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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.198 Lisboa  2011

 

José Subtil, Dicionário dos desembargadores: 1640-1834, Lisboa, EDIUAL, 2010, 604 páginas.

 

Maria Eliza de Campos Souza

ICS-UL

 

O Dicionário dos Desembargadores é uma obra que resultou das pesquisas realizadas pelo autor ao longo de vários anos (1996 a 2009) sobre o grupo que pertenceu às elites letradas da sociedade portuguesa do Antigo Regime. Constitui-se como parte relevante da produção historiográfica portuguesa das duas últimas décadas, que, inquestionavelmente, teve como um dos seus temas mais recorrentes a história das “elites dirigentes” (Monteiro, 2004), nesse caso, em particular, as do Portugal moderno. Temos aqui uma obra de referência que contribuirá de modo valioso para os estudos prosopográficos relacionados com a magistratura no reino e no ultramar, especialmente os que se dedicarem aos desembargadores, que são, no conjunto dos magistrados, os que chegaram ao topo da carreira jurídica.

Trata-se de um conjunto de 1912 verbetes sobre os desembargadores nomeados entre a Restauração (1640) e a Convenção de Évora-Monte (1834), divididos em dois grupos. O primeiro, com 1763 indivíduos nomeados de 1640 até 1820, e o segundo, com os 149 nomeados entre 1820 e 1834, período marcado por uma conjuntura política instável e de lutas entre os liberais e os miguelistas e pela extinção de várias instituições do Antigo Regime português, sendo uma das mais representativas do modelo de ordenamento da justiça o Desembargo do Paço, extinto em 1833. Em cada verbete encontram-se, sobretudo, elementos para o estudo da história política e social do selecto grupo de magistrados de origem reinol e das possessões ultramarinas que obtiveram, durante as suas trajectórias, uma mercê para ocupação de um lugar de provimento vitalício.

As informações constantes desses verbetes provêm, essencialmente, de fundos documentais existentes no Arquivo Nacional da Torre do Tombo: índices das chancelarias régias, Registo Geral de Mercês (RGM), Habilitações da Ordem de Cristo (HOC) e Leituras de Bacharéis (LB) existentes para todo o período de 1640 até 1834. Para além destes, também foram utilizados dados encontrados nos códices do Memorial de Ministros, que são cinco e estão sob guarda da Biblioteca Nacional de Portugal.

As Leituras de Bacharéis permitiram levantar dados relativos à origem social dos desembargadores, uma vez que delas constam não só a aprovação do bacharel examinado pelo Desembargo do Paço, mas também as habilitações que eram feitas antes de serem aprovados ou reprovados mediante uma investigação sigilosa da sua ascendência. As inquirições feitas nos processos de Leitura de Bacharéis objectivavam investigar a origem familiar dos pretendentes aos lugares de letras até duas gerações anteriores — avós maternos e paternos —, para assegurar dois critérios essenciais de aprovação do magistrado para ingresso na carreira: não ser descendente de indivíduos das “nações infectas”, mouros, mulatos, judeus, cristãos-novos, e também não ser neto ou filho de oficiais mecânicos. O conteúdo dessas inquirições mudou sensivelmente a partir da segunda metade do século xviii, com a redução das investigações sobre “nações infectas” e passando-se a investigar se os candidatos e sua família não eram hereges ou apóstatas e não tinham cometido crimes de lesa-majestade, divina ou humana. A ascendência de oficiais mecânicos era razão para reprovação dos candidatos e constituía-se como um entrave na entrada para a carreira (Subtil, 2005). Entretanto, era comum obter-se o perdão, através do recurso à graça régia, para ascendência mecânica sob certas condições, como a obrigação de ir ocupar cargos no ultramar. Através das leituras foi possível reunir informações, em quase todos os verbetes, para uma pequena história familiar dos desembargadores e das suas origens geográficas e socioeconómicas.

Os dados relativos aos percursos feitos pelos desembargadores desde as suas primeiras nomeações na carreira da magistratura, mercês de tenças e hábitos das ordens militares, alvarás do foro de cavaleiros fidalgos em remuneração pelos serviços prestados, revelam ainda elementos para se discutirem as “formas de integração e ascensão” dessas elites letradas (Hespanha, 2010), assim como os modelos de circulação das mesmas no interior das estruturas de poder e seus mecanismos de afirmação social e política (Monteiro, 2007).

Para ampliar ainda mais o volume de informações acessíveis ao leitor do dicionário, o autor introduziu nos verbetes um campo designado por “observações”, no qual acrescentou os dados encontrados excepcionalmente sobre os familiares, como tios, tias, irmãos e outros parentes; títulos, serviços e outros ofícios exercidos por pais e avós; datas e locais de falecimento e sepultamento e, às vezes, a data de leitura no Desembargo; trajectórias fora do reino de parentes, etc. Enfim, uma gama bastante variada de elementos que ampliam as possibilidades de discussão sobre a história social dos desembargadores no Antigo Regime português.

O dicionário conta também com um índice alfabético geral e duas listas onomásticas específicas para cada um dos períodos em que foi dividido. Outras contribuições marcantes do dicionário são uma nota introdutória, que explora de forma brevíssima algumas possibilidades de interpretação sobre o volume de informações nele reunidas, escrita por António Manuel Hespanha, e dois ensaios interpretativos referentes aos desembargadores nos dois períodos já mencionados, um da autoria do coordenador, José Subtil, e outro em colaboração com Nuno Camarinhas. Os ensaios discutem alguns dos aspectos já mencionados sobre a história política e social dos desembargadores.

Nuno Camarinhas traz importantes contribuições para compreensão da administração da justiça desde 1640 até 1820 e de modo particular sobre as estruturas de organização e “lógicas de movimentação” dos desembargadores “no interior do aparelho”. Aspecto bastante relevante são as comparações que o autor faz entre o grupo dos desembargadores e os magistrados em geral. No que diz respeito à origem geográfica dos desembargadores, é mencionada a preponderância de Lisboa, seguida das comarcas do Porto e de Coimbra, o que parece reproduzir um padrão comum à origem geográfica dos magistrados em geral. Também discute comparativamente as origens sociais dos desembargadores em relação aos magistrados em geral, com destaque para um número significativo de filhos de “juristas” entre os que chegaram a desembargadores seguidos de filhos de “notáveis” e “militares”, muito embora algumas das categorias utilizadas pelo autor merecessem uma melhor explicação, como, por exemplo, “notável”, “nobre”, “estrangeiro”, sobretudo, pela diversidade que essas categorias comportam. É preciso salientar que a categoria “nobre”, tal como é apresentada pelo autor, é difusa e não se explica de forma clara em relação à outra que seria o seu par: “notável”. O problema do uso dessas categorias já está exaustivamente discutido na historiografia para o Portugal moderno e não há qualquer referência a essa produção (Monteiro, 1987 e 1998).

O autor também se ocupa da trajectória dos magistrados até aos tribunais superiores e analisa os diferentes percursos desses letrados. Discute em detalhe uma “plataforma atlântica de mobilidade burocrática”, com 39,5% de desembargadores que ocuparam pelo menos um cargo no ultramar, e ainda o efeito dos percursos ultramarinos na carreira dos desembargadores, uma vez que eles encurtavam os caminhos para a ascensão dos magistrados. Ao utilizar uma metodologia de análise de redes para demonstrar as várias possibilidades de percursos presentes na trajectória dos desembargadores, é deixado de lado e não há qualquer menção à relevância das relações sociais constituídas a partir da ocupação dos lugares de letras e durante o seu percurso. Algumas afirmações produzidas a partir dessas estruturas em rede são muitas vezes questionáveis, como, por exemplo, o Tribunal da Relação do Rio de Janeiro aparecer em posição periférica quando posto em comparação com o Tribunal da Bahia. Não há menção sequer à distância temporal que separa a criação do Tribunal da Relação da Bahia, no século xvii, e a do seu congénere da Repartição Sul, apenas fundado na segunda metade do século xviii.

Subtil sugere ainda um modelo bipolar de assentos dos desembargadores em torno da Casa da Suplicação e do Desembargo do Paço. Assim, gravitavam em torno da Casa da Suplicação os “magistrados de carreira” e do Desembargo do Paço os “magistrados de génese académica”, respectivamente exercendo o poder de mando, uns através do seu “espaço de decisão no foro” e outros da ocupação dos espaços de tomada de decisões “políticas” (Hespanha, 2010). Aquele contribui para esclarecer lógicas distintas de ocupação de determinados cargos segundo o cursus honorum almejado sem, entretanto, valorizar o peso de um conjunto de relações sociais construídas a partir dos lugares ocupados e o peso que elas poderiam ter na construção de um “percurso burocrático”.

Esse é o fio condutor de todo o argumento que José Subtil desenvolve no seu texto sobre os “desembargadores na transição para o liberalismo”, no qual o autor demonstra o dinamismo social dessas elites letradas e, particularmente, dos desembargadores que no contexto de mudança do Antigo Regime para o Estado liberal se reposicionaram e não se afastaram da “área do poder”. Para ele, desde o Antigo Regime que os principais capitais de ingresso e progressão na carreira são académicos e sociais e mantiveram-se no período de 1820-1834. E mesmo com a extinção do Desembargo do Paço, instituição emblemática do poder político exercido por esse grupo das elites letradas no Antigo Regime, tornou-se também parte da elite emergente do regime constitucional. Desse modo, na sua interpretação sobre os desembargadores o autor valoriza o peso “dos seus estatutos políticos e sociais”.

Os dois textos contribuem para levantar questões e suscitar o interesse em pesquisas para as quais o Dicionário dos Desembargadores é já uma fonte organizada de grande massa de informações e, portanto, referência obrigatória para os que se dedicarem ao estudo das elites no Portugal moderno.

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