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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.198 Lisboa  2011

 

Jacqueline Lalouette, Jours de fête. Jour fériés et fêtes légales dans la France contemporaine, Paris, Tallandier, 2010, 389 páginas (+ 4 páginas de fotografias coloridas em extratexto).

 

Luís Salgado de Matos

ICS-UL

 

Jacqueline escreveu Jours de fête (Dias de festa) em 2010 e Jaques filmara o Jour de fête (dia de festa) em 1949. O livro de Lalouette é consagrado às festas legais que decorrem em todo o território europeu da França — mas abre para as festividades locais e a festa na aldeia, que é o pano de fundo do filme de Tati, tem nele o seu lugar, embora marginal. Já havia livros sobre cada uma das festas nacionais francesas — mas não havia nenhum que as equacionasse como um conjunto. Passou a haver.

Com efeito, J. Lalouette estuda as festas nacionais a partir de Napoleão Bonaparte, regista onze em 2010 e agrupa-as em três categorias: societais — o ano novo e, embora menos típicas, segunda-feira de Páscoa e segunda--feira de Pentecostes, que parecem a muitos feriados religiosos mas não o são; cívicas — o 1.º de Maio, o 8 de Maio, a data da libertação, em 1945, o 14 de Julho, evocando a Tomada da Bastilha, o 11 de Novembro, comemorando a vitória na Primeira Guerra Mundial; religiosas — Ascensão, Assunção, Todos os Santos e Natal. O livro começa com um capítulo introdutório, salientando o sentido inerente a cada festa, contrapondo os conceitos de «feriado» e de «festa nacional» e relacionando-os com a obrigatoriedade da prestação de trabalho assalariado. Cada uma destas três categorias é objecto de um capítulo, que estuda as suas principais manifestações nos dois últimos séculos e regista a respectiva variação; nas festas cívicas são categorizadas as de fundação, as funerárias e as dos monarcas (a festa de S. Luís para Luís XVIII, a de S. Carlos para Carlos X) ou as do imperador (o São Napoleão, para os Napoleões, Bonaparte e III, a 15 de Agosto, coincidindo com a Assunção) e separadas as festas desaparecidas das vivas; assinala-se também que elas são objecto de luta política entre os vencedores da revolução anterior, que querem impô-las, e os vencidos, que as rejeitam; o capítulo societal é consagrado ao 1.º de Janeiro. Antes de concluir, o livro aprofunda as relações das festas com a beneficência, primeiro, e com os divertimentos, depois. As conclusões sublinham a vida e a morte das festas, a variação delas no tempo; inclinam-se para a hipótese de «um empobrecimento do sentido dos dias feriados», que baixaram para simples «dias de folga»; «a importância afectiva das festas foi, portanto, em larga medida, transferida para comunidades mais pequenas», entre as quais, além das territoriais, comparáveis à «festa na aldeia», estariam outras, como o Gay Pride e a Techno Parade. Além de olhar para estes microagrupamentos sociais, Lalouette anota os macrogrupos, evocando «um verdadeiro projecto europeu que teria podido, se tivesse existido, engendrar novas festas comuns aos diferentes povos que compõem a União Europeia» — e a última nota de pé-de-página sugere precisamente «uma pesquisa comparativa das festas legais nos diversos países europeus» (pp. 291-298).

Podemos questionar a capacidade de a Europa engendrar festas hoc sensu — pois devemos supor que só os «povos» as engendram e, portanto, a ausência de uma festa europeia mostraria a ausência de um povo europeu. Mas esta questão é teórica. Como teórica é a verificação de que as festas religiosas estão dependentes da Igreja — só de uma, aliás —, ou que as festas cívicas são na realidade militares e as societais são do Estado ou da organização económica, isto é, do nosso famoso triângulo social, e sem ele não medram. Jours de fête mostra no concreto que as festas nacionais são uma fronteira decisiva entre as três ordens simbólicas e as instituições triangulares, as instituições do simbólico, da segurança e da reprodução. As festas cívicas têm, aliás, vindo a ser objecto de crescente atenção da teoria social, como tem sido entre nós o caso de Fernando Catroga e, num plano mais empírico, de Ernesto Castro Leal, o que significa por certo um reconhecimento do primado do simbólico na interpretação do homem depois de anos de marxismo. Ora Jours de fête, embora evocando de passagem questões teóricas — relações dos nossos feriados com o paganismo antigo, com a conflitualidade social interna, com a transformação da organização social global, com a secularização —, é uma obra que se propõe, sobretudo, categorizar e descrever as festas nacionais, tal como elas existem. Fá-lo na perfeição. É impressionante o aparelho crítico de Jours de fête; por página, ostenta mais de cinco notas (as quais foram piedosamente escondidas no final do livro). Essas notas recenseiam fontes impressas e arquivísticas, em particular os arquivos departamentais (comparáveis aos nossos distritais), e revelam a preocupação de equilibrar os registos relativos a regiões setentrionais de langue d’oc, como Dijon ou Lille, com os das áreas meridionais de langue d’oïl, como o Vaucluse. Lalouette domina com maestria uma panóplia diversificada de fontes, entre as quais destacamos as biografias, os manuais de civilidade, a imprensa periódica e a internet, e estabelece uma grelha fina de análise da realidade social que surpreenderá muitos franceses cultos (quantos deles saberiam que o direito francês continua a reconhecer a nota de 1802 sobre os feriados da autoria do cardeal Caprara?). Lalouette não hesitou em recorrer à entrevista oral para obter factos, mas também para se familiarizar com certas ciências, como o direito, que não faziam parte do seu CV. Jours de fête é um livro multidisciplinar, recorrendo às histórias das ideias, e social, mas também aos direitos civil e canónico — ambos usados modelarmente como fontes —, à etnografia — o velho folklore —, entre outras. Aliás, se Jours de fête é sobretudo um livro empírico, nem por isso deixa de ter por trás uma forte e discreta teoria: a classificação das festas em religiosas, cívicas e societais, uma vez articulada com as fundadoras, funerárias, dos soberanos, fornecerá uma primeira grelha produtora de festas sociopolíticas, em termos de invariantes estruturais, à Lévi-Strauss ou à G. Dumézil.

Houve de certeza muitos dias de trabalho para termos o prazer de lermos estes dias feriados. O resultado, além de remunerador do ponto de vista académico, é legível, pois não só trata de acontecimentos da vida quotidiana — o Natal, em particular —, como é amenizado por numerosos episódios curiosos ou divertidos. Por exemplo. Lalouette convocou escritores célebres como testemunhas da mudança das festas — e por isso divertimo-nos vendo o revolucionário anarquista Proudhon a antecipar em 1853 a celebração do réveillon de ano novo, um must burguês da belle époque. Jours de fêtes é excelente — e por isso excelente é a sugestão final de J. Lalouette de um estudo comparado dos feriados europeus: o seu livro é um ponto de partida para essa pesquisa, como o leitor (português) já intuiu. Depois veremos de novo Jour de fête, de Jacques Tati.

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