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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.200 Lisboa  2011

 

Entrevista a Eduarda Cruzeiro

por Luísa Schmidt

 

Luísa Schmidt , socióloga, investigadora principal no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, onde coordena a linha de pesquisa “Sustentabilidade: Ambiente, Risco e Espaço”. Autora de vários livros, faz parte da equipa de investigadores que criou o OBSERVA — Observatório de Ambiente e Sociedade, que actualmente dirige.

Maria Eduarda Cruzeiro (Lisboa, 1937), licenciada em filologia românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (1966), DEASS (Diplome d’Études Approfondies em Sciences Sociales) na École de Hautes Études de en Sciences Sociales — Paris (1972) e doutorada em sociologia, pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (1990). Entrou no GIS em 1966, fazendo parte do grupo de bolseiros de sociologia da Fundação Calouste Gulbenkian. Foi docente no ISCTE de 1972 a 1992, tendo sido responsável pela regência da cadeira de sociologia da educação de 1986 a 1992. Foi por várias vezes investigadora visitante do Centre de Sociologie Européenne, sob a direcção de Pierre Bourdieu. Desempenhou as funções de presidente do Conselho Directivo do ICS-UL de 1992 a 2007. Trabalhou sobretudo matérias das áreas da epistemologia e metodologia das ciências sociais e, no domínio da sociologia da educação, questões relativas às condições sociais e históricas de funcionamento do sistemas do ensino português e, em particular, da universidade em Portugal.

 

Luísa Schmidt (LS) —Como é que avalias a evolução das ciências sociais em Portugal nas últimas décadas, tanto a nível institucional como interinstitucional?

Eduarda Cruzeiro (EC) — A criação do Gabinete de Investigações Sociais (GIS), em 1962, marca um momento de impulso num processo que se encontrava em marcha; para mim foi dos acontecimentos mais decisivos para o desenvolvimento das ciências sociais em Portugal, particularmente da sociologia. Foi a partir de uma visão sobre os aspectos sociais dos processos económicos que a perspectiva das ciências sociais se tornou importante na década de 1960, e sobretudo nos anos 1973-1975; a Análise Social, que nasceu em 1963, era um importante veículo de divulgação.

A estratégia de desenvolvimento das ciências sociais assentou então em duas vias: penetrar no ensino e criar condições para a produção de investigação. A partir da criação do GIS assistiu-se ao trilhar de um caminho com um desígnio e uma segurança decisivos para um processo que se estava a iniciar. Até então havia pouca coisa — em termos institucionais, de ensino ou investigação, existiam os Institutos de Serviço Social e o ISCPU1, este último com um grande controlo por parte do regime.

O desígnio do Adérito Sedas Nunes sempre foi criar as raízes para a constituição de uma instituição, de um organismo. O GIS existiu como suporte para a Análise Social, e era uma semente institucional, mas a sua personalidade jurídica tinha muitas limitações. O GIS esteve ligado ao ISCEF2 para ter um respaldo institucional; não tinha quadros de pessoal mas tinha, apesar de tudo, a capacidade de contratar pessoas.

LS — E tu entraste no GIS…

EC — Sim, a partir de 1966. Após terminar a minha licenciatura em românicas tive um encontro com o Sedas Nunes, e falei-lhe da minha curiosidade em entender o funcionamento das sociedades. Eu percebia que não tinha os instrumentos necessários para isso. Nessa altura, a única pessoa do GIS que tinha formação específica em sociologia era o José Carlos Ferreira de Almeida. O Sedas Nunes tinha uma formação vastíssima como um autodidacta, de alto nível.

O GIS foi uma via para a formação, que eu não tinha… Nesse caso devo realçar algumas características particulares do Adérito enquanto director. Ele defendia que as pessoas fossem autónomas [na escolha dos seus percursos de estudo/investigação], o que não significava que ele não estivesse próximo delas. Essa capacidade de captar pessoas interessadas e com alguma qualidade, para deixar fazer o que elas quisessem, é uma característica que atravessa o GIS e até o próprio ICS. Claro que, em certas fases, e com certas pessoas, esse não directivismo pode ter sido excessivo, deixando as pessoas um pouco desamparadas.

LS — Mas o Sedas Nunes era exigente…

EC — Sim, era exigente e tinha uma enorme capacidade para combinar autonomia e controlo. A questão da autonomia marcou até os primeiros estatutos do ICS, que vinham na linha da ideologia de um trabalho científico independente e livre. Há uma grande afirmação e empenho nessa autonomia.

LS — E conseguiu criar a instituição como a tinha idealizado...

EC — Sim, sem dúvida. Na origem, o próprio GIS teve uma integração universitária, até por necessidade de dar consistência à sua frágil configuração institucional, pela sua ligação ao ISCEF. Depois, ainda antes do 25 de Abril, foi constituído um grupo que começou a leccionar no ISE (já não era ISCEF) a cadeira do Sedas Nunes. O ensino era uma das duas vias principais de implantação das ciências sociais, sendo a outra o desenvolvimento da investigação. O Adérito tinha uma visão muito clara sobre a importância do ensino aliado à investigação — para criar raízes e formar novas gerações.

O GIS sempre foi por ele defendido como uma instituição de investigação. Mas ele tinha a intenção de criar uma faculdade. Primeiro, esteve ligado à instituição que precedeu o ISCTE — o Instituto de Estudos Sociais, do Ministério das Corporações. Depois criou o ISCTE — cujo nome não foi fácil. Ainda me lembro da dificuldade de encontrar uma designação que não mencionasse “ciências sociais” ou “sociologia”. O Marcelo Caetano lá aceitou no nome a menção de “ciências do trabalho e da empresa”.

Em 1972-1973, o Sedas Nunes quis criar no ISCTE uma licenciatura de sociologia que não foi possível concretizar. Lembro-me de ter visto um papel com a proposta de elenco das cadeiras emendado pelo Marcelo Caetano, que não admitia determinados títulos de algumas disciplinas, e o curso não foi para a frente… Mas como é que se explica que uns dias depois do 25 de Abril tenha nascido a licenciatura de sociologia do ISCTE? Porque ela estava lá, totalmente desenhada e concebida pelo Adérito; só não tinha sido possível até então atribuir-lhe essa designação.

No entanto, logo antes do 25 de Abril, a cadeira de Introdução às ciências sociais já continha uma parte de introdução à teoria marxista. As aulas no ISCTE começaram em 1972-1973, e em 1973-1974 é que o desenvolvimento do programa incluía a teoria marxista. Lembro-me perfeitamente que, no próprio dia 25 de Abril, ia para o que seria a primeira aula do programa sobre a teoria marxista — uma enorme coincidência; claro que, devido aos acontecimentos do dia, tal aula acabou por não existir!

LS — Nessa altura havia pouco dinheiro para a investigação…

EC — Sim, e isso marcou o tipo de pesquisa que se fazia — muita investigação teórica e epistemológica. Outros tipos de pesquisa exigiam meios que não existiam. Também se utilizavam e se exploravam todos os dados disponíveis das estatísticas sociais e económicas do INE. O primeiro trabalho que fiz no GIS foi um estudo sobre o ensino primário, ainda antes do 25 de Abril, que não chegou a ser publicado. Era uma análise estatística, feita com os meios que tinha ao dispor, sobre a população escolar do ensino primário em 1964-1965, na perspectiva das desigualdades sociais medidas através das desigualdades regionais, já que não havia meios para realizar inquéritos. Analisava, por exemplo, as taxas de aprovação por distrito. E encontrava grandes variações. Lembro-me que o distrito de Viana do Castelo era uma desgraça, com uma taxa de insucesso brutal. Comparava também, por exemplo, as taxas de aprovação dos rapazes e das raparigas, sempre cruzadas com as variações regionais, porque era a variável potencialmente mais expressiva de desigualdades, perante a ausência de informação relativas a outras variáveis mais pertinentes.

LS — O Adérito Sedas Nunes esteve no ISCTE desde o início?

EC — Sim. Para além de ter criado o ISCTE (de onde saiu por altura do PREC), o Adérito fortaleceu sempre o GIS, garantindo as condições para criar o ICS, em 1982. E conseguiu mobilizar e recrutar muita gente, e gente nova. Para o Sedas Nunes eram duas instituições diferentes. O ISCTE era a via do ensino consolidada, de formação em sociologia, e o ICS era já a configuração de uma instituição de investigação interdisciplinar, ou melhor, pluridisciplinar, pela qual ele batalhou imenso, com uma convicção inabalável. O Adérito aproveitava todas as “brechas”; com ele os problemas habitualmente desembocavam em desenvolvimentos. Ele sabia não só pensar as estratégias necessárias para enfrentar essas etapas, como utilizar todos os seus recursos para sair reforçado; ele foi exímio nisso.

LS — O reforço da investigação (teórica e empírica) na área das ciências sociais verificou-se em Portugal sobretudo nos últimos 20 anos…

EC — Sim. No início do GIS, por exemplo, não havia dinheiro para fazer investigação empírica, a qual começa a desenvolver-se a partir do 25 de Abril e depois se amplifica. Em termos de fundamentação teórica, a investigação empírica é fundamental, pois estimula a própria continuidade da interrogação teórica. Quando iniciei a minha tese de doutoramento não havia ainda muitos meios para fazer investigação.

LS — Uma tese orientada por Bourdieu… Como é que surgiu essa relação?

EC — Por intermédio do Sedas Nunes que, numa primeira fase, foi o principal difusor das teorias de Pierre Bourdieu em Portugal. O Adérito tinha estabelecido muitos contactos em Paris, com o Bourdieu, com o Alain Touraine, com o Henri Mendras. Em 1968-1969 fui para Paris, contactei com o Bourdieu para me inscrever no seu seminário, e ele aceitou-me. Interrompi em 1969-1970 para me casar, regressei em 1971-1972, e comecei a escolher o tema da tese. Nessa altura, o Bourdieu estava muito interessado no estudo do corpo docente universitário em França, e sugeriu-me um estudo sobre os professores do ensino superior em Portugal, em 1971-1972.

Nessa época, como não existiam apoios do Estado para a investigação, ele defendia a selecção de questões sociológicas pertinentes que permitissem potenciar a informação de interesse administrativo. Bourdieu aconselhou-me a sugerir ao Ministério da Educação a elaboração de um inquérito, que interessasse ao próprio ministério sob o ponto de vista administrativo. Regressei a Portugal e conversei com o Sedas Nunes, que mexeu os seus cordelinhos no Ministério da Educação. Foi então possível a elaboração de um inquérito e respectivo financiamento, tendo sido constituído um grupo de trabalho no ministério, onde participei. Foi formulado o questionário e o plano de apuramentos, e estava a correr muito bem até que mudou o director-geral do Ensino Superior, que quis rever tudo, sem consultar quer a própria equipa quer a mim. Foi um grande problema, pois paralisou completamente o trabalho. Logo depois surge o 25 de Abril e o projecto foi abortado. Como decidi não passar pela mesma experiência, com um ano e meio de trabalho em vão, mudei de tema de tese, com uma componente de investigação histórica: a história da raiz da divisão do ensino secundário, que se inicia ainda no século xix. O Bourdieu não ficou muito entusiasmado com o tema e, como na altura se interessava pela acção simbólica da escola, sugeriu-me que estudasse o folclore estudantil, o que achei uma proposta quase “indecorosa”! Como é que isso se estuda sob o ponto de vista sociológico e como tema de tese? Sobretudo eu, não-coimbrã, que tinha uma visão pejorativa sobre a praxe coimbrã… Mas depois comecei a pegar no tema, entusiasmei-me, e passou a ser a tese que acabei por fazer.

LS — É curioso que de certo modo as teorias do Bourdieu estão a ser revisitadas…

EC — Nos EUA, por exemplo, ele teve sempre aceitação, embora a recepção da sua obra não tenha sido sempre pacífica… Mas nem em França. Nas fases mais duras da “teoria da reprodução”, ele era muito contraditado. Era atacado quer por marxistas, por acharem que ele não era suficientemente marxista nas suas análises, quer por não marxistas, por considerarem que ele era hiperdeterminista, demasiado sistemático e rígido nas suas concepções, o que impediria a revelação do empírico, o que é falso. A Reprodução é um livro especial, pois é uma reflexão, a posteriori, sobre trabalho empírico realizado acerca do sistema de ensino superior na França. Em França, ele foi contraditado também devido à sua posição de distanciamento perante a filosofia e os filósofos, acusado de alguma arrogância, sendo ele de formação filosófica...

Aliás, qualquer teoria tem que ser contraditada para se desenvolver. Se não é contraditada é porque é fechada. No caso do Bourdieu, ele estabeleceu princípios ou vias fundamentais (não revogados até hoje, penso eu) para entender o que é a acção social, e acabar com um dualismo que separou escolas de pensamento, entre estrutura e acção. Toda a vida esteve a falar do mesmo para chegar à conclusão de que não se pode compreender uma coisa sem a outra. Por vezes era atacado como sendo um puro e insuportável estruturalista, do que ele se defendia, ainda que tivesse recebido elementos constitutivos de uma certa visão do estruturalismo. Penso que durante toda a vida ele lutou contra dualismos irredutíveis, entre prática ou acção e estrutura. Ele tinha, aliás, a formação filosófica crítica que lhe permitia pensar para além dos dualismos paralizantes.

LS — E no caso da educação, uma área que conheces melhor, surgiram entretanto novas perspectivas de análise…

EC — Um pouco na base da crítica às teorias da reprodução, que têm uma perspectiva mais macro, houve um desvio da atenção para a prática escolar — aquilo que se centra na sala de aula. Houve muitos desenvolvimentos desse tipo que tendiam a ignorar as questões das condições sociais de existência da instituição escolar, como reacção ao excesso de sistematicidade da própria teoria da reprodução. As pessoas equivocaram-se com a natureza da obra La Reproduction, mas ela tem uma segunda parte sobre as aplicações da teoria, para mim, a parte mais interessante sob o ponto de vista do conhecimento mais concreto. As teorias da reprodução foram também criticadas sob o ponto de vista da acção política, considerando que o conhecimento dos mecanismos da reprodução desmobilizava os intervenientes para alterarem o sistema — “isto funciona assim, e a tendência do sistema é para reproduzir as desigualdades sociais e o poder das classes dominantes, etc.; então o que é que se pode fazer?” Como se a teoria não desse respostas às exigências da prática. Acho que houve um mau entendimento do significado da teoria. Nos EUA, várias pessoas se mobilizaram contra a teoria por razões desta natureza. Dizer que uma coisa funciona de determinada maneira é uma condição para ela poder mudar; eu preciso de saber como funciona para saber como posso mudá-la.

LS — Para além do tema da tese que outras influências tiveste de Bourdieu?

EC — Durante a tese recebi dele um apoio muito grande. De vez em quando ia a Paris dar-lhe contas do que ia fazendo. Como a história da minha tese foi muito acidentada, na própria defesa da tese, a primeira coisa que o Bourdieu me disse foi que tinha chegado a pensar que nunca chegaríamos àquele momento. Deu-me sempre um grande apoio e foi sempre muito afectuoso.

LS — Uhm… Voltando ao tema da tua tese, no fundo, a educação ainda é encarada actualmente como o “umbigo” do problema nacional…

EC — Não iria tão longe… A questão da educação emerge na década de 1950 na perspectiva do capital humano e da importância do ensino para o desenvolvimento, tal como veiculava Sedas Nunes. Uma perspectiva ainda actual, embora complexificada, já que não há uma extrapolação directa entre aumento de escolarização e crescimento económico. O que não existe é crescimento económico consistente sem educação, e também se sabe que a existência de recursos humanos não formados é uma das causas do subdesenvolvimento. Quando não há uma massa crítica mínima de gente escolarizada, verifica-se um enorme desperdício social e económico.

LS — E continua a sentir-se a necessidade de uma melhoria do nível educacional e cultural da população portuguesa…

EC — Sim, mas já se assistiu a uma enorme evolução e, apesar de se verificar ainda uma certa distância, temos estado a convergir nesses indicadores com os países europeus mais desenvolvidos. Em termos globais, e apesar de tudo, a sociedade portuguesa está muito mais bem equipada sob o ponto de vista escolar, porque há uma maioria de pessoas que dantes não teria passado dos primeiros quatro anos de escolaridade, mas hoje tem 12 anos de escolaridade. Depois, podemos discutir o que as pessoas efectivamente sabem ou aprenderam, mas aí existem diversas perspectivas críticas, muitas vezes influenciadas por questões geracionais, não entrando em linha de conta que “capacidades” e “competências” adquiridas são coisas diferentes, conforme os tempos. Estou, no entanto, perfeitamente de acordo que há competências básicas cruciais que têm sido negligenciadas. Algumas abordagens aos problemas do ensino em Portugal, actualmente, identificam problemas que são reais, mas depois falha a perspectiva para a sua solução, porque falta o enquadramento sociológico; porque se reduzem as análises a problemas de ética pedagógica ou de disciplina formal. Na gestão escolar, por exemplo, podemos observar enormes diferenças nos resultados das escolas consoante quem está a dirigi-las e a conceber a maneira como se pode melhorar as suas condições.

As críticas ao “eduquês” identificam problemas reais e factores importantes (nas condições de funcionamento institucional, por exemplo), mas tendem a não levar em conta as condições sociais da escolarização, que é a questão pertinente sob o ponto de vista sociológico. Estas condições manifestam-se em tantos aspectos do funcionamento da escola, que não podem ser ignorados como factores a ter em conta para melhorar o próprio funcionamento das escolas e a educação.

LS — Como tens avaliado a evolução das ciências sociais?

EC — Na minha opinião, passou-se do domínio da teoria para o domínio da temática, isto é, enunciam-se problemas, e com menor ou maior rigor e acuidade de perspectiva teórica procura-se analisá-los, com o risco de essas temáticas subverterem completamente os paradigmas da análise teórica. A multiplicidade de paradigmas concorrentes é boa, mas pode conduzir a uma fragmentação tal que se pode perder a noção dos princípios fundamentais que continuam a ser, provavelmente, idênticos às grandes formulações dos princípios da análise sociológica. Há uma dispersão temática; os problemas são apresentados como temáticas, e de alguma forma isso faz decrescer a importância da perspectiva sociológica que constrói os problemas. Perde-se a noção do papel orientador da teoria, porque os temas são muito investigados com a realidade que se tem à mão. Parece um retorno ao confronto entre problemas sociais e problemas sociológicos — os temas são a emergência dos problemas. Os temas também podem ter um nível de elaboração superior, deixando de ser só a apreensão dos problemas — já é uma formulação que tende a enquadrar os problemas num quadro mais vasto de entendimento dos próprios problemas. A minha preocupação é se a atenção aos problemas (que se traduzem em temas) significa que há uma diminuição da consciência da necessidade da construção teórica do problema. A construção teórica do problema continua a ser indispensável. Se assim não for, onde está o contributo para analisar o problema? Uma coisa não existe sem a outra: trabalho empírico e trabalho de aprofundamento teórico.

LS — Foi a partir da década de 1980 que se assistiu a uma “explosão” das ciências sociais em Portugal…

EC — Foram as transformações sociais e políticas por que Portugal passou que criaram as condições propícias a esse desenvolvimento em todo o país. Um caldo de onde também emergiu Boaventura de Sousa Santos. A própria autonomia incentivada desde o início por Sedas Nunes, potenciou, após o 25 de Abril, a criação de diferentes perspectivas de investigação e de ensino. Depois, na década de 1990, consolidaram-se as instituições. Há uma expansão óbvia do ensino das ciências sociais, que traz consigo um crescimento enorme da investigação. No caso concreto da sociologia, a criação da Associação Portuguesa de Sociologia teve também um papel importante, sobretudo na consolidação profissional. Mas, em contrapartida, a partir, julgo, da década de 1990, nos programas das licenciaturas de economia assistiu-se a um empobrecimento das perspectivas sociológica, histórica e política, na análise e enquadramento das questões económicas (que uma visão mais economicista ou reducionista tende a ignorar), invertendo assim o contributo que o próprio Adérito tinha dado nessa matéria. Na evolução dos programas das nossas licenciaturas de economia perdeu-se, assim, essa visão mais alargada e fundamentada que hoje faz tanta falta.

LS — Durante o processo de evolução das ciências sociais em Portugal, o ensino passa a abrir caminho à investigação, com um peso cada vez mais relevante…

EC — Sim, em termos institucionais passa a verificar-se um escoamento do ensino para a investigação. A função de investigação intensifica-se e passa a ser incentivada. O ensino sempre beneficiou a investigação, sobretudo porque a partir de uma certa altura as pessoas começam a pensar em fazer os seus doutoramentos, e estes fazem-se com investigação. A investigação surge como uma necessidade para a própria carreira universitária ou docente.

Em determinado momento, não consigo precisar quando, houve uma grande pressão por parte da Universidade de Lisboa para que o ICS se transformasse numa faculdade, o que gerou uma grande resistência interna, exactamente porque o ICS sempre se definiu como uma instituição de investigação, embora ainda contendo nas suas competências e missões possíveis, o ensino — não o ensino de graduação, mas antes o ensino de pós-graduação, como hoje se verifica.

LS —E o tempo dedicado aos doutoramentos reduziu substancialmente, e passou a haver formação e apoio…

EC — Houve uma mudança estrutural em todo o ensino universitário. A concepção da tese de doutoramento como uma obra de vida existia em todos os domínios disciplinares, e não era só em Portugal. Mesmo em França, por exemplo, o tempo de gestação de uma tese podia durar 15-20 anos. Cá até se dizia que a pessoa fazia um doutoramento e, depois, não fazia mais nada. A redução desse tempo foi à escala nacional e europeia.

LS — Dedicaste-te durante 15 anos ao ICS, que foi fundamental para a instituição, mantendo a identidade do ICS e a linha de actuação do Sedas Nunes…

EC — Advoguei sempre uma direcção partilhada, pois pressupõe que haja uma grande comunicação entre as duas formas de direcção — directiva e científica, com predominância da científica no que diz respeito à definição da política institucional. Tal como defendiam os antigos estatutos, o Conselho Científico era o órgão de direcção da política do próprio instituto. O Conselho Directivo tinha uma natureza mista porque era ao mesmo tempo o órgão de representação da instituição e um órgão de gestão interna que, devido às suas responsabilidades orçamentais, podia até colocar limites à política científica que a direcção científica pretendesse impor. Se nesta situação poderia parecer uma “força de bloqueio”, era também um elemento de englobamento, de coesão da própria instituição, porque procurava não separar o pessoal científico do restante pessoal. Isto pode parecer uma questão menor, mas não é. O trabalho, seja de que natureza for, tem de ser conduzido e gerido de maneira a que as diferentes competências se potenciem. Isto vem na continuidade da própria experiência do Sedas Nunes — quando o Adérito foi director, tinha a percepção da necessidade de assegurar o equilíbrio entre as diferentes maneiras de “existir” dentro da instituição.

LS — Olhando para trás como vês os anos que passaste a dirigir os nossos destinos?

EC — Sob um determinado ponto de vista implicou alguma frustração porque deixei de fazer investigação. Ora, a investigação dava-me simultaneamente um grande prazer e uma grande angústia. Por isso, por um lado, fiquei aliviada e, por outro, senti e vi… que se quebrou a via da investigação. No início não supunha que iria passar 15 anos na gestão do ICS, mas a mudança para o actual edifício foi um processo complicado e demorado, que me agarrou muito, de 1992 a 2003, quando nos mudámos. Dez anos a desenhar o projecto, a conseguir os meios, a negociar…

Não gostava, no entanto, de reduzir o meu empenhamento no ICS à história do edifício — na altura as pessoas achavam que só me preocupava com o edifício e o seu mobiliário. Acho que isso não era verdade, porque continuava a ter a preocupação de promover um crescimento saudável do instituto, isto é, que crescesse e que fosse sustentável nas condições que oferecia às pessoas.

Houve desafios muito interessantes. O período que se inicia na viragem para os anos 90, com a liderança pelo Mariano Gago da JNICT [Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica], foi muito importante, pois traduziu-se num alargamento das condições para o desenvolvimento da investigação em ciências sociais. E isso reflectiu-se muito na própria direcção, porque não estávamos equipados sob o ponto de vista técnico-administrativo, para responder a estes novos desafios, o que exigia bastante do Conselho Directivo. Encontrei um grande motivo de satisfação em conseguir responder a esses desafios. Foi uma época de abertura a nível das condições para o desenvolvimento da investigação, incluindo até os novos meios tecnológicos que despontavam — ainda me lembro de, em 1992, o Jorge Vala vir falar comigo sobre a importância da internet… Esta série de desafios tornou a função interessante, como também a criação do Observatório das Actividades Culturais, do OBSERVA, a revitalização do Observatório da Juventude (que já tinha sido criado pelo Sedas Nunes). Uma série de condições que requeriam por parte da direcção, e não apenas da direcção científica, um investimento muito grande e uma grande projecção do ICS.

LS — Nessa altura havia uma relação muito boa com o ISCTE…

EC — A história da relação do ISCTE com o ICS nem sempre foi a melhor, desde logo a partir da saída do Adérito Sedas Nunes do ISCTE. Depois foi melhorando, sobretudo quando houve pessoas que estavam ligadas à direcção das duas instituições, como o João Ferreira de Almeida e eu, que mantinham as devidas lealdades à respectiva instituição, sem ignorarem a outra. Eu tinha uma concepção, se calhar algo romântica, de que a cooperação é importantíssima para as instituições; a concorrência é útil mas ao mesmo tempo a cooperação não pode deixar de existir. A concorrência fundada na cooperação e respeito mútuo garante todos os benefícios, da cooperação e da concorrência. A concorrência realmente é estimulante, pois obriga a estarmos atentos e a agir, mas se for feita em tom de guerra, é péssima. Depois é natural que, na sua evolução, cada uma das instituições procure as suas condições de desenvolvimento e de afirmação, que podem transitória e pontualmente entrar em conflito. Mas não foi essa a minha experiência na relação entre as duas instituições; foi uma experiência de boa concorrência e de boa cooperação.

LS — Como tens avaliado o encadeamento das diferentes gerações de cientistas sociais no ICS?

EC — No caso do ICS é uma análise complicada devido à diversidade disciplinar que se tornou definidora; de resto, era um desígnio do Sedas Nunes. A interdisciplinaridade é mais difícil do que a pluridisciplinaridade. A comunicação entre as gerações é mais difícil do que a coexistência. O desígnio do Sedas Nunes foi a diversidade, que começou com a entrada dos historiadores e dos investigadores de ciência política, sem esquecer os antropólogos e economistas, em menor número.

LS — Verificou-se alguma consolidação em termos de interdisciplinaridade?

EC — Exceptuando alguns casos, julgo que há pouca fecundação a esse nível. Acho que há alguma tendência para acolher, dentro de uma determinada área disciplinar mais definida, os contributos de outra. Há uma interdisciplinaridade já quase tradicional entre sociologia e certas áreas da antropologia, ou entre sociologia e história, por exemplo. Mas não sei se há muitos casos concretos em que essa interdisciplinaridade é efectiva; há muitos mais casos de coexistência. A interdisciplinaridade pressupõe um esforço maior, de integração de perspectivas, em que as perspectivas de uma disciplina possam, de alguma forma, alterar ou influenciar as perspectivas de outra disciplina. Era essa a ideia do Sedas Nunes, mas foi mais um desígnio do que uma concretização.

LS — E porquê essas resistências disciplinares?

EC — Há resistências, há relações de poder. Queres impor a tua perspectiva, da tua disciplina, e servir-te da outra. A sociologia, por exemplo, tem tendência a ser um pouco imperialista face às outras ciências sociais, ainda que os tempos que correm não sejam muito favoráveis ao imperialismo sociológico. Há princípios básicos da análise sociológica que tendem a reverter problemas que outros formulam, em problemas de que a sociologia se apropria.

LS — E a interdisciplinaridade com outras ciências não sociais?

EC —Mesmo com as outras ciências ou disciplinas não sociais, a sociologia tende a impor-se. No âmbito da sociologia da saúde, por exemplo, os médicos (e técnicos de saúde) são objecto de observação; são mais observadores privilegiados do que “produtores de conhecimento”. O conhecimento que eles trazem é trabalhado pelos sociólogos, sem que o seu conhecimento técnico seja verdadeiramente incorporado; há qualquer coisa que fica de fora. Verifica-se uma apreensão dos fenómenos das relações estabelecidas ao nível da actividade que envolve os técnicos de saúde, mas de uma forma que não é para melhorar a medicina, isto é, o primeiro objectivo é entender o funcionamento do sistema institucional.

LS — No caso dos engenheiros, são eles os “imperialistas”…

EC — Podem não ser; podem ser “dadores benévolos”. Aquilo que dão é essencial para o trabalho do sociólogo, que por sua vez se coloca noutro nível — como é que estes problemas materiais estão envolvidos por factores de influência de natureza social? Como é que o conhecimento próprio da sociologia contribui para agir sobre aquele campo material, de uma forma mais potente do que o estrito conhecimento técnico? Mais potente porque consegue conceber o que está envolvido naquele problema técnico.

LS — Como é que o Bourdieu se posicionava sobre esta questão?

EC — Não sei dizer, mas lembro-me do que me disse em relação à minha tese: “Não se refugie na história”. O que ele queria dizer era que eu não deveria deixar que a narrativa histórica se impusesse à compreensão da própria narrativa sociológica. A minha narrativa sociológica é que tem de transcender a narrativa da história (tal como ela habitualmente se faz).

LS — Voltando à questão intergeracional…

EC — Podemos distinguir as gerações pelas condições da própria formação da geração e pelas condições das interacções entre as gerações. E aí penso que seja recorrente a existência de tensões conflituais entre protagonistas de momentos históricos e condições sociais diferentes, que tentam ocupar o seu espaço no campo, nos lugares de poder. Há sempre um certo confronto entre diferentes gerações. Apesar de tudo, acho que no caso do ICS houve no geral uma boa articulação entre gerações, mas cada caso é um caso, consoante também as condições da diversidade.

LS — E a variação dos graus de exigência e de avaliação dos investigadores ao longo das últimas décadas?

EC — Não diria diferentes graus de exigência ou de avaliação, mas antes formas diferentes de avaliação. Uma visão muito produtivista tende a não permitir respeitar algumas diferenças sobre a produtividade das pessoas. Isso foi sempre assim. A partir do momento em que uma pessoa está a trabalhar numa instituição, exigem-se resultados, como é natural. Na nossa geração existia uma menor exigência no controlo dos resultados. Não existia a medida da produção, que depois surge, não só por lógica interna, mas também por constrangimentos externos. Como mudaram as condições da produção científica, isso constituiu-se sobretudo por questões de financiamento — um indicador fundamental para avaliar o que (ou quem) deve ou não ser financiado, embora mantendo-se sempre os padrões de avaliação da produção de um cientista, como a importância do que ele produz — importância não em termos de quantidade mas do seu valor contributivo para o avanço do conhecimento. Contudo, a partir de certa altura, essa medida da produção traduz-se numa contagem que, embora inevitável, pode ser castradora; não é suficiente para uma avaliação. Existe uma média de produção de uma instituição — quem é que contribuiu mais para ela? Só este aspecto é suficiente para criar fricções. Com a vantagem de essa avaliação quantitativa constituir um estímulo para produzir, mas com a desvantagem de não exprimir necessariamente uma avaliação qualitativa.

LS — Para terminar, como vês o futuro das ciências sociais em Portugal?

EC — Num contexto de crise, as ciências sociais podem sofrer da visão (já manifestada no passado, e que já tinha sido ultrapassada) de que não são ciências úteis, pois as urgências são o campo técnico e material. Em termos de política de financiamento da investigação, podem ser favorecidas as áreas de investigação que maiores efeitos tiverem para o crescimento económico ou, por exemplo, para melhorar o sistema de saúde, com base na perspectiva de que este poderá piorar. As ciências sociais podem ser sacrificadas neste clima de restrição e, nesse sentido, poderá verificar-se uma maior selectividade na aprovação dos projectos. A crise vai manifestar-se em todo o lado, e como tal é necessária uma grande atenção aos movimentos e tendências de produção científica a nível internacional, sobretudo na Europa, EUA e Brasil; uma atenção particular em termos de gestão institucional.

LS — Achas que esta turbulência vai afectar as instituições?

EC — As questões orçamentais vão de certeza afectar as instituições. Não devendo ser ignoradas como tal, devem ser superadas sem abdicar dos objectivos de cada instituição — perante a possibilidade de cortes no financiamento, vai deixar de se ensinar ou de se investigar? Claro que não. É necessário continuar a pensar em soluções, respostas, acções, avançar, forçando os limites… Mesmo na penúria, nunca abdicar…

 

Notas

1 Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina.

2 Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras.

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