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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.196 Lisboa  2010

 

Ronald Dworkin, Taking Rights Seriously, Londres, Duckworth, 2009 [1977], 371 páginas.

 

Lécia António Vicente

ICS/doutoranda da Faculdade de Direito da UNL

 

Ronald Dworkin é, actualmente, o Frank Henry Sommer Professor of Law da New York University School of Law e emeritus professor of Jurisprudence na University College London Faculty of Laws. Com esta obra, o autor converteu-se numa referência da filosofia do direito e da filosofia política. Os seus escritos mantêm-se simultaneamente próximos de disciplinas como a sociologia jurídica e a ciência política. Na verdade, o autor cria uma teoria sociológica do direito assente, por sua vez, numa teoria dos princípios, cuja concretização facilmente nos transporta para a teoria weberiana sobre o método do conhecimento e os seus modelos de racionalização.

Neste livro, as ideias de Dworkin fluem em parágrafos geométricos, perpassados pela clareza das suas ideias. Taking Rights Seriously foi já considerado o seu mais importante trabalho, determinando o compasso da filosofia do direito e da filosofia política, à semelhança do que acontecera com a obra de H. L. A. Hart — The Concept of Law. O livro constitui, por isso, um contributo sofisticado — mas acessível — e incontornável no contexto da delimitação política dos direitos do indivíduo numa era admitidamente pós-estadualista.

Trata-se de uma compilação de escritos elaborados por Dworkin e publicados separadamente na University of Chicago Law Review, no Yale Law Journal, na Harvard Law Review e na New York Review of Books entre 1967 e 1974. Consequentemente, em determinados momentos parecem repetir-se ou, por vezes, deles decorre uma certa falta de unidade, resultante de diferenças de ênfase e detalhe, como é, aliás, reconhecido pelo próprio autor. Porém, existe uma linha de argumentação que atravessa este conjunto de escritos: a de que a delimitação do direito da sua utilidade, do papel dos juízes na sua apreciação e adjudicação, dos termos em que deve ser interpretada a Constituição — designadamente num contexto em que a lei não constrói qualquer previsão e as decisões judiciais anteriores não apresentam nenhuma solução para os casos (hard cases) —, daquela que deve ser a actuação do indivíduo, titular de uma série de direitos políticos, civis, económicos, culturais e humanos, para proteger esses direitos fundamentais — porventura através da exaltação da consciência de si, legitimando, por essa via, a sua desobediência à lei — não pode ser separada da moral nem dos princípios.

Ao lermos a obra de Dworkin, apercebemo-nos de como invoca princípios morais de uma dimensão tão profunda, extraídos de um conceito abstracto de igualdade que o autor designa por “igual consideração e respeito” (equal concern and respect) e a partir do qual constrói uma teoria geral dos direitos (rights’ thesis).

Em democracia os números contam. Mas, segundo Dworkin, a democracia representa mais do que a maioria. Deve implicar a instituição de uma parceria entre o cidadão e o Estado que incite esse Estado a reconhecê-lo como seu cidadão. Por seu lado, o Estado deve demonstrar por cada cidadão igual consideração e respeito. Aqui reside o ponto cardinal da democracia: certas decisões devem ser tomadas individualmente, mesmo que isso implique o afastamento dos objectivos colectivos que normalmente fundam as decisões políticas. Nesta obra, ao princípio da igualdade é atribuída a natureza de axioma.

Com esta teoria liberal do direito, o autor cria um discurso de ataque às teses utilitaristas e às concepções positivistas de Bentham, Austin e, em especial, Hart, colocando no centro das decisões políticas e da consideração da lei para a decisão de casos concretos os direitos do indivíduo. Na verdade, faz muito mais do que isso. Quando transposta para o nosso contexto, a sua tese abala facilmente os valores tradicionais republicanos europeus de consideração pela res publica. Os defensores de teses comunitaristas norte--americanos têm-se oposto às suas teses liberais, acusando-o de ignorar a existência de interesses comunitários ou de subverter o conceito de justiça, promovendo um individualismo radicalmente desapegado da comunidade e da cultura.

Contudo, Dworkin apresenta múltiplos argumentos para as posições que assume.

Recusa a separação entre o direito e a moralidade e a oposição entre regras e princípios.

Afirma que os princípios — entendidos stricto sensu — são normas que devem ser observadas, não porque permitam alcançar ou garantam uma situação económica, política ou social desejada ou desejável (à semelhança das directrizes políticas ou policies), mas porque constituem requisitos de justiça, equidade ou de uma outra dimensão da moralidade. Na prática, são normas imperativas na decisão dos casos concretos. O autor supera, deste modo, as invocações de indeterminação normativa, que frequentemente justificam a atribuição de um poder discricionário aos juízes.

Rejeita a ideia hartiana de que em todos os sistemas legais existe uma regra de reconhecimento (recognition rule), que constitui um teste fundamental às normas, para delas extrair as respectivas regras aplicáveis.

É de opinião que o indivíduo é titular de direitos políticos e morais, para além dos que se encontram expressamente previstos na lei. E que pode exercê-los como “trunfos” contra o Estado, porque anteriores à constituição deste, pelo que devem ser privilegiados e garantidos em detrimento do bem--estar comum e do conforto da maioria.

Esta é também uma teoria de decisão de casos judiciais. E Dworkin aplica-a aos casos sobre os quais recaiu o julgamento do Supreme Court, sobre a tramitação do processo penal, a discriminação ou a homossexualidade, nos contextos moral, político e social norte-americanos.

O ponto nevrálgico da sua crítica ao positivismo situa-se na constatação de que o respeito pelos princípios é vinculativo nas decisões judiciais. Consequentemente, adopta uma posição antiarquimediana, na medida em que recusa a existência de um ponto fixo, situado fora da moral comum, por meio do qual seja possível alavancar uma resposta para uma questão colocada no contexto de um debate normativo ou da controvérsia na concretização dos direitos.

Todavia, esta não é uma teoria do procedimento. O autor desenvolve mesmo um modelo interpretativo de decisão assente numa dinâmica institucional. Para esse fim, parte de uma metáfora — Hércules, o juiz. Trata-se de uma figura ideal, dotada de superpoderes, porque, inserido na realidade histórica de uma comunidade, com a qual partilha a concepção de moralidade, avalia sozinho os princípios fundamentais dessa comunidade, partindo de um processo de decisão elaborado por ele próprio.

A interpretação que empreende concebe o direito como um todo (law as integrity) ou como uma rede sem costuras (seamless web). Isto é, o juiz, ao analisar as normas aplicáveis, deverá tentar perceber qual é a sua melhor justificação do ponto de vista da moralidade política, empreendendo um constante diálogo com a história. Dworkin revela bem a convergência das suas ideias com a hermenêutica de Gadamer e de Ricoeur. Para ele, este modelo de interpretação permitirá alcançar sempre uma única resposta correcta (the right answer thesis). Hércules não tem de se preocupar com a textura aberta (open texture) da lei nem com as franjas que possa evidenciar, uma vez que para a resolução dos casos difíceis dispõe sempre de um catálogo de princípios que lhe permitem resolver qualquer dilema ético--moral.

O próprio autor reconhece, porém, que a invocação de princípios não é consensual. Assim, a adjudicação também é política. Mais, Dworkin não delimita claramente a legitimidade de Hércules para tomar tais decisões nem esclarece convincentemente se o seu dever de resolver um caso em conformidade com a teoria mais sólida do direito (duty to decide by the soundest theory of law) restringirá verdadeiramente o juiz  de interpretar a lei e aplicar o direito, em consonância com a sua concepção de moralidade política.

Este livro redimensiona o debate sobre o positivismo, o interpretativismo, o utilitarismo económico e as teses jusnaturalistas. Mas o seu maior contributo reside no tratamento original do princípio da igualdade e na reflexão sobre a democracia. Esta não pode alhear-se da noção da justiça. E, para estabelecer as fundações da sua teoria, o autor recorre à teoria da justiça de Rawls para demonstrar que, independentemente da nossa intuição, subjacente à celebração de um contrato social prevalece o princípio da igualdade. Com Dworkin, este princípio metamorfoseia-se numa matriz conciliadora a partir da qual é possível extrair as liberdades do outro.

Todas as teorias do direito almejam construir um esquema de normas. Mas não poderá uma norma, no contexto da teoria deste autor, constituir igualmente uma regra de reconhecimento simplesmente porque dela também decorre um critério para identificar a lei? Padece ou não o autor de uma abstracção excessiva ao elevar os princípios a um plano destacado de tudo o resto? É ou não o autor um “ouriço intelectual” (intellectual hedgehog) que move toda a sua obra à volta de um único princípio?

A construção de um ideal de comunidade de princípios é meritória. Esta comunidade reconhecerá o princípio da igualdade como estruturante e norteador da sua conduta, porque manifesta a pretensão de que lhe sejam apresentadas as respostas correctas, obtidas no âmbito da sua moralidade política. Aqui reside o apelo do livro e a elegância dos argumentos. Mas a concepção de moralidade política apresenta diversas matizes e isso afasta--nos de uma crença cândida ou panglossiana, partilhada por muitos dworkinianos, na concretização desta tese de e sobre direitos por juízes hercúleos.

De qualquer forma, não há dúvida de que se trata de uma obra sedutora e desafiante.

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