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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.200 Lisboa  2011

 

Entrevista a António Barreto

por Marina Costa Lobo

 

Marina Costa Lobo é doutorada em ciência política (Oxford) e investigadora auxiliar no Instituto de Ciências Sociais, onde desenvolve pesquisa na área dos comportamentos e instituições políticas em Portugal. É cronista regular do Jornal de Negócios.

António Barreto, doutor em sociologia, investigador universitário, é actualmente presidente da Fundação Francisco Manuel dos Santos. Licenciado em sociologia e doutorado pela Universidade de Genéve em 1985, foi ministro do Comércio e Turismo e depois da Agricultura no I governo constitucional (1976-1978). De regresso à universidade, desenvolveu a sua actividade no Instituto de Ciências Sociais, publicando obras sobre a evolução social em Portugal, focando os temas da emigração, socialismo e reforma agrária, indicadores sociais, justiça, regionalização, Estado e Administração Pública, Estado-Providência, e comportamentos políticos. Desde a democratização que António Barreto tem sido um interveniente respeitado dos media portugueses. É reconhecido como uma das maiores figuras das ciências sociais em Portugal, tendo-se tornado uma voz incontornável da opinião pública em Portugal. Em 2004 foi vencedor do Prémio Montaigne e em 2008 foi eleito membro Academia das Ciências de Lisboa.

 

Marina Costa Lobo (MCL) — Vamos começar pelas pessoas. Houve uma geração Sedas Nunes? Em que é que consistiu essa geração?

António Barreto (AB) — Uma geração Sedas Nunes, acho que não. Houve o Sedas Nunes, himself. E ele fez uma geração. Foram uma dúzia ou duas dúzias de cientistas sociais orientados, feitos, ajudados a formar ou escolhidos por ele. Eu não o conhecia pessoalmente, nesses anos 60, mas o nome e a obra chegavam-me a Genebra por via da Análise Social e de um ou outro livro. O percurso do Sedas Nunes é interessante e mereceria até um dia uma pequena biografia, para tentar perceber como ele conseguiu o que conseguiu. Ele tinha características pessoais de tenacidade. Mas, além disso, conhecia muito bem a administração pública portuguesa e, dentro da administração, a parte universitária e académica, o meio dos estudos e investigação. E tinha o beneplácito de uma parte da Igreja. Imagino que no final da vida dele, já não estivesse tão ligado à igreja, estava muito afastado. Mas, mesmo assim, manteve sempre relações estreitas, individuais e pessoais com pessoas muito importantes na igreja.

MCL — E isso foi crucial?

AB — Foi crucial porque ele pôde navegar dentro da administração pública sem ser travado. Se ele aparecesse no mundo das ciências sociais, ou se ele aparecesse na academia como um oposicionista, um radical, ou simplesmente como um republicano, laico e homem da oposição, não o teriam deixado prosseguir. O anterior regime reagia duramente a qualquer tentativa de observação e análise da própria sociedade. E são conhecidas várias pessoas que quiseram criar estudos de sociologia, mas acabavam por desaparecer, ou iam fazer direito, ou economia. Sedas Nunes teve esse beneplácito, essa bênção. Associou-se gradualmente, ou desde muito novo, aos chamados católicos progressistas, sem que o fosse. O Partido Comunista, naquela altura, é que elegia quem era designado católico progressista. Porque naquela altura os católicos progressistas eram quase compagnons de route do PC e o Adérito Sedas Nunes não estava com eles. Estava com a JUC.1 Na JUC, tinha surgido um grupo que incluía o Sedas Nunes, o João Salgueiro, o Bénard da Costa, o Carlos Portas, o Nuno Portas, a Eduarda Cruzeiro, entre outros. Este foi um núcleo muito importante de pessoas que, não sendo “progressistas”, eram católicos, democratas ou liberais, que mais tarde vão aparecer, alguns deles, na ala liberal do Marcello Caetano. E o Adérito Sedas Nunes, neste pequeno meio, conseguiu vingar devagar.

Lembro-me de estar na Suíça e de receber em Genebra de uma só vez os primeiros volumes da Análise Social, que o meu pai me mandou. E vinha o famoso número 7, que é um número duplo e que se chama, “Portugal, Sociedade em Desenvolvimento”. É um dos maiores contributos para a modernização do pensamento sobre a sociedade. Sobre a indústria, os problemas do desenvolvimento e as questões europeias. Esse número, absolutamente fantástico, desapareceu em pouquíssimo tempo. É um volume com 500 páginas. É preciso ver que, nessa época, o conteúdo da Análise Social era pensado pelo Adérito. Era ele que encomendava os artigos a pessoas em concreto, pessoas que ele escolhia para escrever sobre este ou aquele assunto. Nesse número e nos seguintes, vemos hoje que publicaram, por exemplo, o Nuno Portas, o Carlos Portas, o João Salgueiro, o Rogério Martins, o Pereira de Moura, o Mário Murteira e o Castro Caldas. Havia ali gente que vai ser liberal, social-democrata, socialista, comunista e de extrema-esquerda. São alguns dos principais cientistas ou políticos de todos os quadrantes, que se virão a revelar na acção mais tarde.

O Adérito teve o grande mérito de saber como não ser travado, de ter um respaldo político, administrativo e religioso. Depois, o facto de ao mesmo tempo que se interessava pelo ensino no ISCTE e no ISEG, foi capaz de procurar pessoas para fazer doutoramentos no estrangeiro. Queria explicitamente criar, a prazo, um núcleo de cientistas sociais. Ele sabia que enquanto não tivessem o doutoramento não teriam liberdade de acção, nem teriam experiência. Soube pensar a prazo. Soube ter uma estratégia que não se esgotava no imediato. Soube esperar e preparar-se, coisa rara em Portugal.

MCL — Esse desenvolvimento das ciências sociais em Portugal, a partir de Adérito Sedas Nunes, passa essencialmente por investigadores que se formaram no estrangeiro?

AB — Ou se formavam no estrangeiro, em França e em Inglaterra, ou ele conseguia que estrangeiros viessem cá. O Adérito fez alguma amizade com o Alain Touraine e houve visitas de parte a parte. Mas sim, houve vários cientistas sociais que se formaram no estrangeiro. Nomeadamente, o José Carlos Ferreira de Almeida que é dos primeiros a sair para Paris ou Oxford, a Eduarda Cruzeiro, a Maria Filomena Mónica, a Fátima Patriarca, o Alfredo de Sousa e o Vasco Pulido Valente. O Adérito, enquanto pôde, manteve essa política. Apoiava quem queria ir para o estrangeiro. Outros que estavam a estudar cá, ia pescá-los à linha: para cada um, arranjava uma solução pessoal. Daí a vantagem dos seus conhecimentos na administração pública, porque é sempre tão difícil em Portugal ser contratado. Ele arranjava sempre uma solução.

MCL — Sedas Nunes aliava essa capacidade de mobilização de recursos com uma ambição académica?

AB — O próprio GIS (Gabinete de Investigações Sociais), durante dez anos, navegou em várias águas institucionais. Ele sabia que tudo o que fazia era frágil e era perigoso. Tudo fazia para proteger o seu grupo. Finalmente, o ponto talvez mais interessante é que tinha um programa científico de formação e investigação. Mas há uma inspiração que ele encontrou num termo ideal e feliz: o tema do desenvolvimento. O desenvolvimento implicava todas as ciências sociais, a começar pela sociologia.

MCL — Do ponto de vista teórico existia um paradigma que Sedas Nunes defendia, que tinha de ser seguido pelos investigadores? Ou havia várias escolas, várias tradições?

AB — Ele definiu não o paradigma, mas o programa. O programa era “As condições de desenvolvimento da sociedade portuguesa”. Desenvolvimento social, económico, tecnológico e político. Havia vários autores, desde o Daniel Bell ao W. W. Rostow (o dos estádios de desenvolvimento), onde ele foi buscar inspiração e antecedentes. Nada disso era suspeito de comunismo ou de marxismo. Mas ele sabia também que neste mundo havia muito pensamento útil e interessante. E havia vários investigadores atraídos por essas correntes na Europa, e que aliás foram dominantes durante muitos anos. Ele sabia que por via do desenvolvimento e da questão das estratégias do desenvolvimento, ele poderia chamar a ele, ao GIS, e à Análise Social todos esses contributos. E isso sente-se rapidamente, tanto nos números da Análise Social, como nos trabalhos dele, por exemplo no Portugal, Sociedade Dualista em Desenvolvimento, que é talvez o seu melhor livro.

Dos artigos iniciais da Análise Social, lembro-me por exemplo um de Eugénio Castro Caldas, que escreveu sobre as condições de modernização da agricultura portuguesa. Nesse artigo, Castro Caldas enumera todas as tentativas de modernização que, desde 1930, se fizeram a partir do Estado. Segundo ele, todas falharam. A colonização interna e o parcelamento e emparcelamento agrícolas, entre outras. Ele mostra como tudo falha, o que é muito interessante. A razão que ele dá para o falhanço é a “viscosidade histórica”. É o termo que ele utiliza. Em Portugal, por causa da administração pública e das tradições ou dos costumes, quando os programas chegam à sua realização, a tal “viscosidade histórica” impede que a modernização se faça. Castro Caldas confidenciou-me que esse termo de “viscosidade histórica” era uma metáfora: ele queria falar dos interesses estabelecidos, mas não podia dizer isso.

Retomando. Desde essas franjas do regime de então, passando pelos mais modernizadores e tecnocratas, até aos mais radicais ou marxistas, o Adérito soube atrair toda a gente. É o mérito dele. A ideia do desenvolvimento unificou e conseguiu trazer toda a gente. Tanto na revista, como no GIS, deu abertura a toda a gente. Quem era inteligente e quem queria trabalhar. Contratou pessoas, em geral novas, umas com percurso em Portugal, outros que vinham do estrangeiro.

MCL — E como é que se situa o António Barreto nessa história do aparecimento das ciências sociais em Portugal?

AB — Ele comigo não teve de fazer a primeira parte, porque eu já estava no estrangeiro. Em 1974 regresso a Portugal. No primeiro ano e meio estive na vida política. Conheci-o então. Conversámos muito, nomeadamente sobre a eventual criação de um instituto, o que veio a acontecer mais tarde. Pediu--me colaboração na Análise Social, o que concretizei um pouco mais tarde. Depois de sair do governo, em 1978, foi quase imediato. Em 1980, convidou-me para o GIS, mas à época tinha um compromisso com outra universidade. Ao fim de dois ou três anos juntei-me ao GIS, com uma condição informal, a de terminar o doutoramento. Eu não o tinha terminado devido à minha carreira política. Tinha começado o doutoramento em sociologia rural, em Paris, com René Dumont e Marcel Mazoyer, no Instituto de Agronomia.

Ainda antes da Revolução, colaborei em várias mesas-redondas da Gulbenkian, no Centro de Estudos de Economia Agrária, onde estava uma equipa de investigadores: o Trigo de Abreu, o Fernando Gomes da Silva, o Francisco Avillez, o Henrique de Barros, o José Girão, o Fernando Estácio, o Cortês Lobão e outros. Na altura, ainda antes do “Verão quente” (1975), pensava-se ser possível uma lei de emparcelamento rural ou uma nova lei do arrendamento para resolver alguns problemas sérios da posse de terra em Portugal. Depois, entre 1979 e 1982, criei um Gabinete de Estudos Rurais na Universidade Católica, com o Mário Pinto (outro dos amigos de Adérito Sedas Nunes). Era um jurista com preocupações sociais, especialista em direito do trabalho. Aliás, deixe-me fazer um parêntesis. Ao longo da minha vida, nos sítios mais estranhos, encontrei amigos e discípulos de Sedas Nunes. Em todos ele tinha deixado uma marca intelectual. O Adérito tinha uma biblioteca extraordinária, extremamente difícil de obter na altura. A biblioteca dele no ICS é monumental. Pensar que ela foi feita sem a “Amazon” e com controlo de câmbios, é inacreditável.

MCL — Acha que se pode dizer que essas primeiras gerações de ciências sociais eram excessivamente politizadas e que a geração de cientistas sociais actual está relativamente distante do que se passa hoje na sociedade portuguesa?

AB — A sua primeira parte, subscrevo; a segunda, não. Creio que uma das doenças das ciências sociais foi a política. Primeiro, porque era preciso evitar a política. E porque a política não se dava bem com as ciências sociais. Depois, as ciências sociais tinham de se fazer com metáforas. O caso que mencionei acima da “viscosidade histórica” é um belo exemplo. Fazer ciência com metáforas não é grande solução. Era frequente o Sedas Nunes ter de intervir, amistosamente, dizendo: “dá um jeito neste artigo, altera isto, muda aquilo”, para que a Análise Social não fosse vítima da censura que dominava, limitava o pensamento e limitava a expressão. Depois, ao fazer nascer uma ciência que está sob vigilância, o natural é que as pessoas que querem praticar essa ciência a politizem. Os últimos números da Análise Social antes do 25 de Abril de 1974, e muitos números a seguir, estão eivados de política por todo o lado. Há artigos sobre as estratégias políticas, sobre o capitalismo, a ditadura e o liberalismo... Lembro-me de um autor que demonstrava que o Estado liberal era uma forma encapotada de fascismo e de nazismo; defendia a ideia de que o Estado é o mesmo, seja nazi, fascista ou democrático. Tudo isto era publicado. Eu creio que o Adérito viveu um tempo difícil nos primeiros anos a seguir ao 25 de Abril. Ele queria salvaguardar a Análise Social e o Instituto e sabia que se forçasse muito podia pôr este último em causa. À época, as veleidades esquerdistas eram muitas. Há artigos da Análise Social que são pequenos tratados de marxismo-leninismo, de materialismo histórico e de materialismo dialéctico. Creio que isso foi mau para as ciências sociais. Da produção científica dos primeiros dez anos de liberdade, hoje não deve sobrar quase nada. Poucos trabalhos se mantêm hoje vivos, com estatuto e seriedade. Leiam-se muitos dos artigos e livros publicados na altura: aquilo é mau, excessivamente politizado. As ciências sociais tiveram uma adolescência manhosa e disfarçada; mas depois um início de vida adulta demasiado politizado. Por outro lado, o pessoal científico estava evidentemente muito próximo da política. Uma boa parte dos cientistas sociais dessa altura foram directores--gerais, secretários de Estado, ministros ou dirigentes de partidos políticos. Toda essa gente teve uma actividade política muito intensa. Creio que só com a geração que vem a seguir, a dos anos 90, é que se começa a praticar as ciências sociais com método académico, sem tentação política.

Por exemplo, fazer ciência política em 1975, ou em 1980, era o mesmo que fazer um gabinete de estudos de um partido político. No pacote das ciências sociais, a ciência política, foi a última a autonomizar-se, porque nos anos 70 e 80 isso teria sido impossível. Há ainda a história. Esta tinha outras cartas de nobreza, outras tradições. Fez-se muita história como se política fosse, é verdade, mas não deixou de haver muito trabalho importante feito então, sem as mesmas doenças infantis da sociologia e de outras ciências sociais.

MCL — Mesmo hoje, há quem sugira que os cientistas políticos são “perigosos situacionistas”.

AB — Sim, há quem diga isso: Que os seus praticantes estão sempre a justificar o funcionamento do sistema e as suas disfunções. Mas acho que hoje, em Portugal, a ciência política adquiriu uma existência própria, uma autonomia, um ethos e um património próprio.

O destino da sociologia é que é mais estranho. Já não há a sociologia rural, porque a sociedade camponesa desapareceu. Hoje há umas empresas agrícolas e o resto ou está abandonado ou está deserto. A sociologia urbana fez-se um pouco nos anos 80 e 90. Estávamos em pleno caos urbanístico. Mas hoje tem tendência para esmorecer. O pouco que se faz de sociologia urbana é nos gabinetes oficiais da administração pública onde há sociólogos que fazem uns vagos estudos, umas sondagens e uma espécie de sociografia. A antropologia, curiosamente, desenvolveu-se bastante. Teve um período negro, em Portugal como no mundo, por ter vivido do ultramar e das colónias: colonialismo, ultramar, campanhas, guerras, pacificações, colonização, etc. Desde os anos 60/70, quando a descolonização atinge o auge, no mundo inteiro e em Portugal também, embora mais tarde, a antropologia fica sem objecto. Gradualmente, a antropologia foi-se convertendo, fazendo a antropologia das próprias sociedades. E geralmente começam pelos “bairros problema”. A antropologia, em Nova Iorque, faz-se no Bronx; em Portugal, faz-se no Casal Ventoso, nos subúrbios, no bairro do Aleixo e nos bairros dos imigrantes. Mas a antropologia, em Portugal, além desta metamorfose, também criou as suas raízes. Hoje há trabalho consolidado.

No caso da sociologia não diria o mesmo. A sociologia do trabalho e a sociologia económica são inexistentes. A sociologia das religiões está ausente. A sociologia rural está praticamente morta, a sociologia urbana está muito oficial e operacional. As pessoas vão trabalhar para administrações públicas, fazem-se contas e recenseamentos e consideram que isso é sociologia urbana. Acho, e agora falo como cidadão, que seria muito interessante que se fizesse mais sociologia urbana, porque do ponto de vista urbanístico, em Portugal continua a haver muito por fazer e refazer.

MCL — No caso da sociologia, concorda que o fim das teorias unificadoras prejudicou a sociologia como disciplina? Já não há sociologia propriamente dita, mas sim a sociologia da família, a sociologia urbana, a sociologia da música. Mas a sociologia enquanto grande ciência da sociedade morreu, ou não?

AB — Sim, acho que sim. É curioso, a última grande tentativa de unificar um corpus sociológico doutrinário terá sido a de Georges Gurvitch, em França. Além de vários livros importantes, escreveu um enorme tratado de sociologia. Todos os capítulos essenciais foi ele que os escreveu, e justamente ambicionava o carácter global das coisas. Uma teoria geral da sociologia, o pensamento sociológico. Ele chamava à sua teoria unificadora, ao seu pensamento, o hiper-empirismo crítico. Recebia e incorporava os legados todos: o legado funcionalista, positivista, marxista e estruturalista. E ao mesmo tempo que faz isto, abre cinquenta capítulos e lança os fundamentos de outras tantas sociologias. Sociologia do património, sociologia rural, sociologia económica, sociologia do lazer, etc. Ele próprio quer estabelecer as múltiplas sociologias que existem. É curioso que este autor seja hoje pouquíssimo falado ou invocado. Praticamente desapareceu. Ninguém fala do Gurvitch. É pena porque ele foi muito interessante. Quanto mais não seja, é um dos principais responsáveis, inadvertidamente talvez, pelos grandes paradigmas epistemológicos. Na senda de americanos, como Parsons, por exemplo. Hoje há ainda quem invoque uma sociologia marxista, ou um materialismo dialéctico, mas já ninguém sabe o que isso é exactamente. Há quem se reclame da sociologia estruturalista, assim como novas correntes da “sociologia crítica” que vão beber à sociologia feita nos EUA e o marxismo encapotado. Aquilo que na Europa se poderá considerar pensamento radical, geralmente de tipo estruturalista ou marxista, chama-se nos EUA “estudos culturais críticos”. E cá em Portugal também haverá essa corrente. Mas a ideia de que a sociologia pode fornecer uma teoria unificadora, uma visão do mundo, o que acaba por se confundir com uma ideologia, está errada. É um progresso que não haja uma teoria unificadora para a sociologia.

MCL — Acha que há um perigo nas ciências sociais entre as teorias globais, num extremo, e no outro extremo a investigação empírica, que é totalmente data-driven, desprovida de preocupações teóricas? Como é que se coloca nesse eixo, entre a grande teorização de um lado e data-driven research do outro?

AB — A minha tendência é a de recusar o paradigma explicativo unificador. O que não quer dizer recusar a teoria. Eu prefiro a tradição empírica. Prefiro a realidade, estudá-la e compreendê-la. Mas para compreender os dados que recolhemos temos de interpretar e temos de perceber. E temos de nos elevar. Parece-me evidente que nunca se atingirá o grau de formulação de leis históricas ou leis sociológicas, como existem leis da natureza nas ciências exactas. Pode-se aspirar a formular certas constantes, certos graus de probabilidade para os acontecimentos do quotidiano. Mas eu vim a descobrir com o tempo, que o pensamento, o estudo histórico e o estudo sociológico muitas vezes se mordem um ao outro. No entanto, há uma maneira diferente de olhar para a mesma coisa. A sociologia necessita sempre da história atrás, mas a sociologia tem de interpretar de uma maneira diferente da história. E recorrer à experiência, recorrer ao inquérito, recorrer à observação.

MCL — Falemos então da história. Qual é o seu balanço da evolução desta disciplina nas últimas décadas?

AB — Acho que foi a ciência social que mais se desenvolveu em Portugal. Não sei se por já ter atrás de si mais património, é possível. Em 1960--1970, já existe o Dicionário de História de Portugal, de Joel Serrão. Havia várias tradições, desde a historiografia propagandística e a historiografia política do regime, até à historiografia marxista. Há autores suficientes. Mas havia um enorme legado. Havia também os discípulos da história dos Annales. Quando chegamos a fins de 1960, temos a História de Barcelos, os primeiros trabalhos de Mattoso, os trabalhos do Joel Serrão e os de Magalhães Godinho, os estudos de Borges de Macedo, a obra de Virgínia Rau, e mais. Já existia um património científico muito importante. Não sei se devido à formação maciça em estudos de história, se por atracção, se por desenvolvimento das faculdades, mas creio que tudo isto contribuiu para que talvez o desenvolvimento tenha sido o mais notável de todas as ciências sociais. Também conheceu um fenómeno de libertação depois do 25 de Abril. Muitas vezes queixamo-nos da censura e da repressão do antigo regime. Mas a verdade é que havia duas ortodoxias, dois establishments. Ao establishment do regime, correspondia, em muitas áreas culturais e literárias, o establishment do Partido Comunista. O Partido Comunista, nos anos 50 e 60, governava — não directamente como é óbvio — em grande parte a literatura, a academia e a cultura em geral. Depois do 25 de Abril, custou muito a desmantelar também esse establishment, não foi fácil.

MCL — Olhando para as ciências sociais hoje, verificamos também que a história é das disciplinas menos internacionalizadas. Noutras disciplinas vemos um grande esforço de integrar o que são os grandes debates académicos, e uma tentativa de colocar Portugal no mapa, trazer a experiência portuguesa e pô-la em perspectiva comparada, e na história vê-se muito menos isso. A que se deve esta característica da forma como se faz história?

AB — A história está muito mais internacionalizada noutros países do que em Portugal, mas porque uma parte da história é a história internacional. História das relações internacionais, da Ásia, da Europa, da América. O objecto já é internacional. Quando se fala de história nacional, é verdade que a história não está tão internacionalizada quanto as outras ciências. Há na estrutura narrativa da história, da narração do fenómeno social, político ou económico de um país, de uma região de um país, de uma classe social, algo de muito particular. Isso acontece mesmo quando olhamos para historiadores que se reivindicam de um espírito internacionalista. Um dos livros mais famosos da historiografia moderna é o The making of the English Working Class, do E.P. Thompson. É um livro que é lido no mundo inteiro, porque é um livro importante, mas não é história internacionalizada, é história britânica. Eu creio que em Portugal a história vive a mesma situação. A maior parte da história que se faz em Portugal é sobre Portugal e para os portugueses. Nem os historiadores sentem necessidade de se comparar. E a verdade é que quase ninguém, por esse mundo fora, se interessa por Portugal, muito menos pela sua história. Com a excepção eventual da história dos descobrimentos.

Creio que na ciência política e nos estudos dos sistemas políticos e eleitorais, até na antropologia, é mais fácil encontrar os modelos comparáveis. Creio que na história, talvez pela força da narrativa, não é fácil. Até pelo objecto físico dessa ciência — quem faz história escreve um livro. Quem faz as outras ciências faz papers, faz estudos comparados. Em história, isso é mais difícil.

MCL — Em termos institucionais, falámos do desenvolvimento das ciências sociais em torno do ICS. Mas há várias instituições que fizeram também o seu caminho. Há uma divisão entre os Laboratórios de Estado que estão vocacionados exclusivamente para fazer investigação social e as Faculdades de Ciências Sociais com mais ou menos recursos para fazer investigação. Como é que vê este panorama institucional em Portugal e a forma como ele se tem desenvolvido nos últimos tempos?

AB — Criaram-se meia dúzia de centros, o que foi positivo. Em Lisboa há o ICS, há o CIES do ISCTE, há o CESNOVA na UNL. Há o CES de Coimbra. Há centros no Porto e no Minho. Dos centros criados, há dois ou três que parecem ter mais recursos, mais trabalho feito, mais energia. Depois houve a procura que aumentou muito nas licenciaturas. Houve uma explosão: a dada altura creio que havia mais de vinte licenciaturas em sociologia, das quais talvez metade em universidades públicas. Não sei os números hoje, mas já houve anos em que havia milhares de estudantes de sociologia, para não falar de história e de outras ciências sociais. Creio que isso desvalorizou muito a disciplina. Não houve a capacidade de separar o que era a sociologia académica da sociologia pedagógica. Isto é, para ser professor de liceu, da escola básica e secundária e das ciências sociais operacionais. Mantiveram--se os vários tipos de sociologia e de ensinos na mesma panela. Surgiu um problema de empregabilidade, evidentemente. E como os numerus clausus na sociologia e nas ciências sociais foram muito fáceis, desorganizou-se o ensino da disciplina e não se criou uma tradição académica. Mantiveram-se os dois ou três centros que conseguiram congregar investigação e recolher fundos. Os outros são fábricas de sociólogos para dar aulas no ensino básico e secundário.

MCL — Pensando na investigação concretamente, houve um grande investimento que foi feito ao longo dos últimos quinze anos nas ciências sociais em termos de investigação. Perante o cenário de crise em que vivemos, há uma grande preocupação em saber se este esforço que foi feito poderá ter alguma continuidade. Como vê esta situação?

AB — O que diz parece ser completamente verdade e muito perigoso. Entre meados da década de 80 e da década de 90, há uma altura em que o esforço para o desenvolvimento da ciência começa a ser interessante, mas as ciências sociais e as humanidades são completamente desprezadas. O que se pensa na altura é que o que é preciso fazer é criar riqueza, com ciências exactas, com engenharias e outras disciplinas afins. E a gestão, evidentemente, muito na moda. Depois, começa a haver clamor e discussão, aqui e acolá. A partir de certa altura, fez-se uma rectificação. As políticas científicas do Estado e das autoridades começam a olhar para as ciências sociais e para as humanidades (até para as artes) com outros olhos. Talvez durante dez anos ou quinze anos, tenha havido um reequilíbrio. Imagino que você já deva ter entrado nesse período. Começaram a aparecer instituições com alguns meios, com recursos, com projectos financiados e pós-docs e bolsas de doutoramento em maior quantidade. Ao que parece agora, os primeiros golpes de austeridade e de contracção vão ser sobre as humanidades e sobre as ciências sociais, na medida em que se pensa, uma vez mais, que só as outras ciências é que criam riqueza, só as outras ciências é que desenvolvem. Isso é um erro clássico. É sabido e reconhecido que as humanidades e as ciências sociais contribuem para o desenvolvimento. E muito. Incluindo para a criação de riqueza. As humanidades e as ciências sociais não se limitam ao fabrico de professores. O pensamento social ajuda ao desenvolvimento e à criação de riqueza.

Há outro problema que gostaria de mencionar. Houve um lado positivo na política científica das últimas duas décadas. Esse lado positivo é o enorme esforço financeiro, estrutural e político que foi feito a favor da ciência, do desenvolvimento da ciência, da graduação no estrangeiro, da internacionalização, etc. Isso é um lado muito positivo. Que conseguiu uma razoável equiparação das ciências sociais e humanas às ciências exactas. O lado negativo foi a criação de um aparelho ou um dispositivo para a investigação científica que não contagia a universidade. Ou contagia pouco. Ou mal. Os Laboratórios, os Centros de Investigação da FCT ou centros de excelência constituem um método de trabalho. Esses centros têm mais dinheiro, mais garantias e mais segurança; têm mais regras de avaliação, mais critérios e melhores métodos de escrutínio. Têm tudo mais e melhor, mas não dependem da universidade. Fala-se com um reitor ou com um director de Faculdade, que tenha três ou quatro mil alunos e ele vai demonstrar-lhe muito rapidamente que não tem qualquer capacidade de ordenar ou de orientar a investigação científica. “Isso é com a FCT e com o Ministério”. Foi criado uma espécie de ghetto, com mais recursos, mais exigência, inclusive coisas boas como a avaliação externa. Durante anos, nada disto se praticou no ensino, mas sim na ciência. Pessoalmente, preferia que a ciência fosse entregue às universidades, para que esta tivesse influência no ensino.

MCL — De que forma?

AB — A direcção de uma faculdade tem de ter a capacidade de ajustar o esforço nas várias áreas, entre a ciência, a investigação e o ensino. Sem falar na cultura. Tem de fazer esse equilíbrio. Hoje, no ensino universitário, numa faculdade, é sabido que se está aflito para encontrar professores e para recrutar, sobrecarrega-se os professores cada vez mais porque não há meios, não há possibilidade, e ao mesmo tempo, no corredor do lado, da ciência, há fartura. Pelo menos até agora. Com o ciclo de austeridade que começa, não sei bem onde vamos parar.

MCL — Mas apesar do investimento que foi feito na investigação, também há nesse mundo, uma enorme precariedade.

AB — Sim, mas não é comparável. No ensino é pior porque não há sequer precariedade. Na investigação, ainda há qualquer coisa. A minha convicção é de que os pós-docs foram feitos para isso. Os pós-docs para a investigação foram o expediente para poder aproveitar e manter no activo umas centenas ou milhares de investigadores, mas a mesma solução não foi encontrada para o ensino.

MCL — Em termos da profissão, os critérios de avaliação foram mudando, estando cada vez mais quantificados. Pegando por exemplo, no caso de Sedas Nunes, se hoje fosse investigador, o seu sucesso seria talvez medido pelo número de publicações em revistas de língua inglesa, e não pelo número de discípulos que ele granjeou ao longo da carreira. Como é que vê essa mudança no sentido da internacionalização, mas também da quantificação da qualidade do investigador? Acha que é positivo?

AB — Acho que há lados positivos e negativos. Vejo com muito bons olhos a exposição do que se faz do país em matéria científica. Vejo com muito maus olhos a transformação de um adjectivo que é a internacionalização no critério principal. Vejo com bons olhos a publicação de pequenos e médios trabalhos, nomeadamente de artigos, em revistas nacionais ou estrangeiras. Vejo com muitos maus olhos o desprezo que se foi criando gradualmente em relação a livros, por exemplo. Vejo com bons olhos que o investigador não seja apenas um despenteado, enfronhado, curvado em cima da sua caneta e do seu papel. Isso já não existe ou já não deveria existir. Mas vejo com maus olhos o imperialismo absoluto das “redes” (das viagens e dos colóquios internacionais...) sobre o indivíduo que pensa, que estuda, que observa, que analisa, que escreve e assume a sua identidade. Há aqui um meio-termo. Vivemos um período difícil nesse aspecto.

No ICS, quando se começou a fazer o cômputo da obra feita de cada um para medir a produtividade, recebi um formulário de avaliação que não tinha sequer a entrada para livro. Tinha tudo menos isso. E depois houve dúvidas se um livro seria pontuado tanto ou menos do que um artigo. Considero que em todas as ciências sociais o livro é o mais importante, a não ser que seja uma colecção de artigos já publicados. Em história é evidente, para mim, mas mesmo em sociologia, em antropologia, ou ciência política, quem faz um livro está a fazer algo de superior a qualquer artigo. Ora há muitos sítios em que isso não é reconhecido como tal. Diz-se que só o artigo é comparável, traduzido facilmente em inglês, e com arbitragem científica. Esses argumentos são medíocres. Eu sou a favor da arbitragem científica, como sabe. Quando fui director da Análise Social bati-me por isso. Mas há excessos.

Faz-me lembrar, no final dos anos 60, anos 70, e ainda nos anos 80, o grande predomínio do marxismo, em que em Portugal e na Análise Social se escreveu muito, inclusive livros, de que hoje não sobra nada. É impressionante, hoje você vai ver se disso tudo sobrou alguma coisa, de património ou de pensamento. Nada. Apesar de ser escrito com grandes palavrões, coisas inacreditáveis que se diziam, isso passou. Depois entrámos numa segunda fase, que eu chamaria de quantificação. A quantificação é um dos instrumentos empíricos das ciências sociais. Não é o único. É verdade que em certos momentos, transforma-se num método único. Cingimo-nos ao chi-quadrado, à correlação, ao desvio ou à regressão e não damos explicações. Há explicações interpretativas, possíveis, que servem para discussão. Mas também aí se fez uma espécie de vai-vem entre o exagero de um lado, e o contra-exagero do outro.

Outro aspecto interessante é o do percurso das ciências sociais relativamente ao objecto. As ciências sociais começaram a adolescência semi-clandestina a interessar-se por Portugal. O objecto de estudo era Portugal: eram os comportamentos dos portugueses. Fizeram-se estudos sobre as universidades e a frequência das universidades (como por exemplo em excelentes trabalhos de Sedas Nunes e Miller Guerra). Feitos numa cooperativa chamada GEDOC, ligada à JUC, ao GIS, à Análise Social e à revista Encontro. As conclusões puseram a JUC e a Igreja católica com arrepios. Nesses primeiros anos era de Portugal que se falava, era da sociedade portuguesa. Estudava-se e escrevia-se sobre a saúde, as carreiras médicas, a educação, as universidades, o analfabetismo e a modernização. Depois, do final dos anos 60 até aos anos 70, foi o império da teoria. Aqui talvez o imperialismo comunista e francês tenha sido fatal. Começaram a aparecer as variantes do estruturalismo e do marxismo, de Lenine, de Lukacs, de Deutscher e da quarta internacional, de Korsch e de Goldmann. E havia os novos franceses como Althusser, Balibar ou Bourdieu, que trouxeram uma nova interpretação do marxismo. Tudo isso entrou por Portugal adentro, na sociologia, no Instituto, nas investigações sociais e na Análise Social. Lembro-me ainda, há vinte anos, de querer que o ICS se virasse novamente para a realidade portuguesa: não era fácil. Hoje, as ciências sociais portuguesas ocupam-se muito pouco das políticas públicas. E do espaço público. Não é estudar a política pública ela própria, mas estudar os resultados das políticas. Há muito poucos estudos de ciências sociais sobre os sistemas de saúde, os transportes públicos, a educação, a organização das cidades ou a gestão das escolas. Ainda há excesso de teoria. Ou então de peripécia. Há livros de 600 páginas sobre uma escola com 14 alunos e 3 professores, ou um centro social com 26 pessoas. Por isso acho que falta essa vertente às ciências sociais ainda hoje: prestar atenção à realidade nacional ou realidade europeia. Talvez na ciência política não se sinta tanto isto que vejo noutras áreas. Apesar de tudo vocês, na ciência política, têm um objecto concreto bem definido: eleições, formações de governo, comportamentos políticos e órgãos de poder político. A sociologia é tudo. E como é tudo, foge-se para a teoria e para as teorias unificadoras. Precisamos de um novo fôlego de ciências sociais sobre a realidade portuguesa, sobre os efeitos das políticas públicas, sobre as transformações sociais, sobre os efeitos sociais da integração europeia, tudo sem se envolver com o Estado ou o governo, com total independência e total isenção.

MCL — Esse esforço iria contribuir para um debate sobre políticas públicas em Portugal?

AB — Sim, porque a prazo melhorava as políticas públicas. Desde sempre acredito que as universidades têm de pagar alguma coisa à sociedade. Têm de devolver qualquer coisa à sociedade que lhes paga. E devolver não é só fazer livros ou dar aulas. Devolver também é contribuir para o melhoramento da vida pública. Não necessariamente de modo directo, mas os estudos e o seu pensamento permitem que, depois, os operacionais da política estudem ou façam políticas mais informadas e fundamentadas.

MCL — A Análise Social é uma revista interdisciplinar, predominantemente escrita em português. Agora que as revistas mais reconhecidas são sobretudos as especializadas, e cada vez mais em língua inglesa, como é que a Análise Social pode evoluir hoje?

AB — No mundo actual, com o establishment científico internacional conhecido, com o imperialismo da língua inglesa nas ciências sociais e universalmente no mundo académico, com as tendências de especialização que estão longe de acabarem, creio que a Análise Social, sendo uma revista de pelo menos oito disciplinas, a competir no universo de revistas especializadas, tem um futuro muito difícil. Custa-me dizer isto porque ainda hoje leio a Análise Social. Estou convencido de que a Análise Social ainda terá um longo futuro se se repensar como revista pluridisciplinar para a realidade portuguesa. Não tenho nada contra que de vez em quando possa sair um artigo em inglês ou em francês, não me sinto ofendido. Mas é natural que seja sobre a realidade portuguesa, ou de países de língua portuguesa, ou de países europeus directamente relacionados com Portugal. Não sei quantos exemplares a revista vende hoje. Não vejo viabilidade na revista ao lado de seis grandes revistas de história, oito de ciência política, catorze de sociologia, trinta de economia, etc. Isto é, ao lado das melhores duzentas revistas das disciplinas de ciências sociais, e algumas delas já muito especializadas dentro de cada disciplina, como é que uma revista tão generalista como a Análise Social pode vingar? Posso-me enganar. Creio que a solução é a Análise Social continuar a ser sobre a realidade portuguesa, a dos países de língua portuguesa e de alguns países europeus com os quais Portugal está ligado. Não acho isso provinciano. O provincianismo está no espírito, não está no objecto.

MCL — Já falámos um pouco do futuro das ciências sociais, nomeadamente das novas gerações de investigadores e investigação, da internacionalização. Mas concretamente, quais algumas das potencialidades e de possíveis problemas que antevê para as ciências sociais em Portugal num futuro próximo?

AB — Receio os efeitos da contenção e da austeridade que vão durar pelo menos dez anos e que vão ter sérias consequências na academia e na universidade. Receio que não se consiga corrigir o primado da profissionalização no ensino das ciências sociais. E que não se consiga rectificar o que me parece cada vez mais urgente, isto é, separar a vocação académica, da vocação profissional. Há muito terreno para trabalhar como assistente social, como operador social, como assessor, nas câmaras ou no Estado, nas repartições públicas ou nas empresas privadas, como profissionais ou operacionais. A academia é outra coisa. A confusão disto tudo, que creio ainda em vigor em Portugal, prejudica o desenvolvimento da ciência. Se as ciências sociais não retomam o seu interesse pela realidade portuguesa, correm o risco de ficar num no man’s land, numa terra de ninguém. Isto porque não têm suficiente visibilidade para serem internacionais, para estarem à altura das melhores revistas e também já não estão em Portugal. Ficam a meio do caminho, que é onde se morre sempre. Diz-se que se morre na praia, não se está na água, não se está na montanha, está-se na praia e é lá que se morre. Nesse caso, acho preferível escolher a realidade portuguesa. Fazer a separação total entre academia e politécnicos. E na academia, integrar a investigação na política de uma universidade. A universidade é que deve definir a sua missão, os seus objectivos e prioridades. Ao fazer isto, está a determinar também as principais linhas de orientação que juntem o ensino académico e a investigação. Finalmente, também tenho receio de que a obsessão com o crescimento económico, com a austeridade, e com a luta contra o défice transforme as ciências sociais num luxo. Sabe-se hoje, com rigor, que o crescimento das ciências sociais ajuda ao desenvolvimento. Mas ainda hoje há quem pense que devem ser as primeiras a ser sacrificadas.

 

Notas

1 Juventude Universitária Católica.

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