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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.196 Lisboa  2010

 

José Eduardo Franco e Maria Isabel Morán Cabanas, O Padre António Vieira e as Mulheres — O Mito Barroco do Universo Feminino, Porto, Campo das Letras, 2008, 233 páginas.

 

Susana Mourato Alves

CLEPUL — Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

 

Durante 2008 comemorou-se o iv centenário do nascimento do padre António Vieira. Muitos foram os trabalhos que surgiram no âmbito da “celebração da efeméride”, ou de “projectos de pesquisa e análise crítica”, como nos diz Pinharanda Gomes a propósito do livro que hoje aqui apresentamos. Não por desprimor para com os primeiros, mas pelo peso dos segundos, vale a pena revisitar um dos títulos sonantes publicados no ano vieirino: O Padre António Vieira e as Mulheres — O Mito Barroco do Universo Feminino.

De facto, uma das provas de que este não foi tão-só para assinalar a data prende-se com a atribuição do Prémio Monografia, da Sociedade Histórica da Independência de Portugal, aos seus autores, José Eduardo Franco e Maria Isabel Morán Cabanas. Tal distinção é concedida anualmente a textos de conteúdo específico e em 2008, por ocasião de Vieira, pretendia galardoar um trabalho que se inscrevesse no mote “Padre António Vieira — a dimensão cultural da sua mensagem”. Para além do reconhecimento da SHIP, o trabalho meritório dos dois autores, com vasta e consistente bibliografia publicada na área dos estudos vieirinos, revela-nos que estamos perante investigação séria, prolongada e de fundações enraizadas no conhecimento sólido da obra de um dos maiores vultos da língua portuguesa.

O Padre António Vieira e as Mulheres, de título aparentemente desconcertante, quase a roçar o desaforo, é o catálogo fundamentado das figuras femininas, fictícias ou reais, inscritas no sermonário vieirino e organizadas em perspectiva contrastante, à luz de duas entidades bíblicas fundamentais da estética barroca: Eva, mulher-tentação, e Maria, mulher-redenção. Não é, pois, nem um indiscreto estudo sobre Vieira, nem um simples levantamento sistemático dos passos em que o padre jesuíta se reporta a figuras femininas. Antes é um documento fundamentado que os seus autores inseriram desde logo, em palavras introdutórias, na necessidade do estudo dos sermonários com o intento da obtenção de “um maior conhecimento das mentalidades, atitudes, doutrinas e comportamentos que dominam a sociedade de uma época determinada” (p. 15).

Do pecado para a salvação, da demonização do elemento feminino para a manifestação da sua virtude, José Eduardo Franco e Maria Isabel Morán Cabanas revelam essa faceta bipolar da mulher no pensamento barroco da época de Vieira: a mulher, um ser inconstante por natureza.

A astúcia, o egoísmo, a hipocrisia, a lascívia, faltas terríveis do género feminino, foram as que, materializadas em Eva, a primeira das mulheres, a primeira e fatal pecadora, impeliram o homem para a queda adâmica. Nesta perspectiva, a chamada à parenética vieirense de referências a comportamentos e figuras femininas apela, segundo os autores, à função moralizante de tais exemplos. A mulher, em oposição ao homem, pertence ao interior, à casa, ao convento; o homem ao exterior, à mobilidade, à liderança. Daí que a mulher seja considerada uma “edificação” de Deus, ao contrário do homem, que foi uma “criação”. Deste modo, por ter sido edificada, e não criada, é um “bem imóvel”, a que se deverá restringir a acção. Esta perspectiva misógina, que procura limitar a movimentação feminina, prende-se com a necessidade de evitar a proliferação do pecado, estendido da mulher, maculada desde a sua origem, ao homem. Neste sentido, deve ficar em casa, por um lado, para preservar a sua honra, por outro, para garantir a harmonia social. Mas, por sinal, tem continuamente “apetite” em sair e, por este motivo, deseja “assemelhar-se ao homem”, mais uma vez demonstrando a sua apetência para a transgressão. E mesmo no interior do lar, ou no interior do convento, Vieira aponta para o perigo da vaidade, por meio da presença de espelhos nos quartos das senhoras. É que, segundo a percepção da época, o espelho era um dos meios que o demónio escolhia para manipular o mundo feminino, pelo que havia a necessidade de evitar o culto das aparências e o excesso de luxo, tão característicos da época barroca e a que as senhoras estavam bem mais sujeitas, por trazerem sempre consigo a raiz primordial de todos os males.

Todavia, à luxúria, à devassidão, à falta de humildade — “vivemos como se fôramos imortais e não houvesse eternidade” (p. 110) — opõe-se um caminho de virtude que pode ser trilhado. Através da negação do excesso e do cultivo da modéstia e do recato, a mulher poderá sempre fazer um percurso do mal para o bem, tal como o fizera outrora a mais pecadora das mulheres bíblicas — Maria Madalena. A figura arrependida de Madalena, a confissão, a humildade, a oração, a devoção ao rosário mariano, levam a mulher leviana ao encontro do exemplo da Virgem Mãe, redentora de todos os vícios.

E, se estes são os meios pelos quais o género feminino se pode redimir da sua condição primordial, mulheres houve que através destes merecem o devido destaque no sermonário de Vieira, entre elas mártires, santas e até rainhas, ainda que esta coragem feminina de escolher o caminho da virtude seja muitas vezes vista como atitude “varonil”…

Porém, Vieira aborda também no seu sermonário uma propriedade natural da mulher que a destaca na virtude do seu ser à partida maculado: o dom da maternidade. De facto, é através desta capacidade exclusivamente feminina que as descendentes de Eva, em certa medida, surgem como entidade superior ao homem, segundo os autores da monografia recenseada. O homem foi feito para se tornar pó, a mulher para dar lugar a outro ser. Nesta perspectiva, “por meio do acto de parir experimenta-se a passagem do não ser ao ser, encontrando-se aí o verdadeiro resumo de toda a Criação”, pois “por meio da maternidade atinge-se a imortalidade, já que a sucessão significa uma segunda vida ou uma antecipada ressurreição” (p. 149).

Nestes termos, em nossa opinião, Franco e Cabanas, ao passarem da análise da mulher-pecado para a análise da mulher-redenção ao longo do seu livro, deixam transparecer que Vieira não pretende ser apenas avesso à natureza da mulher, mas denota igualmente que de grandes faculdades está o género feminino dotado: “O estudo comparativo serviu-nos quer para confirmar, quer para relativizar estereótipos tocantes à concepção do universo feminino” (p. 203). Se é certo que “a visão androcêntrica domina a oratória sagrada de Setecentos” (p. 193), repetem os autores várias vezes ao longo deste estudo, e se é certo que Vieira plasmou nos seus escritos essa percepção misógina e paradoxal que se vivia em plena época barroca (e desde há muitos séculos), é também de notar que o jesuíta era um homem do seu tempo e que, mesmo assim, deixou na sua obra uma aversão às mulheres menos acérrima do que muitos.

Este completo catálogo vieirino, valorizado também com incursões a textos de autores que articularam este mesmo assunto explorado por Vieira e a referências plásticas da mulher nas artes, é um livro a ter em conta pela sua tese no âmbito dos estudos vieirinos e pela cadência notável do seu raciocínio.

Depois da sua edição pela Editora Campo das Letras (Porto) e pela Arké (São Paulo) em 2008, encontra-se agora no prelo, para sair ainda em 2010, a tradução italiana pela Aracne Editrice (Lanuvio), confirmando assim que esta é uma publicação a que vale a pena voltar dois anos após o seu lançamento.

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