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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.200 Lisboa  2011

 

Entrevista a José Mariano Gago

por João de Pina-Cabral

 

João de Pina-Cabral, que conduziu esta entrevista, é antropólogo social e actual director da Análise Social, é membro do Instituto de Ciências Sociais do qual foi presidente do Conselho Científico entre 1997 e 2004.

José Mariano Gago, doutor em física, investigador internacionalmente reputado na área da física de partículas, foi o principal artífice do desenvolvimento científico português dos últimos vinte anos na sua qualidade de presidente da Junta Nacional de Investigações Científicas, depois ministro da Ciência e Tecnologia e, mais tarde, ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, de sucessivos governos do Partido Socialista. Na presente entrevista, recolhida pouco tempo após ter cessado a sua actividade ministerial de tantos anos, o eminente cientista e político reflecte sobre o seu percurso científico e o impacto da sua obra política. A entrevista foi recolhida em Julho de 2011, num momento em que nem o entrevistador nem o entrevistado poderiam ter previsto a profundidade da crise social e económica em que estamos presentemente imersos, e cuja saída, no actual momento, ainda não vislumbramos.

 

João de Pina-Cabral (JPC) — Na primeira metade dos anos 70, antes ainda da Revolução de 25 de Abril, ocorreu um processo radical de quebra geracional e institucional no campo das ciências sociais em Portugal. Nos anos 80, há um lento processo de reconstrução institucional no ensino superior, mas é só nos anos 90 e anos 2000 que há uma consolidação dos centros de investigação e que a internacionalização se torna mais visível. Esta consolidação dependeu de uma política de incentivo ao desenvolvimento científico ligada à entrada na União Europeia, mas dependeu também de uma concepção das ciências sociais que as integra nas ciências. Na medida em que tu tomaste um papel de liderança nesta política, eu gostava de te ouvir sobre três questões: primeiro, qual o percurso pessoal que te levou a esses interesses; segundo, como é que o campo das ciências interage com a entrada de Portugal na União Europeia; e, finalmente, como é que o papel das ciências sociais era visto dentro do campo geral das ciências.

José Mariano Gago (JMG) —Começo pelas datas e pelo percurso. Saio de Portugal em 1971, quando termino o Técnico e vou para França fazer o doutoramento. Pouco depois, em 72, tenho um mandato de captura da PIDE, fujo de Portugal (estava cá de férias) e organizo a minha vida pensando que nunca mais voltaria. Venho a Portugal, é claro, depois do 25 de Abril de 1974, mas o meu trabalho é lá. Termino o doutoramento em Paris em 1976 e vou trabalhar para o CERN, na Suíça. A partir de 1978-1979, começo a tentar voltar para Portugal. Nos anos seguintes estou cá e lá.

A Catarina, a nossa filha, nasce no final de 1984 e, em Janeiro de 1985, já estamos de novo na Suíça. Em 1986, estávamos (a Karin1, a Catarina e eu) a viver em Genebra quando fui convidado para presidir à Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica pelo secretário de Estado da Ciência dessa altura, Eduardo Arantes e Oliveira. Depois de muita hesitação, acabei por aceitar. Fico três anos na JNICT, até 1989, organizo as Jornadas Nacionais de Investigação Científica e Tecnológica (1987) e lanço de seguida o primeiro Programa Mobilizador da Ciência e da Tecnologia em Portugal. Em 1990, escrevo o “Manifesto para a ciência em Portugal”. Durante o período de 1989 a 1995, ainda temos um pé na Suíça mas já estamos a viver em Lisboa, ainda que eu passe tempo no CERN, como muitos outros físicos experimentais da minha área, especialmente na altura da preparação das experiências ou da aquisição de dados. Em 1995, sou convidado para ministro da Ciência e da Tecnologia (de facto para criar esse ministério novo) — o que farei de 1995 a 2002. Entre 2002 e 2005 regresso ao IST e ao LIP, mas em 2005 sou de novo convidado para voltar ao Ministério, agora também com a pasta do ensino superior, e aí trabalho até ao final do governo, em 2011, regressando de novo à universidade e ao laboratório.

Talvez a minha aproximação à política científica, no entanto, se tenha dado um pouco antes. Em 1985, tinha promovido e negociado a adesão de Portugal ao CERN. Jaime Gama era ministro dos Negócios Estrangeiros, e apoiei-o no estabelecimento de relações com várias organizações científicas internacionais. Foram os primeiros contactos com a Agência Espacial Europeia, a entrada em Portugal na iniciativa Eureka, etc. Jaime Gama assumiu desde muito cedo a diplomacia científica como elemento de construção de um país moderno e sabia que a participação de Portugal nas diferentes organizações científicas internacionais era essencial nesse processo de modernização. Julgo aliás que a própria consolidação do campo científico em Portugal se não pode entender sem referência ao espaço mais alargado das redes de cooperação internacional (pessoais e académicas, culturais, institucionais, políticas) onde verdadeiramente se geram os referentes do campo científico, e passa portanto pela consolidação de tais redes. Possivelmente, aliás, a consolidação do campo científico em qualquer país passa pela adopção dos referenciais que a ciência e os seus processos e instituições internacionalmente geram e adoptam.

JPC — Deixa-me interromper-te: eu lembro-me de te ouvir falar no ISCTE em 1983-1984. Na altura, estavas a pensar sobre a relação entre as ciências sociais e as ciências em geral e, sobretudo, mostravas um interesse sobre o estudo social da ciência que alertou muitos de nós para essas questões.

JMG — Sim. Imagino que, como sempre, se trate de um percurso pessoal mas em que desembocam também ansiedades e aspirações da geração a que pertenço, e modos de estar e de agir das sociedades em que me inseri nesse trajecto de formação, que é afinal a nossa vida toda. Tanto quanto consigo perceber hoje, a motivação para a intervenção social, política que se consolida em mim a partir da universidade, do movimento estudantil e da acção política subsequente (certamente com raízes no contexto de opressão política reinante e na família, sendo os meus pais antifascistas convictos), desembocam numa actividade prática associativa no campo da educação popular que me leva, por sua vez, a pensar nas relações entre o conhecimento científico (cuja produção é a minha profissão) e a história das técnicas e das ciências, ou as práticas sociais de conhecimento sobre a matéria, — mas também a acentuar a convicção fundadora da ciência moderna, o seu carácter eminentemente libertador, fundador da possibilidade de pensamento crítico, cultura de avaliação independente, democracia. Essas duas linhas de pensamento, por sua vez, vão articular-se crescentemente com duas formas de actividade prática: o ensino das ciências, por um lado, e a política para o desenvolvimento científico, por outro.

No tempo em que fiz o doutoramento em Paris tive condições e tempo para estudar muita coisa para além do tema geral da tese (Abreu Faro, que foi meu professor no Técnico, e presidente do Instituto de Alta Cultura, teve um papel fundamental em estimular a ida para o estrangeiro de muitos alunos. Professor excepcional, costumava dizer-nos com a humildade dos que são verdadeiramente generosos: “nunca fui cientista, mas farei tudo para que vocês o sejam”). Foi a altura em que estudei mais história das ciências, história da física e da ciência em geral. Estava também muito interessado em educação de adultos, educação permanente — ao ponto de ter pensado numa carreira nessa área. Fiz trabalho voluntário em associações de emigrantes tanto na França como na Suíça (com Lucília Salgado). Em 1977-1978, publiquei um livro que é o resultado desse trabalho — Homens e Ofícios, com o apoio da UNESCO, à qual estava muito ligado. Em 1978, durante alguns meses, fiz parte da equipa que fez os estudos preparatórios aqui em Portugal para o Plano Nacional de Alfabetização, junto da Direcção-Geral de Educação Permanente, então dirigida por Lucas Estevão, depois de o ter sido por Alberto Melo.

Fui de facto um dia, talvez em meados dos anos 80, apresentar no ISCTE o trabalho que estava a fazer no domínio da etnofísica do senso comum (aliás, eu estava ali ao lado, no Instituto de Física e Matemática, onde Vilela Mendes tinha heroicamente procurado juntar e trazer físicos e matemáticos que estavam no estrangeiro). A partir da actividade de educação “popular”, com pessoas muito pouco ou nada escolarizadas, fui levado a pensar no estatuto das ciências e do conhecimento científico e nas suas relações com o que designamos por “saber comum”. Isso levou-me a tentar estudar o que se sabia sobre as relações entre “senso comum” (e a cultura do senso comum) e cultura científica; e procurei conhecer o estado das “etnociências”, especialmente em sociedades modernas. Ao trabalho etnográfico feito nas áreas da botânica e da medicina, respondia muito pouco conhecimento no que diz respeito ao domínio científico da física (isto é, de que a física trata). Por outro lado, a psicologia social trabalhava sobre “representações sociais” dos fenómenos naturais, e esses estudos pareciam-me poder constituir pontos de partida para uma etnofísica contemporânea. Assim, e durante vários anos, mantive uma actividade amadora de investigador na área da etnociência, procurando esclarecer a coexistência na sociedade de diversas representações de certos fenómenos físicos e a sua correlação com factores sociais, porventura relevantes.

JPC — Portanto, o ensino leva-te à etnociência que, depois, te levou ao estudo social da ciência?

JMG — Sim, talvez. Foi uma actividade desenvolvida, estimulada, no âmbito do Gabinete de Filosofia do Conhecimento, que Fernando Gil criou e dirigiu, e ao qual me associou desde início. Essa foi, aliás, uma das minhas inserções em Portugal nessa época. Nas reuniões do Gabinete encontrava um ambiente intelectual propício à discussão das questões do conhecimento, da prova, da evidência (temas centrais na pesquisa de Fernando Gil, cujo papel foi, também por isso, fundamental na consolidação da ciência em Portugal) o que, para um investigador de profissão, era uma oportunidade verdadeiramente extraordinária. No que respeita à etnofísica, só foi possível ir para além das hipóteses iniciais depois de bastante trabalho de terreno, e de um inquérito com alguma dimensão. Uma jovem investigadora — Maria das Dores Guerreiro, socióloga, hoje investigadora e professora no ISCTE — ajudou então muitíssimo a fazer e a analisar esse inquérito. Estamos a falar de princípios dos anos 80 e devo ter feito um seminário sobre as conclusões a que tínhamos chegado. Tenho absoluta consciência de que esse trabalho não passou de trabalho científico amador, porventura útil para quem o queira usar para estudos profissionais ulteriores, mas especialmente útil para a formação da minha própria consciência (epistemológica e ética) como investigador e como professor.

Quando comecei a ensinar aqui no Técnico (IST/UTL) sempre me interessou mais ensinar ao 1.º ano (quer física experimental quer mecânica básica) porque me permitia rever, e partilhar com outros, do ponto de vista conceptual, os fundamentos da própria física, e também por permitir revisitar criticamente tudo o que tinha aprendido.

Dediquei atenção à etnofísica possivelmente também para tentar elucidar melhor o que constitui a socialização para a ciência — que sabemos mais ou menos como se processa num laboratório, na actividade científica real, mas muito menos na educação, formal ou informal. Como contribui o ensino, e em que condições, como processo de socialização para a ciência? E fora da escola, como fazer? Esta questão é mais séria do que parece, porque o ensino não dispõe nem dos espaços, nem dos tempos, nem dos processos e das instituições, nem da forma de organização da própria ciência. Contudo, contribui para uma certa socialização para a ciência, mas como? Que nos revela essa relação sobre, à falta de expressão melhor, o “senso comum” e as suas relações com o “sentido” que a actividade científica gera? Esta foi talvez uma das áreas à qual dediquei mais atenção nessa altura e foi isso que me levou a ter contacto com colegas da filosofia, da sociologia das ciências e da educação. Venho a conhecer e a trabalhar com John Ziman a partir de 1991, e com Joan Solomon pouco depois, e colaborámos quase até à morte de cada um deles.

Mas a partir de 1986 (especialmente quando assumo o cargo de presidente da JNICT) passo a intervir directamente no domínio da política científica e faço-o, portanto, a partir desse passado que é o meu, de uma experiência pessoal determinada, política, cívica, cultural, mas muito especialmente de uma experiência (e de uma pertença) científica fora de Portugal, primeiro em França e depois no CERN, talvez o maior e mais avançado laboratório de investigação do mundo.

Tu perguntas, que relação há entre a consolidação do campo das ciências em Portugal e a nossa entrada na União Europeia (então CEE)? Hoje, acho que a relação não foi linear nem determinista. A entrada de Portugal na CEE estimula fortemente essa consolidação, certamente. Mas o processo de consolidação do campo das ciências estava anteriormente já em movimento em Portugal, tanto quanto o do conjunto dos processos culturais, económicos, políticos que nos conduzem à própria adesão à CEE. Já no princípio dos anos 80, muitos decisores políticos estavam alertados para a questão da centralidade do desenvolvimento científico. Ocorrem nessa altura processos de ruptura científica em muitos departamentos universitários, começam a desenvolver-se centros de investigação modernos, muitos jovens procuram fazer ciência e muitos cientistas regressam do estrangeiro, renovam-se sociedades científicas que agem no sentido de aproximar cientistas, professores de ciências do ensino básico e secundário e outros profissionais. Em 1981, com outros colegas, fui responsável por fazer uma primeira exposição de divulgação científica para o grande público em Portugal que foi apoiada pelo CERN, na altura dirigido por Herwig Schopper, um dos responsáveis científicos mais lúcidos e generosos da sua geração. Chamou-se De que são Feitas as Coisas e teve um enorme impacto, porventura por ter sido a primeira exposição de tipo experimental (hands-on, como se diz na gíria do ofício) para o grande público. Esteve aberta só uma semana, mas recebeu muitos milhares de visitantes. Era só e estritamente sobre ciência, procurando ser uma exposição experimental, introduzindo as pessoas aos princípios da museologia científica moderna, que era praticamente desconhecida no nosso país. Colocava os visitantes e os cientistas em contacto directo entre si, a propósito de experiências concretas operadas, discutidas e interpretadas em conjunto.

Nesse início dos anos 80, senti a resposta a essa exposição (pelo público, pelos media, mas também por inúmeros jovens cientistas que nela colaboraram, por escolas e professores) como a evidência de uma vontade da sociedade portuguesa; como se o nosso desenvolvimento científico tivesse passado a ser um objectivo colectivo alcançável. O nosso atraso científico parece começar a ser visto então como absolutamente insuportável, mas, talvez por isso mesmo, como finalmente superável. Começam a surgir pequenas comunidades científicas ainda relativamente jovens; sobretudo com colegas que regressam do estrangeiro. Assiste-se ao progressivo enraizamento social e político do objectivo de desenvolvimento científico do país (Mário Soares vai mesmo chamar-lhe — e desta forma proclamá-lo — um verdadeiro desígnio nacional), que se torna por fim geral e praticamente consensual. É verdadeiramente extraordinário, tendo em vista que éramos uma sociedade com tão baixos níveis de escolaridade, ter-se conseguido construir uma base de acordo social para o desenvolvimento científico tão alargada e tão sólida que, a meu ver, se torna ela mesma o principal factor de desenvolvimento científico em Portugal ao longo dos últimos vinte anos.

É determinante o facto de os decisores políticos sentirem que a ciência tem o favor da sociedade — mesmo dos que não sabem do que se trata ou para que serve exactamente e a esmagadora maioria não disponha nem de uma escolaridade suficiente nem do acesso a meios de aprendizagem adequados (embora eu suspeite que os níveis de autodidactismo científico em Portugal fossem antes e depois do 25 de Abril muito mais elevados do que a mera consideração das estatísticas da educação, ou que a ausência de museus de ciência, nos poderia levar a supor). A ciência parece ser vista como sinónimo de desenvolvimento social e os cientistas surgem (logo a partir do primeiro momento em que se começam a fazer inquéritos de opinião em Portugal sobre o assunto) quase sempre no topo da confiança dos portugueses.

Este é também um período da grande mudança relativamente à educação e, sobretudo, à educação superior. Ocorre uma procura generalizada de educação na sociedade portuguesa e, significativamente, de educação superior por parte de grupos sociais mais pobres ou menos escolarizados, e há uma radical mudança na participação das mulheres na educação (suponho que é como se a pressão das mães sobre as filhas para que estudem para poderem ser autónomas se tivesse tornado um grande factor de mudança social). Acho que tudo isto deve ter confluído no desenvolvimento do ensino superior e no desenvolvimento da ciência no nosso país neste período verdadeiramente extraordinário.

JPC — É um tema interessante porque, por exemplo, na Inglaterra, a confiança dada aos cientistas estava a diminuir nos anos 80. Portugal estava a contra-corrente?

JMG — De facto, nesse sentido. Isso é muito interessante do ponto de vista de política científica, porque foi talvez esse movimento de procura do desenvolvimento científico (e de apoio incondicional à ciência, em contra-ciclo com tendências anti-científicas noutros países) que permitiu a Portugal, de forma quase paradoxal, ter um papel na política europeia de ciência ao longo dos últimos anos que nada faria prever. Éramos um país atrasado, que começava tarde, com índices muito baixos, etc., como é que acabámos por ter um papel significativo na política científica e na política de relação da ciência com a sociedade na Europa (de que a chamada “Estratégia de Lisboa”, para a UE, é um exemplo)? Possivelmente porque estávamos animados de um “furor” e de uma convicção da absoluta necessidade de desenvolvimento científico que só encontramos em economias emergentes, em que vencer o atraso científico se pode constituir em promessa colectiva, em ambição partilhada generalizadamente na sociedade, em fonte de mobilidade social.

Deixa-me contar um episódio curioso. Para divulgar a exposição De que são Feitas as Coisas, conseguimos contratar palhaços do Coliseu, feitos homens-sanduíche, que anunciavam a exposição junto dos passageiros nas estações de metro com grande sucesso. Entretanto tínhamos pedido também uma vitrina do Palácio Foz (virada para os Restauradores), para aí instalar um detector de raios cósmicos que funcionava realmente à vista de toda a gente. Tinha ao lado uma pequena explicação, como os raios cósmicos estão constantemente a atravessar-nos, como é possível medi-los e, de alguma maneira, visualizá-los, etc. Pouca gente via aquilo, é claro. Mas um jornal da tarde escreveu na sua primeira página em letras garrafais “Cósmicos atacam Lisboa”! Ainda hoje não sei bem se os verdadeiros cósmicos não seríamos nós, os cientistas! Mas talvez estes episódios mostrem alguma coisa do que era Portugal em 1981, de como a acção pública generosa de jovens cientistas tentando divulgar ciência actual encontrou um eco caloroso, quase infantil, em meios de comunicação e junto do grande público.

Essa exposição pode, aliás, de alguma maneira, ser vista como um momento fundador (até porque depois se multiplicaram e organizaram muitas actividades com objectivos idênticos). A exposição (que ocupava parte do Pavilhão Central do IST) era gratuita, estava aberta até à noite e também no fim-de-semana. Era paralela à Conferência Europeia de Física de Altas Energias que se realizava pela primeira vez em Portugal, e que decorria na Gulbenkian (Richard Feynman esteve nessa conferência, e Abdul Salam). Houve miúdos, alguns dos quais mantiveram ainda contacto comigo ao longo dos anos que, logo ao fim do primeiro dia, decidiram faltar às aulas, ficar a ajudar nas experiências, assistir a todas as palestras, estar lá o tempo todo (a exposição esteve aberta uma semana), para grande horror dos pais e da escola. A necessidade de enfrentar o problema da educação científica nas escolas, e especialmente do ensino experimental das ciências, assim como da relação entre a ciência-viva que se faz e a ciência-ensinada surge logo aí como uma questão fundamental para o próprio desenvolvimento científico em Portugal.

Nos anos que se seguiram à minha passagem pela JNICT e antes de entrar para o governo, entre 1989 e 1995, procurei trabalhar em torno das questões da cultura científica na sociedade, possivelmente porque cada vez mais me parecia que a promoção da cultura científica poderia assumir um papel central, mobilizador de uma cultura de maior proximidade entre cientistas e não cientistas, indutor de um alargamento e reforço da base social do próprio desenvolvimento científico, e ser um fio condutor de acção política no plano cívico, de apropriação social do conhecimento, de exigência de uma cultura de avaliação, processos de decisão baseados no conhecimento, na participação informada na vida colectiva. Participo na concepção e no lançamento das semanas de cultura científica que foram feitas pela União Europeia, de conferências sobre o futuro da cultura científica na Europa, estudos sobre o estado da educação científica à escala europeia, etc.

Para mim foi ficando claro que a construção de uma base social para o desenvolvimento científico era mesmo a questão fundamental e que, garantida essa base social, se encontrariam os meios, e ocorreriam as circunstâncias em que o desenvolvimento científico em Portugal podia mesmo vir a ocorrer. A construção dessa base social, de uma constituency social alargada para o nosso desenvolvimento científico ou, dito de outro modo, para vencer o nosso atraso científico (usando a linguagem da época) era pois o problema central que urgia resolver.

Se a política científica se reduzir e empobrecer ao ponto de achar que a única justificação do investimento público em ciência se encontra no desenvolvimento de novos produtos ou serviços que possam dar lucro, e se condenar, portanto, à propaganda de indícios positivos em matéria de inovação para conseguir justificar esse investimento, não conseguirá nunca construir a base social alargada de que necessita (uma das consequências mais óbvias desta disfunção traduz-se frequentemente na pouca vontade, ou na falta dela, de estudar ciências e de prosseguir carreiras científicas entre os mais novos, em certos países, mas a análise desta questão concreta afastava-nos agora do essencial).

A questão do desenvolvimento científico tem, pois, de ser colocada junto da sua raiz; qual a contribuição da ciência, do conhecimento, da procura da verdade, para a nossa vida colectiva, para a nossa existência individual? Como contribui para a democracia? Para a organização da sociedade? Para a nossa relação com o mundo?

Hoje vejo que, talvez por estas razões, ou por ir adquirindo uma maior consciência da sua pertinência, acabei por investir muito do meu tempo em estudos e acções a que poderemos chamar de “prospectiva” (isto é, de análise e debate dos factores determinantes do desenvolvimento futuro com alguns dos potenciais actores desse mesmo desenvolvimento) não apenas sobre o próprio desenvolvimento da ciência, mas igualmente sobre cultura científica e educação científica de base. De certa forma, este processo veio dar lugar, mais tarde, ao lançamento do programa “Ciência Viva” (em 1996).

 Bom, mas, e a “consolidação do campo das ciências,” como perguntaste?

Vejo que te respondo a essa questão, no que respeita ao período que estamos a considerar, sempre em termos da consolidação social de um projecto de desenvolvimento científico. A própria consolidação “interna” do sistema científico assenta e depende dessa dinâmica “para fora”, para a sociedade, de partilha de um projecto de desenvolvimento científico em todas as direcções (formação de base, divulgação científica e promoção da cultura científica, defesa da actividade experimental e da aquisição de competências técnicas, modernização da universidade, criação de instituições científicas e de redes, participação em organizações e programas internacionais, difusão para o tecido económico de métodos e resultados, e de pessoas formadas, desenvolvimento de projectos conjuntos com a indústria).

Quando entro na JNICT procuro convocar a comunidade científica para a organização (a prospectiva) do seu próprio futuro, através do desafio da definição do seu projecto de desenvolvimento para o país, área a área, sector a sector. As “Jornadas nacionais de investigação científica e tecnológica”, em Maio de 1987, convocam a comunidade científica em todas as áreas, apelam à comunicação com a sociedade, trazem imprensa nacional e estrangeira, imprimem um movimento de convicção na possibilidade do desenvolvimento científico português, e desta forma ajudam a redefinir o próprio campo científico.

Ao chamar a essa proclamação de vontade de desenvolvimento científico que as Jornadas constituíram os seus aliados naturais, a comunidade científica estrangeira, os media e os profissionais da comunicação social (nacionais e estrangeiros), os professores, e ainda profissionais de diferentes áreas de aplicação da ciência — na indústria, nos serviços, na administração —, e ainda muitos dos que tinham prosseguido objectivos porventura idênticos em gerações anteriores, dizia, ao convocarmos esses actores sociais para o debate de um verdadeiro programa de desenvolvimento científico do país, onde cabiam todas as ciências e a comunidade académica toda, e ainda o diálogo das ciências com as humanidades e as artes, com a escola e com a sociedade no seu conjunto, estávamos a contribuir para enraizar social e politicamente a ambição do desenvolvimento científico e também (implicitamente) a definir o próprio campo científico.

Essas Jornadas lançaram pois um processo de mobilização geral, de debate sobre caminhos de desenvolvimento assumidos pelos próprios intervenientes, à vista dos nossos colegas de outros países e da opinião pública. Esse movimento torna possível uma dinâmica conduzida por cientistas mais novos e mais internacionalizados, e dá força à ideia de que o desenvolvimento científico, a partir de uma base tão reduzida, exigia desde o início quebrar radicalmente com sistemas de reconhecimento e de avaliação internos e assentes na hierarquia das próprias instituições. Não era possível pedir a confiança do país e afirmar a ambição de vencer em tempo curto um atraso científico que já se tornara uma fatalidade sem esperança, sem quebrar a lógica corporativa, sem apelar para o acompanhamento e a avaliação exclusivamente internacionais da ciência em Portugal, o que começa por ser praticado logo em 1987 com o lançamento do Programa Mobilizador para a Ciência e a Tecnologia (e nos anos seguintes), mas apenas acaba por se concretizar de forma generalizada depois da criação do MCT em 1995.

As Jornadas e o Programa Mobilizador definem assim um modelo e marcam um momento fundador da política científica moderna em Portugal. Ao abrir concursos para projectos e bolsas em todas as áreas científicas (ou seja, ao reforçar a parte do orçamento canalizada de forma competitiva) e ao recusar, no que respeita a essa componente viva apostada no crescimento e na qualidade do sistema, a velha problemática das “prioridades científicas” por áreas, definidas a priori, (problemática ainda muitíssimo viva no final dos anos 80) por uma visão de “oportunidades científicas” assentes mais na qualidade das equipas e dos projectos do que numa matriz pré-definida, reforçava-se drasticamente o papel da avaliação estritamente científica e abria-se espaço para o aproveitamento de todas as oportunidades.

JPC — Eu lembro-me bem de participar desse debate, e que se falava da visão das oportunidades em vez das prioridades. Lembro-me da perplexidade de uma série de colegas nossos que resistiam muito à ideia. Foi fundamental para a geração dos anos 90.

JMG — Esse debate reactiva-se e reactualiza-se logo a seguir, com o primeiro Programa de Desenvolvimento da C&T em Portugal, co-financiado por fundos estruturais europeus em 1990. Ainda preparei esse programa na JNICT (no final, em condições políticas muito adversas). Vai ser lançado depois, sob o nome de Programa Ciência, no meio de uma controvérsia particularmente importante, já que o governo de então tinha decidido rever algumas opções de fundo da proposta original, investindo parte dos recursos em “parques de ciência e tecnologia” (investimentos que se revelaram de pouca relevância para o desenvolvimento do país e foram fonte de desperdícios e negócios políticos economicamente ruinosos), promovendo uma visão acanhada de áreas científicas prioritárias e tentando excluir o financiamento das ciências sociais e das humanidades.

A exclusão das ciências sociais ficou como símbolo dessa controvérsia porque, na altura, os protagonistas políticos eram particularmente incultos e apostaram numa visão troglodita do que seriam as ciências “úteis”… Essa questão tornou-se uma questão simbólica e ajudou ao debate que, aliás, acabou por ser clarificador. Estava em jogo a escolha entre uma visão do desenvolvimento científico que implicava a definição de um campo científico alargado onde coubessem todas as ciências, até às humanidades e à fronteira com as artes, e todo o desenvolvimento tecnológico de base científica (modelo desenvolvido quando estive na JNICT, e a contra-corrente da vulgata yuppie dos anos 80) e uma visão de facto primitiva, redutora, antiquada, que aceitava que nos não havíamos de desenvolver cientificamente de forma normal, e nos devíamos era especializar numa agenda que lhes parecia economicamente de bom senso. De facto, confundiam investigação e formação científica (política científica) com o desejo de modernização da especialização industrial e com as políticas industriais que as pudessem concretizar. A partir de uma posição de poder, em 1990, ressurgiu a ideia de que o investimento nas ciências em Portugal se devia restringir às áreas supostas de aplicação prática, sendo as ciências sociais e outras naturalmente excluídas de tais investimentos. Essa polémica acabou por mobilizar dentro da comunidade científica e fora dela muitos sectores, que vieram defender posições mais abrangentes, dando força à ideia ambiciosa de superar realmente o atraso científico português e de não ceder à tentação da nossa eterna pequenez.

Em Portugal, este debate acabou por constituir a rampa de lançamento para a política científica que a criação do Ministério da Ciência e da Tecnologia, em 2005, com o governo de António Guterres, vem consagrar. Debates semelhantes ocorreram também à escala europeia, primeiro em 1995 contra a proposta de organização de todo o Programa-Quadro de I&D da UE apenas por produtos (o avião, o comboio, o automóvel…) e, em 2002-2005, com o movimento da comunidade científica europeia para que passasse a existir financiamento competitivo europeu, a atribuir por critérios estritamente científicos, à investigação “de fronteira” em todas as áreas, incluindo as ciências sociais, movimento que levou à criação do actual European Research Council (Conselho Europeu de Investigação). O facto de ter podido desempenhar um papel significativo em qualquer destes debates europeus tem certamente a ver com o próprio debate interno em Portugal e com a força e a confiança crescentes com que, em Portugal, avançávamos do ponto de vista científico e tecnológico.

JPC — Tu crês que isso tem a ver com uma visão do país ligada a uma certa elite pós-colonial, que se estava a afirmar nesse período, e que trazia consigo disposições modernistas, ou crês que é algo mais estrutural à própria sociedade portuguesa?

JMG — Não sei, nem talvez os dois termos se oponham. A revolução de 1974 abre horizontes e expectativas novas e acelera outras já existentes, dá-lhes materialidade, urgência, converte-os em projectos familiares, caminhos de vida. O povo estava pronto para projectar nos seus filhos, na geração futura, uma exigência de maiores níveis de instrução, e a revolução abre caminhos mentais e vias práticas para uma mobilidade social ascendente baseada na instrução dos filhos. A ciência vem identificar-se não apenas com esse movimento, mas com progresso social, democracia política, direito de saber, abertura ao estrangeiro, e o movimento dos cientistas mostra-os como militantes generosos dessa causa de progresso que se quer partilhada em cultura científica para todos. Não creio que tivesse sido possível um tão rápido e tão abrangente desenvolvimento científico em Portugal se esse desenvolvimento não se tivesse fundado numa base social de apoio e de mobilização tão alargada e com raízes tão profundas no “povo”. Um movimento de elites modernizadoras apenas, sem base social alargada, não teria porventura conseguido o que se conseguiu, afinal em tão pouco tempo.

JPC — Então o que está por trás disso é mais geral: uma cosmopolitização da sociedade portuguesa ligada à migração e também à experiência colonial?

JMG — Talvez. Mas também o sentimento popular do 25 de Abril, que é de esperança na superação de exclusões, desigualdades, atrasos seculares em todas as áreas. A aceitação de que a medida do atraso se deve encontrar numa referência externa, europeia, acentua-se com a aproximação à Europa, recebe com certeza o património de anos e anos de socialização a outros padrões de desenvolvimento conseguidos através da emigração, das notícias, da circulação de livros, filmes, canções, padrões de moda, e da generalização de uma cultura juvenil internacional. O progresso na educação surge como um passo essencial nesse caminho. Mas a importância do papel da ciência neste contexto tem possivelmente a ver, em grande parte, com a própria acção dos cientistas que tomaram uma atitude activa e socialmente inclusiva, e que fizeram, também eles, através da ciência e da sua exigência de aproximação à sociedade, o seu 25 de Abril…

Já tentei contar um pouco como, na minha experiência pessoal, conflui a formação política do movimento estudantil, da luta anti-colonial, a vontade de quebrar barreiras de classe, e a necessidade, como cientista, de agir socialmente para a maior apropriação social da ciência, para a valorização da força transformadora, revolucionária, do próprio conhecimento científico. Nesse sentido, faço também parte de uma geração que, na Europa, na América, e noutras partes do mundo, quis levar a ciência para a rua, levar a experimentação para a escola, trazer a argumentação científica para dentro dos debates de sociedade e para a decisão política democrática. 

Em França participei no GLACS (grupo de ligação para a acção cultural científica, como se chamava), em movimentos sindicais, em acções que visavam erradicar amianto dos edifícios públicos, ou que se empenharam na denúncia dos aspectos mais horríveis de uso da ciência na guerra do Vietname. Quando chego ao CERN encontro ainda velhos cientistas que tinham estado na construção da bomba atómica. Ainda recebo deles (e da geração seguinte) uma formação moral, de responsabilidade social, de absoluta necessidade de ir para fora do laboratório, de explicar constantemente, de ouvir. Em 1972-1973, a ideia mobilizadora de levar literalmente a ciência para a rua tem expressão em vários pontos da Europa. Algumas grandes conferências científicas passam a incluir uma componente experimental e de participação pública onde me insiro como jovem aprendiz de cientista. São colegas 5 a 10 anos mais velhos que eu que, na Europa e nos Estados Unidos, mobilizam nessa altura movimentos de democratização da ciência (de citizen science) e, no caso da física, levando equipamentos experimentais sofisticados literalmente para a rua, organizando jornadas de portas abertas dos laboratórios, fomentando a aprendizagem e o debate com as pessoas todas.

JPC — No entanto, quando tu chegas a uma actividade política propriamente tua, separas a investigação do ensino; isto é, interessaste-te particularmente pela questão da ciência e da investigação.

JMG — Nada disso! No caso da JNICT, tratava-se de uma agência para a investigação científica cuja acção foi estendida ao máximo enquanto lá estive, para apoiar a divulgação científica e a aproximação entre os cientistas e as escolas. Em 1995, quando é criado o primeiro Ministério da Ciência e da Tecnologia (MCT), a aposta na aproximação da ciência às escolas e na promoção da cultura científica e tecnológica na população em geral foi, a meu ver, essencial. O MCT e a sua acção seriam incompreensíveis sem o Ciência Viva!

O Ciência Viva, ao procurar organizar a promoção da cultura científica, escolhe como orientações estratégicas fomentar uma cultura de proximidade entre cientistas e não-cientistas (nos Centros Ciência Viva, nas acções de Verão, na geminação e nos projectos entre escolas e instituições de investigação) e promover práticas experimentais de ensino das ciências nas escolas, combatendo a deriva retórica e anti-empírica dos subdesenvolvidos, para os quais a aprendizagem das ciências não é, acima de tudo, a conquista de formas controladas e materiais de interrogação do real, isto é, da observação e da experimentação, mas o nominalismo das definições e da selecção pelo uso de linguagens formais. Mexer nas coisas, “meter a mão na massa” (como proclamaram movimentos contemporâneos nos EUA — hands-on! — ou em França — la main à la pâte), tem contra si séculos de cultura de educação retórica e burocrática e o medo “de classe” de trabalhar com as mãos, atavismos esses particularmente enraizados em Portugal…

Houve assim uma escolha consciente de que era uma prioridade, para o próprio desenvolvimento científico, a intervenção nas escolas do ensino básico e secundário, a aproximação entre cientistas e professores das escolas, assim como a intervenção dos cientistas e de outros profissionais e amadores no espaço público. Essa intervenção tem como expressão, no campo da ciência, a criação do Ciência Viva e, no campo da apropriação das tecnologias de informação e comunicação, a ligação de todas as escolas e bibliotecas à internet e a criação da Missão para a Sociedade da Informação.

Em 1995, como se sabe, não assumi (em conjunto com a da ciência) a tutela do ensino superior, a qual teria de ter como objectivo, como teve a partir de 2005, a reforma de todo o sistema de ensino superior em Portugal. Nessa altura, a junção da ciência e tecnologia com o ensino superior, teria tornado praticamente impossível desenvolver uma política científica genuína em que se incluía como elemento fundamental a promoção da cultura científica e tecnológica, o ensino experimental das ciências e a aproximação entre os cientistas e as escolas.

Talvez se possa dizer que daí resultou atrasar-se vários anos a reforma do ensino superior, mas nem isso é certo. Um dos objectivos de António Guterres, em 1995, tal como de José Sócrates em 2005, era reformar o ensino superior. E também é verdade que eu tinha colaborado com o Conselho Geral de Educação nos anos anteriores, precisamente em propostas de reforma do ensino superior. Fui, aliás, responsável (em 1993) por um “Documento de orientação para o ensino superior em Portugal” aprovado pelo CNE e que prefigura um primeiro esboço de reforma do sistema. Mas, para mim, era claro que tentar fazer a reforma profunda do ensino superior nessa altura não era compatível com a responsabilidade de tutelar e dirigir uma aposta a sério na política de ciência em Portugal. Pareceu-me essencial consolidar este campo indo ao fundamental, não apenas à investigação e à formação avançada, mas reforçando critérios de avaliação e dando-os como exemplo na sociedade portuguesa.

Sempre achei essa uma das pedras-de-toque da separação e da afirmação do sector da ciência no campo governativo. Era necessário que existisse um sector com sistemas de controlo de qualidade e avaliação independentes, transparentes, credíveis. Provavelmente isso era o melhor que a política de ciência — e a própria ciência — tinham para dar à sociedade. Independentemente da contribuição específica própria da prática científica, estava igualmente em causa a consolidação da base social e política para o desenvolvimento científico em Portugal.

O futuro veio, aliás, a mostrar que sem a força da política científica, a reforma do ensino superior não se concretizava, e que, quando se concretizou, pôde fazê-lo, em grande parte, porque o próprio campo do ensino superior se tinha grandemente transformado já por força precisamente da afirmação e do desenvolvimento da actividade científica, e porque a sociedade tinha confiança na ciência para liderar essa reforma, contra o conservadorismo instalado.

O Ciência Viva e a internet nas escolas ajudaram muito a consolidação do campo das ciências em grandes camadas da sociedade. Tornou-se óbvio para todos que a ciência e os cientistas estavam a fazer coisas por nós todos: quem é que está a pôr internet nas escolas? A ciência. Quem está a melhorar os laboratórios nas escolas e levar cientistas às escolas? A ciência. Hoje podemos ver como essa identificação do Ministério com os cientistas e com a ciência, que pôde também beneficiar do facto de eu vir do campo das ciências e ser previamente conhecido como cientista, foi muito importante para a consolidação social do campo científico.

JPC — Crês que isso mudou actualmente? Estamos a viver um período parecido com o que a Inglaterra está a viver outra vez, com uma desilusão com a ciência?

JMG — Não, não, de maneira nenhuma. Em Portugal, acho que este movimento de consolidação está profundamente enraizado na sociedade portuguesa. O enraizamento mais difícil, ao contrário do que alguns julgavam há 20 anos atrás, era o enraizamento da ciência aqui praticada na própria vida económica nacional, o qual, como sabemos bem, exige uma enorme acumulação de conhecimento, pessoas qualificadas, instituições capazes, redes profissionais. Mas esse só poderia acontecer, de forma nítida e indesmentível, quando já houvesse massa crítica suficiente. Uma indústria que queira ou tenha de inovar com recurso a conhecimento científico e técnico novo não pode ficar à espera do desenvolvimento científico do país. Ou já existem aqui as capacidades necessárias, ou a capacidade de as adaptar ao fim em vista — ou tem que ir tentar comprar fora.

JPC — Voltando para trás: um grande desafio com que tu te confrontaste na JNICT, e depois abraçaste directamente a partir de 1995, foi o da criação de instituições de ciência. Havia instituições de ensino superior em Portugal que tinham sofrido uma crise profunda mas que tinham sido reconstituídas de uma forma ou de outra nos meados dos anos 80. Mas não havia propriamente instituições de ciência; como é que tu viste isso?

JMG — A situação era, de facto, muito complicada. O final dos anos 80, é um período de grande estrangulamento financeiro em Portugal e de grandes restrições orçamentais com a consequente burocratização da relação do Estado com as instituições, designadamente as instituições de ensino superior. Isso fez com que as poucas bolsas de cientistas activos tivessem procurado criar novas formas de organização — designadamente associações privadas sem fins lucrativos —, porque esse modelo permitia-lhes contratar pessoas novas e fazer uma gestão autónoma. Defendi isso durante todo o período em que estive na JNICT, e defendi igualmente no governo, como defendo hoje, a necessidade de preservar esse modelo de defesa, ao mesmo tempo que se tenta combater a tentação fácil (mas tão difícil de superar) de substituir a responsabilidade orçamental pelo ataque à autonomia das instituições que dela não podem prescindir pela própria natureza das sua actividades.

É preciso não esquecer, para te dar um exemplo, que quando entro na JNICT quase todas as bolsas de estudo são apenas atribuídas a docentes universitários e para estudarem no estrangeiro. Dar bolsas de estudo a quem não tenha vínculo ao Estado (estudantes de doutoramento, por exemplo) é uma novidade na época. Ora a expansão do próprio sistema científico e a mobilidade necessária exigem essa separação a que a corporação universitária de então resistia. Também a avaliação, na atribuição de financiamento público, segue ainda práticas que dificilmente podem gerar a confiança necessária num sistema que se pretende ver crescer rapidamente.

Recordo-me, aliás, que foi preciso ir mesmo muito longe para tornar visível a necessidade de dar lugar aos mais novos, dar espaço, mostrar-lhes que esse lugar era também para eles. Não bastou começar a organizar avaliação com membros estrangeiros nos júris. Foi necessário organizar apresentações públicas dos projectos de investigação, para que, nessa fase fundadora, se fizesse também uma auto-selecção natural e se dessem mais oportunidades aos melhores. Assim, jovens competentes e que sabiam o que estavam a dizer, puderam começar a afirmar-se.

JPC — Eu participei nesses júris e lembro-me bem de algumas situações confrangedoras que, por vezes, ainda uso como exemplo para os meus alunos de pós-graduação do que nunca se deve fazer. Sempre achei que foi um momento muito importante.

JMG — Mas foi sentido por colegas nossos como uma provocação. Essa mudança foi fundadora de um sistema científico autónomo, credível, fortemente apoiado em competências científicas, mas também institucionais, que não existiam no país. Tratava-se de fundar uma ambição nova, uma ruptura indispensável. Mas importa registar como essa ambição foi partilhada por pessoas eminentes, de gerações e de percursos políticos tão díspares. Não se estranha que Mário Soares tenha sempre, até hoje, dado corpo a esse combate, e de forma sempre generosa. Ou que Almeida Santos ou Eduardo Lourenço tenham estado sempre presentes, para apenas falar de uma geração que antecede a minha em muito.

Mas recordo-me, por exemplo, do debate público em 1990 em que Francisco Paula Leite Pinto (a quem devo muitas horas de debate e correspondência atenta), homem fundamental do Estado Novo, criador da JNICT em 1967, e seu primeiro presidente, quis estar presente, no Grémio Literário. Com o título militante “Contra o atraso científico português” esse debate juntou à noite eurodeputados portugueses de todos os partidos políticos. É engraçado recordar que esse título não fui eu que o inventei, foi o então director do Grémio. Disse: “Olhe que nós somos Setembristas! Se quer dizer que é contra o atraso científico português, diga isso mesmo! Eu também sou!”

JPC — Queria-te pedir para falares um pouco sobre o papel das principais instituições das ciências sociais e, de seguida, se calhar, que falasses da política dos laboratórios associados.

JMG — Tive um excelente contacto com Adérito Sedas Nunes durante o período em que fui presidente da JNICT. Estava (de novo!) em discussão onde o ICS seria finalmente inserido.2 A atitude de Sedas Nunes, numa altura de grande resistência de alguns sectores mais conservadores da comunidade científica, foi muito interessante. Relativamente à apresentação pública de projectos, ele próprio me disse: “Acho muitíssimo bem e vou lá estar!”

Na altura, tive muito contacto com várias áreas das ciências sociais e humanas (a sociologia, a antropologia, a psicologia, a economia, a história, a filosofia, etc.). Recordo-me, por exemplo, da consolidação do ICS e do que viriam a ser o CES e o CIES. À época, este último era uma cooperativa de investigação, modelo original que julgo nunca mais se ter repetido em Portugal. A consolidação do CES, em Coimbra, com Boaventura Sousa Santos, é também desse período e contou já com uma fortíssima oposição do governo (depois de Eduardo Arantes e Oliveira ter sido afastado).

No final do meu mandato na JNICT, já estávamos numa fase muito agressiva contra as ciências sociais. Como dizia o secretário de Estado que substituiu Arantes de Oliveira: “Lá vem ele outra vez com as ciências ocultas”!

Tenho na memória a necessidade de consolidar instituições, uma enorme fragilidade institucional que urgia tentar pacientemente superar, ao mesmo tempo que se deviam criar instituições novas, encorajar novas lideranças. Esse é também um período de criação de algumas instituições científicas modernas. Tínhamos muitos centros de investigação mas muitos deles com um número insignificante de investigadores. Às vezes era apenas um professor e pouco mais... Mas a ciência faz-se em instituições científicas. Ora isso era visto por muitos como uma inaceitável oposição à universidade de então, que só raramente se poderia qualificar como instituição científica.

Havia que assegurar condições institucionais para que aqueles que faziam mesmo ciência tivessem espaço institucional próprio. A JNICT teve nisso um papel muito importante, desde o início, relacionando-se com cientistas e equipas científicas promissoras directamente. E essa foi sempre a prática dos presidentes que me antecederam. Correspondíamo-nos directamente com instituições científicas, mesmo quando sediadas nas universidades, e com cientistas individuais, qualquer que fosse a sua inserção institucional. Apoiava-se a sua autonomia de gestão nos escassíssimos recursos financeiros disponíveis. Recordo-me que as comissões organizadoras de muitos congressos científicos tinham então de recorrer a uma figura jurídica prevista no código civil para as comissões de festas, de forma a conseguirem ter uma conta bancária própria, e controlarem e serem responsáveis pelos seus orçamentos…

Alguns responsáveis universitários apoiavam a JNICT; outros sentiam-se ofendidos com o facto de a JNICT mandar cartas aos directores dos centros de investigação ou fazer avaliação de projectos científicos sem pedir pareceres à universidade. Mas ao longo dos anos, a própria hierarquia universitária se foi transformando e muitos responsáveis científicos acabaram, eles mesmos, por assumir a gestão universitária. A investigação científica acabou por impor-se. Mas isso demorou mais de 20 anos. A institucionalização de concursos para projectos em todas as áreas científicas, o financiamento plurianual mediante avaliação de centros de investigação em todas as áreas, a abertura regular de concursos nacionais e internacionais para bolsas de doutoramento, de pós-doutoramento, ou para contratos de investigador, a apresentação e debate públicos dos resultados e da actividade científica em Portugal, nomeadamente através dos Encontros com a Ciência (organizados anualmente de 2007 a 2010, com o CLA3) e, especialmente, a criação dos Laboratórios Associados em áreas muito diversificadas, onde se incluem as ciências sociais, consagraram uma visão alargada do campo científico, não apenas na política científica, mas também, e principalmente, dentro da própria comunidade científica e na sociedade em geral.

Sobretudo nos últimos anos, grande parte deste percurso é, acima de tudo, um trabalho de equipa, em primeiro lugar com Manuel Heitor (que em 2002 me tinha chamado para ensinar com ele no mestrado, por si criado, de políticas tecnológicas — secretário de Estado entre 2005 e 2011), que trouxe ao campo da política científica e tecnológica portuguesa o contributo fundamental de uma experiência académica internacional nova, mas também, e especialmente, com João Sentieiro (como presidente da FCT, depois de ter sido o primeiro secretário do CLA).

As ciências sociais partiam de uma situação mais difícil, com menos profissionais e menos recursos que as restantes ciências, fruto da desgraçada herança política do salazarismo nesta matéria. A internacionalização das ciências sociais foi um objectivo de política científica assumido pelo menos desde 1987, e realizou-se através do fomento de congressos em Portugal, da ida de cientistas a congressos no estrangeiro, de acordos institucionais e projectos conjuntos, de bolsas para o estrangeiro e, naturalmente, dos mecanismos de avaliação e acompanhamento internacionais comuns a todas as ciências. Em muitas áreas, e não apenas nas ciências sociais, era comum publicar-se apenas em revistas institucionais, muitas vezes da própria universidade, e não era sentida a necessidade de publicação em revistas com sistemas de avaliação independente. Tudo isto acabou por mudar.

Tivemos muitos problemas de crescimento, alguns dos quais mais visíveis no campo das ciências sociais e humanidades, embora certamente comuns a todas as áreas. Tais problemas são cada vez mais comuns a Portugal e a outros países cientificamente desenvolvidos. Contudo, o nosso crescimento recente, a ansiedade na afirmação (não se costuma dizer que não há mais fanáticos que os recém-convertidos?) acentuam por vezes distorções de forma quase irracional.

Vejam-se recentes “regulamentos” de avaliação individual de docentes e investigadores! Publicou numa revista A ou B? (Mas não haverá lá ninguém que saiba ler os artigos e seja sério?!). Uma visão ansiosa e infantil que tudo pretende classificar (revistas, artigos, livros…) de forma “automática”, a partir de regulamentos e algoritmos, faz lembrar a ilusão dos cabalistas para esconjurar a incerteza do mundo. De facto, sabemos hoje que uma universidade, uma instituição de investigação, têm de ter atingido um nível cultural, científico suficientemente elevados para terem a coragem simples de dispensarem fórmulas e esconjuros quando querem saber da qualidade de alguém ou de alguma obra: simplesmente lêem, estudam, pedem pareceres especializados, e finalmente ponderam e decidem por si, sem se refugiarem atrás de fórmulas ou índices.

Também o equilíbrio na valorização da língua inglesa ou da língua nacional em publicações académicas, ou na publicação em revistas ou livros, se tem revelado estranhamente difícil no desenvolvimento da maioria das instituições. São questões que se apresentam de forma muito diferente para as ciências da natureza, para as engenharias, ou para as humanidades e as ciências sociais, e que dependem da história das áreas científicas e das suas redes de relações com o tecido social. Em física, por exemplo, o livro não é hoje normalmente usado como instrumento para a publicação de resultados de investigação, mas assume um papel fundamental como repositório de referência ou como obra de ensino e de divulgação, ao contrário do que acontece nas humanidades e em muitas ciências sociais, em que o livro continua a ser fundamental como o resultado de investigação inovadora. A relação com a sociedade através da própria língua no campo das ciências é muito diferente nas ciências físicas ou nas ciências humanas e sociais. O dogmatismo a que se assiste por vezes a este propósito é verdadeiramente constrangedor.

JPC — Queria saber a tua opinião sobre dois outros aspectos que são virados para o futuro. Houve este desenvolvimento todo e uma consolidação do campo científico em Portugal. Nós hoje temos largas quantidades de doutores a trabalhar nas universidades e nos centros de investigação, mas muitos deles estão com contratos temporários, dependentes de políticas de promoção científica que podem bem vir a variar. Gostava de te ouvir um bocado sobre isto, em particular, já que há uma tendência a nível europeu para retrair verbas para o ensino da ciência e para concentrar esforços em temáticas “úteis” — o tal fantasma.

Em particular tenho duas perguntas. Uma é: como é que nós vamos constituir carreiras científicas no futuro, qual o papel dos cientistas numa sociedade onde há muitos mais cientistas? A outra é: em que medida é que a natureza das carreiras que estamos a constituir é susceptível de ser ameaçada por políticas de retracção ao subsídio à ciência, e políticas sobretudo de concentração temática?

JMG — Começo por tentar esclarecer alguns desses factos. Julgo que dizias haver uma política de maior concentração temática nos Programas-Quadro de investigação da União Europeia. Essa concentração esteve, e está, sempre presente. Contudo, a criação do European Research Council e a afectação de recursos importantes a todas as áreas de investigação “de fronteira”, sem pressupostos, é a prova provada do movimento contrário. Esta viragem na política europeia de ciência resultou de um movimento colectivo de cientistas à escala europeia, e demonstrou o valor da participação dos próprios cientistas na formulação da política científica europeia.

Também é preciso não esquecer que os Programas-Quadro europeus de investigação e desenvolvimento, quando lançados, tinham apenas como objectivo financiar projectos de investigação que aumentassem “a competitividade industrial” da Europa, através do estímulo à cooperação entre entidades de diferentes países. A política científica, essa, era apenas de âmbito nacional. A situação evoluiu entretanto. Contudo, seria uma ilusão olhar para o Programa-Quadro de I&D como se representasse a política científica europeia! O financiamento europeu à investigação representa apenas uma reduzida fracção dos gastos públicos totais em I&D na Europa, embora desempenhe um importantíssimo papel, especialmente no que se refere ao desenvolvimento de projectos ou programas conjuntos entre entidades de vários países. As políticas científicas nacionais, contudo, são determinantes para o futuro da ciência na Europa.

JPC — Mas, hoje, o que ouvimos é que se avizinha uma concentração temática em 5 grandes áreas.

JMG — Não será bem assim… A proposta actual da CE4 vai no sentido de organizar a intervenção comunitária em três grandes grupos de objectivos (que não são áreas temáticas): grandes desafios societais, tecnologias para a competitividade industrial, reforço da base científica. Neste último grupo situam-se as bolsas Marie Curie, todo o financiamento do ERC (em todas as áreas), etc. Quer no campo dos desafios societais, quer no das áreas industriais, a proposta actual amplia, de certa forma, a experiência anterior. Contudo, a relação entre estes objectivos e os programas detalhados, e a relação entre este quadro de financiamento proposto, as fontes de financiamento nacionais e as agendas de investigação reais, é trabalho que vai exigir uma muito maior iniciativa por parte dos próprios cientistas e das suas instituições, em todos os países.

JPC — E o futuro das carreiras científicas em Portugal? Nós criámos uma geração de cientistas e demos-lhes carreiras científicas. Como é que tu sentes que esse processo poderá vir a ser sustentado nos anos que vêm aí?

JMG — Acho que vale a pena deixar bem clara uma verdade estúpida: a política científica influencia mesmo a actividade científica. A actividade científica depende, para o bem e para o mal, das políticas científicas. Não é imune a elas, não lhes é indiferente nem marginal. Esta observação é tanto mais verdadeira quanto o sistema seja mais recente e esteja em expansão e, sobretudo, quanto mais pequeno for — o nosso caso.

Não sei se tens a noção de que, hoje, em termos de ciência, Portugal já não pode situar-se apenas no “ranking” europeu das médias (de fracção de investigadores na população activa, ou de percentagem da despesa em I&D no PIB, etc.). Já está habilitado a apresentar-se ao campeonato em que a análise se eleva ao concreto, à formação de massas críticas com qualidade, seja no sector público seja nas empresas.

As médias são indicadores interessantes em fases iniciais de desenvolvimento, na comparação entre países, na análise da sua evolução global. Mas em nenhum país se pode estimar a capacidade para resolver problemas científicos ou tecnológicos em tempo útil apenas com recurso a médias nacionais. Em países da nossa dimensão, sabemos que a apropriação social e económica da investigação exige terem atingido médias muito mais elevadas que as que caracterizam os grandes países (mas que, dentro deles, são largamente excedidas em determinadas regiões). Temos pois que comparar-nos aos países de dimensão análoga à nossa, que conseguiram um significativo enraizamento social, económico e cultural da ciência, ou seja, na Europa, com a Suécia, a Suíça ou a Dinamarca. Hoje, por exemplo, Portugal dispõe de um número de investigadores activos que nos situa bastante acima da média europeia, na proporção da nossa população activa, mas continuamos bastante abaixo das médias dos países mais avançados, ou seja, ainda não dispomos de recursos equivalentes aos deles. A desproporção é ainda mais grave no que respeita aos recursos físicos instalados, ou relativamente aos recursos financeiros disponíveis para fazer investigação. Há ainda um grande caminho a percorrer.

Falas-me do emprego e das carreiras científicas. Sempre que o nível de qualificações em Portugal se eleva um pouquinho mais, sempre que se formam mais pessoas, logo se ouve um coro trágico lamentar-se: “Mas que vão fazer? Onde arranjarão emprego? Alguma vez terão futuro no nosso país? Para que servirão?”… Tenho sido perseguido por esse tipo de ansiedade há pelo menos três décadas. Implícita está a sugestão que talvez fosse melhor não os formarmos, não criarmos falsas expectativas, ilusões... Há quem diga que só estamos a formar pessoas para irem trabalhar para o estrangeiro: um desperdício!

Transparece aqui uma mistura de derrotismo triste, aparente bom senso, ansiedade e medo do futuro que formam a nossa portuguesíssima teia da desgraça, assente em séculos de pobreza e de falta de oportunidades, a emigração como única fonte de mobilidade social. Mas vale a pena confrontar essa ansiedade com o real. Ora, na realidade, nos últimos 30 anos, Portugal não foi um país de “fuga de cérebros”. Como será no futuro, não sabemos, e certamente também dependerá de nós mesmos. Mas, pelo menos sabemos que, no essencial, e num período de considerável expansão de qualificações, essas qualificações foram absorvidas pelo próprio país.

Se nos concentrarmos apenas nos doutorados, verificamos mesmo o oposto: nos últimos 30 anos Portugal atraiu mais doutorados do que aqueles que saíram. Perguntar-se-á: esta situação é estável ou poderá inverter-se? Acho evidente que se pode inverter a qualquer momento! É um combate permanente, não há nunca garantias de nada.

Qual é a situação actual? Como poderemos projectá-la no futuro? A investigação empresarial cresceu até agora mais em recursos financeiros próprios que em recursos humanos muito qualificados. A sua capacidade potencial de gerar emprego científico qualificado é, pois, elevada, desde que a actividade económica em que se sustenta prossiga favoravelmente. Embora grande parte das empresas que fazem investigação sejam exportadoras, tal não acontece com todas. O impacto negativo da actual crise financeira sobre as empresas e sobre as perspectivas de curto prazo de geração de emprego qualificado recomenda não apenas medidas de apoio específicas neste sector como uma especial atenção ao emprego no sector não empresarial, designadamente no ensino superior e nas instituições privadas sem fins lucrativos. É, afinal, da sua sustentação que depende o futuro da investigação e das capacidades técnicas do sector empresarial. Por outro lado, a consolidação de carreiras científicas está intimamente ligada, em todos os países, às formas de recrutamento e progressão nas carreiras das instituições de ensino superior ou de investigação financiadas maioritariamente com fundos públicos.

Ora, de 20 000 doutorados activos em Portugal (números redondos), teremos certamente um milhar e meio de bolseiros de pós-doutoramento; outros tantos talvez com contratos de trabalho através de programas específicos (“Compromisso com a Ciência”, emprego científico de doutorados em Laboratórios Associados, contratos no âmbito de projectos), ou nas empresas. Os restantes são, na sua maioria, investigadores, e docentes do ensino superior público.

A questão da consolidação das carreiras de investigação fora das empresas remete pois, em larga medida, para a relação da actividade científica com o acesso às carreiras e à progressão nas carreiras nas instituições de ensino superior e em instituições científicas associadas — como acontece, aliás, em quase todos os países, se incluirmos no âmbito do ensino superior redes nacionais de centros de investigação académicos operados por grandes organizações estatais, e ainda, e no caso português em muito menor escala, pela situação em instituições de investigação do Estado.

Ora, esta questão está em parte ainda por resolver. Um episódio significativo foi a preparação da reforma da carreira docente do ensino superior universitário e do ensino superior politécnico e os seus vaivéns no interior do campo sindical, do campo universitário, do campo político. Sendo que a finalidade da reforma era precisamente ajudar a abrir espaço para que os melhores jovens cientistas pudessem entrar nas carreiras académicas, a maioria das resistências centrou-se aí mesmo.

Acontece que o debate político — e, nomeadamente, a revisão imposta pela Assembleia da República — foi no sentido de proteger ao máximo aqueles que tinham já alguma espécie de vínculo com a instituição, evitando que tivessem de concorrer com quem, vindo de fora, pudesse eventualmente ser melhor! Os partidos de direita coligaram-se aos mais conservadores da esquerda, e tornaram-se correias de transmissão das resistências corporativas para impedir, ou dificultar, a possibilidade de concorrer a quem viesse de fora. As melhores instituições, sem grande peso de regimes transitórios, tudo farão para abrir caminho aos melhores. Mas nas instituições menos boas, exactamente as que mais precisariam, consagrou-se o peso conservador dos que julgam defender-se fechando as portas.

A formação pós-graduada ainda é muito reduzida em Portugal; a formação graduada que aumentou muito, nos últimos anos, a sua base social, enfrenta ainda o desafio dificílimo de superar atrasos acumulados, e de chamar activos sem qualificações superiores. O potencial de crescimento do corpo docente e de investigação de algumas universidades e politécnicos ainda deveria ser, em princípio, elevada. Os níveis de qualificação dos docentes do ensino superior, apesar de terem crescido muitíssimo, ainda não são, globalmente, suficientes. Nos próximos anos, e em condições orçamentais eventualmente mais difíceis, a capacidade dos dirigentes das instituições (e dos melhores cientistas do corpo docente das instituições) será, pois, posta à prova: obterem mais receitas, não prescindirem de apostar nos mais novos, serem capazes de oferecer condições de concorrência efectivas àqueles que estão hoje fora das carreiras — e que, em muitos casos, são bolseiros de pós-doutoramento ou contratados que, em alguns casos, têm currículos científicos melhores.

Noutros sectores, o problema é ainda mais complexo. Na indústria e nos serviços avançados, por exemplo, temos uma grande variedade de situações. Embora as ciências da vida tenham formado muitos e excelentes jovens investigadores, não existia indústria bioquímica, biotecnológica com dimensão suficiente para os absorver. Parte da criação de emprego privado nesta área dependerá, pois, não apenas do crescimento das empresas existentes, como, muito especialmente, da criação de empresas novas. O sector das tecnologias de informação e comunicação, pelo contrário, expandiu-se muito mais rapidamente, fê-lo em estreita relação com o sector académico, e essa relação tem sido suficientemente forte para absorver (e ajudar a dinamizar) parte da capacidade científica da área.

A renovação do corpo docente e investigador das universidades, dos laboratórios de investigação, dos politécnicos terá, agora mais do que nunca, um papel decisivo. É aí que se joga, a meu ver, a consolidação de uma nova geração de cientistas. Voltamos pois à responsabilidade inescapável das políticas científicas. Nestes últimos anos a política científica portuguesa foi claramente anti-cíclica. Cresceram orçamentos públicos de I&D, promoveu-se e expandiu-se o emprego científico qualificado, investiu-se na cooperação com as empresas e na cooperação internacional — num período de forte contracção dos investimentos públicos e de ajustamento orçamental. A actual crise financeira e o seu impacto em países como Portugal colocam esse desafio a um nível ainda mais exigente. Seria trágico que se abandonasse a continuidade das políticas de reforço do sistema científico e tecnológico dos últimos anos.

Reduções significativas dos salários dos quadros mais qualificados, por exemplo, têm quase naturalmente como consequência a sua emigração real, ou a sua integração nos sistemas científicos e económicos de outros países, mesmo que permaneçam formalmente vinculados ao país de origem, para além do colapso na capacidade de atracção e fixação de talento externo. A redução dos orçamentos para a ciência resulta em quebra de confiança e em procura de oportunidades noutros países. O aumento injustificado da burocracia, das restrições à autonomia de contratação pelas universidades (tentações que bem conhecemos de outras épocas recessivas) arrasta desperdício e afasta os melhores. E é sempre tão pequeno o orçamento da ciência, no cômputo geral das despesas públicas! Não se trata pois de uma impossibilidade, um país em recessão continuar a apostar no seu futuro, mas apenas de uma escolha necessária: dar prioridade política à ciência.

Já vai longa, esta entrevista! Mas sinto que devíamos ter falado de muitos outros protagonistas fundamentais: os que criaram e desenvolveram instituições, os que as souberam reformar, todos os que mais perto e mais por dentro estiveram, ou estão, no processos de que é feita a política científica… Gostava de os citar a todos, porque esta história, que me fizeste contar na primeira pessoa, é de muitas primeiras pessoas!

E — finalmente — muito obrigado por me teres ajudado a reflectir de novo sobre este processo verdadeiramente extraordinário que foi o desenvolvimento científico português das últimas décadas.

 

Notas

1 Karin Wall, socióloga, então docente do ISCTE, actualmente investigadora do Instituto de Ciências Sociais.

2 O ICS adquiriu o estatuto de unidade orgânica da Universidade de Lisboa em 1982 mas o seu lugar físico era num edifício principalmente ocupado pelo ISCTE.  Até aos finais dos anos 80 houve ainda muita resistência, fora e dentro da universidade, à sua institucionalização. A ideia de um “instituto de investigação”, com investigadores a tempo inteiro, era considerada injusta! Dar aulas de licenciatura era ainda então a vocação por excelência de grande parte da universidade portuguesa.

3 Conselho dos Laboratórios Associados, coordenado então por Alexandre Quintanilha.

4 “i) Excellent science base. This shall cover: a) The European Research Council; b) Future and Emerging Technologies; c) Marie Curie actions on skills, training and career development; and d) European research infrastructures (including eInfrastructures).

  “ii) Industrial leadership and competitive frameworks.This shall cover: a) Leadership in enabling and industrial technologies of:Information and Communication Technologies, Nanotechnology, Advanced materials, Biotechnology, Advanced manufacturing and processing, and Space; b) Access to risk finance; and c)Innovation in SMEs .

 “iii) Tackling societal challenges. This shall address the challenges of: a) Health, demographic change and wellbeing; b) Food security, sustainable agriculture and the bio-economy; c) Secure, clean and efficient energy; d) Smart, green and integrated transport; e) Climate action and resource efficiency including raw materials ; and f) Inclusive, innovative and secure societies.”

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