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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.199 Lisboa  2011

 

Revisitando a teoria da reprodução: debate teórico e aplicações ao caso português

 

Pedro Abrantes*

* CIES-ISCTE-IUL, Edifício ISCTE, Av. das Forças Armadas, 1649-026 Lisboa, Portugal. E-mail:pedro.abrantes@iscte.pt

 

RESUMO

O artigo recupera a teoria da reprodução, apresentada na obra homónima de Bourdieu e Passeron, discutindo a sua validade teórica e empírica. A confrontação com outras correntes internacionais em sociologia da educação mostra que estas a têm complementado mais do que refutado. Explora-se, em seguida, a sua relevância para a análise da sociedade portuguesa contemporânea, a partir de pesquisas recentes sobre mobilidade social; currículos escolares e processos de ensino-aprendizagem. Conclui-se que uma teoria da reprodução revista, incorporando uma perspectiva sócio-histórica, preserva poderosas virtualidades heurísticas para a compreensão dos sistemas educativos e das sua relação com as estruturas sociais.

Palavras-chave: sociologia; educação; desigualdades; reprodução.

 

Revisiting social reproduction theory: application to the Portuguese case

ABSTRACT

Reproduction Theory as presented in the 1970 work of Bourdieu and Passeron is re-examined, and its theoretical and empirical validity is discussed. Comparison with other international perspectives on the sociology of education shows more similarity than difference. The relevance of the Theory is then explored with regard to contemporary Portuguese society, based on recent research in social mobility, curricula development, and teaching-learning processes. We conclude that a revised theory of social reproduction that includes a socio-historical perspective offers powerful heuristic virtues for our understanding of educational systems and their relationship with social structures.

Keywords: Sociology; education; inequality; social reproduction.

 

Quando se cumprem quarenta anos da publicação original da influente obra La reproduction (Bourdieu e Passeron, 1970), pareceu-nos profícuo discutir a sua validade e relevância, à luz de estudos recentes realizados sobre a sociedade portuguesa..1 Além da celebração da efeméride e da utilidade de interpretar uma teoria complexa e hermética (contra as vertigens da sua apropriação simplificada e consequente refutação), não escondemos o ensejo de contribuir para uma análise sociológica do sistema educativo, depois de uma década em que se intensificou a produção científica nacional sobre educação, mas na qual o potencial acumulativo, reflexivo e interventivo deste crescimento surgiu diluído, por um lado devido a uma certa fragmentação de referências teóricas e de objectos empíricos, em que cada investigador tende a tornar-se especialista do seu micro-tema, por outro lado, pelo desenvolvimento de um discurso crítico sobre educação, cujas conclusões, na ausência de um trabalho metódico de confrontação com o real, estão subentendidas nas perguntas de partida ou em filiações políticas e intelectuais, só podendo reclamar um estatuto de cientificidade através da contestação ao método científico. Tememos que qualquer das derivas reduza a sociologia da educação a uma área menor, quer das ciências sociais quer do discurso público sobre educação.

Ao enunciarmos a “teoria da reprodução” referimo-nos à obra homónima de Bourdieu e Passeron (1970). Não ignoramos a publicação anterior de Les héritiers (1964) que, pelo seu carácter inovador, terá gerado um impacto académico e social porventura maior, nem as sucessivas actualizações teóricas em artigos e obras posteriores dos autores. Não negamos tão-pouco a sua fundamentação, quer nas perspectivas funcionalistas da educação como meio de integração cultural e social, vide Durkheim, quer nas correntes neomarxistas do sistema de ensino como instrumento do aparelho ideológico do Estado, de Althusser ou Baudelot e Establet. Porém, a riqueza analítica inscrita no modo propriamente sociológico de articular altos níveis de abstracção argumentativa e uma profusão de dados empíricos, no culminar de uma década de estudos sobre o sistema educativo francês, reveste esta obra de um interesse singular para o desenvolvimento da disciplina, inspirando o trabalho científico de validação das provas. Aceitando o convite de Lahire (2005), inscrevemo-nos então no esforço colectivo de avaliação rigorosa de “uma das orientações teóricas mais estimulantes e complexas das ciências sociais”, genuína manifestação do respeito por uma obra e contribuição para o avanço científico, a partir da dupla recusa das tendências recentes para a sua idolatração ou negligência.

 

Síntese da teoria da reprodução

A proposta teórica assenta na premissa de que as relações de poder, nas sociedades humanas, contêm sempre uma dimensão de violência simbólica, ou seja, de imposição de um conjunto (arbitrário) de referentes culturais (saberes, linguagens, normas, valores, representações, etc.) dos grupos dominantes ao conjunto da sociedade, como reforço da sua posição privilegiada. Quanto maior essa inculcação e legitimação, menor a necessidade da coacção física. Este axioma sustenta quatro proposições fundamentais, que organizam a primeira parte da obra:

1) Qualquer acção pedagógica — seja comunitária, familiar, religiosa, política, militar ou especificamente educacional — constitui uma violência simbólica. A acção pedagógica é entendida enquanto relação comunicacional particular, no sentido em que não apenas decorre no quadro de uma relação de forças desigual, mas impõe também significados que reproduzem a ordem dominante. Os autores não negam o pluralismo das acções pedagógicas, nem a possibilidade de estas se fundarem numa razão universal (o seu racionalismo é evidente em algumas passagens), mas advogam que, em última instância, são as relações de poder que atribuem sentido e conteúdo às acções pedagógicas, legitimando-as e hierarquizando-as.

2) Qualquer acção pedagógica implica uma “autoridade pedagógica” e uma “autonomia relativa” da instância que a produz. Ou seja, este tipo de acção específico apenas se exerce quando, por um lado, as relações de poder atribuem a certos indivíduos ou instituições a faculdade de ensinar e, por outro lado, quando estes conseguem ocultar o carácter arbitrário da sua posição, ou seja, a sua dependência das relações de poder, através da naturalização da sua função e dos conteúdos que transmitem. Frequentemente, os diversos agentes pedagógicos entram em competição pela autoridade pedagógica, definindo-se mandatos específicos, por exemplo, no interior de campos particulares. As tensões educativas, entre família e escola, entre os campos cultural e económico ou entre diferentes correntes pedagógicas são casos paradigmáticos desta negociação permanente de mandatos pedagógicos limitados, reflectindo um grau de integração variável entre campos, susceptível de afectar a legitimidade e eficácia da acção pedagógica, mas não de alterar o seu fundamento: a autoridade pedagógica é sempre delegada, segundo condições e obrigações específicas, pelas classes dominantes, sendo legítima apenas na medida em que sublima a cultura dominante e reforça a ordem social.

3) Sendo produto das estruturas de poder, o trabalho pedagógico é orientado para a formação de um habitus (o mais duradouro, transferível e exaustivo possível). O círculo reprodutivo tende a fechar-se, pois apenas aquele que interiorizou suficientemente o arbitrário cultural é considerado apto para transmiti-lo às gerações seguintes. Mas a reprodução exerce-se num segundo sentido: o êxito de todas as acções pedagógicas secundárias supõe um conjunto de apropriações prévias e, portanto, depende da distância entre o arbitrário cultural que impõem e o habitus de classe, desenvolvido pelas acções pedagógicas primárias.

4) Qualquer sistema educativo (re)produz as condições necessárias a uma acção pedagógica institucionalizada, nomeadamente através da validade jurídica dos diplomas, formação de um corpo legítimo de especialistas, e controlo permanente sobre o trabalho pedagógico. Como forma de iludir a violência simbólica e a sua dependência das relações de poder, a expansão dos sistemas educativos (à imagem das organizações religiosas) implicou uma definição explícita dos conteúdos e metodologias legítimos em que se baseiam as acções pedagógicas, ou seja, um trabalho específico de naturalização dos arbitrários culturais, tornando-os verdades universais, necessidades de cada indivíduo e alicerces do bem comum. Esta autonomia está na base do conservadorismo pedagógico, ou seja, do hiato temporal com que a escola reproduz as mudanças nos padrões sociais e que, em alguns casos, se contrapõe a demandas emergentes da economia ou a postulados culturais e científicos hegemónicos, mas raramente se aplica à relação pedagógica per si, pois os professores obtêm a sua autoridade do cumprimento de procedimentos impostos. Daí se conclui que, se a função interna de inculcação atribuída aos sistemas de ensino, por um lado, depende de certo grau de “autonomia relativa” para a sua legitimação, por outro, a sua existência social apenas se explica na medida em que serve os interesses das classes dominantes, ou seja, cumpre uma função externa de reprodução da ordem social dominante.

Na segunda parte, além de apontamentos metodológicos e de uma crítica incisiva a outras teorias, discute-se uma série de dados estatísticos e observacionais recolhidos no sistema universitário francês (distribuição dos alunos, relação com a cultura, práticas pedagógicas, sistemas de avaliação e selecção, modo de recrutamento e progressão dos docentes), confrontando-o com instituições educativas dominantes noutras sociedades e tempos históricos. Procura-se demonstrar como o sistema de ensino francês dos anos 60 reflecte as proposições universais apresentadas, não deixando de constituir um caso singular de conservadorismo institucional, que se explica pela (e reproduz a) estrutura de classes da sociedade francesa. Argumenta-se que a um baixo rendimento técnico da acção pedagógica, objectivado nas taxas de insucesso e abandono, corresponde um alto rendimento de legitimação, ao produzir indivíduos ajustados à estrutura social: uns conformados com o seu fracasso e consequente posição desfavorável na sociedade, outros convencidos, pela erudição das disposições, mais do que pela competência técnica, da legitimidade da sua posição dominante. O sistema educativo é, então, concebido como uma sequência de mecanismos legítimos de selecção que, assentes na socialização primária e na fidelidade aos arbitrários escolares, só pode operar uma dupla reprodução (social e cultural). A autonomia conferida por uma história particular apenas permite que as hierarquias escolares traduzam as desigualdades sociais e, desta forma, legitimem a transmissão hereditária de privilégios, no quadro de uma sociedade regida pelo princípio iluminista da igualdade formal.

 

O debate teórico em torno da teoria da reprodução

O impacto da teoria da reprodução na sociologia europeia foi enorme, logo nos anos seguintes à sua publicação, inclusive em países como Portugal em que, não apenas a disciplina se encontrava num momento embrionário, mas também a própria realidade social e educativa não coincidia com a situação francesa estudada por Bourdieu e Passeron (Vieira, 2007). Apesar de a massificação do ensino secundário e superior ter sido posterior, já nos anos 60, Sedas Nunes, um dos principais impulsionadores da sociologia  portuguesa, recorreu a esta teoria em estudos sobre o sistema universitário. Ao longo dos anos 80, a teoria da reprodução instituiu-se como saber fundamental tanto na investigação como no ensino da sociologia da educação, contribuindo para a vitalidade desta subdisciplina, nomeadamente nos cursos de formação de professores.

Porém, também as críticas de diferentes quadrantes científicos e políticos não se fizeram esperar. A teoria da reprodução disputou então a primazia internacional da explicação sociológica dos fenómenos educativos, ora com o “individualismo metodológico” (Coleman, 1966; Boudon, 1981), difundido em Portugal por Sérgio Grácio, ora com a “teoria da resistência” (Willis, 1977; Apple, 1985), muito influentes nos trabalhos de Steve Stoer e seus colaboradores, na Universidade do Porto. As divergências entre estas três correntes teóricas não parecem, todavia, proporcionais à violência das críticas mútuas. Devemos, pois, questionar se as oposições manifestas à teoria da reprodução se fundam em propostas realmente antagónicas (no sentido em que a aceitação de uma implicaria a refutação da outra) ou reflectem lutas pela dominação do campo académico através de estratégias de monopolização da explicação sociológica legítima e imposição de modos de relação específicos da disciplina com os campos político, económico e educativo. Se é evidente uma vertigem determinista, nunca empiricamente demonstrada, na forma necessária e mecânica como as acções pedagógicas servem os “interesses dominantes”, ou como o habitus é produzido pelas estruturas e estrutura as práticas, a teoria da reprodução, consistindo numa análise estrutural, não nega a acção. As escolhas racionais dos indivíduos, a resistência criativa às imposições da cultura dominante, e os movimentos colectivos só se desenvolvem e adquirem sentido no interior de (e por relação com) um determinado sistema.

Só é possível compreender, por exemplo, o abandono escolar (ou a opção por um curso menos reconhecido) como acção racional, se aceitamos que essa decisão tem por referência estruturas particulares que dificultam sistematicamente o indivíduo, pelas suas propriedades sociais, de alcançar os segmentos mais prestigiados do sistema. Uma análise de custo-benefício é possível, mas as propriedades estruturais do sistema educativo definem os meios legítimos e o seu valor relativo, se não mesmo os fins. Quando o sistema não reconhece a legitimidade dos meios culturais de certos grupos, os seus custos da escolarização serão avultados e, eventualmente, insuportáveis. Como se demonstra em obras posteriores (ex. Bourdieu, 1979), a teoria da reprodução é compatível com uma visão individualista e racionalista, assente no princípio de que os actores se movem em “campos” estruturados, ajustando as aspirações subjectivas às possibilidades objectivas, e mobilizando, a cada momento, os seus diversos capitais incorporados em experiências sociais anteriores (individuais e de classe). A complexidade destes cálculos supera a ambição dos economistas mais argutos. Desde que considerem que a sua acção não pode transformar as regras do sistema (ou que isso implicaria, à escala biográfica, mais custos do que benefícios), o individualismo metodológico não é contraditório com a teoria da reprodução..2

No caso das “teorias da resistência”, apesar do inestimável contributo de analisar a escola como espaço de conflito, assumindo a capacidade de agência, intrinsecamente criativa, dos indivíduos e grupos, as práticas e relações analisadas decorrem no quadro de sistemas cujas características fundamentais estão determinadas por agentes externos (autoridade legítima, conteúdos pedagógicos, modos oficiais de inculcação e selecção). É relevante compreender como os indivíduos, dentro das instituições educativas, têm a capacidade de produzir práticas culturais que escapam, se opõem, e podem inverter localmente as relações de poder. Mas, em última instância, esse tipo de relação com a escola, sobretudo se é levada a cabo pelos jovens das classes desfavorecidas, reforça (sem modificar) a legitimidade dos mecanismos escolares de reprodução.

Será, pois, pouco rigoroso e socialmente injusto condenar os agentes (alunos, educadores ou administradores) ao fracasso na subversão dos mecanismos reprodutivos, dada a capacidade de agência dos actores e a acção “emancipadora” de muitas organizações educativas (os autores admitem a diversidade de acções pedagógicas), mas raramente nos temos focado na análise das possibilidades objectivas de esses processos transformarem a posição dos actores e organizações proponentes no espaço social, ou provocarem mutações nas relações de poder, cedendo com frequência a um afã voluntarista de questionável produtividade científica..3

Como reconheceu posteriormente Bourdieu (2005), a estas polémicas não será alheio o carácter conflictivo da sua personalidade, fundado na cultura local da região em que nasceu, no Sudoeste rural francês, e que alimentou, em algumas etapas da sua carreira, como estratégia de afirmação (pessoal e disciplinar) no campo académico. Ao apresentar um género ad hoc de “funcionalismo crítico” (Morrow e Torres, 1994), Bourdieu demarcou-se quer do estrutural-funcionalismo que dominava as ciências sociais, quer do neomarxismo que se apresentava como a principal alternativa. Também em termos políticos, a obra de Bourdieu marcou uma ruptura com o “optimismo educativo” dos anos 50 e 60, sem aderir aos argumentos voluntaristas e radicais dos movimentos que explodiram no Maio de 68. Acresce que a sociologia europeia dispunha de uma autonomia limitada, frequentemente maneatada por programas políticos, e com uma posição subordinada no campo académico, relativamente às disciplinas de filosofia, direito ou mesmo economia. Esta situação viria a mudar, a partir dos anos 60, em resultado da expansão do ensino superior e dos centros de investigação, associada ao reconhecimento, no seu interior, da sociologia como campo independente de produção de conhecimento científico e de formação profissional, o que despoletou violentas lutas académicas pelo domínio de um campo sociológico em expansão e ascensão social.

Em Portugal, mesmo entre autores que reconhecem a enorme valia da teoria da reprodução, têm surgido críticas ao “profundo fatalismo sociológico” e às “tautologias funcionalistas” que transportam “o risco de alimentar discursos de renúncia à possibilidade de um sistema educativo mais igualitário” (Cabrita, 2003, pp. 106-107). Além deste efeito justificador sobre práticas que pretende denunciar, Vieira (2007) assinala a negligência acerca do trabalho realizado por pais e alunos (sobre si próprios), de forma a assegurar o êxito escolar, bem como a pluralidade de experiências, representações e práticas (habitus) que caracteriza hoje o corpo docente. Na mesma linha, no Brasil, Nogueira e Nogueira (2002) argumentam que a teoria da reprodução constitui um quadro macrossociológico consistente da relação entre sistema de ensino e estrutura social, mas que apresenta fragilidades nos estudos qualitativos sobre a relação entre estratégias familiares e contextos de escolarização. 

Se estas várias leituras, na esteira de Lahire (1998), apontam para as possibilidades da acção (individual e colectiva) sobre a realidade social — e para os efeitos perversos de conformação que poderá ter a teoria da reprodução — devemos salientar que: (1) não há estudos que reportem mudanças consideráveis no princípio tendencialmente reprodutivo em que continua a assentar a relação entre estrutura social e sistema educativo, apesar das forças políticas, dinâmicas económicas e ideologias educativas variarem no tempo-espaço (tópico seguinte); (2) existem diversas lógicas e forças sociais, observáveis a nível micro, mas que se confrontam inevitavelmente com um princípio macro de dupla reprodução (estrutural e cultural) e, em muitos casos, não lhe conseguem resistir; e (3) as referidas “leituras fatalistas” da teoria da reprodução enquadram-se num processo propriamente escolar  (desconstruído por Bourdieu e Passeron) de “neutralização do saber”, submetendo-o às lógicas da instituição e mitigando assim o seu potencial disruptivo. Ao elaborar uma teoria explicativa sobre uma regularidade social tão forte e persistente nas sociedades modernas, os autores não negam a possibilidade da sua transformação, mas evitam responsabilizar actores particulares — os professores, os alunos, as famílias, o governo, o sindicato — como é tão frequente escutar-se nos debates públicos, denunciando um sistema de relações no qual estes actores estão integrados, e do qual depende a sua legitimidade e afirmação individual.

Retomando o desafio de Seabra (2009) acerca da necessidade de “teorias de médio alcance” sobre a relação entre origens e destinos sociais, discutimos em seguida a utilidade da teoria reprodução para a compreensão das relações entre sistema educativo e estrutura social, no quadro da sociedade portuguesa actual, recorrendo a alguns estudos recentes e identificando também brechas na investigação nacional. Este debate desdobra-se em três dimensões: o papel da escolaridade na reprodução e/ou mobilidade social; a definição político-administrativa do currículo escolar; a relação pedagógica e a dialéctica ensino-aprendizagem.

 

Massificação escolar e desigualdades sociais

A expansão do sistema educativo, especialmente veloz e recente em Portugal, tem sido apontada como evidência para refutar a teoria da reprodução, consubstanciada no acesso ao ensino superior de segmentos das classes desfavorecidas e concomitante transformação da estrutura socioprofissional (Machado e Costa, 1998; Almeida e Vieira, 2006). Comparando a juventude actual com gerações precedentes, é difícil enfatizar a reprodução em face das profundas alterações observadas ou pretender que estas são independentes do aumento das oportunidades educativas (Cabral e Pais, 1998; Guerreiro e Abrantes, 2004). Poderíamos, então, supor que a inferioridade escolar das classes desfavorecidas se dilui com o tempo, dando lugar a um sistema igualitário, colocando a teoria da reprodução entre um parêntesis histórico, ou transferindo-a para fora do sistema educativo?.4

Mais de 30% dos jovens portugueses abandonam a escola sem completar o ensino secundário (Comissão Europeia, 2009), e um estudo quantitativo recente sobre este ciclo intermédio (Roldão et al., 2009) atesta a actualidade de uma tendência identificada, desde os anos 60, em relatórios internacionais: a expansão educacional está longe de ser socialmente igualitária. Não apenas os jovens das classes populares, grande parte deles com reprovações ao longo do ensino básico, estão sub-representados entre os estudantes do secundário, como se orientam preferencialmente para os cursos profissionais. À eliminação abrupta, por exame, sucederam “formas suaves” de penalização quotidiana, por combinações de micro-factores (Sebastião, 2009), com especial incidência no início dos ciclos de escolaridade (Abrantes, 2008). Teses de mestrado recentes mostram que num bairro social lisboeta (Duque, 2009), ou numa vila açoriana (Gaspar, 2010), os percursos escolares de insucesso, desmotivação e abandono permanecem naturalizados nos tecidos locais, pelo divórcio entre as culturas familiares e juvenis, por um lado, e as normas e expectativas escolares, por outro. As probabilidades de mobilidade destes jovens, apesar do esforço das famílias e do Estado em mantê-los a estudar até aos 16 anos, não variam muito da situação das crianças que, nos anos 60, não completavam a 4.ª classe. Devido à inflação dos diplomas, para este terço dos adolescentes que vagueia pelas escolas, a expansão dos níveis de escolaridade não significa um acréscimo de oportunidades, mas o adiamento da entrada no mercado laboral. Parte deles descende de imigrantes, mas o seu insucesso escolar está fortemente associado ao lugar de classe na sociedade portuguesa, mais do que a distâncias culturais e linguísticas (Machado, Matias e Leal, 2005; Seabra, 2009).

Pesquisas recentes têm mostrado que as famílias com maiores capitais culturais, pressionadas por uma ideologia securitária e pelo aumento da competição escolar, desenvolvem estratégias incisivas de salvaguarda, para os seus descendentes, de privilégios educativos. Se a educação da elite se caracteriza por estratégias de distanciação e distinção (Vieira, 2003), hoje, as novas classes médias, além do trabalho pedagógico quotidiano convertível em vantagem escolar (Almeida e Vieira, 2006), dispõem de meios eficazes para assegurar aos seus descendentes “ambientes educativos” selectivos, inclusive dentro da rede pública (Diogo, 2004; Abrantes, 2008; Sebastião, 2009). Lado a lado, trabalham escolas (e turmas) socialmente desiguais: umas marcadas por expectativas, investimento e sucesso; outras encerradas em carências, instabilidade e fracasso. O reforço das desigualdades e da indisciplina, resultantes da sedimentação de “circuitos de escolarização” diferenciados, pode entender-se como consequência da agregação de acções individuais, mas a autonomia (central e local) do sistema acolhe e legitima estas solicitações, servindo interesses de classe, através do velho processo weberiano de açambarcamento de oportunidades.

Este contraste que marca a juventude portuguesa (Cabral e Pais, 1998) entre os “filhos” da escola e os seus “bastardos”, reacendendo o debate sobre a “sociedade dual em evolução” (Nunes, 1964), talvez seja mitigado pela aposta recente nos cursos profissionais. Sobram estudos que demonstram a esperada origem desfavorecida do seu público, mas faltam pesquisas que analisem se estes cursos produzem, de facto, um padrão intermédio de qualificações, reconhecido no mercado de trabalho e permitindo, desta forma, o acesso a condições sociais e económicas que superam o estatuto tradicional reservado às classes populares. Uma pesquisa recente (Mendes, 2009) sugere que a expansão do ensino profissional não deixou de gerar hierarquizações no seu interior: o valor social dos cursos e escolas é variável, consolidando-se inclusive uma via privilegiada para as classes dominantes. 

O próprio princípio de que a expansão universitária gera per si padrões massivos de qualificações superiores que permitem o acesso a posições privilegiadas na estrutura de classes deve sujeitar-se a prova. Ao colocar a licenciatura como critério de categorização socioprofissional, podemos reificar tendências com grande potencial heurístico em configurações societais precedentes, mas que se vêem hoje atravessadas por novos critérios de segmentação e distinção. As investigações sobre os estudantes universitários (Almeida, Costa e Machado, 1990; Machado et al., 2003; Costa e Lopes, 2008) têm mostrado que tanto a sua distribuição por cursos e universidades, como os seus percursos e resultados estão relacionados com a origem social..5 E apesar de a larga maioria dos jovens portugueses de qualificação superior aceder, até aos 30 anos, a funções qualificadas, essa percentagem reduziu-se de 90% para 80% na primeira década do milénio, numa evolução inversa ao risco de desemprego (Comissão Europeia, 2009).

Infelizmente, não possuímos um conjunto de estudos como aqueles que, no Reino Unido, demonstram a estabilidade dos padrões de mobilidade social, resultante do aumento do impacto da educação na distribuição laboral (erosão da influência directa de classe), compensado pela correlação crescente entre origem social e resultados escolares, mal-grado as políticas educativas compreensivas (Erikson e Goldthorpe, 1992; Fitz, Davies e Evans, 2006). E considerando o carácter elitista do sistema educativo do Estado Novo, é plausível que a abertura educativa tenha ampliado a mobilidade social, sendo demagógico, perante a transformação sistémica, argumentar que se trata de um mero “custo de legitimação”. Mas relembremos a distinção entre “mobilidade estrutural” e “mobilidade social” (Bertaux, 1978), procurando deslindar se a primeira não terá iludido a segunda e induzido a expansão escolar. Também o êxito escolar das raparigas e de alguns grupos étnicos (Grácio, 1997; Machado, Matias e Leal, 2005; Seabra, 2009) mostra que a transformação das relações étnicas e de género, sob os auspícios escolares, é compatível (e reforça) a reprodução classista.

É indesmentível que os jovens das classes dominantes têm hoje de empenhar-se no trabalho escolar para conservar a posição de origem, e que os jovens mais inteligentes e esforçados das classes populares dispõem, através da escola, de uma via individual de mobilidade social (Vieira, 2003). Mas a socialização prolongada de todos os jovens num contexto escolar (em que as possibilidades de êxito permanecem muito assimétricas em função da origem social), não deixa de contribuir para a conservação, naturalização e legitimação das desigualdades sociais, vividas hoje de forma profundamente individualizada..6

Para prosseguir esta linha de análise, torna-se fundamental aprofundar a investigação empírica sobre como os percursos, as competências e os diplomas escolares resultam (ou não) das formas de socialização primária e se convertem (ou não) em trajectórias, identidades e estatutos socioprofissionais, considerando a sua (des)articulação com outros processos, entre os quais as aprendizagens familiares, as redes sociais e as dinâmicas laborais.

 

Arbitrário cultural e classes dominantes

Tratando-se de uma tripla reificação, nunca desconstruída na obra de Bourdieu e Passeron, a expressão “arbitrário cultural” “ao serviço” das “classes dominantes”, constitui um convite para explorar os modos de (re)produção dos currículos escolares. Mesmo em estudos que discutem a igualdade de oportunidades no sistema educativo, os currículos surgem notavelmente naturalizados, negligenciando-se o seu carácter socialmente construído, cuja importância na produção das desigualdades não é despiciente. Importa, pois, retomar a discussão sobre os processos sociais de definição daquilo que se transmite na escola — a “matéria”, expressão que denota bem o grau de naturalização — e de como se transmite — como se “dá a matéria” —, explorando a sua relação com as dinâmicas culturais e estruturais.

Na hipótese de a escola se centrar na aprendizagem da lavoura, por observação e imitação das práticas dos trabalhadores rurais, é provável que os “bons” e os “problemáticos” fossem outros, bem como a sua correlação com a estrutura de classes (e de género). Basta analisar as alterações dos padrões de (in)sucesso e de (in)disciplina em Educação Física e o incómodo provocado por esta pequena variação inconsequente à relação entre hierarquias sociais e escolares. Podemos imaginar um currículo que sintetizasse e consagrasse a cultura nacional (no caso português, incluiria Os Lusíadas, mas também o Borda D’Água, os bailes populares, os modos de produção do vinho e as receitas do bacalhau), cumprindo a função durkheimiana de integração sociocultural, mas o que argumentam Bourdieu e Passeron é que tal reforma seria sempre bloqueada, tanto pelas classes dominantes como pelo corpo docente, o que é corroborado pelas violentas resistências recentes aos tímidos esforços de reforma curricular.

A produção dos currículos assenta numa dialéctica permanente entre duas operações: a definição político-administrativa das ofertas educativas, planos curriculares, programas disciplinares e critérios de avaliação; a apropriação e aplicação local destes normativos e orientações por parte dos actores escolares. Embora a morfologia centralista do sistema português induza um tipo de relação sequencial, não podemos negligenciar que, nas sociedades democráticas, não apenas as políticas educativas se vêem na necessidade de buscar uma “legitimação técnica” (Resende e Dionísio, 2005), mas também as práticas (frequentemente contestatárias) dos professores suscitam, em muitos casos, a reformulação das políticas em curso (Archer, 1979; Petitat, 1982). 

Se os currículos escolares, no Estado Novo, se pautavam por um quadro marcadamente elitista, conservador e repressor (Mónica, 1978; Barroso, 1995), assistimos, desde os anos 70, a um incessante ímpeto reformista, orientado para a abertura cultural, a inclusão social e a diversificação das experiências educativas (Resende e Dionísio, 2005). Foram abolidas as instituições escolares vinculadas com as formas mais brutais de repressão e eliminação, dando origem a uma nova “cultura escolar”, assente em valores como a cidadania, a tolerância e a inclusão. Trata-se, contudo, de um processo incompleto, e que se confronta hoje com novos bloqueios, à medida que se difunde um discurso crítico e nostálgico sobre a escola que, apesar do escasso fundamento científico (Almeida e Vieira, 2006), usufrui de amplo espaço mediático e forte capacidade de interpelação política, suscitando a recuperação dos exames nacionais como mecanismo de classificação dos alunos, das escolas e do próprio sistema de ensino (Abrantes, 2009).

Além disso, em vez de assumir certas mudanças logo que são legisladas, importa investigar qual o peso efectivo de novas ideologias educativas e políticas nos currículos escolares. Inclusive no período revolucionário, a unificação do secundário não conseguiu impor um conjunto de disciplinas e metodologias mais práticas, convertendo-se na expansão e abertura dos liceus, mais do que na convergência anunciada dos ensinos técnico e liceal (Grácio, 1985). No final dos anos 70, sob os novos desígnios de estabilidade e crescimento, “houve um regresso aos currículos mais subordinados à matéria — acabando-se assim com as tentativas de ‘abertura’ do currículo, estendendo-se a novas áreas e formas de interdisciplinaridade — e a modelos pedagógicos mais tradicionais” (Stoer, 1982, p. 35).

Alguns anos volvidos, já integrados no projecto europeu, e com as instituições democráticas consolidadas, criaram-se condições para a produção de uma reforma educativa de fundo, com a aprovação de uma nova lei de bases. Sem dúvida que a criação de um ensino básico de nove anos — articulando o ensino primário, preparatório e secundário unificado, segundo os princípios da pedagogia compreensiva e da inclusão social — constituiu uma viragem no sistema educativo português, mas os desígnios da modernização tecnocrática do sistema foram dominantes nas decisões políticas (Alves e Canário, 2004), enquanto o insucesso escolar, consagrado pelas reprovações repetidas, continuou a marcar o percurso de grande parte dos jovens, sobretudo das classes populares (Sebastião, 1998; Afonso, 1998). Os currículos escolares foram-se ampliando para abarcar novas competências, funções e problemáticas, mas a sua apropriação escolar tende a conservar o escolástico, tornando residuais as actividades práticas e de base comunitária (ver tópico seguinte). Nos contextos rurais, industriais ou urbano-populares, mantiveram-se arredados das estratégias de desenvolvimento local e das expressões culturais locais, impulsionadas por outros pólos de legitimação..7

Por fim, na última década, num cenário político e educativo de grande crispação, os currículos escolares têm surgido notavelmente “naturalizados”, estando o combate ao insucesso e ao abandono escolares assente em duas estratégias: (1) o lançamento de planos de apropriação escolar voluntária (Ciência Viva, Plano Tecnológico, Plano de Acção para a Matemática, Plano Nacional de Leitura, etc.), cujo impacto nas práticas pedagógicas, apesar dos avultados orçamentos, é sempre mediado, podendo acentuar assimetrias entre escolas; (2) a criação de cursos alternativos para alunos em situação de insucesso repetido e abandono eminente (currículos alternativos, CEF, PIEF), com o perigo de gerar, no ensino básico, dois modelos paralelos, escolarmente incomunicantes e socialmente díspares.

Ainda assim, esta relativa “naturalização curricular” diverge das reformas educativas lançadas nos Estados Unidos ou no Reino Unido, com forte pendor neoliberal e participação directa da indústria. Podemos advogar que ambas expressam interesses das classes dominantes, se assumirmos que estas estão mais concentradas no mercado em alguns países, enquanto noutros têm interesses simultaneamente na administração pública (“nobreza de estado”) e no sector privado..8 Mas, para evitar a reificação inscrita na falácia das explicações circulares que não acrescentam valor heurístico,.9 será necessário um estudo da relação entre as elites e a educação. Existem sinais de que, apesar das constantes querelas político-partidárias, os governantes da educação têm derivado de uma certa linhagem, cuja génese se encontra numa facção tecnocrática e liberal do Estado Novo, apoiada pelas intervenções sucessivas dos organismos internacionais e legitimada pela capacidade de reafirmar, em sucessivas configurações socioeconómicas, a importância da educação para o crescimento económico e manutenção da ordem social (Abrantes, 2008). Mas seria indispensável uma análise sistemática para dar conta das mutações, variações e tensões nesta (re)produção dos governantes da educação, bem como das alianças político-sociais que a sustentam, a par do desenvolvimento da complexa burocracia educativa, apenas parcialmente controlada pela referida elite.

 

A acção pedagógica e a violência simbólica

A Reprodução constitui também um quadro conceptual arrojado para compreender a própria acção pedagógica que, sendo obviamente condicionada pelas políticas educativas, não é redutível a ela, tomando parte (como produto e produtor) nos padrões civilizacionais que conformam as relações sociais. As pesquisas de terreno que se têm realizado em escolas portuguesas podem ser extremamente úteis para discutir a validade dos argumentos de Bourdieu e Passeron.

A este propósito, é notória uma transformação das relações pedagógicas, marcada por uma redução do abismo de poder que existia entre professores e alunos (ou famílias) e, por conseguinte, dos padrões de violência (física e simbólica). Esta transformação resulta de mudanças de fundo na sociedade portuguesa, consagradas no reconhecimento dos direitos das crianças e também das famílias na vida pública e, nomeadamente, nas instituições escolares (Oliveira-Formosinho, 2004). Para este processo concorre também a mudança no estatuto simbólico da escola e dos professores (em curioso contraste com a melhoria das condições materiais), motivada pela democratização escolar: outrora envolta num véu sagrado, a escola é hoje vivida de uma forma bem mais profana, como a ocupação legítima (e necessária) das crianças e dos jovens (Vieira e Almeida, 2006).

É certo, como notam Bourdieu e Passeron, que a educação se inscreve necessariamente em estruturas assimétricas de poder, mas os autores reduzem-nas à dominação de classe, esquecendo, sob a ideia de que a juventude é apenas uma palavra, a subordinação durkheimiana dos jovens aos adultos como fundamento do trabalho pedagógico..10 Será interessante convocar as reflexões de Madureira Pinto (2007) sobre a degradação das condições necessárias à comunicação pedagógica, geradoras de ambientes de tensão permanente, que não propiciam o ensino-aprendizagem. A ideologia emergente da “infância protegida”, a velocidade das mudanças e o lugar central que os mercados atribuem aos jovens — consumidores vorazes e trabalhadores mediáticos (veja-se a omnipresença de futebolistas e manequins nos imaginários adolescentes) — não converterá os pais e os professores de aliados em opositores, causa e consequência da incapacidade mútua em afirmar uma autoridade da qual tem dependido a eficácia da sua acção? Talvez a principal vitória dos movimentos estudantis tenha sido, afinal, um novo contrato intergeracional, consagrado na maior tolerância escolar e social à indisciplina juvenil, em vez da proclamada sociedade (e escola) sem classes.

Acresce que, actualmente, as crianças e adolescentes das classes populares crescem num cenário em que, não apenas a sua participação no mercado laboral é escassa e ilegítima, mas também as referências familiares e comunitárias surgem fragmentadas pela erosão das culturas operárias, resultante das convulsões no mercado de trabalho (Enguita, 2007). Se a ideia, muito comum entre o corpo docente, de que estes jovens não são educados pelos pais, simplesmente “depositados na escola”, constitui um dos mais poderosos legitimadores da violência simbólica, podemos todavia questionar se, perante a fragilidade (e volatilidade) dos vínculos comunitários e laborais, a sua educação familiar induzirá ainda a formação de um habitus operário, ou não será, na verdade, resultado de uma amálgama pouco consistente de representações, experiências, afiliações, expectativas, desilusões, ausências..11

Da sobreposição destes vários processos parece resultar a redução da “autoridade pedagógica”, e consequente perda de eficácia do trabalho escolar, hoje muito dependentes do carisma e competência de cada professor, mais do que de uma suposta alteração radical das práticas pedagógicas, nunca comprovada através de investigações.

Pelo contrário, os estudos coordenados por Morais (ex. Morais, 2002; Matos e Morais, 2004) sobre as práticas pedagógicas no ensino das ciências demonstram que estas se continuam a caracterizar, na maioria dos casos, por um forte controlo dos professores, em todas as dimensões da interacção, sem incluir actividades de investigação, nem referências exteriores à escola, o que penaliza as aprendizagens dos alunos das classes trabalhadoras. Também um inquérito nacional aos professores (Abrantes, Santos e Caeiro, 2006a e 2006b) constatou que, apesar da assinalável diversidade, não apenas as concepções e práticas pedagógicas conservadoras se mantêm maioritárias, como se reforçam entre os docentes mais jovens, havendo um segmento considerável que reconhece não consultar as orientações curriculares oficiais, depreciando a sua relevância ou utilidade. E um estudo qualitativo sobre os professores de Português no Alentejo (Leal, 2009) mostra como os docentes compatibilizam, de formas diversas, um compromisso com os ideais republicanos e uma resistência endémica às dinâmicas contemporâneas que, tanto a nível social como educativo, perspectivam como perniciosas. No divórcio moral (ou nostalgia estrutural) que revelam as denúncias da permissividade e comodismo dos pais (e “da sociedade”), confirmamos a sustentação do trabalho escolar em determinadas formas de socialização familiar, bem como um estado avançado da cisão entre o público escolar legítimo e real. Mas, tal como observam Alves e Canário (2004),  as acusações docentes alargam-se à administração (central, regional e local) pelo irrealismo, incoerência e ineficácia das orientações. Ao resistir às pressões externas, fechando-se na sua “autonomia relativa”, os docentes reproduzem uma “pedagogia espontânea”, enquanto restituição de experiências de vida (e de classe) e que, por conseguinte, não pode mais do que reforçar as lógicas reprodutivas do sistema. Mas, de passagem, minam a base institucional da sua autoridade pedagógica, tornando-a dependente do seu (variável) carisma pessoal e competência técnica.

Se este é o cenário dominante nas disciplinas clássicas, seria expectável uma maior abertura cultural resultante da introdução de novas áreas curriculares, como a Formação Cívica, o Estudo Acompanhado ou a Área de Projecto. Porém, vários estudos têm mostrado que, na ausência de um programa prescritivo, estas foram rapidamente marginalizadas no campo escolar, tornando-se espaço privilegiado para o reforço das dimensões moral, disciplinar e administrativa da acção pedagógica (Abrantes, 2008; Bettencourt, 2008; Henriques, 2008). Além dos aspectos formais das notas, comunicados e faltas, em particular, a Formação Cívica foi apropriada para a imposição de normas, valores e sanções. Fomentar competências e hábitos de participação na sociedade (e na escola) converteu-se em objectivo residual, dependente de os alunos terem desenvolvido previamente um habitus consentâneo com a cultura escolar.

Por fim, importa mencionar que os estudos realizados em contextos de pobreza, seja num bairro social lisboeta (Duque, 2009), ou numa vila açoriana (Gaspar, 2010), mostram a persistência do hiato entre o trabalho docente e as dinâmicas locais. Na sua maioria, os professores leccionam nestas escolas contrariados e “de passagem”, desconhecem a comunidade local, mas concebem-na como um obstáculo ao seu trabalho, entendido como a transmissão de um conjunto abstracto, normalizado e compartimentado de conhecimentos e valores definidos centralmente. A reprovação mantém-se como derradeiro instrumento de autoridade pedagógica e de violência simbólica, aplicado como penalização por infracções sistemáticas à ordem escolar. Nestes contextos, o percursos de grande parte dos jovens é marcado pela interiorização progressiva do fracasso e o abandono gradual (violento ou silencioso) do sistema, reforçando-se nas reprovações repetidas e nas transições entre ciclos, passando longos anos na escola sem desenvolverem as competências básicas de escrita e de aritmética. 

Sendo os programas e orientações oficiais de carácter mais construtivo considerados “líricos” por grande parte do corpo docente, o “arbitrário cultural” permanece reificado no tecido social local que sustenta as organizações escolares, sobretudo nas escolas imersas em contextos sociais mais distantes da cultura escolar. Assim, o enfraquecimento dos instrumentos clássicos de violência simbólica conduziu a um certo esvaziamento das relações pedagógicas, com excepção de uma minoria de escolas e de professores que têm conseguido construir, de forma autónoma, um novo contrato com as respectivas comunidades locais.

 

Notas finais

Poderíamos aprofundar as nossas reservas à teoria da reprodução, argumentando a favor de uma revisão profunda dos conceitos de “violência simbólica” e de “relações de forças”, bem como das suas derivas universalista e funcionalista, mas preferimos centrar-nos nos contributos mais directos para a análise social do presente, e que têm sido recentemente preteridos por um presumível fatalismo resultante de leituras redutoras da obra. A discussão comparada da proposta de Bourdieu e Passeron permite sublinhar fragilidades, mas também argumentar que as propostas subsequentes têm, sobretudo, acrescentado ângulos de análise, sem realmente a refutar. Frequentemente tem-se partido do pressuposto da reprodução para mostrar que, obviamente, a escola inclui outras dinâmicas (seria expectável uma explicação integral?) ou, em alternativa, recusado a teoria a priori para apresentar resultados que, na verdade, a corroboram.

Talvez o interesse desta empresa resida, então, na busca por um entendimento integrado dos diferentes segmentos do sistema educativo, em relação com as estruturas sociais, contra as reduções analíticas que resultam da divisão disciplinar e temática do campo científico, bem como de um certo fetichismo da crítica. Estamos cientes das vantagens heurísticas de conceber a acção pedagógica como um trabalho recíproco de interpretação (ou “dupla hermenêutica”) e o desenvolvimento de qualquer organização ou sistema educativo como consequência, quantas vezes imprevista, da confrontação permanente de pressões — formais e informais, internas e externas — para a integração e igualdade, por um lado, e para a selecção e segregação, por outro, tanto maiores quanto o sistema educativo é decisivo para a estruturação dos actores e das sociedades. Mas, enquanto as classes dominantes e o corpo docente se imponham, a reprodução será o resultado expectável. Não invalidando os movimentos pedagógicos, esta constatação ajuda-nos a compreender o seu efectivo alcance político-social.

Esperemos que da leitura deste artigo não resulte a interpretação de uma qualquer intenção desactualizada de consagrar e sublimar uma obra já sobejamente reconhecida, mas sim o convite à sua releitura crítica, tão rigorosa quanto criativa, como uma fonte profícua para continuarmos a desenvolver o conhecimento das sociedades contemporâneas e, em particular, a sua dimensão educativa.

 

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Recebido para avaliação a 17-3-2010. Aceite para publicação a 15-9-2010.

 

Notas

1 Estarei em dívida com Fernando Luís Machado e Teresa Seabra, cuja dedicação pedagógica me proporcionou um encontro privilegiado com a teoria da reprodução e cujos valiosos comentários a uma versão preliminar do texto, bem como as notas de Cristina Roldão, me permitiram melhorá-lo. É justo reconhecer a importância dos debates vivos nos cursos de sociologia da educação que tenho leccionado, em licenciaturas e mestrados de várias instituições, sobretudo considerando que muitos dos estudantes têm sido docentes, e aspirantes a docentes, pelo que as suas interpretações da teoria da reprodução são duplamente interessantes e reveladoras. Por fim, agradeço ao editor e aos revisores anónimos da revista, pois as suas críticas ao manuscrito foram fundamentais para clarificar alguns argumentos.

2 Trata-se de uma variante educativa do modo como Granovetter (1985) demonstra as similitudes das perspectivas aparentemente antagónicas do “homem sub-socializado” da economia neoclássica e do “homem sobre-socializado” da sociologia funcionalista.

3 A discussão sobre o peso das estruturas e da acção atravessa o projecto sociológico, mas na sociologia da educação adquire frequentemente contornos éticos e políticos, o que nos remete para a discussão sobre o papel do cientista social. Os sociólogos da educação têm assumido a ambição de melhorar os sistemas educativos. Será que os sociólogos da religião estarão tão motivados em reformar os sistemas religiosos? E os sociólogos da saúde, do direito, da arte? Mesmo que nos anime um propósito de cidadania, não será mais plausível que este derive do conhecimento rigoroso da realidade, em vez de deixá-lo imiscuir-se nos processos da sua produção? Apesar do seu distanciamento no tratamento de outras dimensões da vida social, nem Durkheim (1922) escapou a esta tendência apologética.

4 Duru-Bellat (2005) sugere que o peso da democratização do sistema educativo na transformação social pode ter sido mitigado por mecanismos externos ao sistema, nomeadamente, por critérios selectivos no mercado laboral. Trata-se de uma hipótese, embora parta de uma acepção formal do sistema educativo, não considerando a sua dimensão informal, em particular, as segmentações e hierarquias horizontais no seu interior.

5 A um nível mais fino, podemos colocar cenários de transformação: Será que algumas formas de socialização da classe média não orientam os jovens para escolhas de vocação, por exemplo, em áreas artísticas, que raramente permitem a reprodução intergeracional dos rendimentos materiais e simbólicos? Será que a valorização da gestão industrial e comercial, apanágio de alguns segmentos das classes populares (em contraste com certo desprezo das classes intelectuais e da própria cultura escolar tradicional), não garantirá a alguns dos seus descendentes uma via efectiva de mobilidade? 

6 A reprodução tem sido frequentemente interpretada como o processo escolar através do qual os jovens das classes dominantes, em virtude da sua herança cultural, obtêm vantagens no campo escolar e, desta forma, asseguram uma posição privilegiada no espaço social. Contudo, Bourdieu e Passeron partem de uma acepção mais lata, no sentido de um mecanismo de preservação (e legitimação) da cultura dominante e dos sistemas de dominação, mesmo num cenário de mobilidade social.

7 Em contextos rurais, o sucesso escolar é sinónimo de êxodo rural e ruptura com as redes e tradições locais, uma vez que autoridades, professores, pais e jovens coincidem na irrelevância dos saberes escolares para a melhoria dos modos locais de produção e de vida (Gaspar, 2010), numa expressão da racionalidade conservadora inscrita nos “circuitos de sobrevivência”, mas também da incapacidade resignada da escola portuguesa em introduzir transformações neste cenário. Sabemos, por exemplo, o importante papel das escolas suecas na transformação dos modos de vida rurais no século xix (Archer, 1979).

8 Segundo a tipologia de Almeida, Costa e Machado (ex. Machado e Costa, 1998), podemos assumir que as “classes dominantes” correspondem aos empresários, dirigentes e profissionais liberais, e, numa condição subordinada, aos profissionais técnicos e de enquadramento. Se eliminarmos os pequenos empresários com uma relação tipicamente distanciada com o universo escolar, considerando a estrutura do nosso tecido produtivo, é fácil reconhecer que estas classes se encontram amplamente representadas no sector público. 

9 Se partimos de uma definição tão vaga de “classes dominantes” como as classes que controlam o sistema educativo, então, a afirmação de que o sistema serve os seus interesses será sempre verdadeira, mas passamos por alto as mutações na composição da classe dominante, o seu grau de coesão interna e controlo efectivo do sistema. Mesmo que o seu interesse seja a auto-preservação e a acumulação, bem como a transmissão intergeracional de privilégios (serão fins inscritos na natureza humana ou variam culturalmente?), as suas estratégias divergem. Reforçar os mecanismos de eliminação e reprodução serve para perpetuar e legitimar o poder. Mas diminuir o carácter selectivo do sistema, aumentando a capacidade de inclusão, pode ser uma estratégia eficaz de manter a ordem social, sobretudo num contexto de desemprego juvenil e erosão de outras esferas de integração, alargando simultaneamente o mercado.

10 Estas formas de hierarquização não se excluem mutuamente, como é visível na clássica dificuldade de imposição, nos colégios de elite, da autoridade dos professores, dada a sua posição subordinada na estrutura de classes. Talvez a resistência dos jovens das classes populares adopte contornos mais violentos, mas é a oposição das classes médias e superiores que coloca em causa o sistema. Algo semelhante se poderá dizer sobre a dominação masculina, pela dificuldade de os rapazes aceitarem a autoridade das professoras.   

11 O mesmo parece ocorrer em muitas famílias das classes dominantes, sendo a velocidade da mudança e a precaridade dos vínculos um obstáculo comum ao desenvolvimento de estratégias familiares consistentes de socialização e de ascenção (ou conservação) social. No entanto, os capitais económicos, culturais e sociais das famílias constituem cartas valiosas que se podem jogar em momentos em que o percurso escolar (e de vida) dos jovens se encontra mais ameaçado. É o caso dos pais que, sobretudo no ensino secundário, ajudam os filhos com algumas matérias, pedem apoio a familiares e amigos, interpelam directamente os professores ou contratam explicadores. 

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