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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.197 Lisboa  2010

 

Chris Shilling, Changing Bodies. Habit, Crisis and Creativity, Londres, Sage, 2008, 216 páginas.

 

Vitor Sérgio Ferreira

ICS, Universidade de Lisboa

 

Nesta obra Chris Shilling prossegue o seu propósito de encarnar a sociologia (cf. Embodying sociology: retrospect, progress and prospects, Malden, Blackwell, 2007), desta vez com uma proposta analítica sobre a temática dos corpos em mudança. O gerúndio do título não é inócuo ou meramente estilístico. De facto, não se trata de mais um estudo sobre técnicas e tecnologias de modificação corporal voluntária, tema popular numa certa sociologia contemporânea do corpo. Ampliando a problemática e o universo do seu objecto de estudo, Shilling aborda sociologicamente, aqui, as formas como os indivíduos encarnam vários tipos de mudança aos quais são sujeitos ou se sujeitam, considerando a articulação recíproca entre as capacidades, potencialidades e constrangimentos inscritos nos contextos de existência dos indivíduos.

Ao longo do livro, o autor concretiza esse objectivo através da apresentação de seis estudos de caso, ilustrativos não só de determinadas modalidades voluntárias de transformação do corpo, mas também de modificações nas circunstâncias que lhe são exteriores, mas às quais ele terá de se adequar. Nesse exercício, e a propósito de cada caso, Shilling explora a forma como as transformações do corpo e no corpo interagem com as propriedades materiais e sociais que as enquadram, prolongando a sua análise nos processos de reacção individual e colectiva à transformação dessas mesmas circunstâncias, focando-se nos respectivos impactos identitários e sociais.

Os estudos de caso apresentados examinam a experiência de mudança corporal dos indivíduos em contextos muito contrastantes, quer altamente incitadores da transcendência das potencialidades internas do corpo (a experiência dos corpos desportivos em contextos de alta competição; a experiência da modificação de sexo/género; ou a experiência de algumas práticas corporais new age que migraram do Oriente para o Ocidente), quer em contextos profundamente constrangedores das respectivas capacidades e propriedades (a experiência de corpos em mobilidade “forçada”, como a dos emigrantes, exilados ou refugiados; a experiência de padecimento na doença; ou a experiência de sobrevivência nos campos de concentração nazis ou nos gulags soviéticos).

Em qualquer desses casos, porém, o corpo não é linearmente apresentado como lugar activo de superação de limites ou lugar passivo receptor de efeitos. Segundo Shilling, em todos os contextos, sejam eles mais instigadores ou coercivos, a acção encarnada é susceptível de manifestar esquemas corporalmente reprodutores da ordem institucionalizada, mas também de potenciar no corpo novas necessidades, capacidades e competências geradoras de mudança nas identidades, relações e processos sociais. Esta é a tese central desta sua última obra, recuperada das fundações teóricas da filosofia pragmatista (representada por figuras como John Dewey, George Herbert Mead ou William James), bem como da prática de pesquisa da escola de Chicago.

É, efectivamente, junto destas tradições de pensamento e de pesquisa empírica que Shilling encontra os suportes epistemológicos e metodológicos que julga necessários para densificar e sofisticar a sua proposta de realismo corporal (The Body in Culture, Technology & Society, Londres, Sage, 2005, pp. 12-16), ou seja, uma abordagem sociológica que tenta capturar o corpo na sua substancialidade ontológica, enquanto matéria viva, vivida e em devir nas suas propriedades, sejam elas necessidades, potencialidades ou limitações de vária ordem (morfológicas, fisiológicas, neurológicas, motoras, sensoriais ou outras).

Considerando a necessidade de prosseguir a produção sociológica sobre o corpo para além de paradigmas analiticamente esgotados e reducionistas, desde o seu início que o trabalho de Shilling enveredou por uma via que evita, quer o retorno do corpo a essencialismos e naturalismos biologicistas, quer a dissolução da sua carnalidade em construtivismos extremos. Na linha de autores como Ian Burkitt, Arthur W. Frank, Nick Crossley ou Loïc Wacquant, Shilling assume que o corpo não se trata apenas de uma fundação natural, mas tão-pouco se reduz a mera superfície de inscrição social ou discursiva, realidade simbólica e socialmente construída, determinada por sistemas sociais de significação cultural, como defendia uma certa tradição associada à emergência da sociologia do corpo nos anos 80.

Desmistificando a tão aclamada “novidade” da temática corporal na sociologia contemporânea, Shilling dedica então a primeira parte deste livro à recuperação da fisicidade da acção humana tal com foi analiticamente desenvolvida pelos teóricos pragmatistas e empiricamente investigada pela escola de Chicago na primeira metade do século xx — em pesquisas sobre mobilidade, raça ou desejo, por exemplo.

Nessa sua viagem a um passado que se havia subsumido na tradição sociológica, o autor redescobre premissas e conceitos, fórmulas de pensar e de fazer uma sociologia que reconhece na acção humana a inscrição de propriedades simultaneamente pertencentes ao mundo “natural” (físico e orgânico) e “social”. Nesta postura epistemológica vê uma forma de superar o reducionismo sociologista da acção social, como emanação de sujeitos incólumes aos contextos propriamente materiais em que vivem. Mas, simultaneamente, vê também a possibilidade de uma aproximação conceptual e empírica à acção humana, que a tome no conjunto das interacções e transacções que ocorrem entre os seus meios externo (contextos sociais e ambientais) e interno (organismo humano).

Nesta perspectiva, Shilling propõe que nenhum desses meios sobredetermina ou é sobredeterminado pelas propriedades do outro. Se o meio social é vital no enquadramento externo da acção humana, ele terá de ser considerado em articulação recíproca com o quadro de constrangimentos e oportunidades também proporcionados pelo meio ambiente e orgânico a que cada um se ajusta ou se propõe transcender. Colocando as propriedades do meio interno em relação mútua com o meio ambiente e social externo, a acção humana é reconhecida como acção inevitavelmente encarnada e, por consequência, epistemologicamente admitido o papel das necessidades e potencialidades do organismo físico nos esquemas de acção social.

As acções do corpo e no corpo desenvolvem-se, assim, em articulação com os constrangimentos combatidos e potencialidades cultivadas nos meios físico e social, e não necessariamente no sentido da adequação e/ou reprodução de esquemas corporais prévios. Enquanto sujeitos sempre activos e portadores de corpos cujas propriedades os habilitam a intervir criativamente nos seus meios, a acção encarnada pode ser orientada no sentido da transcendência das circunstâncias ambientais, sociais e orgânicas que a enquadram.

Considerando os pressupostos pragmatistas da acção encarnada, nesta obra Shilling propõe-se analisar as mudanças do corpo e no corpo à luz de três conceitos centrais naquele paradigma: hábito, crise e criatividade. O conceito de hábito pressupõe um relativo equilíbrio na relação estabelecida entre meio social, ambiental e orgânico (necessidades biológicas e potencialidades corporais). Traduz-se em modos de agir rotineiros que, colectivamente, ajudam os indivíduos a gerir corporalmente o mundo à sua volta sem que se reflictam em cada gesto que fazem com ou sobre o corpo. Sempre resultantes de aprendizagens adquiridas e incorporadas, os hábitos informam as deliberações dos sentidos, moldam as reacções musculares ao meio externo e, como tal, são uma das fundações da construção identitária. Na medida em que sintetizam capacidades individuais com experiências sensoriais e sociais, os hábitos unificam de forma particular o corpo, o mundo natural e o mundo social, sendo neles produzidos e reproduzidos e, simultaneamente, estruturando esses mundos.

Existem, contudo, situações em que a manutenção de determinados hábitos é limitada por certos conflitos, obstáculos ou contradições existentes entre os meios externos dos indivíduos e as suas necessidades e potencialidades corporais. Nessas ocasiões, a acção tomada como “natural” pelo sujeito é posta em causa. Quando a acção habitual se demonstra impossível ou inadequada para a resolução de determinada tarefa, quando a consciência prática acumulada enfrenta sucessivamente o falhanço, então o hábito, segundo Shilling, enfrenta um estado de crise. Este estado disruptivo, quando continuado, pode desafiar a estrutura da identidade pessoal e social do indivíduo e destruir a confiança no seu próprio corpo e no mundo em que (sobre)vive.

Mas a situação de “crise” pode também ser um momento para encetar começos, encorajando o indivíduo a descobrir novos campos de possibilidades. É aí que, para o autor, emerge a acção criativa, soluções encontradas para reparar ou repromover as capacidades e necessidades da acção encarnada. São acções que, no fundo, refundam novos hábitos, em ordem a restabelecer a confiança do sujeito em si próprio e no mundo.

As fases da acção encarnada ilustram a preocupação de Shilling em evitar o “cartesianismo invertido”, tantas vezes característico dos estudos sobre o corpo. A acção humana não é reduzida às suas fundações biológicas, também não confluindo totalmente no determinismo do ambiente externo. Se a acção humana é sempre situada em determinado contexto social e ambiental, caracteriza-se igualmente por necessidades e potencialidades encarnadas que, activa e criativamente, dão forma a esses mesmos contextos.

Os fundamentos pragmatistas revelam-se úteis na forma como o autor conceptualiza a relação entre corpo, identidade e acção social, desenvolvendo sobre esta uma compreensão analítica e heuristicamente mais fecunda, abrangente e dinâmica do que as abordagens construtivistas, estruturalistas ou racionalistas. Mais do que construir uma visão reificada, totalizadora e unificada daquela relação, o autor vê no pragmatismo uma forma processual de abordar sociologicamente o modo como os indivíduos ajustam e integram, com coerência, na sua identidade e na sua vida quotidiana, os constrangimentos combatidos e as potencialidades cultivadas nos seus meios orgânicos, ambientais e sociais, através de respostas não raras vezes exploradas e promovidas no quadro de acções colectivas.

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