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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.199 Lisboa  2011

 

Florence Millerand, Serge Proulx e Julien Rueff(coord.), Web social: mutation de la communication, Quebeque, Presses de l’Universitédu Québec, 2010, 374 páginas.

 

Patrícia Dias da Silva

ICS, Universidade de Lisboa

 

Designações como web social, redes sociais online, software social ou web2.0 (bem como várias declinações desta última, como Política 2.0 ou Sociedade 2.0) encontram-se muito presentes tanto em políticas públicas, peças jornalísticas, quanto em trabalhos científicos que abordam os novos media. O enfoque dado é frequentemente sobre mudanças por eles protagonizadas, em particular no que se refere às transformações no campo da comunicação, na sua prática, nos seus profissionais, na sua conceptualização. A escolha do título da obra — Web social: mutationde lacommunication— indica uma opção que privilegia o estudo do aspecto relacional através de um olhar sociológico, ético e político sobre as práticas, dando menos atenção à dimensão técnica dos dispositivos (representada pela expressão web2.0), dita dos engenheiros informáticos e gestores comerciais.

O livro reúne um vasto conjunto de contribuições (23) que visam, a partir da sua óptica distinta e domínio específico, cooperar para a resposta à questão “de que forma o surgimento desta constelação socio técnica chamada web social participa de uma mutação na comunicação?”, como é descrito no parágrafo final da introdução. A interrogação tinha sido originalmente levantada no colóquio “Web participatif: mutation de la communication?”, realizado a 6 e 7 de Maio de 2008, no Institut National de laRecherche Scientifique, no âmbito do congresso da Association Francophone pour le Savoir, na cidade do Quebeque, Canadá. Este ponto de partida reflecte-se na constituição da própria obra, que conta com textos de investigadores que desenvolvem as suas pesquisas em universidades francesas e no Canadá francófono, oferecendo assim uma alternativa linguística a um tema tratado sobretudo na língua inglesa, ao nível das principais publicações e conferências internacionais.

Focando uma multiplicidade de temas e com diferentes abordagens, apesar de estar subjacente uma perspectiva crítica, a melhor descrição de web social talvez seja aquela que é dada pelos próprios organizadores: uma proposta de “uma cartografia interdisciplinar de trabalhos recentes”. É feita uma crítica ao chamado tecnofilismo, o qual é considerado com um certo afastamento. Um dos objectivos é apresentado precisamente como sendo “um exame crítico à amálgama fácil talvez sugerida entre princípios técnicos e questões sociais ligadas à utilização destas novas ferramentas.” De notar que o outro objectivo principal da obra consiste na utilização de novas pistas de problematização suscitadas pelas formas online para “interrogar as perspectivas teóricas e metodológicas próprias à sociologia dos usos”, uma das correntes de investigação na área da comunicação ligadas ao estudo da recepção.

A tarefa de compilação ficou a cargo de FlorenceMillerand, Serge Proulx e Julien Rueff, co-directores e membro (respectivamente) do LabCMO(Laboratoire de Communication Mediatisée par Ordinateur), que situam a sua pesquisa no campo do estudo dos usos das tecnologias da informação e da comunicação. Dedicando-se ao estudo da apropriação social destas tecnologias hámais de 25 anos, Proulx é um autor reconhecido na área dos estudos de comunicação. O seu livro com PhilippeBreton, A Explosão da Comunicação (Bizâncio, 1997), esgotado nos últimos anos, constitui uma referência essencial nos cursos de comunicação. Entre os autores dos capítulos podemos encontrar um retrato semelhante ao dos organizadores — investigadores em diferentes pontos da sua carreira científica — uma vez que incluem textos de investigadores já com um longo caminho trilhado, e trabalhos realizados no âmbito de teses de pós-graduação, nos quais há uma predominância de estudos de caso. Por este motivo, somado ao pendor reflexivo e crítico dos ensaios que não analisam um tipo de plataforma específico, a maioria dos contributos é individual, e apenas um exemplo é assinado por mais de três autores.

Precedendo a divisão da obra em cinco partes, o primeiro capítulo cumpre uma função de enquadramento que aponta para a multiplicidade de questionamentos que podem ser colocados sobre a web social, tomando-a como dispositivo socioeconómico no contexto do chamado capitalismo informacional, em termos de apropriação democrática, nas implicações para uma ética da produção colectiva e para uma política da cultura, e é redigido por dois dos organizadores (Serge Proulx e Florence Millerand). Na primeira parte há um duplo enfoque político, tanto do ponto de vista dos usos políticos, como da própria política dos dispositivos técnicos, numa distinção inspirada no trabalho de LangdonWinner, bem conhecida nos estudos da tecnologia. Sustenta-se uma ligação próxima entre o social e o tecnológico, na inscrição de aspectos sociais na tecnologia, partilhando pontos de vista como o do já referido Winner, e de Lessig(citado por outros motivos), mesmo pretendendo-se escapar ao determinismo tecnológico estrito.

A segunda parte concerne “a participação dos utilizadores na cultura”, focando não só actores institucionais e o recurso que fazem aos novos media, mas também formas de produção cultural descritas como próprias do novo ambiente tecnológico. Assim, são abordadas as opções de entidades como as instituições museológicas e igualmente o conjunto de “criações interactivas” que compõem o que é definido como net art, assim como práticas como o podcasting. Começando com uma introdução às dimensões económicas deste tema, termina com uma nota breve sobre a participação online.

A terceira parte recorre a exemplos específicos para debater questões mais amplas, e recentra a discussão na vertente relacional, partindo da construção da identidade individual até ao funcionamento de comunidades, discutindo-se temas como o reconhecimento e a natureza da participação dos utilizadores nesses colectivos.

Na quarta parte, descrevem-se as situações de uso, passando pelo meio empresarial, universitário, médico, dos media e da própria internet. A última parte é apresentada como conclusão crítica, focando questões que cada vez mais se tornam alvo de polémica, como a protecção da vida privada (basta-nos recordar a controvérsia em torno das predefinições de plataformas como o Facebook ou o Buzz (do Google), os discursos ideológicos que perpassam a web social e a sua relação com as indústrias culturais, o estatuto de “novidade” de certos modos de participação online, e a necessidade de moderar algum entusiasmo referente a estes novos meios.

A base analítica de cerca de metade destas pesquisas é empírica, observando diversos tipos de plataformas, através da utilização de metodologias predominantemente qualitativas, com destaque para abordagens de recorte etnográfico. São incluídas redes sociais como o já referido Facebook, jogos virtuais multi-jogadores, motores de gestão de blogues, plataformas de ensino, aplicações de podcasting, mensagens instantâneas (também designadas pela sigla inglesa IM, sendo o Windows Live Messenger e o Google Talk dois dos serviços mais conhecidos), serviços de indexação, fóruns, sítios que recorrem a ferramentas interactivas, e o mais famoso de todos os sistemas colaborativos wiki, a Wikipédia. Esta última foi considerada um objecto de estudo relevante segundo três ângulos distintos, mas complementares: a tomada de decisão, as características da participação dos utilizadores neste contexto, e a descrição do processo de construção de conhecimento. Contudo, esta parte da cartografia mais narrada não deixa de ser sustentada em bases teóricas, partindo de autores como Goffman, Weber, Wittgenstein, Benjamin ou MarcelMauss, apesar de a grande maioria da bibliografia ser relativa aos últimos dez anos de investigação, em particular no domínio dos estudos dos ambientes online. Há um esforço de conceptualização de uma proposta teórica sólida, diligência difícil dada a fluidez dos objectos de estudo, e que procura escapar a duas armadilhas frequentes nos estudos sobre novos media: por um lado a transposição irreflectida de conceitos para este domínio, por outra a criação de neologismos mais próximos da linguagem do marketing do que da ciência.

Seguindo o caminho de autores como Michel de Certeaue a sua análise das práticas quotidianas — que é, aliás, citado pela relevância do seu conceito de “pratiquant bricoleur” —, é afirmada a oposição a uma concepção das práticas realizadas por via das plataformas de web social como revolucionárias. Assim, defende-se uma evolução progressiva, reconhecendo continuidades, e colocando a origem de “comunidades online” nos primórdios da internet. É oportuno lembrar que esta expressão, de facto, já se encontra presente em artigos como “Thecomputeras a communication>device”, escrito por Licklidere Taylor em 1968. Tal não impede que os autores destaquem algo inteiramente novo nas práticas sociais online mais recentes, que passa pela noção de “uso contributivo”, conceito que procura criar uma unidade entre os diferentes trabalhos, e que assume um papel central na investigação em curso de muito dos investigadores.

Pela abrangência da análise, e pela sua vertente crítica e reflexiva, mesmo nos capítulos mais empíricos, esta obra apresenta-se como um contributo importante nos estudos sociais das práticas online, contrabalançando a tendência para trabalhos estritamente descritivos, a que por vezes se assiste neste campo de investigação. Trata-se, todavia, de um livro que não permite o conhecimento aprofundado sobre cada tema ou objecto empírico específico. Fornece, assim, mais pistas do que respostas consolidadas, o que se justifica também dada a juventude deste campo de trabalho.

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