SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número200Entrevista a José Mariano Gago: por João de Pina-Cabral índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.200 Lisboa  2011

 

Comemorando 200 números da Análise Social

 

João de Pina-Cabral

* Director da revista Análise Social.

 

Iniciada há já meio século,1 a revista Análise Social publica hoje o seu número 200. Em 1988, quando se comemorou o número 100, a principal figura fundadora da revista, Adérito Sedas Nunes, era ainda o seu director. Hoje, passados mais outros cem números, podemos verificar que a revista continua forte e actual tendo sido dirigida desde o falecimento de Sedas Nunes por uma série de distintos personagens associados ao Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (Manuel Braga da Cruz, Manuel Villaverde Cabral, António Barreto e Pedro Lains).

De facto, estas duas efemérides podem ser tomadas como indicações gerais dos movimentos por que passou a vida das ciências sociais em Portugal. Em 1963, estávamos no início, ainda largamente clandestino, do que só viria a transformar-se num processo de crescimento institucional sustentado a partir de 1980. Cem números depois, em 1988, estávamos outra vez no início de um processo, que só se iria afirmar plenamente nos meados da década seguinte, de consolidação nacional e internacional das ciências sociais portuguesas: as disciplinas dentro desta grande área da ciência começavam a afirmar-se e a criar as suas próprias vias de reprodução.

No decorrer do segundo período, a Análise Social foi mudando paulatinamente o seu carácter. Enquanto na primeira época fundadora (1963-1988), ela se afirmara como o veículo de um esforço comum por lançar as ciências sociais em Portugal, na segunda época de consolidação (1988-2011) a revista posicionou-se como um espaço de encontro interdisciplinar, em que as distintas vias e correntes no interior do nosso campo científico se foram manifestando e interagindo. Enquanto no primeiro período se criaram instituições e perspectivas, no segundo começaram a surgir os resultados da obra lançada, vincaram-se encruzilhadas, traçaram-se encontros, explicitaram-se polémicas, pluralizaram-se os caminhos.

Hoje, porém, ao sair este número 200, estamos a iniciar um terceiro ciclo, num momento totalmente novo e perplexante. O projecto social e intelectual que chegou à sua maturidade com a entrada de Portugal na Comunidade Europeia em 1986 estava já implícito nos horizontes dos que, em 1963, tentavam limpar Portugal das cinzas de um projecto ditatorial e colonial sabidamente falhado.2 Mas a actual crise do projecto europeu deixa os portugueses perante novos desafios. Como sempre na nossa história, esbatendo-se o eixo europeu, defrontamo-nos com o eixo atlântico. De novo, os cientistas sociais portugueses sentem a necessidade de afirmar a sua presença no universo luso-falante numa época, porém, em que os velhos temas imperiais perderam todo o seu sentido, e em que o que está em causa é uma forma de ecumenismo — quero dizer, o saber que partilhamos um mundo comum a partir de perspectivas históricas e culturais que têm muito de comum também.

Se tal é verdade, já é mais difícil saber o que, face à actual redução de meios, deverá ser salvo e o que poderá ser perdido do processo de crescimento institucional sustentado a que corresponderam os últimos vinte anos: construíram-se bibliotecas; consolidaram-se departamentos; criaram-se programas de pós-graduação; montaram-se associações profissionais; organizaram-se congressos internacionais; criaram-se centros de investigação; montaram-se redes internacionais de investigação, debate e ensino; criou-se toda uma geração de novos investigadores com bolsas de pós-doutoramento; lançaram-se múltiplas pontes de diálogo com as políticas públicas e as forças económicas; conquistou-se o direito a ter uma voz nos mass media; etc.

Nos dias que passam, porém, perante a crise do projecto europeu e a crise mundial que o enquadra, fica por responder o principal: que projecto podemos nós desenhar para a nossa sociedade futura? E por nossa, aqui, não podemos já querer dizer só portuguesa, só europeia ou só lusotópica. É que a crise em causa não é só, nem é sobretudo, uma crise financeira. Ela é um desafio civilizacional que se posiciona à escala global — um pouco como o desafio ao qual a Primeira Guerra Mundial não soube responder, e aquele que a Segunda Guerra Mundial tentou enfrentar com mais sucesso.

Como se situam as ciências sociais perante tal desafio? Que caminho podemos nós traçar que não seja mais um projecto de crescimento exponencial “para fora”, como o projecto desenvolvimentista que agora se esgota, que nos foi legado pelo pós-Guerra? Estas perguntas, feitas com a certeza de que estamos confrontados a breve trecho com os limites ao crescimento impostos pelo mundo material em que vivemos, renovam a velha pergunta que já preocupava Bertrand Russell: como crescer para dentro?

Ora esse, em suma, creio ser o parâmetro que deverá guiar as ciências sociais em Portugal, e a Análise Social em particular, nas décadas que se seguem. Situados, como estão, no eixo de cruzamento entre o pensamento científico e o pensamento humanístico, os cientistas sociais têm especiais obrigações intelectuais. Se somos produtores de técnica — e como duvidar disso no mundo crescentemente burocrático em que vivemos? — somos também um dos cadinhos de produção da grande teoria, onde o pensamento filosófico vem necessariamente buscar muita da sua inspiração.3 Temos responsabilidades em ambas as direcções.

Ora, esse projecto de um “crescimento para dentro” não é coisa fácil de inventar para as ciências sociais: envolve um acúmulo de autovigilância crítica; um aprofundar de parâmetros de exigência intelectual; um sedimentar de scholarship; um alargar do debate interdisciplinar; um engajamento político mais distanciado e mediado; um saber pôr cobro às tentações populísticas associadas aos mass media. Aliás, devemos ter bem visível como exemplo do que evitar, o actual desaire que confronta uma certa economia, na relação incestuosa que manteve com a política financeira e com o populismo político de direita. A tentação de “vender banha da cobra” (isto é, respostas simples, porque mecânicas, a questões complexas, porque humanas) é tão grande nos dias que passam como foi nos meados do século passado, quando se pediam ao cientista social soluções desenvolvimentistas rápidas.4 A preocupação com “qualidade substantiva” que perseguia Sedas Nunes nos tempos em que criou a nossa revista e, mais tarde, o actual ICS, deve voltar a ser presente para nós. Não é com automatismos bibliométricos ou projectos milionários que se faz boa ciência, e essa é a que assegurará futuro aos nossos esforços actuais por muito que não seja sempre a mais rentável.

Temos entre nós uma geração de jovens doutores nas várias disciplinas das ciências sociais que representam um tesouro intelectual como raramente houve na nossa história. Face à crise financeira, que num país economicamente frágil como Portugal não se virá a resolver a breve trecho, a grande pergunta que temos em mão é: como manter vivo esse manancial humano? Como potenciar as suas forças por forma a que ele também deixe um legado visível, tal como deixaram as gerações dos anos 60 e depois a dos anos 80, a que tive o privilégio de pertencer? Esse é o principal desafio com que se confronta hoje a Análise Social.

Para este número comemorativo, o conselho de redacção decidiu recolher uma série de depoimentos de figuras que tenham marcado o Instituto de Ciências Sociais e, mais geralmente, o ambiente intelectual que acompanhou o desenvolvimento da Análise Social. Ao fazer isso, sabíamos bem que não era possível ser exaustivo: muitos, muito válidos, ficaram de fora por uma série de razões variadas. Alguns, simplesmente, por serem muito lentos na resposta; outros por estarem envolvidos em projectos distantes; e outros, há que reconhecer, por falta de oportunidade nossa. Esperamos que algumas destas lacunas sejam colmatadas de seguida, já que tencionamos continuar a publicar entrevistas e depoimentos de significado histórico nos números vindouros da nossa revista.

Contudo, os depoimentos que aqui apresentamos dão-nos — é essa a nossa opinião — uma imagem fascinante e única do que foi o percurso das ciências sociais em Portugal desde essa sua origem ambígua nos anos 60 — a partir do já então falhado projecto corporativista — até aos nossos dias. Assistimos pela voz de alguns dos seus principais intervenientes ao lançamento das principais instituições de Lisboa, ao lançamento das principais disciplinas, ao consolidar das principais correntes. Poderá dizer-se que a perspectiva é um tanto olisipocêntrica — e é verdade, tendo em vista que a Análise Social aí se situa; e que cada entrevistado “puxa a brasa para a sua sardinha” — e é verdade, como não?, cada uma destas pessoas foi um construtor e o sentimento de obra feita que eles veiculam é talvez a principal razão por que foi a eles que decidimos entrevistar e não a outros.

O mote que demos aos nossos gentis entrevistadores como guião para as suas conversas foi: a consolidação das ciências sociais em Portugal nos últimos vinte anos. Ora, quem poderia elucidar melhor esse processo que o político-cientista que foi a figura axial no desenvolvimento do mundo científico português das últimas décadas? Por isso, começamos o número com uma entrevista que nos concedeu José Mariano Gago — num momento, aliás, de especial significado, quando estava a terminar o seu longo percurso de gestão governamental. Logo se seguem, por ordem alfabética do primeiro nome, uma série de entrevistas a cientistas sociais de destaque. Finalmente, regozijamo-nos com a oportunidade de poder incluir um importante depoimento sobre as origens da revista de Raul da Silva Pereira, assim como o relato de uma entrevista que Pedro Ramos Pinto fez a David Goldey, um velho amigo e inspirador das ciências sociais portuguesas. Acabamos o número com uma breve nota que nos foi gentilmente concedida pelo actual director do Instituto de Ciências Sociais, Jorge Vala.

 

Notas

1 Mais precisamente, nos primeiros meses de 1963 (v. depoimento Raul da Silva Pereira ou entrevista com Maria de Lourdes Lima dos Santos, neste número).

2V. entrevista Mário Murteira, neste número.

3 V. entrevista Hermínio Martins, neste número.

4 V. entrevista António Barreto, neste número.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons