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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.196 Lisboa  2010

 

Nathalie Heinich, Être ecrivain. Création et identité, Paris, Éditions La Découverte, 2000, 368 páginas.

 

Teresa Duarte Martinho

Observatório das Actividades Culturais (OAC)

 

 Être ecrivain é um livro que contribui para ampliar o conhecimento de um grupo particular de autores, os escritores, e que desenvolve o interesse da socióloga Nathalie Heinich por questões relacionadas com a identidade profissional e o estatuto do autor. A obra contém uma abordagem mais invulgar na área da pesquisa sociológica e, por isso, como a própria autora anuncia, pode ser vista como distinta e complementar do que designa por “sociologia estatística” da profissão de escritor — esta com foco na caracterização sociodemográfica e na análise das condições de vida e da prática profissional.

A investigação de que resultou Être ecrivain decorreu em 1989-1990 e assentou na realização de entrevistas a cerca de 30 escritores, num conjunto diversificado quanto a características sociográficas, género praticado, número de publicações e grau de notoriedade. As perguntas abordaram dimensões como a relação com o estatuto (representações associadas à palavra “escritor”), com o meio literário (pares, editores, críticos) e com os outros (da família aos leitores), outras actividades e projectos futuros. As questões foram enunciadas de modo a obter, por parte dos entrevistados, um registo narrativo, centrando-se na descrição de experiências por si vividas, e não normativo, em torno do que entendiam dever ser uma experiência.

“Quando lhe perguntam o que faz na vida, o que é que responde?” — esta pergunta inicial revelou-se especialmente rica, segundo Heinich, pelos desenvolvimentos que gerou. Ela é já demonstrativa do empreendimento que anima este livro: compreender em que condições pode alguém dizer “eu sou escritor”, o que entende por tal, o que torna possível que seja entendido pelos outros como escritor. E, tendo em conta o objectivo implícito de perceber onde reside a especificidade da actividade da escrita e da criação em geral, importava, de acordo com Heinich, não apenas descrever a multiplicidade de posições a partir da maior diversidade de casos, mas também “explicitar a sua coerência interna” (Heinich, 2000, p. 12). A autora procurou, pois, reconstituir lógicas, e não encontrar explicações que servissem para desmistificar ou negar supostas ilusões dos entrevistados. Refira--se que para a especificidade desta análise contribui muito a importância dada às representações, pela sua função de poderoso “agenciador da experiência” e “motor para a acção”, constituindo, portanto, um elemento essencial na definição de uma pessoa, a par da sua situação real (Heinich, 2000, p. 14).

O primeiro capítulo deste livro é dedicado a mostrar a maior complexidade dos trabalhos na área da criação, irredutíveis a um funcionamento que opõe, designadamente, “profissionalismo” e “diletantismo”. Com efeito, as várias maneiras de ser escritor denotam diferentes relações com recursos tão essenciais como o tempo e o dinheiro. Considere-se, por exemplo, a pluriactividade ao longo da vida ou numa época em que marca alguns casos de escritores entrevistados: se para alguns autores, os que a criticam, é vista como falta de exigência e mesmo desinvestimento na escrita, para outros significa o caminho que lhes permite a não dependência do trabalho literário e o evitar dos constrangimentos que associam a tal situação.

Se múltiplos são os modos de ser escritor, em todos a tendência para a indeterminação surge, de acordo com a autora, como o factor mais constitutivo da sua identidade, levantando Heinich as seguintes interrogações: “deve-se considerá-la [a indeterminação] um indicador de uma falta de racionalidade das condutas, levantando obstáculos ao investigador, que deveria então racionalizá-las e reduzi-las a determinações ocultas? Ou deve considerar-se a indeterminação dotada da sua própria racionalidade, ou seja, de sentido e coerência?” (Heinich, 2000, p. 62). Fazendo sua a segunda opção, Heinich percorre os vários níveis onde paira a indeterminação, entre os quais figuram os seguintes:(i) tornar-se escritor: não havendo uma formação específica para ser escritor, as fontes da competência para a escrita literária (uma disposição interior ou um trabalho pessoal?) são de difícil objectivação; (ii) ser reconhecido como escritor: a “prova” da publicação (bem como a sua quantidade e regularidade) não é um critério de apuramento de um “verdadeiro” ou “grande” escritor; (iii) acabamento da obra: à incerteza do momento em que a obra começa, acrescenta-se a indeterminação quanto à altura em que a obra “está pronta” — o que leva a autora a ver no escritor, ao trabalhar na elaboração da sua obra, tanto a figura do jogador como a do árbitro.

A propensão para a indeterminação representa uma consequência directa do regime vocacional, o qual caracteriza, segundo Heinich, as actividades de criação a partir da segunda metade do século xix — desde então, defende a autora, é a vocação que está no centro das condições necessárias para a prática artística, esta sendo encarada como lugar de um investimento total da pessoa. O regime vocacional, distanciando-se da arte como profissão, evidencia as particularidades laborais do mundo da criação, onde, no caso dos escritores, acontece escrever ainda que não haja remumeração e até escrever tendo de pagar para mostrar (editar) o trabalho. Neste regime, a pluriactividade torna-se uma circunstância mais expectável do que estranha.

A segunda parte deste livro — dedicada aos argumentos que sociólogos, historiadores, críticos, leitores e autores desenvolvem para relativizar as representações do escritor — é ocasião para debater palavras fortes na história das actividades de criação, como “inspiração”, uma experiência que assume a centralidade (por reconhecimento ou rejeição) nos discursos dos entrevistados, mesmo quando não a nomeiam directamente. Ao analisar as críticas dirigidas à inspiração, Heinich distingue três categorias, que podem coexistir num mesmo indivíduo: (i) crítica racionalista: opõe-se à inspiração em nome da razão, considerando o apelo à inspiração um gesto irracional; (ii) crítica política: à luz de uma lógica de distribuição democrática dos recursos segundo os méritos, os valores associados à inspiração e à vocação não têm cabimento; (iii) crítica “artista”: caracteriza-se, paradoxalmente, pela desconstrução dos estereótipos do senso comum quanto à figura do escritor, em nome de uma singularização mais radical.

Être ecrivain — de que ficaram expostas algumas ideias principais — é um livro exigente e profundo, com vários méritos.

Em primeiro lugar, contribui para abrir uma fresta num painel que, no que respeita ao estudo das profissões artísticas, tem sido quase exclusivamente preenchido por análises focadas em caracterizações sociodemográficas e nas condições de exercício da profissão; estas, sendo úteis e valiosas, não esgotam o conhecimento do estatuto de artista.

Em segundo lugar, é de destacar o tipo de atenção manifestada por Heinich ao longo do livro — concentrada na relação entre representações e coerência interna, e não na verificação da veracidade das representações —, que lhe permite demonstrar como a expressão “ganhar a vida” pode significar, para os que têm na escrita literária o centro da sua ocupação, “dar sentido à sua existência” (Heinich, 2000, p. 124). Tal fica especialmente evidente quando aborda a tensão, com que os escritores continuamente se confrontam, entre os “imperativos” de singularidade e de comunidade — dois sistemas de valores e de representações, e não duas categorias de acção. “Ganhar a vida” alude ainda, nesta e noutras actividades de criação, à possibilidade de ultrapassar a contingência da existência biológica, uma vez que a realização de uma obra, através da assinatura, permanece fortemente unida ao autor — ao contrário, como nota Nathalie Heinich, do que sucede com outros legados: se filhos há, autonomizam-se; se fortuna existe, transmite-se. Como diz o escritor Vergílio Ferreira no romance Até ao Fim, quando entrevistado por Clara: “Mas a arte é diferente. Por que escrevo? Porque gosto de fazer, de me realizar numa obra, de haver futuro para mim, de visitar o encantamento, de descobrir o mistério do real” (Ferreira, 1992, p. 213).

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