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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.199 Lisboa  2011

 

Filipe Ribeiro de Meneses, Salazar. Uma Biografia Política, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2010, 832 páginas.

 

Manuel Loff

Faculdade de Letras, Universidade do Porto

 

Qualificada como “incontornável” por quem “[esperava] há 40 anos por este Salazar” (Victor Pereira, in Público, 27-8-2010), a biografia que Filipe Ribeiro de Meneses preparou do ditador — já agora, um termo que o autor, sem citar alguém, ou usando alguma expressão que julga consagrada (“os ‘grandes ditadores’ do século xx”), utiliza uma única vez (p. 626) para designar o seu biografado, e para se referir aos últimos meses do seu governo — tem sido tomada como a primeira biografia de produção estritamente académica, por oposição à biografia “colossal” (diz Meneses), e necessariamente comprometida, que Franco Nogueira produziu nos anos 70. Se é indiscutível a dimensão do projecto — 650 páginas de texto, outras 100 de notas, recurso a um conjunto denso e muito sólido de documentação cobrindo efectivamente todos os grandes momentos da ditadura salazarista —, não deixa de ser revelador que seja o próprio autor a pretender definir o lugar da sua obra no conjunto da historiografia. Para ele, a historiografia portuguesa esteve “durante muito tempo dominada pelos modelos marxistas e dos Annales” — o que, honestamente, me parece um enorme exagero... —, e isto mesmo ajudaria a explicar a ausência de biografias de Salazar, receando os historiadores “provocar a ira do resto da profissão” (Público, 29-10-2009), porque emitir “qualquer sinal de empatia ou tentativa de contextualizar e ‘compreender’ Salazar seria um insulto às suas vítimas” (p. 13). O argumento é arqui-conhecido para quem estuda os autoritarismos à escala internacional, e Meneses decidiu importá-lo para Portugal, colocando-se (julgará ele) na confortável posição de quem, ao contrário dos demais, julga não ter uma “opinião forte e feita sobre Salazar” (Público, 29-10-2009).

Não é, decididamente, a forma mais correcta de abordar uma personagem e, sobretudo, um regime desta natureza. A insinuação de que a investigação histórica (e, note-se: falo de investigação, não falo da comum publicística) sobre o Estado Novo teria estado, até recentemente, dominada por diferentes formas de intencionalidade política — Meneses responde ao longo do livro quase sempre àqueles que ele situa no anti-salazarismo — é das mais inconsistentes banalidades que percorre o discurso daqueles que, nos media e no debate político, se sentem desconfortáveis com o percurso que a historiografia tem feito nos últimos 30 anos, e que tem ajudado a sociedade portuguesa a confrontar-se consigo mesma e com o seu passado recente. É o próprio Meneses que entende que “as paixões políticas esmoreceram o suficiente para que se possa levar a cabo excelente investigação histórica sobre as estruturas e o funcionamento do Estado Novo”, reconhecendo que se “[baseou] em muito desse trabalho em curso, (...) [preferindo] remeter para os frutos da investigação de outros autores em vez de tentar constantemente reinventar a roda” (p. 13). A escolha desses frutos da investigação é que, contudo, é bastante evidente, preferindo quase sempre uma corrente que analisa a realidade portuguesa de forma politicamente elitista, atlântista, e socioeconomicamente liberal, ignorando obras maiores sobre o período; o volume Estado Novo de Fernando Rosas é referido uma primeira vez... nas conclusões (p. 648), por exemplo.

A perspectiva em que se coloca apresenta vários problemas metodológicos. Antes de mais, tendo produzido este livro originalmente para “o mundo anglófono”, Meneses decidiu procurar contrariar aquilo que ele próprio sintetiza como a visão que naquele mundo se terá de Salazar: “mencionado nas discussões sobre o fascismo, enquanto fenómeno internacional, (…) assume um papel silencioso na Segunda Guerra Mundial, normalmente como um homem obstinado e de vistas curtas que só sob muita insistência cedeu aos Aliados as bases dos Açores; surge como um aliado cada vez mais embaraçoso durante a Guerra Fria, um mal necessário na guerra contra a URSS; e é enfim alvo de ridículo, ou indignação, pela sua política africana” (p. 12). Semelhante simplificação propicia que Meneses, formado e trabalhando em universidades irlandesas, afirme que desta forma procura “furar o muro de indiferença que muitas vezes cerca Portugal” (Público, 29-10-2009), confundindo, creio eu, as diferentes dimensões e escalas nas quais se situam os estudos que, por esse mundo fora, se centram em Portugal, só depois no regime salazarista e, por último, no próprio Salazar.

O seu ponto de partida é o de que “Salazar é caso único entre os ‘grandes ditadores’ do século xx” — conjunto de personagens relativamente ao qual Meneses se empenhará permanentemente em distanciar o seu biografado — “na medida em que o seu protagonismo público decorreu do mérito académico” (p. 21), “[destacando-se] (…) pelas suas proezas académicas” (p. 16). Parece verdadeiramente excêntrico sustentar semelhante avaliação do processo de construção da persona política de Salazar, quando o autor reconhece que àquele “foi conferido o título de doutor em leis, por acordo dos pares, mais uma vez sem ter” — como quando antes o haviam nomeado professor ordinário — “de se submeter a qualquer exame ou escrever uma tese. (…) [O] facto é que nunca teve de produzir um trabalho exaustivo de investigação” (p. 41). A construção argumentativa ao longo dos primeiros capítulos do livro desvaloriza, como se torna evidente, a interpretação da ascensão de Salazar ao poder como indissociável da viragem autoritária das direitas e da crise estrutural do sistema liberal, desencadeada na Primeira Guerra Mundial, de cuja engrenagem o ditador português é meramente um pequeno elo. Aqui, como na maioria do livro, o método biográfico sobrepõe-se a uma ponderação mais complexa, mais sistémica, da realidade histórica: outro problema permanente ao longo das centenas de páginas é o de se saber se é, afinal, de Salazar ou do regime que Meneses fala. A aparente novidade deste livro decorre, atente-se, da sua categorização como biografia, porque, obviamente, ninguém presumirá que faltarão obras gerais, várias delas muito sólidas, sobre o seu regime e sobre esse período da história portuguesa (da autoria, por exemplo, de Fernando Rosas, Braga da Cruz ou Reis Torgal, ou coordenadas por António Reis ou João Medina). O que é curioso é que Meneses nem as refira. Para ele, umas vezes Salazar e o regime são a mesma coisa; se Salazar decai, o regime degrada-se (veja-se, por exemplo, a sua curiosa interpretação de que só “à medida em que envelhecia [é que] o Estado Novo se convertia naquilo que sempre negara ser: uma ditadura pessoal” — p. 621); se Salazar reage, o regime revitaliza-se! Pelo contrário, noutras circunstâncias, Meneses lembra que “o Estado Novo era, naturalmente, mais do que Salazar”. E tais circunstâncias são muito reveladoras da perspectiva do autor. Exemplos: quando, nos anos 30, “a tendência fascizante crescia” e, “para a atrair, o regime adoptou as suas características”, para Meneses “o tipo de catolicismo político de Salazar [permanecia] aquilo que sempre fora, um credo minoritário” (pp. 193-194). Na mesma linha argumentativa de considerar exteriores a Salazar e à sua gestão política fenómenos e episódios que “[pesam] fortemente sobre a reputação de Salazar” (p. 618) vão as análises da sua (não) responsabilidade no assassinato de Delgado, da prática ou não de fraude nas eleições de 1958, ou no recurso sistemático ao trabalho forçado nas colónias africanas. “É preciso um acto de fé por parte de quem quer que escreva sobre este crime” — o assassinato de Delgado —, “já que é impossível demonstrar de forma conclusiva o que é que Salazar sabia e quando” (p. 618). No âmbito dos debates internacionais sobre o papel dos dirigentes dos Estados que praticaram crimes políticos, parece perigosamente resvaladiça a preocupação em mostrar que quem, como João Madeira, escreveu que “Salazar deu o seu consentimento” à Operação Outono, montada pela PIDE para eliminar Delgado, “não fornece qualquer referência nem invoca provas” (p. 618), como se o investigador não devesse considerar as conclusões a que a justiça portuguesa chegou no julgamento dos assassinos em 1978-1981, e que o próprio Meneses cita, ou como se tal raciocínio fosse admissível, por exemplo, perante a ausência de documentos assinados por Hitler a decretar a chamada Solução Final da Questão Judaica, isto é, o genocídio... É, no mínimo, completamente exótico que a um investigador académico lhe pareça relevante, 46 anos depois do assassinato, sublinhar que, “independentemente de Salazar saber ou não que Humberto Delgado poderia ser, ou iria ser, assassinado pela PIDE”, “quando se tornou óbvio para todos que a PIDE tinha de facto assassinado Humberto Delgado, não rolaram cabeças” (p. 619)... Será possível que Meneses não tenha percebido a redundância essencial de tal afirmação?

É provável que uma parte do sucesso editorial, e da boa recepção mediática, que o livro tem tido decorra da forma como Meneses parece escrever para um leitor-tipo que parta sistematicamente do princípio da boa fé de Salazar. Mas é inevitável a perplexidade perante o tom com que Meneses sintetiza o pensamento de Salazar, tantas vezes sem se perceber se é o biógrafo a ler a realidade ou se pretende que o leitor tome o que escreve como representando a leitura do próprio Salazar. Não se trata aqui de um mero problema de estilo; é que, no geral, o livro parece querer sintonizar com as leituras mais conservadoras, mais tradicionais, desse magma vagamente nostálgico que se pressente em vários sectores da sociedade portuguesa. Tal é particularmente visível na forma como Meneses descreve o papel desempenhado por Salazar nos anos da Guerra de Espanha e da Segunda Guerra Mundial (“durante dez anos, ao centralizar cada vez mais poder na sua pessoa e ao exigir obediência cega aos seus colaboradores, manteve Portugal em paz” (p. 215), na forma como tinha “conseguido vencer Humberto Delgado na contenda eleitoral” (p. 477); a questão é colocada assim mesmo, como se de uma banal “contenda eleitoral” se tivesse tratado), ou como, em 1961, resolveu a crise da Abrilada e se “[apresentou] como o salvador de Angola” (p. 507).

Meneses, que entende que “a base ideológica do Estado Novo foi-lhe conferida por Salazar”, “um democrata-cristão” (p. 189), descreve as “suas ideias [como] uma destilação de doutrinas católicas e contra-revolucionárias, na sua maioria retiradas de encíclicas papais e de pensadores franceses” (p. 107), vai eliminando uma após outra, a democracia-cristã, o corporativismo e o fascismo como caracterizáveis do regime, para chegar à desoladora e superficial conclusão de que “o Estado Novo construído por Salazar era, de facto, relativamente apolítico, preocupado acima de tudo com a sua própria sobrevivência, confundida com o interesse nacional, e com a preservação da ordem e da obediência” (p. 110). Se na “retórica de Salazar na década de 1930 encontramos tendências totalitárias no que diz respeito à intenção assumida de alterar a mentalidade do povo”, “tal mudança de mentalidade nunca ocorreu e o interesse de Salazar no projecto desvaneceu-se” (p. 193). Em suma, no que diz respeito à leitura ideológica de Salazar e do Salazarismo, Meneses embarca numa espécie de “pragmatismo” que ele próprio atribui a Salazar: quando o impacto social das fórmulas ideológicas é diminuto, poder-se-á dizer que elas, afinal, não caracterizam a mundivisão de quem as adoptou. Chegados a este ponto, um regime da natureza autoritária e tendencialmente totalitária como o salazarista poderia ser “apolítico”... “Se até [à Segunda Guerra Mundial, Salazar] era um elemento numa mescla volátil mas generalizada de crenças, que iam da democracia-cristã ao fascismo italiano e ao nacional-socialismo, unidos acima de tudo por uma rejeição da tradição parlamentar e da ideia de uma inevitável luta de classes, passou depois a ser um solitário na cena internacional. As convicções mais profundas de Salazar — ou, mais precisamente, as suas aversões mais profundas — não mudaram; o que mudou foram as circunstâncias internacionais e o equilíbrio político interno” (p. 191). Um regime “apolítico”? É isto convincente?

É que, ainda por cima, quanto à “velha questão” de se foi o salazarismo uma variante do fascismo, Meneses é especialmente pouco claro. Depois de recorrer a Linz, Payne, Schmitter e Costa Pinto (todos rejeitando a aplicação do adjectivo ao salazarismo), insinuar ser pouco “prudente” Lucena (para quem “Portugal era indubitavelmente um regime fascista”), rejeitar Collotti, e ignorar uma série de autores que sustentam o contrário (Rosas, Villaverde Cabral ou Torgal, para não falar em muitos mais), Meneses repete a velha tese de que “incluir Salazar (…) na grande família “fascista” equivale (…) a esticar o conceito de fascismo a tal ponto que ele perde significado” (p. 187). Contudo, não sendo fascista o Estado Novo, muito menos Salazar, Meneses fala de “elementos fascistas do Governo” (p. 163), admite que “muitos dos futuros colaboradores de Salazar que aderiram ao regime” vieram do Nacional-Sindicalismo, “fazendo-o oscilar nitidamente para a direita” (p. 153), cita o órgão oficial do partido único, o Diário da Manhã, a “[saudar] os progressos do fascismo no mundo” e a defini-lo “como a “designação universal das diversas tendências nacionalistas peculiares de cada país” (p. 194), entre as quais se destacaria o próprio Estado Novo, e sublinha até que “Salazar — e muitos outros em Portugal — se tinha apoderado de muito do aparato do fascismo para sobreviver” (p. 361). Para Meneses, a quem não lhe ocorre nunca usar, ou admitir, o conceito de fascização, Salazar, afinal, estava era empenhado em “travar a extrema-direita” fascista (designadamente, imagine-se, durante a Guerra de Espanha — p. 225), isto é, cedendo aos fascistas para melhor sobreviver, numa espécie de reedição, sob forma incomparavelmente mais elaborada, da famosa tirada de José Hermano Saraiva de que Salazar teria sido um anti-fascista...

O peso que Ribeiro de Meneses atribui à Guerra de Espanha e à Segunda Guerra Mundial no percurso do ditador chama-o para objectos de investigação que atraíram prioritariamente a maioria dos historiadores do salazarismo. Ao denunciar que este “é porventura o aspecto mais sujeito a mal-entendidos e mais deliberadamente distorcido de toda a sua carreira política”, Meneses refere especialmente os que descreve como “rivais e inimigos, comentadores hostis e historiadores subsequentes” que pretenderiam “[provar] as tendências pró-nazis” (p. 249) de Salazar. O resultado é decepcionante porque Meneses regressa à velha e inconsistente discussão da aliadofilia vs. germanofilia, como se uma interpretação multifacetada da política externa portuguesa do período e do posicionamento do Estado Novo perante os distintos projectos de reordenamento internacional se resolvesse em termos de (des)lealdade face à Grã-Bretanha ou vontade em participar na guerra ao lado de Hitler... Sendo impraticável analisar aqui as mais de 140 páginas dedicadas à questão, assinale-se que Meneses surpreende ao dedicar atenção especial ao “estudo da ‘Nova Ordem’” que resultaria da vitória alemã (pp. 259-274), temática fundamentalmente ausente da investigação sobre Portugal e a Segunda Guerra Mundial até à publicação, em 2008, do meu próprio livro “O Nosso Século é Fascista!” O Mundo Visto por Salazar e Franco, cujas teses Meneses parece discutir, mas sem nunca citar. Sem nada dizer sobre a adesão ou, no mínimo, a compreensão que Salazar manifesta sobre vários dos princípios estruturadores da Nova Ordem que os fascismos queriam construir sobre as ruínas de uma velha ordem de hegemonia anglo-franco-genebrina, cuja superação Salazar reputava como necessária — o seu elogio do Anschluss e de Munique, de Vichy, Pétain e da colaboração, da linha geral europeia para a qual convergiam os regimes de autoridade —, e deixando sistematicamente o ditador à margem da evidente atracção das elites salazaristas pelos êxitos da Alemanha nazi, Meneses, que mostra conhecer bem a documentação, omite completamente cartas e ofícios reveladores trocados entre Salazar e os seus representantes diplomáticos na capital do Reich entre 1940 e 1942, para se concentrar numa correspondência trocada com um intelectual ultra-conservador suíço, Gonzague de Reynold — que Meneses qualifica como, nada menos, “a mais interessante correspondência do tempo de guerra” (p. 269) —, para tentar comprovar “a indubitável aversão de Salazar aos nazis e à sua planeada Nova Ordem”. O que é verdadeiramente insólito, é que o investigador afirme que tal “aversão tinha de ser mantida secreta. Ninguém, além de Teixeira de Sampaio, o número dois de Salazar nos Negócios Estrangeiros, “podia saber ou suspeitar das verdadeiras opiniões do líder português sobre a guerra” (p. 312)… Semelhante pressuposto obriga a exumar a velha (e enterrada) tese franquista sobre a teatralidade de Franco durante a guerra mundial, que explicaria a despudorada e muito concreta adesão do ditador espanhol aos projectos do Eixo, que Meneses praticamente aplica ao caso de Salazar. Quando “alguns documentos (…) sugerem o contrário” da sua tese de que “Salazar temia a Alemanha e as suas intenções mais do que as dos Aliados ocidentais”, Meneses despacha a questão dizendo que os actores que as produziram “não se apercebiam [de] que muitas vezes aquilo que eles tomavam como apoio à causa comum [do Eixo] era a forma de Salazar tentar obter informação sobre os planos dos seus respectivos Governos” (pp. 268-269). Para, por outro lado, reforçar a tese da confiança britânica na lealdade salazarista para com o esforço de guerra britânico, Meneses recorre a documentos verdadeiramente secundários, produzidos a posteriori dos acontecimentos e, forçosamente, em contextos muito diferentes — por exemplo, uma conversa do antigo embaixador britânico em Lisboa, Campbell, com o embaixador português em Londres, Palmella, em 1946, as teses do “historiador oficial do esforço económico de guerra” britânico, de 1952, ou a “história oficial do Foreign Office durante a guerra”, editada em 1975, ou citações de Franco Nogueira sem qualquer base documental (pp. 297, 309-310, 698, 703-704).

O autor reincide nesta estranha gestão de fontes, por exemplo, quando expõe a Abrilada de 1961, “não só a ameaça mais séria a Salazar no período do pós-guerra, mas também um dos golpes mais mal conduzidos de que há memória” (p. 505), usando como base documental as memórias de Tomás, a biografia de Franco Nogueira (na qual se citam documentos que Meneses não confrontou) e... um diplomata irlandês!... (pp. 499-507). Noutros momentos, insiste em citar figuras secundaríssimas a despropósito (D. Filipa de Bragança, uma infinidade de figuras mais ou menos próximas de Salazar, ou os eternos diplomatas irlandeses em Lisboa, cuja correspondência Meneses compilou...), que usa para espelhar não se percebe bem o quê. Noutras passagens, tomam-se como fontes relevantes textos e testemunhos de intelectuais francófonos reaccionários (Pierre Gaxotte, Gustave Thibon), ou, como o próprio autor refere, “a soldo”, sem os tratar como aquilo que surgem ao investigador dos nossos dias: representativos do pensamento das direitas europeias e da sua sedução por um modelo autoritário oriundo do fascismo no contexto de pós-1945.

Onde, contudo, se sente mais a falta de uma visão mais estrutural do sistema de poder salazarista é nos campos socioeconómico e colonial. No segundo caso, Meneses limita-se, por exemplo, a uma referência fugidia aos “abusos laborais em Angola”, dos quais “Salazar estava a par (...) e percebia que era chegada a hora de [os] corrigir, ainda que tardiamente” (p. 490, mas também p. 394 e p. 515); por não analisar minimamente a natureza intrinsecamente racista e violenta do sistema colonial, Meneses é capaz de afirmar que fora a UPA a trazer a “violência racial” a Angola com a rebelião de 1961 (pp. 489 e 496). Ressalve-se, contudo, que Meneses faz uma breve menção a alguns dos massacres perpetrados nos territórios coloniais (com a evidente excepção do primeiro deles, o de Batepá, São Tomé, 1953), incluindo os muito raramente mencionados massacres que milícias de colonos, com a participação ou a autorização e complacência das autoridades civis e militares, praticaram sobre as populações do Norte de Angola (“um oficial superior da polícia escreveu ao pai em Luanda que as milícias civis ‘caçam pretos como quem caça coelhos’” (p. 496) na sequência dos massacres que a UPA desencadeou a 15 de Março de 1961; e é mesmo um dos primeiros historiadores a mencionar as represálias que os colonos portugueses praticaram em Luanda contra “a população local, (…) ‘abrindo fogo indiscriminadamente’, pelo que ‘devem ter naturalmente cometido excessos’” (p. 492). Pelo contrário, quando reconhece ser “brutal e indiscriminada” a violência praticada pelas tropas portuguesas na Baixa do Cassange, no início de 1961, contesta os números que lhe são “frequentemente associados” sem especificar as suas fontes (p. 491).

A abordagem da questão de Goa, e particularmente do comportamento de Salazar aquando da invasão indiana, é também reveladora. Para Meneses, a retórica historicista e abertamente belicista do famoso aerograma que Salazar envia ao governador Vassalo e Silva nas vésperas da operação indiana (“não prevejo possibilidade de tréguas nem prisioneiros portugueses, como não haverá navios rendidos, pois sinto que apenas pode haver soldados e marinheiros vitoriosos ou mortos”) é avaliada como sendo “francamente atípica” (p. 527); a desvalorização da atitude vingativa do ditador em abandonar os 450 militares portugueses à sua sorte ter-se-ia, imagine-se, ficado a dever a um telegrama chegado de Karachi que confirmaria “as suspeitas de Salazar”: “o Exército não teria lutado como o peso da História impunha” (p. 531).

Quanto à natureza repressiva do regime, a avaliação de Meneses é a de que o salazarismo “era um sistema (…) tão selectivo e repressivo como tinha de ser para preservar a paz [sic] sem causar escândalo” (p. 170). É certo que acaba por adjectivar os curros do Aljube, prisão privativa da PIDE, como “infames” (p. 610) e que sublinha o papel do Tarrafal, mas nada escreve sobre um sistema de justiça política organizado como braço repressivo da aparência de legalidade que o regime procurava manter, sendo perfeitamente pontual a referência a uma “relação doentia entre o Governo e o poder judicial” (p. 612).

Prestando pouca atenção às oposições em geral, salvo quando afectam directamente o percurso de vida de Salazar, é no mínimo surpreendente a abordagem que Meneses faz de algumas das personagens que, fora do mundo oposicionista à esquerda, têm ainda hoje um peso significativo na memória colectiva portuguesa de Salazar. O castigo de Aristides de Sousa Mendes é interpretado meramente como produto da “prioridade de Salazar” em fazer com que os “tanques alemães” não passassem dos Pirenéus (como se os alemães tivessem protestado contra os vistos passados pelo cônsul...) e resolvido com uma esdrúxula e sibilina afirmação: “Cada acção tinha consequências que aqueles que só viam uma parte do todo não eram capazes de prever” , e a centralização em Salazar “era necessária para controlar o fluxo de informação” (p. 265). Humberto Delgado é caracterizado como alguém “desassombrado, brutal e cínico”, “insubordinado”, e descrito, a par de Henrique Galvão, como um verdadeiro arrivista (pp. 448-453). Depois de anos daquela “excelente investigação histórica” de que Meneses falava, é concebível que se afirme ser “impossível chegar a uma conclusão sobre os resultados finais [das eleições de 1958]: é uma questão de fé”?, ao mesmo tempo que se dá credibilidade a fontes internas do regime ou a um correspondente estrangeiro que insistiam em que “Tomás contava com o apoio da ‘maioria dos eleitores do país’” (p. 463). Da carta de 1958 do bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, a Salazar diz-se que terá sido “indubitavelmente arrogante”, tendo assumido o bispo uma atitude de “pai severo” ou “orientador académico”, “animado de zelo político” (pp. 468-470).

Finalmente, onde aporta a análise de Meneses sobre Salazar? Na ideia de que “um sentido de missão pessoal e religioso” que teria comandado a sua actuação política. Porque, não o esqueçamos, esta pretende ser uma biografia política. Como em tantos outros momentos-chave do seu livro, é de novo a retórica do próprio Salazar a conduzir o investigador: “o presidente do Conselho disse a Christine Garnier: “Não creio no destino (…). Creio na Providência. É ela que, há tantos anos, me força a um labor contrário aos meus gostos” (p. 643). Convincente?

Permita-me, então, o leitor que eu proponha que nos perguntemos por que teve esta biografia tão boa aceitação.

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