idéia de inclusão digital. Nos dois casos, trata-se de garantir o fluxo seguro e veloz de signos sem que as questões do sentido das mensagens, de sua apropriação, da orientação da arquitetura que permite este fluxo, constituam uma preocupação primeira — ou cuja resposta seja democraticamente produzida. A eficiência no transporte de informação é nos dois casos um princípio que se impõe às demais preocupações. Acreditamos que a idéia de inclusão digital não possibilita uma compreensão crítica desse movimento técnico e de seu sentido político [Ferreira e Rocha, 2009].

Já ali falávamos da necessidade de apropriar as TICs como condição fundamental para a sua democratização. Neste contexto, democratizar significa muito claramente propiciar as condições para que uma tecnologia aberta no que respeita às suas finalidades — essa parece ser a marca das tecnologias digitais — possa levar a um exercício radical de reflexão acerca do mundo em que vivemos e do mundo que desejamos. Saber em que medida as políticas públicas que objectivam a popularização dessas matrizes tecnológicas permitem e estimulam esse tipo de reflexão, e práticas que lhes sejam compatíveis, assim, permitiria uma apreciação do limite e profundidade dessa apropriação. Por isso mesmo, uma questão inevitável para aqueles que se comprometem com tal projecto político há-de ser: o que são a tecnologias de informação e comunicação contemporâneas para que desejemos democratizá-las, para que possamos pensar na sua apropriação como um postulado ético e político da contemporaneidade? Sem que uma resposta a essa questão seja formulada, como podemos verdadeiramente falar de apropriação nos nossos programas de democratização das TICs? Embora entendamos que a pergunta acima formulada é fundamental, a sua resposta não é de modo algum fácil. Tentar uma resposta implica que o nosso compromisso com uma democracia radical requer um exercício crítico acerca dos nossos envolvimentos tecnológicos, dificilmente compatível com a necessidade de respostas rápidas, com a busca de performance a todo custo, com a inovação como princípio. Em alguma medida, o artigo citado acima esboça uma resposta a essas questões ao procurar entender as transformações produzidas pela teoria da informação no que tange à própria compreensão do que é a informação, a comunicação e a linguagem. O artigo que se segue dá continuidade a essas reflexões, procurando aprofundá-las a partir do pensamento heideggeriano, particularmente por intermédio dos seus textos da década de 60 do século xx acerca da linguagem cibernética e dos grandes perigos que ela representava:

Embora a minha conclusão acerca das questões que Heidegger propõe seja bastante particular, acredito que a reflexão heideggeriana é ainda crucial. E isso por uma razão muito simples. É importante que nos perguntemos exatamente o que desejamos democratizar e o que implicaria essa democratização. A amplitude desse tipo de indagação propicia, em geral, um confronto com certos pressupostos culturais que são tomados como dados pelo paradigma da justiça distributiva. Essa irreflexão pode ser ilustrada. Basta que consideremos o facto de que o modelo de consumo dos bens e serviços produzidos hoje no mundo não pode ser democratizado. Pensemos nas grandes cidades dos países subdesenvolvidos e desenvolvidos, congestionadas por automóveis. A universalização desse bem poderia ser considerada uma solução viável para o problema da locomoção de indivíduos nos grandes centros urbanos? Quando discutimos a televisão digital no Brasil, deveríamos apenas ater-nos ao sagrado direito de termos acesso ao Big Brother Brasil em alta definição? E se pensamos na inovação como uma das fontes principais de riqueza no planeta, a universalização do acesso ao último pacote tecnológico é necessariamente uma boa ideia? E é nesse ponto que Heidegger se torna importante para a nossa discussão.

Para Martin Heidegger, o niilismo é o grande fantasma que ronda a civilização tecnológica; a aceleração tecnológica, a excitação constante, seriam ameaças que actuam de modo a ocultar-nos o facto de que nada mais tem verdadeiramente sentido ou merece existir. Ao equiparmo-nos para termos tudo à nossa disposição, tudo perdemos. Assim, é preciso que nos dediquemos a pensar a aceleração pela aceleração, a inovação que se justificaria pelo simples facto de inovar, como grandes ameaças. Segundo a perspectiva que tomo neste ensaio, por outro lado, é na radicalização do processo de apropriação que encontraremos uma alternativa para a restrição das nossas possibilidades existenciais e políticas que o niilismo acarreta. Pois quando falamos de apropriação consideramos que, no limite, algo nos seja absolutamente inapropriado. Acredito que essa reflexão possa constituir um momento decisivo num processo mais amplo em que assumiríamos o nosso destino de modo radicalmente democrático. Pois em qualquer âmbito no qual a democracia esteja realmente em questão, a possibilidade de que o mundo venha a ser radicalmente distinto daquele em que existimos  também estará em jogo:

Para sermos capazes de fazer tal dissociação, Heidegger mantém, devemos repensar a história do ser no Ocidente. Então veremos que, embora um entendimento tecnológico do ser seja o nosso destino, não é a nossa sina. Isto é, embora o nosso entendimento das coisas e de nós mesmos como recursos a serem ordenados, melhorados e usados eficientemente venha sendo construído desde Platão, nós não estamos presos a esse entendimento [Dreyfus, 1993, p. 307].

A democratização das tecnologias de informação e comunicação, portanto, no limite, passa por uma reflexão acerca da distância que existe entre aquilo que Dreyfus entende como destino e sina.

 

Heidegger, linguagem técnica e niilismo

Talvez devêssemos começar este tópico por uma definição de técnica, tal como ela nos é oferecida por Heidegger num texto de 1962: “Technè: conhecer-se no acto de produzir” (Heidegger, 1999, p. 21). Gosto desta definição por vários motivos. O principal deles é o facto de ali se pensar a técnica, não como um meio para obter determinados fins, mas como algo que diz respeito ao conhecimento das nossas próprias possibilidades. A técnica diz respeito a nós mesmos e, por isso, a sua produção pode ser concebida a partir da tradição filosófica grega como “conhecer-se”. Dizer isto é afirmar algo bastante distinto daquilo que usualmente é concebido como a essência da técnica. Compreender o que está implícito nesta pequena frase significa afastarmo-nos de modo claro daquilo a que Heidegger chama “representação antropológico-instrumental da técnica”, ou seja, da percepção segundo a qual o ser humano mobiliza de modo autónomo e transcendente os instrumentos técnicos que tem à sua disposição. Segundo essa visão, tanto faz que operemos um computador ou manejemos uma lança; nos dois casos temos à nossa disposição meros instrumentos. As nossas intenções, motivações e compromissos, nesse caso, seriam o cerne de todo o problema tecnológico. Se assim fosse, não haveria motivo para nos preocuparmos com a intensidade dos nossos envolvimentos técnicos na sociedade contemporânea. Tudo se reduziria à questão de como utilizar os instrumentos que temos à nossa disposição. É precisamente essa forma de abordar a técnica que está no cerne da crítica heideggeriana:

No horizonte da representação antropológico-instrumental da técnica podemos então afirmar com uma certa legitimidade que não há no fundo qualquer diferença essencial entre a machada de pedra e a última produção da técnica moderna, o Telstar. Os dois são instrumentos, meios produzidos para fins determinados. Que a machada de pedra seja um utensílio primitivo, e o Telstar, pelo contrário, um aparelho de uma complexidade extrema, tal manifesta uma  enorme diferença de grau, mas não muda nada ao seu carácter instrumental, isto é, técnico [Heidegger,  1999, p. 18].

Se admitimos a definição heideggeriana sobre a técnica como ponto de partida para uma reflexão sobre as tecnologias de informação e comunicação na contemporaneidade, é por um motivo simples. Entendemos que mesmo quando reduzida a uma dimensão instrumental, mesmo quando promova a disponibilização da natureza, a sua armazenagem, o que a técnica de facto nos indica é o modo como nos é historicamente possível uma abertura para o mundo no qual realizamos as nossas possibilidades. E é por isso mesmo que pensar a técnica é tão importante. Poderíamos aqui reafirmar o que se diz em “A questão concernente à tecnologia”: “a tecnologia é um meio de revelação” (Heidegger, 1996, p. 319). É necessário, portanto, afirmar a existência de uma diferença substantiva, qualitativa, entre o machado de pedra e esse ícone da comunicação dos anos 60, que é o sistema Telstar de comunicação por satélite. O mundo que se nos abre a partir de uma e outra técnica é radicalmente diferente.

Do mesmo modo, é preciso deixar aberta a possibilidade de que exista uma diferença considerável entre o que a comunicação por satélite possibilitava quando Heidegger escreveu a sua conferência sobre “linguagem de tradição” e “linguagem técnica” e o que hoje eles permitem com a constituição da world wide web. Somente ao nos propormos considerar essa diferença é que poderemos entender a pergunta que orienta a reflexão heideggeriana sobre a técnica e sobre a tecnologia da informação, em particular, e, em última instância, responder à nossa própria indagação: democratizar o quê? Somente assim poderemos de algum modo responder à questão: “será que a cultura técnica — e, por conseguinte, a própria técnica — contribui em geral, e se sim em que sentido, para a cultura humana (Menschheitsbildung), ou arruína-a e ameaça-a?” (Heidegger, 1999, p. 17). Fazer isso, no entanto, requer que nos detenhamos nas considerações heideggerianas sobre a técnica e, mais particularmente, sobre a cibernética.

De um ponto de vista substantivo, aquilo que Heidegger propõe no texto que aqui tomamos como base, ou seja, Língua de Tradição e Língua Técnica, é uma reflexão sobre a linguagem. Esse tema ganha ênfase decisivo na obra do último Heidegger e os motivos são vários. É evidente que a linguagem ganhou lugar de destaque na filosofia europeia já nas primeiras décadas do século xx, impulsionada pela linguística estruturalista. A “viragem linguística”, que não teria seduzido o Heidegger de Ser e Tempo — tê-la-ia descreditado como tentativa desesperada de garantir um espaço de transcendência para a filosofia, argumenta Richard Rorty (1993, p. 338) —, parece agora sensibilizá-lo de modo categórico. Em contraposição a Rorty, é possível argumentar que a linguagem aparece na obra do último Heidegger como uma questão histórica premente, como busca de resposta ao desafio que a teoria da informação, as novas tecnologias da informação e comunicação do seu tempo, impunham. Além disso, também é possível argumentar que a linguagem sempre foi um problema filosófico central na sua obra. A Destruktion da metafísica, que ele propõe já no começo da sua carreira, está associada a um pensar a linguagem, apesar de não se tratar nunca na sua obra de pensar sobre a linguagem, mas a partir dela, o que o distancia da linguística estruturalista de uma forma clara.

Esse é o sentido primeiro de reflexões como Língua de Tradição e Língua Técnica (1999) ou A Caminho da Linguagem (2008b): a redução da linguagem à troca de informação é a consumação da metafísica, a sua incapacidade de pensar o ser a partir de outra perspectiva que não a da “razão instrumental”. A constatação de uma colonização radical das possibilidades da linguagem pela tecnologia da informação é o problema que demandava, como ainda demanda, comprometimento intelectual. “O ponto decisivo para a nossa reflexão atém-se a isto: são as possibilidades técnicas da máquina que prescrevem como é que a língua pode e deve ainda ser língua” (Heidegger, 1999, p. 36). Ainda que as conclusões a que chega acerca deste problema não sejam as minhas, a questão que Heideggar propõe e as suas consequências são centrais e merecem a nossa atenção nos próximos parágrafos.

Para ele, trata-se, em todo o caso, de pensar o triunfo da teoria da informação e da cibernética não apenas como triunfo da automação, mas do pensar matemático, da sua vocação para antecipar o real e colocá-lo “à disposição”,  livre de toda a contingência e pronto para consumo. Como é que a matemática se torna central nos mais diversos campos da ciência moderna? A resposta é simples:

Os mathémata são as coisas na medida em que tomamos-lhes conhecimento como algo que já sabemos delas antecipadamente, o corpo como o corpóreo, a qualidade de planta da planta, a animalidade do animal, a coisidade da coisa, e assim por diante. Essa aprendizagem genuína é, assim, uma tomada extremamente peculiar, uma tomada em que aquele que toma apenas toma aquilo que já tem [Heidegger, 1996, p. 275].

Citando Max Plank, Heidegger sublinha de modo claro o que significa essa nova forma de pensar a linguagem e a realidade para a cultura ocidental: “real é aquilo que pode ser medido”. Segundo essa linha de raciocínio, “só aquilo que é calculável vale como ente” (Heidegger, 1999, p. 25, e  2003, p. 53). Mas o que é que um tal “saber antecipador”, esse impulso de colocar a natureza à disposição, de concebê-la como algo armazenado, significa especificamente? Significa “preparar continuamente os meios, sem nunca se preocupar com a determinação dos fins” (Heidegger, 1999. p. 28). Este é um tema que a escola de Frankfurt explorou sobejamente e, em alguns casos, como em Marcuse ou Habermas, sob directa influência heideggeriana.

A disponibilização de tudo, de seres humanos, natureza, cultura, pelo aparato tecnológico é o princípio de desvalorização de todas as coisas. E esse gesto só é factível mediante a aproximação entre técnica e matemática. A tecnologia moderna ensejaria a radicalização do niilismo — lado obscuro da própria cultura ocidental, da sua busca por um lugar de transcendência a partir do qual a verdade pudesse ser anunciada. Ao procurar uma perspectiva objectiva e distanciada a partir da qual a razão pudesse controlar o mundo, a cultura ocidental, a sua ciência e técnica, agem de modo a perdê-lo como algo substituível, descartável. Nos campos de concentração, os seres humanos perdiam os seus nomes e tornavam-se um número de chamada, uma quantidade que poderia ser armazenada, destruída, por um olhar técnico e distante. Para Heidegger, do mesmo modo que para Nietzsche, o niilismo significa a perfeita intercambiabilidade de todas as coisas, a ausência de valores últimos que possam reivindicar o nosso comprometimento político, existencial, afectivo, ético. No bojo do impulso tecnológico, a vida moderna torna-se agitação sem sentido. Agitação como forma de encobrir a ausência de sentido dessa vida,  ainda que possamos escutar e apreciar a satisfaction de Jagger e Richards como o lado irónico do nosso “tédio profundo”:

Quando se aceita, antes de mais, nesta submissão ao inevitável, a concepção corrente da técnica, adere-se então nos factos ao triunfo de um processo que se reduz a preparar continuamente os meios, sem nunca se preocupar com uma determinação dos fins [Heidegger, 1999, p.  28].

No nível em que se coloca esse tipo de ponderações, apenas constatamos que a tecnologia nos séculos xix e xx é um vector importante da “desvalorização de todos os valores”, do “niilismo passivo”, que ainda nos condenaria politicamente, existencialmente. Nesse âmbito, a crítica heideggeriana continuaria de facto aquela que nos ofereceu Nietzsche cem anos antes. A nossa reflexão, entretanto, é bem mais direccionada do que uma tentativa de pensar a tecnologia moderna de modo tão amplo. Trata-se de pensar em que medida as tecnologias da informação e comunicação podem ser concebidas como radicalização do niilismo cultural já identificado por Nietzsche como realização do sonho técnico implícito na metafísica ocidental. A partir desse corte, é possível dizer que Heidegger se propõe especificamente identificar o modo como as ciências da informação restringem aquilo que podemos entender e experienciar como comunicação e linguagem. O seu objectivo é  entender que restrição é essa e como é que ela nos afecta:

Ora é precisamente esta concepção corrente da língua que se vê não somente avivada pelo facto da dominação da técnica moderna, mas reforçada  e levada exclusivamente ao extremo. Ela reduz-se à proposição: a língua é informação [...] em que medida o que é próprio da técnica acaba por se impor à língua levando à sua transformação em pura informação, de tal maneira que provoca o homem, quer dizer, obriga-o a assegurar a energia natural e a colocá-la à sua disposição? [Heidegger, 1999, p. 33].

O surgimento da cibernética na década de 40 do século passado radicaliza uma tendência que marca a ciência moderna, cuja essência não seria dada pela experimentação científica, pela empiria, mas pelo matemático como forma axiomática de conhecimento, ou seja, como projecção do mundo físico, como “antecipação da essência das coisas” (Heidegger, 1996, p. 292). Retomemos algumas observações a esse respeito. Condição de superação da física aristotélica e de formulação da física newtoniana, a matemática ajudaria a constituir o espaço único onde todas as coisas seriam submetidas a um mesmo princípio de disponibilização. Pois, se na física aristotélica o lugar das coisas estava directamente relacionado com a sua essência, o pensamento matemático em Newton propõe um espaço vazio no qual os seres estariam submetidos às mesmas leis. Tal espaço já é matemático. No ensaio Ciência moderna, metafísica e matemática, Heidegger (1996, p. 292) afirma: “os corpos não têm qualidades, poderes e capacidades ocultos. Corpos naturais são agora apenas o que eles mostram ser, dentro desse âmbito projectado”. A essência matemática na ciência moderna é precisamente constituir este espaço de antecipação, um espaço original a partir do qual todas as coisas se equivalem como especificações contingentes de um mesmo princípio. O esforço de descobrir esse princípio é o desejo de se colocar num âmbito de transcendência em que a totalidade dos seres pode ser mobilizada. Que a linguagem seja objecto de matematização na teoria da informação, portanto, não é algo de menor importância:

O único carácter da língua que permanece na informação é a forma abstracta da escrita, que é transcrita nas fórmulas de uma álgebra lógica. A univocidade dos sinais e das fórmulas, que é necessariamente exigida por isto, assegura a possibilidade de uma comunicação certa e rápida [Heidegger, 1999, p. 36].

Se a matemática é de facto a essência da noção cibernética de linguagem, algumas consequências importantes podem ser inferidas. Pois o matemático é aquele saber antecipador em que todas as coisas passam a pertencer ao espaço único da disponibilização. A automação da linguagem, quintessência da teoria da informação, estrutura-se a partir de uma redução técnica, instrumental da linguagem, em que todos os essentes — independentemente de diferenças ontológicas regionais, como aquelas supostas entre o humano, o animal e o inanimado, por exemplo — são objecto de uma mesma mobilização, excitação. O niilismo aqui coincide com a radicalização do pensamento instrumental. Por isso mesmo, é possível agora para Heidegger (1999, p. 39):

Uma máquina executa o processo técnico de retroacção, definido como circuito de regulação, assim como — senão de maneira tecnicamente mais reflectida — o sistema de mensagens da língua humana. É por isso que a última etapa, se não for a primeira de todas as teorias técnicas, é explicar “que a língua não é uma capacidade reservada ao homem, mas uma capacidade que partilha até um certo grau com as máquinas que desenvolveu[3]”.

Uma tal proposição é possível se se admite que o próprio da língua está reduzido, isto é, limitado à produção de sinais, ao envio de mensagens (Heidegger, 1999, p. 39). Uma proposição tão radical acerca da tecnologia da informação e da comunicação coloca-nos, aparentemente, diante de um Heidegger isolado na Floresta Negra, recusando-se a partilhar os males da sociedade da informação em franca formação. Ora, esse tipo de atitude romântica não corresponde à realidade dos factos de um Heidegger que utiliza canais de televisão para falar sobre linguagem, por exemplo, nem à reflexão que ele propõe. Resisto, pois, à tentação dessa interpretação e do cenário de distopia que ela implica, mesmo constatando que o software de edição de texto em que escrevo este pequeno ensaio não pára de me propor, a cada nova palavra que tento escrever, alguma sugestão de texto que deveria acatar caso quisesse poupar tempo de digitação. Neste ponto é preciso reafirmar que a crítica heideggeriana ao conceito de linguagem proposto pela teoria da informação radica no seu niilismo implícito:

O “grande perigo” é que “a maré da revolução tecnológica que se aproxima na era atómica pode cativar, enfeitiçar, ofuscar e iludir o homem de tal modo que o pensar calculador pode algum dia ser aceite e praticado como único modo de pensar” [Heidegger apud Dreyfus, 1993, p. 305].

O niilismo da cultura tecnológica, portanto, constitui o problema acerca do qual teremos de pensar. Encarar de frente essa dificuldade pressuporia um salto para fora de tal cultura tecnológica? Em caso negativo, qual a forma de repensar um caminho para fora da “desvalorização de todos os valores”? Para Heidegger, a resposta a essas questões demandaria uma reflexão acerca da essência da linguagem, o que ele propõe no ensaio A Caminho da Linguagem (2008b). Se a linguagem está localizada na abertura  do ser humano para o mundo, é porque ela lhe é essencial. Se isto é verdade, é porque a linguagem, ela própria, tem uma essência, o que aqui significa dizer que aquilo que lhe é mais fundamental não pode ser deslocado para outra esfera que não a própria linguagem. Se tomássemos de empréstimo a noção de técnica que nos fornece Aristóteles, seria possível dizer que a condição de a linguagem não ser meramente um instrumento é que ela tenha em si o seu “princípio de produção”, isto é, a sua essência. Parece compreensível, portanto, que Heidegger (1996, p. 397) abra a sua reflexão acerca do fundamento da linguagem citando Novalis: “Precisamente o que é peculiar à linguagem — que ela está voltada, preocupa-se puramente consigo mesma — ninguém sabe”. Há-de rejeitar-se que o fundamento da linguagem seja o espírito, a expressão do pensamento de um sujeito. Sem esta recusa, a linguagem não teria uma essência; o seu princípio estaria colocado fora dela mesma: no espírito, no sujeito, no logos, etc.[4].

Heidegger não poderia trilhar esse último caminho por não aceitar a compreensão instrumental da linguagem, daquilo que ele acredita ser o traço distintivo do ser humano. Mas, exactamente por esse motivo, a sua reflexão não pode evitar, e não o pretende, uma grande dose de tautologia. Desde o princípio de A caminho da linguagem que se trata de “deixar que a linguagem fale sobre si própria, em si própria”. Pensar o fundamento, a essência da linguagem nos termos heideggerianos, implica uma série de pequenos deslocamentos que não podem ultrapassar o âmbito da linguagem: linguagem é fala; falar é dizer; dizer é mostrar, indicar:

A saga do dizer é mostrar. Em tudo que nos fala alguma coisa, em tudo que nos aclama, conclama e reclama, em tudo o que nos aguarda como o que não foi falado e também na fala que nós cumprimos, em tudo isso vigora o mostrar que deixa aparecer toda vigência e tira do brilho toda ausência [Heidegger, 2008b, p. 206].

A linguagem aqui busca o conhecimento do mundo num sentido específico: permitir que o ser venha a ser, e não colocá-lo à disposição de um sujeito. Ao recusar uma concepção expressiva, subjectivista da linguagem, busca-se afastar a sua essência da possibilidade de um transcendentalismo que resultaria, em última instância, num imperativo pelo controlo dos seres, no niilismo. Por isso mesmo, a essência da linguagem é finalmente entendida como “propriação” (ereignis), ou seja, como acontecimento especial em que dizemos o mundo num sentido bastante específico: deixando que ele permaneça no que lhe é mais próprio, deixando que o que é venha a ser e não o antecipando, colocando-o à disposição. Deixar o mais próprio falar é compreender a escuta como fundamento da fala, pois, se para Heidegger falar só é possível quando se ouve a língua, essa escuta também significa permitir que o que é próprio aconteça. A linguagem, portanto, não é algo nem objectivo nem subjectivo, mas a clareira que permite aos seres humanos terem acesso ao ser:

Falar é, por si mesmo, escutar. Falar é escutar a linguagem que falamos. O falar não é ao mesmo tempo mas antes uma escuta. Essa escuta da linguagem precede da maneira mais insuspeitada todas as demais escutas possíveis. Não falamos simplesmente a linguagem. Mas a partir da linguagem. Isso só nos é possível porque já sempre pertencemos à linguagem. O que nela escutamos? Escutamos a fala da linguagem [Heidegger, 2008b, p. 203].

O risco da concepção cibernética da linguagem é precisamente o empobrecimento dessa que é a sua dimensão essencial (Heidegger, 2003, p. 51). O risco dessa concepção é que o seu comprometimento total com a performance aja de modo a impedir-nos de escutar a linguagem, ou seja, de pensar. Perguntámos acima: qual a forma de repensar um caminho para fora da “desvalorização de todos os valores”? Uma resposta foi dada por Heidegger: retomando uma dimensão fundamental da língua que não resulte em instrumentalização do mundo, na sua disponibilização. Pois mais fundamental do que a possibilidade de transformar a linguagem em algo matemático, em algo que sirva à performance, à aceleração da existência, a língua busca sempre o que é próprio. Nos Conceitos Fundamentais da Metafísica (2006), essa afirmação coloca-se de uma forma distinta. Ali se afirma que a metafísica transforma a questão da verdade num impulso por certificação, eliminando as dubiedades que lhe são próprias em nome da disponibilização, do controlo dos seres. No entanto, a filosofia “é o contrário de todo o aquietamento e asseguramento” (Heidegger, 2003, p. 24). Neste ponto começamos a perceber o aceno heideggeriano para fora do niilismo da cultura tecnológica. Tomo aqui emprestadas duas análises desse aceno, ou seja, duas interpretações da alternativa heideggeriana ao niilismo, nomeadamente as de Dreyfus e Vattimo.

Essas duas interpretações coincidem num aspecto. Os dois filósofos concordam que para Heidegger o niilismo é a consequência imediata da matematização da linguagem, implícita na teoria da informação e de todo o aparato técnico que dela provém. A cultura técnica proporcionada por uma tal redução da possibilidade da linguagem e da comunicação é vista por Vattimo do seguinte modo:

Já agora, na sociedade de consumo, a contínua renovação (das roupas, dos utensílios, dos edifícios) é fisiologicamente requerida para a pura e simples sobrevivência do sistema; a novidade nada tem de “revolucionário” e perturbador, ela é o que permite que as coisas prossigam do mesmo modo [Vattimo, 2002, p. 12].

De modo semelhante, Dreyfus (1993, p. 306) afirma: “não somos sujeitos que usam o sistema de transporte, antes somos usados por ele para encher os aviões”.

O que Heidegger faz com o niilismo da nossa cultura, entretanto, é um assunto que diferencia as interpretações de Vattimo e Dreyfus. Vattimo acredita que a maioria dos comentadores de Heidegger se apressa demasiadamente a perceber nele um pensador marcado pela nostalgia do ser. Diante da “desvalorização de todos os valores supremos” de que fala Nietzsche, a saída que se apresentaria não seria a busca de novos valores fundamentais, mas o deixar-se carregar pelo fluxo da imanência, pela cultura pós-moderna. Eis uma possibilidade de exegese bastante polémica: Heidegger como pós-moderno. De uma perspectiva diametralmente oposta, Dreyfus propõe que o que marca o caminho heideggeriano para fora do niilismo é um certo misticismo, um refundamento dos valores supremos. “A filosofia de Heidegger, então, é perigosa porque ela procura convencer-nos de que apenas um deus — uma figura carismática ou outro evento culturalmente renovador — pode salvar-nos de num niilismo satisfeito” (Dreyfus, 1993, 314).

Evidentemente, o envolvimento de Heidegger com o nazismo dá uma força circunstancial ao argumento proposto por Dreyfus. De qualquer modo, as duas formas alternativas de pensar uma resposta à incitação tecnológica e ao niilismo resultam insatisfatórias. Não creio que pensar um Heidegger “pós-moderno” ou “messiânico” seja a perspectiva de interpretação mais compatível com a reflexão que ele propõe. Ora, é a abertura da linguagem, a escuta dessa abertura, que está aqui em questão. Como é que essa postulação nos levaria ao messias ou ao gozo da imanência? Afastando-nos dessas duas perspectivas de fechamento do argumento heideggeriano, é possível focar um problema específico de argumentação que aparece tanto no Língua de Tradição e Língua Técnica como em A Caminho da Linguagem. Ali aprendemos que a língua “não técnica”, o que quer que isso possa significar[5], se estrutura não apenas a partir do que dizemos, mas do que deixamos de dizer, não apenas a partir do exprimível, mas do inefável. Dreyfus vê aqui a ponta do misticismo. Heidegger, por outro lado, almeja resgatar a linguagem da compulsão mobilizadora da técnica, que tudo identifica e cataloga; busca uma dimensão poética, aberta, que caracterizaria a língua não técnica. E nesse ponto ele está bastante longe da sua Lógica de 1934, onde afirmava: “Como poesia [...] a linguagem permaneceria não realizada; assim, mais uma vez, ela não seria ela própria no seu ser total” (Heidegger, 2008a [1934], p. 67)[6]. Agora percebemos que essa não realização está relacionada com o não-dito, com essa diferença fundamental que está no coração do ser. Em A Caminho da Linguagem, em consonância com isso, ele propõe o seguinte: “o que é falado deriva de diversos modos do não-dito, quer sob a forma do não ainda falado ou do que tem de permanecer não-dito — no sentido de algo a que é negada a fala” (Heidegger, 1996, p. 407).

A tecnologia ameaça o ser humano ao procurar fechar essa abertura que a linguagem “não técnica” propiciaria. Os computadores não entendem a poesia, não podem lidar com a ambiguidade e a abertura da linguagem e é precisamente nesse ponto que eles seriam uma ameaça para o ser humano. Nas linhas finais de Língua de Tradição e Língua Técnica (1999, pp. 41--42) temos a seguinte conclusão:

Também importa examinar se face às forças da época industrial o ensinamento da língua materna não se torna outra coisa senão a simples transmissão de uma cultura geral por oposição à formação profissional. Era preciso considerar se este ensinamento da língua não mereceria ser, mais do que uma formação, uma meditação sobre o perigo que ameaça a língua, quer dizer, a relação do homem com a língua. Ora uma tal meditação revelaria ao mesmo tempo a dimensão salvadora que se abriga no segredo da língua, na medida em que é ela que sempre nos conduz de um só golpe à proximidade do inefável e do inexprimível.

O ponto é o seguinte: apesar de se ter tornado um truísmo que a linguagem científica é pautada pelo rigor e pela univocidade, não podemos afirmar de modo aligeirado que a ciência e a técnica não sejam susceptíveis das mesmas tensões que produzem a “língua da tradição”. Talvez precisemos de começar por questionar o privilégio que a fala obtém quando o texto heideggeriano propõe indicar a essência da linguagem. “Linguagem: por ela queremos dizer fala, algo que sabemos como uma actividade que nos é própria, uma actividade que temos a confiança de poder performar” (Heidegger, 1996, p. 400). A postulação recorrente de que a linguagem é fala, um dizer que indica, deixa de lado âmbitos não sonoros da linguagem, a exemplo da escrita, ou onde um carácter de designação não é relevante, como ocorre na música. No primeiro caso, porquê o privilégio do som sobre o traço? Toda a crítica derridiana ao fonocentrismo, ao logocentrismo que este alberga, ao privilégio de uma linguagem “não técnica”, ocorre-nos aqui. No segundo caso, porquê privilegiar o acto de nomear coisas em detrimento de uma linguagem que não se direcciona prioritariamente para o logos? Aqui também a ponderação derridiana de que não há logos em que a técnica não esteja implicada, e vice-versa, parece de extrema importância.

 Toda a tecnologia é memória; e não há memória que não seja técnica, que não se retese diante do exprimível e do inexprimível. Bernard Stiegler (1994 e 1996), seguindo Derrida, afirma que a abertura do ser humano ao mundo é necessariamente técnica, que toda a técnica é ao mesmo tempo condição de ocultação e revelação das nossas possibilidades ontológicas. A técnica é, portanto, ambígua e produz ambiguidades mesmo quando deseja capturar e colocar de prontidão o mundo em categorias inequívocas, rapidamente mobilizáveis e automatizáveis.

Numa metáfora que se tornou conhecida, Heidegger afirma que a linguagem é a morada do ser e isso parece-nos exacto. Mas o que é a morada? O lugar onde permanecemos ao abrigo das intempéries do mundo? Ou o lugar donde sempre partimos? Em “De uma longa conversa entre um japonês e um pensador”, a problematização da tradução na filosofia leva-nos a crer que essa segunda possibilidade de pensar a morada e a linguagem é negligenciada. “Há algum tempo, com muita timidez, chamei à linguagem a casa do ser. Se, pela linguagem, o homem mora na reivindicação do ser, então nós, europeus, pelos vistos, moramos numa casa totalmente diferente da oriental” (Heidegger, 2008b, p. 74). Alternativamente, poderíamos dizer que a linguagem é a soleira em que o ser e o mundo se encontram. A questão da linguagem também é a da constituição de mundos novos, do ainda não--dito e não-pensado, pois ela é sempre também um buscar. Esse elemento constituidor de mundo da linguagem é, a meu ver, esquecido por Heidegger, preocupado que está em pensar o acto nomeador da linguagem, o acto mediante o qual ela apresenta o próprio do mundo e das coisas, em que ela diz “eis!”. Mas falar de tal elemento constituidor é falar a respeito da técnica.

 Toda a fala é técnica e, enquanto tal, colocada diante das perspectivas de ocultar ou revelar. Mas é precisamente esse espaço tenso, donde as ambiguidades entre o exprimível e inexprimível brotam, que constitui a possibilidade política da tecnologia. E foi exatamente por esse motivo que abrimos o presente texto defendendo que pensar a democratização das tecnologias de informação e comunicação significaria pensar a sua apropriação — o que aqui significa dizer: é necessário que nos coloquemos de modo decisivo dentro do espaço dessa tensão. Isto equivale a dizer que é preciso manter abertos os “grandes riscos” e oportunidades dessa abertura pela participação plural nos processos de democratização da tecnologia.

 

Democracia radical e tecnologia

Ernesto Laclau e Chantall Mouffe popularizaram a expressão “democracia radical”, procurando indicar uma perspectiva de ampliar a democracia representativa a partir do reconhecimento do carácter agonístico do político. Para ambos, a democracia representativa estaria alicerçada sobre princípios que precisariam de ser questionados. Ou seja, a suposição de que o processo político deva promover a acomodação dos interesses de indivíduos livres, a busca pela transparência plena, a crença na racionalidade das decisões, constituem princípios que impedem o reconhecimento do carácter conflituoso que funda o político. Isso significa dizer que a base da democracia é o antagonismo e a sua dinâmica seria marcada pela luta pela hegemonia entre os grupos sociais. A partir dessa perspectiva, é adequado dizer: “Contrariamente ao modelo de ‘democracia deliberativa’”, o modelo de “pluralismo agonístico” assevera que a tarefa primária da política democrática não é eliminar as paixões nem relegá-las à esfera privada para tornar possível o consenso racional, mas para mobilizar aquelas paixões em direcção à promoção do desígnio democrático. Longe de pôr em perigo a democracia, a confrontação agonística é sua condição de existência” (Mouffe, 2003, p. 16).

Acredito que é a partir dessa perspectiva que precisamos de pensar a democracia digital. Distintamente das políticas de inclusão social, que sempre cancelam aquilo que é precisamente próprio do político, ou seja, o conflito, a diversidade de perspectivas, a ideia de “democracia digital” aqui proposta empenhar-se-ia em reconhecer a diferença como elemento fundamental da apropriação tecnológica. Esse reconhecimento baseia-se necessariamente numa recusa do fechamento instrumentalizador da linguagem e na manutenção da sua abertura semântica. Retomando um conteúdo já trabalhado neste artigo, a ideia de democracia radical impede-nos precisamente de operar sob a perspectiva transcendente na qual o matemático opera, acenando, por um lado, com promessas de consenso e, por outro, constatando o próprio niilismo. Esta recusa  lança-nos num terreno político em que a noção de apropriação é central. Assim, é preciso que não apenas tenhamos acesso às tecnologias, mas que possamos apropriá-las — isto é, torna-se necessário pensar radicalmente os nossos envolvimentos tecnológicos como parte desse processo. Não se trata, portanto, apenas de propiciar as condições de um acesso competente ao ciberespaço, mas de perceber que as TICs precisam de ser social, filosófica e politicamente ocupadas. O que equivale a dizer: é preciso pensar as TICs como espaço técnico a ser constituído. Esse é o modo como se pode responder ao desafio heideggeriano de oferecer uma alternativa a um tipo de pensamento que vê o mundo como algo passível de armazenagem, como conjunto de coisas a serem disponibilizadas. Em contraposição ao princípio distributivo que orienta a noção de inclusão digital, ou seja, em oposição a uma forma de conceber a própria tecnologia como à disposição e a ser partilhado, a ideia de democracia digital impele--nos a  questionar o próprio modelo a partir do qual um determinado padrão tecnológico é produzido:

Ao supor estático este “estoque” de bens, assume-se de modo implícito o próprio modelo de produção, ainda que se conteste a lógica mediante a qual os bens são distribuídos. Mas isso significa deixar de questionar que algumas pessoas possam se entregar a um trabalho aviltante em sua falta de sentido, digamos digitar informações em alta velocidade [...], ou atender chamadas de um call center, ainda que se possa problematizar a remuneração que esse tipo de trabalhador recebe. Por sempre tomar o mundo como dado, a justiça distributiva é pouco sensível aos contextos institucionais em que as desigualdades são produzidas. Essas desigualdades são tratadas como se não fossem o produto de relações políticas e históricas, portanto, como se não brotassem de um contexto social específico, com relações de poder específicas [Ferreira e Rocha, 2009a].

A partir dessa constatação, devemos também afirmar que aquilo que se oferece convencionalmente como espaço tecnológico legítimo, dentro do qual haveremos de aceder às virtudes e vantagens da sociedade de informação, representa apenas o discurso hegemónico de grupos que conseguiram viabilizar um determinado projecto político. Por isso mesmo, é pertinente afirmar:

a redução do problema da informação à performance técnica nos dá a entender que, grosso modo, quaisquer que sejam os nossos problemas, eles estariam solucionados com a posse de um computador de última geração e acesso à banda larga. Sob a suposta neutralidade desse meio técnico, no entanto, as decisões políticas são tomadas à nossa revelia, sem que sejamos implicados no processo de decisão acerca da internet que gostaríamos de ter. Chris Sandwig (2009) considera que a manipulação do tráfego na internet por grandes corporações tem implicações directas naquilo a que chamaríamos democratização das tecnologias de informação e comunicação. Sem que o usuário perceba, o seu acesso a conteúdos é diuturnamente controlado através do “bloqueio de endereços”, “bloqueio de protocolo ou de porta”, “filtragem de conteúdo” e “priorização e condicionamento” de tráfego. Atenhamo-nos apenas nesse último aspecto. Por trás de um suposto imperativo da performance, da celeridade do sistema, podem esconder-se interesses privados e não negociados amplamente. “Hoje em dia a engenharia de redes tem segregado o tráfego do VoIP na Web para prover, por exemplo, serviços privados de telefonia a universidades e empresas” (Sandwig, 2009, p. 9). Se consideramos, além disso, que o bloqueio de conteúdos é uma realidade não apenas em países sob regime autoritário, mas que também está presente nas estratégias corporativas da indústria da comunicação, por exemplo, entenderemos que a redução da informação à sua dimensão formal, não significativa, é um mito que precisa de ser analisado. Também por isso, poderíamos dizer que ser incluído não significa participar de modo democrático na sociedade da informação [Ferreira e Rocha, 2009].

O que torna as tecnologias de informação um espaço político é a constatação de que, enquanto técnica, elas constituem um espaço tenso, ambíguo, passível de uma pluralidade de apropriações entre os extremos de uma ocultação radical da verdade, o esquecimento do ser, da sua abertura para e pela linguagem, e o seu desvelamento. É preciso pensar que, como espaço tenso, agónico, político, as tecnologias demandam movimentos contra-hegemónicos que restaurem a produtividade do conflito, a possibilidade de pensar diferente do “programado”. O niilismo só é inevitável quando temos como referência única o luto pela “desvalorização de valores supremos”, a morte de Deus, ou qualquer dos seus substitutos. Encarar de frente a perspectiva técnica do niilismo é olhar de frente a tecnologia como espaço político, espaço de conflito e de um engajamento que só é possível a partir da diferença.

 

Bibliografia

Derrida, J. ( 1997), A Farmácia de Platão, São Paulo, Editora Iluminuras.

Dreyfus, H. (1993), “Heidegger on the connection between nihilism, art, technology, and politics”. In C. B. Guignon (ed.), The Cambridge Companion to Heidegger, Nova Iorque, The Cambridge University Press, pp. 289-316.

Ferreira, J., e Rocha, M. E. da M. (2009), “Democracia digital: para além da idéia de justiça distributiva”. Comunicação apresentada no Seminário Internacional: Informação, Poder e Política: Novas Mediações Tecnológicas e Institucionais”, Rio de Janeiro.

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Stiegler, B. (1994), La techique et le temps, t. 1, La faute d’Epimethée, Paris, Galilée.

Stiegler, B. (1996), La techique et le temps, t. 2, La désorientation, Paris, Galilée.

Vattimo, G. (2002),  O Fim da Modernidade: Niilismo e Hermenêutica na Cultura Pós--Moderna, São Paulo, Martins Fontes.

Warschauer, M. (2003), Tecnologia e Inclusão Social. A Exclusão Digital em Debate, São Paulo, Editora SENAC.

 

Notas

[1] Lan houses são estabelecimentos privados que comercializam o acesso a computadores pessoais, internet, impressoras e scanners, à semelhança dos cyber cafés.

[2] http://www.cetic.br/usuarios/tic/2008/index.htm (acedido em 13-4-2009).

[3] Heidegger cita aqui Nobert Wiener (1952), Sprache und Dichtung, Frankfurt, Kösel-Verlag.

[4] Podemos acrescentar acerca de uma interpretação subjectivista da linguagem a crítica que, de resto, faz à ideia moderna de subjectividade: “Na busca da certeza matemática, aquilo que se procura é a segurança do homem na natureza, no sensível; na busca pela certeza da salvação, o que é procurado é a segurança do homem no mundo supra-sensível. A origem dessa dicotomia é então a mutação da verdade em certeza, à qual corresponde a prioridade dada à entidade homem no sentido do ego cogito, a sua ascensão à posição de sujeito. Daí por diante, a natureza torna-se um objecto (ob-jectum), o objecto sendo nada mais que “aquilo que é lançado contra mim” (Heidegger, 2003, p. 14).

[5] Aprendemos com Derrida (1997, por exemplo) que toda a língua é técnica e que qualquer pretensão a negar-lhe essa qualidade é cair  nas oposições injustificadas que sustentam a metafísica.

[6] Podemos comparar essas linhas com uma observação de Heidegger (2008b, p. 24) em que ele considera a relação entre a fala quotidiana e a poesia a partir de uma reflexão sobre um poema de Georg Trakl: “Para os mortais, falar é evocar pelo nome, é chamar, a partir da simplicidade da diferença, coisa e mundo para vir. Na fala dos mortais, o dito do poema é puro chamado. Poesia nunca é propriamente um modo (melos) mais elevado da linguagem cotidiana. Ao contrário. É a fala cotidiana que consiste num poema esquecido e desgastado, que quase não mais ressoa.”

 

[**] O presente texto é uma versão ampliada de um ensaio produzido para o livro Conhecimento, Desenvolvimento e Educação Popular: Diálogos entre Saberes e Experiências (a ser publicado pela editora da UFPE). Agradeço a Maria Eduarda da Mota Rocha os generosos comentários feitos numa primeira versão deste ensaio.

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