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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.197 Lisboa  2010

 

Rachel Thomson, Unfolding Lives: Youth, Gender and Change, Bristol, Policy Press, 2009, 202 páginas.

 

Magda Nico

CIES, ISCTE-IUL

 

Este livro constitui um importante contributo para o biographical turn nas ciências sociais, caracterizado pela afirmação das teorias contemporâneas da individualização e pela valorização teórica e metodológica das biografias e da reflexividade, identificada, por exemplo, em The Turn to Biographical Methods in Social Science: Comparative Issues and Examples, editado por P. Chamberlayne, J. Bornat e T. Wengraf (Londres, Routledge, 2000).

Mais do que isso, esta obra constitui uma tese em defesa da importância da temporalidade no desenho da pesquisa, advogando a favor das pesquisas longitudinais (e qualitativas) no estudo das mudanças sociais. A autora pretende, aliás, que esta obra seja uma “demonstration of an innovative method-in-practice” (p. 10). Mas a afirmação epistemológica desta obra não fica por aqui. A narrativa interpretativa das histórias de vida é envolvida num testemunho pessoalizado da autora, caracterizado por transparência e por uma constante reflexividade relativamente às opções de recolha, interpretação, apresentação e actualização dos dados. A linguagem densa, do ponto de vista conceptual e teórico, mas simultaneamente fluida, combinada com os testemunhos dos jovens, dá corpo a esta análise da destradicionalização do género dos cursos de vida contemporâneos e faz deste livro não uma “analysis of narratives”, mas uma “narrative analysis” (p. 26).

Entre os livros já publicados no âmbito do projecto “Inventing Adulthoods”, com destaque para Inventing Adulthoods: A Biographical Approach to Youth Transitions, da autoria de S. Henderson, J. Holland, S. McGrellis, S. Sharpe e R. Thomson (Londres, Sage, 2007), Unfolding Lives é o que mais aproveita o potencial do desenho longitudinal da pesquisa e, assim sendo, é o que mais se aproxima da agenda científica a que o projecto global se propõe. A escala ainda mais microssociológica a que presidiu a selecção de quatro, entre os cerca de cem casos do projecto global, a apresentação sincrónica e diacrónica dos mesmos e a abordagem de um tema concreto, o da destradicionalização do género, contribuíram certamente para tal. Nesta obra é analisada a construção da identidade de género na modernidade tardia, tendo em conta tanto os constrangimentos e possibilidades que a enquadram como as “consequências das opções tomadas, as estratégias seguidas e os compromissos assumidos” (p. 2).

Unfolding Lives está organizado em dez capítulos, arrumados implicitamente em três partes, cada uma delas constituída por diferentes equilíbrios internos entre as componentes teórica, empírica e metodológica. Os primeiros três capítulos cumprem essencialmente uma função introdutória, de apresentação do quadro teórico e do desenho da pesquisa, dando o devido destaque ao género e à sua presumível destradicionalização (no capítulo 3), e cada um dos quatro capítulos seguintes apresenta uma história de vida, concentrando a informação da escala mais microssociológica. Os quatro últimos capítulos arrematam o argumento do livro, combinando contribuições de diferentes escalas de análise e tradições sociológicas numa inovadora arrumação das biografias apresentadas.

No capítulo 1 a autora apresenta brevemente o projecto que, em conjunto, desenhou e levou a cabo. Trata-se de um projecto qualitativo e longitudinal que acompanhou uma geração de jovens (entre os 11 e os 16 anos) em transição para a adultez, desenvolvido em 5 áreas do Reino Unido caracterizadas por economias, tradições e dinâmicas sociais muito diferenciadas. Estes jovens são encarados como pertencendo à mesma “unidade geracional” (K. Mannheim), tendo partilhado experiências históricas como o desenvolvimento de novas tecnologias da comunicação, a expansão do ensino superior e o prolongamento do período da transição para a vida adulta. São ainda apresentados os principais resultados publicados em Inventing Adulthoods, no que se refere às principais áreas de interesse das políticas sociais (educação, trabalho e bem-estar) e aos temas biográficos mais salientes (pertença e mobilidade, casa e intimidade).

É no capítulo 2 que a autora apresenta de forma mais sistemática o seu argumento epistemológico, começando por abordar a revitalização dos estudos biográficos e por situar os estudos longitudinais neste campo. Os estudos longitudinais qualitativos, face aos de recolha retrospectiva, estão em evidente sub-representação e a sua emergência é recente, pretendendo preencher vazios analíticos provocados pelas metodologias mais estáticas, que não dão conta do que, por exemplo, Julie McLeod denominou “formation of habitus over time” (p. 15). Para esta discussão a autora invoca e coloca em diálogo vários autores, como P. Bourdieu, M. Archer, A. Giddens e D. Bertaux. De um ponto de vista teórico, Rachel Thomson combina contributos de M. Foucault e de P. Bourdieu para compor o conceito de “fields of existence”, que estruturará, aliás, toda a análise e a apresentação dos casos.

O capítulo 3 aborda directamente a questão do género. Os conceitos apresentados neste capítulo em torno da destradicionalização do género e dos contributos das teorias da modernidade tardia e das perspectivas feministas são, paradoxalmente, aqueles a que a autora talvez menos directamente recorre no decorrer da sua interpretação dos casos, com a excepção da distinção entre “identidade de género” e “subjectividade de género”, de H. Bejrrum Nielsen e M. Rudberg (p. 34), que é operacionalizada recorrentemente ao longo das histórias de vida.

Os quatro capítulos seguintes apresentam as histórias de vida, consideradas não representativas, mas emblemáticas de novas formas biográficas (p. 154). Aspectos conceptuais e linguísticos tornam as vidas de Sherleen, Stan, Devon e Karin únicas e, simultaneamente, comparáveis. Cada um dos capítulos segue uma estrutura idêntica, contando a história temporalmente organizada, mas compactada por campos de existência, esses sim variáveis entre os quatro casos. Por outro lado, o resultado do constante intercâmbio entre a interpretação da autora e as histórias contadas pelos jovens permite ao leitor uma rápida e panorâmica familiaridade com o estilo biográfico de cada um deles.

O primeiro caso é o de Sherleen (capítulo 4), que é filha única de uma família monoparental (materna), negra e descendente do Caribe e que vive em ambiente urbano. Sobre ela a autora conta uma história de mobilidade social ascendente, marcada pelo investimento, por parte de toda a família (muito matriarcal), nos valores da meritocracia e disciplina, nos planos a longo prazo e num projecto de vida baseado numa prioridade emocional e temporal colocada nas conquistas educacionais e em objectivos de independência económica (especificamente feminina). Acerca de Stan (capítulo 5), um rapaz oriundo de uma família da classe média, conta-se a história de experimentação de estilos de masculinidade baseados em campos de existência dificilmente conciliáveis (pubs, igreja, férias prolongadas), cuja acumulação evidencia a dificuldade de Stan em atribuir sentido à sua trajectória. Neste caso, torna-se evidente a relação forte e complexa entre masculinidade e classe social. De um contexto familiar difícil e experiências de bullying homofóbico, a autora conta-nos as várias tentativas-erro de Devon (capítulo 6) em construir uma identidade de homem homossexual confiante e competente, às custas de um projecto educacional inacabado e de uma completa desidentificação com a figura paterna. A gestão que faz da sua homossexualidade é fortemente condicionada pelos movimentos entre as esferas privada e pública. Karin (capítulo 7), da Irlanda do Norte e protestante, rebela-se contra a sua comunidade fechada e conservadora, construindo o seu projecto identitário com base em culturas juvenis, como as práticas de skate ou de graffiti, e contrariando assim as expectativas do que R. Connell denomina emphasized femininity.

O capítulo 8 enfatiza a importância da temporalidade na análise dos processos de transição para a vida adulta. A autora optou por incluir as novas informações sobre os rumos das vidas destes jovens, fruto das últimas entrevistas com estes, num capítulo diferente, apresentando uma interpretação relativamente autónoma não apenas para respeitar a temporalidade do próprio processo de escrita, mas principalmente para demonstrar como até uma análise longitudinal com vários momentos de recolha e actualização de informação deverá ficar sempre em aberto. Os quatro casos entram em diálogo no capítulo 9, através das duas principais linhas de análise: a temporalidade e a espacialidade. Na primeira linha de análise, são propostos instrumentos conceptuais para a análise do projecto reflexivo do self como o biographical method, biographical motifs e biographical impasse, usados para uma caracterização comparativa dos casos. Na segunda linha, são apontados os meios através dos quais, nos casos em apreço, a ordem de género se constrói: campos de existência, tecnologias do self, investimentos, identificações, horizontes sociais e espaciais. É, portanto, neste capítulo que a promessa metodológica feita ao longo do livro é concretizada teoricamente, com instrumentos conceptuais dinâmicos que dão resposta a uma análise diacrónica dos cursos das vidas. O livro termina com o capítulo 10, onde a autora combina as suas opções teóricas, convicções metodológicas e conclusões substantivas, reflectindo sobre o poder transformador da reflexividade individual nas vidas dos quatro jovens.

Será surpreendente se este livro não passar gradualmente a ser uma referência consensualmente recomendada para o estudo das transições para a vida adulta e, principalmente, para a recolha e análise interpretativa de histórias de vida. Não o será, porém, se não o for para o estudo do género, na medida em que, neste livro, este parece constituir-se mais como um pretexto de análise dos cursos das vidas do que como uma questão de partida. À excepção deste aspecto, é difícil criticar esta obra, a não ser manifestando alguma estranheza pela ausência dos contributos de B. Lahire (em especial os de Retratos Sociológicos: Disposições e Variações Individuais, Porto Alegre, Artmed, de 2004 [2002]) e de uma referência explícita à perspectiva do curso de vida. É um livro excelente, inovador, argumentativo e convincente. Um compromisso admirável entre teoria, vida real e metodologia que se combinam numa apaixonada afirmação epistemológica.

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