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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.199 Lisboa  2011

 

Miguel Vale de Almeida, A Chave do Armário — Homossexualidade, Casamento, Família Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2009, 225 páginas.

 

Margarida Moz

ISCTE-IUL

 

A chave deste armário, metáfora que remete para o segredo como forma de evitar as discriminações com base na orientação sexual, é também a chave para a compreensão das identidades LGBT (lésbica, gay, bissexual e transgénero), das suas reivindicações e da luta pela obtenção dos seus direitos, nomeadamente o acesso ao casamento civil e à constituição de família. Miguel Vale de Almeida começa por revelar a natureza deste livro ao dizer que ele resulta “de alguns anos de relação dinâmica entre antropologia, intervenção pública e activismo.” Ao longo de 7 capítulos vemos, de um modo mais ou menos óbvio, o autor na sua qualidade de antropólogo, deputado e activista gay, mas mantendo também a distância possível entre os três, ao tratar o casamento entre pessoas do mesmo sexo na sua relação com os direitos humanos, as questões da cidadania e as teorias antropológicas do casamento e da família.

Apesar de ser composto por capítulos relativamente independentes uns dos outros — alguns já apresentados em conferências e anteriormente publicados —, é a sequência em que eles surgem que evidencia de forma mais exacta o activismo do seu autor: dos direitos humanos às injustiças sociais decorrentes da falta deles, como a interdição dos casamentos interraciais; do exemplo espanhol à exaltação da cidadania; do debate sobre as uniões de facto e o casamento entre pessoas do mesmo sexo em Portugal ao casamento no mundo, e à falta dele entre os Na da China. Esta sequência orienta o leitor para a compreensão de que casar e constituir família é um direito de cada um, independentemente da sua orientação sexual, não existindo qualquer evidência antropológica que justifique tratar-se de exclusivos heterossexuais. Dito assim, o guião pode parecer proselitista, mas a falta de argumentos racionais que contraponham esta ideia torna-o apenas lógico. Depois desta leitura não bastará ser contra porque sim.

Logo no primeiro capítulo tratam-se os direitos humanos, as questões de cidadania e as discriminações associadas à comunidade LGBT por comparação a outras discriminações que, nas sociedades euro-americanas de outras épocas, estiveram no centro dos debates filosóficos, como a submissão feminina ou a segregação racial. Na tentativa de corrigir séculos de discriminação, redigiu-se em 1948 a Declaração Universal dos Direitos Humanos, dando particular relevo às questões do género e da “raça” (termo que à data se usava descomplexadamente, mas que o tempo obrigou a corrigir com o recurso a aspas sempre que aplicado aos seres humanos). Mesmo se desta declaração não consta a discriminação com base na orientação sexual, dela decorre a sua inclusão em muitas constituições nacionais e até supra-nacionais, como é o caso do Tratado Constitucional da União Europeia que, em princípio, se sobrepõe às constituições de cada estado-membro.

Os direitos humanos são afinal direitos de cidadania, e é desta ideia que se passa para o capítulo seguinte, em que se cruzam diferentes formas de pensar se o acesso ao casamento por pares do mesmo sexo, enquanto direito de cidadania, entra em conflito com outros valores. Nesta fase descreve-se a evolução do debate americano (e a sua variação entre estados), a resistência francesa à alteração da “ordem simbólica” e a aparente surpresa com que, em 2005, a Europa recebeu a notícia de que na católica Espanha gays e lésbicas passavam a poder casar-se com os seus companheiros.

O segundo capítulo toma a discussão antropológica sobre o assunto e o quanto ela serviu para consubstanciaros argumentos contra e a favor nesta discussão. Em França, os seguidores do estruturalismo levi-straussianotêm tido uma forte expressão neste debate; para eles a ordem simbólica não é compatível com a união homossexual, já que serão >precisos um homeme uma mulher juntos para assegurar a passagem da natureza à cultura, com base na interdição do incesto e na repressão da homossexualidade. Num outro tom seguem as discussões sobre o tema produzidas nos Estados Unidos da América, onde os antropólogos se uniram na defesa do casamento entre pessoas do mesmo sexo e emitiram, através da American Anthropological Association, uma declaração indicando a inexistência de evidências etnográficas que sustentem a ideia de que a civilização e a ordem social dependem do casamento enquanto instituição exclusivamente heterossexual. No seguimento desta tomada de posição são referidas as recentes críticas ao parentesco, e as novas perspectivas na abordagem das relações familiares, que privilegiam outras formas de ver as relações de parentesco na sua dimensão voluntária e não exclusivamente determinada por constrangimentos biológicos. É cada vez mais frequente que o parentesco inclua a ideia de relatedness (estar relacionado), como forma de dar expressão à intersubjectividade que os estudos clássicos do parentesco — com uma carga marcadamente biológica — tendiam a menosprezar. Porém, como diz Miguel Vale de Almeida no final deste terceiro capítulo, as novas formas de abordar o parentesco têm deixado de fora os estudos sobre o casamento, ainda refém da ideia desenvolvida por EdmundLeachde que se trata apenas de um conjunto de direitos, negligenciando a sua “simbologia político-cultural.” É nesta perspectiva que percebemos melhor por que motivo o casamento significa menos na Bélgica do que significam algumas parcerias registadas noutros países da Europa, e o quanto “o casamento em si não é nem um conteúdo nem uma relação”, mas “uma das formas contratuais que podem recobrir ou não determinados conteúdos relacionais”.

Os dois capítulos seguintes, recorrendo a um “género misto da reportagem e da etnografia”, dão conta do debate que em Espanha se gerou em torno deste tema, tanto no espaço público como a partir da antropologia, e do modo como ele foi vivido por alguns activistas, membros de grupos de interesse, por partidos políticos, estudiosos e casais do mesmo sexo. A questão da homoparentalidade, que o último capítulo trata de uma forma mais alargada, é aqui introduzida por ter estado sempre no centro dos debates, já que o casamento é visto como forma de instituir família, e na família cabem necessariamente os filhos que uns desejam ter (com ou sem casamento) e que outros querem evitar que os primeiros tenham.

E de Espanha o debate segue para Portugal, e depois para a China, onde os Na da região dos Himalaias chineses, conhecidos por não disporem da instituição do casamento, servem de referência antropológica para perceber a falência das teorias da aliança assentes nas trocas matrimoniais como resposta ao interdito do incesto, dando uma imagem clara de como existem formas de organização social viáveis assentes noutros pressupostos. Os Na relacionam-se afectivamente, têm famílias, têm filhos, mas não têm maridos nem pais, e, no entanto, cumpre-se a interdição do incesto através da obediência a regras que definem a distância a que se deve estar dos familiares, que aqui são os membros da mesma casa matrilinear. Sempre antropólogo, mesmo quando activista e decisor, Vale de Almeida recorre aos exemplos da antropologia para explicar que é humanamente possível prescindir da heteronormatividade enquanto lógica de organização social.

A situação portuguesa é tratada no capítulo seis, que sendo o mais desactualizado, porquanto não inclui as recentes alterações legislativas sobre esta matéria, é o que serve melhor à compreensão das recentes tomadas de posição dos partidos políticos sobre os assuntos LGBT. Trata-se de uma narrativa dos acontecimentos que levaram à mobilização da comunidade, à sua crescente visibilidade e, consequentemente, ao seu papel na aprovação de leis anti-discriminatórias, entre elas a da abertura da lei das uniões de facto a casais do mesmo sexo. Mas, publicado em Maio de 2009, este livro fica a um passo da aprovação da lei que, desde 8 de Janeiro de 2010, alarga aos pares do mesmo sexo a possibilidade de casarem, e das alterações que poderão vir a ser introduzidas relativamente às questões da parentalidade gay e lésbica. Contudo, e mesmo não tendo sido esse o objectivo desta publicação, Vale de Almeida revelava logo na introdução o desejo de que a leitura deste livro pudesse ter algum “efeito junto dos decisores”, aproveitando os intensos debates públicos do momento sobre as questões da igualdade no plano sexual. Não se sabe se influenciou ou não os deputados, mas para além deste, apenas o livro Casamento entre Pessoas do Mesmo Sexo — Sim ou Não?, de Pedro Múriase Miguel Nogueira de Brito (2008), e um outro intitulado O Casamento entre Pessoas do Mesmo Sexo, de Luís Duarte d’Almeida, Carlos Pamplona Côrte-Real e Isabel Moreira (2008) se dedicaram à questão do casamento entre pessoas do mesmo sexo, e apenas numa perspectiva do direito civil — favorável e contrária. Certo é que, pelo menos, um dos votos a favor desta sessão parlamentar terá sido bastante esclarecido: o do próprio Vale de Almeida, que à data cumpria o seu mandato de deputado da Assembleia da República, e que muito contribuiu para que Portugal se tornasse no sexto país da Europa, e o oitavo do mundo a autorizar o casamento entre pessoas do mesmo sexo a nível nacional.

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