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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.200 Lisboa  2011

 

Entrevista a João Ferreira de Almeida

por Renato Miguel do Carmo

 

Renato Miguel do Carmo é doutorado em sociologia. Actualmente é investigador auxiliar do Centro de Investigações e Estudos de Sociologia do ISCTE-IUL. Autor de diversos livros e artigos (publicados em revistas nacionais e internacionais), versando principalmente as temáticas das desigualdades sociais e territoriais, globalização, mobilidade espacial e capital social, organizou recentemente o livro Entre as Cidades e a Serra: Mobilidades, Capital Social e Associativismo no Interior Algarvio (Editora Mundos Sociais, 2011), e com Charlotta Hedberg, Translocal Ruralism: Mobility and Connectivity in European Rural Spaces (Springer, 2011).

João Ferreira de Almeida é professor catedrático jubilado. Licenciado em direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa em 1964, doutorado em sociologia pela Universidade Técnica de Lisboa, ISCTE, em 1984, onde realizou também as provas de agregação em 1991. É actualmente membro do conselho consultivo do European Social Survey e membro do conselho científico da SciELO. Entre outras actividades foi presidente da Associação Portuguesa de Sociologia; membro do conselho consultivo da Junta Nacional de Investigação Científica; representante português na comissão permanente para as ciências sociais da European Science Foundation; presidente do ISCTE; membro do conselho científico para as ciências sociais e humanas da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT); coordenador do OBSERVA; director da revista Portuguese Journal of Social Science. Desenvolveu investigação nas seguintes áreas: processos culturais e simbólicos; exclusão social; estudos rurais; educação e juventude; desenvolvimento económico e social; valores e representações sociais; classes e estratificação social. Publicou dezoito livros, alguns em colaboração, e mais de sessenta artigos, capítulos e estudos.

 

Ao longo de quase duas horas de entrevista percorreram-se muito temas relacionados directa ou indirectamente com a consolidação das ciências sociais no contexto do sistema científico português e internacional. Perspectivando a sua análise a partir da sociologia, mas não esquecendo a sua relação com as outras ciências sociais, João Ferreira de Almeida constrói uma análise interessante sobre a complexidade não só da investigação e dos investigadores, mas também das suas instituições, que, segundo o entrevistado, detiveram, e ainda detêm, um papel crucial. Iniciando a entrevista pela criação do antigo GIS, percorrem-se depois temas tão diversificados como a emergência da sociologia e a sua articulação com outras ciências, o rumo das políticas científicas, e a constituição da JNICT (Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica) e da FCT (Fundação para a Ciência e a Tecnologia), o crescimento dos centros de investigação, a importância das revistas científicas, a questão da internacionalização e a problemática da desproporcionada valorização da publicação em língua inglesa, a importância dos livros nas ciências sociais, e o futuro da ciência neste contexto de profunda crise. Abordam-se também aspectos de ordem teórica e epistemológica, questionando-se o sentido de alguns paradigmas de interpretação do mundo social. Para além destes e de outros temas, João Ferreira de Almeida descreve os traços fundamentais do seu percurso científico e académico, referindo-se a alguns dos seus trabalhos mais conhecidos e marcantes como foi o estudo realizado sobre a freguesia de Fonte Arcada, e a “revisitação” em curso passados 30 anos.

 

Renato Miguel do Carmo (RMC) — Gostaria que fizesse uma espécie de avaliação sobre a questão do crescimento e da consolidação das instituições, dos centros de investigação, nomeadamente, na área das ciências sociais, em Portugal, nestes últimos vinte, trinta anos.

João Ferreira de Almeida (JFA) — Bem, talvez se possa fazer uma pequena incursão, muito breve, num passado um bocadinho mais remoto, que se refere ao nascimento das chamadas velhas instituições como, por exemplo, o GIS...

RMC — Exactamente.

JFA — Só uma pequena menção, uma pequena referência. Vou centrar--me muito mais na sociologia do que nas ciências sociais em geral, por falta de competência para falar de tudo, como é evidente.

De facto, o GIS representa, basicamente, o nascimento, ou se quiser, o renascimento, da sociologia no país. Tinha havido uns vagos ensaios nos tempos da Primeira República, mas era uma coisa incipiente. E, portanto, é de facto o nascimento em Portugal. E é importante nascer bem, acho eu. Uma das componentes positivas desse nascimento foi o facto de já haver aí algum hibridismo, isto é, o pequeno grupo reunido pelo professor Sedas Nunes tinha proveniências e formações diferentes. Julgo que isso marcou as primeiras evoluções da nossa sociologia e marcou-a, neste caso, de uma forma positiva. Havia gente que vinha de direito, de economia, de letras, de várias proveniências. E, portanto, esses nascimentos ou renascimentos, antes de Abril de 1974, foram sendo feitos a partir de formações diversificadas. Nas outras ciências sociais, o que se passou foi bem diferente, em função dos percursos anteriores. A história e a etnografia, por exemplo, tinham antigas e ricas tradições. No caso da antropologia havia o antigo Instituto, que é hoje o ISCSP, em que as preocupações e os horizontes empíricos se centravam nas colónias, mas também se fazia formação na área antropológica em geral. A antropologia tem, de resto, uma notável história, mas é uma história da etnografia portuguesa, como se sabe, e que vem de trás, ainda dos anos 30. A economia, a demografia, e a linguística já tinham igualmente afirmado percursos de vitalidade diferenciada. Outros campos das ciências sociais tiveram no essencial, como a sociologia, de esperar por Abril. Mas pode dizer-se que em todos os casos só depois de 1974 se respirou o clima de investigação e de publicação com alguns recursos, e sobretudo com liberdade.

RMC — Claro.

RMC — A geografia…

JFA — A geografia, falando da geografia humana ou social, tinha uma boa tradição. Tinha e mantém uma boa tradição. Aliás, próxima, a certos níveis, da etnografia. Quer dizer, era uma geografia muito centrada, como é natural, sobre o território, sobre a análise do território, mas com a vocação de convergências e de debates com as outras ciências sociais.

Trata-se, portanto, de histórias diferentes. Eu não as conheço todas bem, como é evidente. Só queria sublinhar que os pontos de partida nos idos de 60 e de 70, fins de 60, caso do GIS, eram entre si muito diferentes.

Voltando ao nascimento, eu diria que a sociologia nasceu bem no que respeita ao GIS, a partir desse pequeno grupo que também fez formação e auto-formação intensiva. É sempre necessário falar de Sedas Nunes, que é o fundador e o impulsionador de todo o processo, dirigindo, apoiando e encorajando esta nova geração, tanto no âmbito da pesquisa como do ensino. Tudo se ia fazendo de uma forma artesanal e de uma forma até arriscada… Já que não havia carreiras nem, por isso, segurança mínima de continuidade, visto que éramos basicamente bolseiros, pessoas que optavam por fazer aquilo porque queriam realmente fazer aquilo, porque gostavam de fazer aquilo. Eram tempos em que os licenciados não tinham dificuldade de emprego em Portugal, havia alternativas de trabalho para todas estas áreas, e talvez ainda mais para o direito e para a economia. Não se tratava, por isso, de escassez de outras opções.

 Bom, o que aconteceu foi que este nicho institucional do GIS permitiu também um primeiro crescimento. Eu julgo que as ciências, quando se inauguram, inauguram-se basicamente pela investigação, mas que depois é o ensino que lhes permite o crescimento mais ou menos sustentado. Se quisermos usar uma expressão clássica, a reprodução alargada torna-se possível pelo e a partir do ensino. Foi o que aconteceu. E, nesse aspecto, por exemplo, o ISCTE teve um papel decisivo. Nasceu igualmente no princípio dos anos 70, antes de Abril, em 72, e, desde logo, de uma forma semi--clandestina ou em todo o caso condicionada, pôde concretizar o interesse e a possibilidade de ensinar sociologia. Há aqui, portanto, a questão de formação de novas gerações que é importante para a tal reprodução.

 Surgiram também nos anos 70 as novas universidades. Progressivamente, vão tendo cursos das ciências sociais. Algumas têm-nos à nascença, outras vão tendo depois. Quanto às velhas universidades — estamos a falar de Lisboa, Porto e Coimbra — elas próprias também tinham ensino em ciências sociais, como se sabe, mas a grande expansão gera-se igualmente depois de Abril.

Aumenta a oferta de ensino e investigação no campo, e com ela surge alguma competição. A competição em si mesma é certamente saudável e produtiva, só não o é se não se cumprem as regras, nomeadamente as de carácter deontológico. Eu creio que as relações, no essencial, funcionaram bem em termos profissionais e, pelo menos no que respeita à sociologia, continuam a funcionar bem.

 Julgo que houve aqui um factor relevante que foi a fundação em 1985, da APS, da Associação Portuguesa de Sociologia. A Associação teve, a meu ver, um papel integrador muito importante. Promoveu congressos que são também formas de apresentação para dentro e para fora do campo, de conhecimento e de reconhecimento dos membros do ofício. Fez reuniões científicas de todo o tipo, facilitando também um bom clima relacional. Criou secções que punham a funcionar em conjunto sociólogos com diferentes origens institucionais, em torno de temas que queriam desenvolver. Sociólogos ligados à academia, mas também os chamados profissionais, os que trabalham em empresas, no Estado, na administração local, no terceiro sector... E, de facto, a consolidação de uma ciência faz-se desde logo pelos produtos, por um lado, que se divulgam através de livros, artigos, comunicações, relatórios de pesquisa; mas faz-se também pelos praticantes do ofício que, para além dos investigadores académicos, de uma forma ou de outra, e com meios diferentes, igualmente transportam para a sociedade aquilo que aprenderam e sobre que trabalham. Faz-se, portanto, através de todos os que praticam o ofício com recurso às caixas de ferramentas que essa ciência vai produzindo.

RMC — Mas a sua formação inicial é em?

JFA — É de direito. Tinha concluído direito na faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Entretanto, uma breve passagem por Paris na Sorbonne, serviço militar, já que estávamos naqueles períodos conturbados da guerra colonial, e depois, em 1970, recebi um convite para eventualmente trabalhar no GIS, instituição com que eu nunca tinha tido contacto. Não conhecia o professor Sedas Nunes, e ele a mim, obviamente, muito menos. E pronto, lá fui fazer a entrevista, o que aconteceu com vários dos membros do tal pequeno grupo, e juntei-me aos poucos “veteranos” da casa. Este grupo foi o que começou o ensino no então ISCEF, a par das iniciações à pesquisa. Quando, dois anos depois, nos transferimos para o ISCTE eu tinha passado a assistente. O professor Sedas Nunes convidou-me então para reger a cadeira de que eu já tinha sido elemento no ISCEF, o que fiz com uma equipa que também viera de Económicas. Depois continuei.

Devo dizer, para voltar um pouco atrás, que a par dessa incerteza toda, que fazia que nós apostássemos num trabalho só porque gostávamos dele, havia também uma certa atitude aristocrática. Aristocracia, bem entendido, com muitas aspas, que utilizo apenas para mostrar como se distinguia do que é hoje mais corrente.

Na altura, não tínhamos obrigação de publicar em revistas A, visto nem sequer haver revistas A. Talvez não fosse uma má coisa. Não tínhamos pressões e prazos no sentido forte, a não ser os dos compromissos internos. Tudo isso constituía também a contrapartida da nossa própria precariedade, de não termos garantias de continuidades. E, portanto, tudo era movido de dentro, movido não apenas individualmente, mas movido pelo grupo, pelo interesse do grupo, pelo empenhamento do grupo. No que diz respeito ao doutoramento, por exemplo, não sabíamos se era possível vir a fazê-lo em Portugal. Estávamos a trabalhar e dávamos aulas, o que nos prendia por cá. Não sabíamos. Quando se tornou possível, ele passou a ser uma decorrência natural da pesquisa que tínhamos estado a fazer antes. Mais uma vez, não havia prazos explícitos, nem estávamos sequer dependentes do doutoramento, em princípio, para continuar a trabalhar no campo da investigação e do ensino. Evidentemente, percebeu-se depois que se tornara uma condição quando se afirmaram as carreiras, mas no conjunto tratava-se de um modo claramente diferente de funcionar. Foi o modo pioneiro, que não creio ter tido só inconvenientes. 

Pelo lado positivo, por exemplo, a impossibilidade anterior de verdadeiramente fazer pesquisa terá ajudado ao forte apetite pela empiria, ao desejo de contribuir para o progressivo conhecimento da nossa sociedade. As nossas inesgotáveis ignorâncias não nos desencorajavam. O isolamento incitava-nos às várias dimensões de internacionalização, desde a publicação em livros e revistas estrangeiras até à participação em encontros científicos e em projectos de pesquisa. A nossa própria incipiência e pequenez prevenia, por outro lado, arrogâncias que seriam obviamente ridículas, enquanto alguma facilidade com as línguas europeias nos dava em muitos casos acesso aos originais. Nem tudo é mau nas situações periféricas…

Falar de mim não tem muito interesse a este respeito. Em relação às situações institucionais, comecei por estar no GIS, depois estive no ICS que é, como se sabe, a transformação jurídica, estatutariamente consagrada, do GIS. Entrei para o ISCTE logo também, o que significa que passei a acumular a situação de docente no ISCTE e de investigador no GIS. Numa certa altura pôs-se o problema de aceitar a presidência do Conselho Científico do ISCTE, o que exigia, em termos estatutários, dedicação exclusiva. Por isso renunciei, nessa altura, à acumulação com o ICS e passei a ser membro exclusivo do ISCTE. Mas as minhas relações profissionais com o ICS, e pessoais com colegas e amigos, eram e continuam a ser, as melhores. Antes tive também uma passagem pela Faculdade de Direito, ocasional, para dar umas aulas, além da tal iniciação de dois anos, enquanto assistente, no ISCEF. Bom, fui assim prosseguindo uma carreira de investigação e ensino, com episódios mais ou menos longos mas sempre intersticiais de outro tipo: presidência do ISCTE, presidência da APS, representações científicas no plano nacional e internacional, etc.

RMC — E, entretanto, o surgimento também de outros centros de investigação?

JFA — Ora bem, como eu estava a dizer, até as universidades privadas foram oferecendo cursos de ciências sociais, algumas com pouca dinâmica de investigação, outras com mais. Mas claro, universidades como a Universidade de Coimbra, o CES, que toda a gente conhece, Évora, o Porto, o Minho, o Algarve, a Beira Interior. Falando mais da sociologia, em todas estas universidades se foram desenvolvendo núcleos de investigadores que eram, simultaneamente, professores. Noutros casos, minoritários, havia investigadores a tempo inteiro, porque alguns estatutos jurídicos foram permitindo também essa situação. A investigação em Portugal nas ciências sociais foi crescendo de uma maneira muito significativa, a par de uma muito maior formação pós-graduada em mestrados e doutoramentos, com apoios expressivos da antiga JNICT e depois da Fundação para a Ciência e Tecnologia para a respectiva realização quer em Portugal quer no estrangeiro. Bom, isso é um dos aspectos mais positivos de toda esta evolução.

Mas uma vez que me pergunta sobre os centros de investigação, deixe--me dizer-lhe quanto me parece importante essa análise de tipo institucional. Antigamente não se ligava muito a essas questões, como se a ciência fosse alguma coisa que se pudesse fazer fora e em abstracção dos seus próprios contextos sociais. É evidente que não pode, e não há por aí novidade alguma. Mas a preocupação de analisar as instituições, os seus funcionamentos, a fluidez ou a falta dela nas relações entre pares, as hierarquias e os conflitos, as regras, as interconexões exteriores, os financiamentos, e por aí fora, põe questões absolutamente essenciais. Em tempos passados, com o José Madureira Pinto, tínhamos posto aquela questão de ser necessário olhar também para as dimensões externas da epistemologia. A epistemologia analisa o trabalho científico, mas não o pode fazer recorrendo apenas às dimensões internas desse trabalho, à própria matriz disciplinar que analisa. Tem de olhar também para fora dessa matriz para entender interacções essenciais. Posteriormente, embora se trate de uma história já antiga, passou a haver uma grande preocupação pragmática entre os epistemólogos a respeito, em particular, da análise de instituições de pesquisa. Nada nelas e também nas suas relações com o exterior é indiferente para a ciência que se faz. Portugal também já começou a criar uma boa tradição nesse vector que tem relação directa com a sociologia da ciência e com as tais dimensões externas da epistemologia.

 Há relações no campo científico que podem ser facilitadas, por exemplo, por instituições que por definição acolhem investigadores de diversas pertenças e até servem de mediação para o poder, nos planos da pesquisa e do ensino, como é o caso já mencionado da APS, de outras associações científicas, de ordens. É claro que os cientistas também se relacionam directamente uns com os outros no plano nacional e internacional, muitas vezes com regularidade, por exemplo em partilha de projectos. A FCT tem tido aí um papel de grande importância.

RMC — A FCT é uma instituição cuja história é relativamente recente. Teve também relação com o nascimento da própria FCT?

JFA — Com o nascimento não. A FCT, dotada de um novo estatuto jurídico e institucional, é um avatar, com novas ambições, da antiga Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica. De resto, eu beneficiei, por exemplo, para o trabalho de tese, de algum financiamento ainda da Junta, muito modesto na altura. Estas são instituições absolutamente decisivas para organizar e para fomentar a investigação. Sem que a afirmação implique o menor menosprezo por responsáveis anteriores e posteriores ao José Mariano Gago, é preciso reconhecer que com esse instrumento — a presidência da JNICT — e com outros, foi ele que pôs o trabalho científico português no mapa.

 De facto estive ligado modestamente a esse processo porque ele me convidou a fazer parte do primeiro Conselho Consultivo da JNICT. Era uma instituição um pouco fechada, como era hábito no país, e ele foi promovendo a abertura, ouvindo também mais gente. Era um Conselho, não no sentido executivo, mas no sentido consultivo. Não tinha funções de deliberação, mas era um lugar de audição das pessoas, dos investigadores das várias áreas científicas, e o José Mariano Gago abriu, com toda a clareza também, para as ciências sociais, o que constituiu um passo de grande importância. Estamos a falar de um período já relativamente recuado. Depois, toda a evolução do financiamento e do apoio foi, como se sabe, muito produtiva em Portugal até tempos muito recentes e esperemos que continue.

RMC — Mas nesse período recuado teve um papel activo no desenho do que viria a ser a FCT?

JFA — Não tive papel decisivo a esse nível. Limitei-me a colaborar, como disse, correspondendo positivamente à solicitação, ao convite que o José Mariano Gago me fez e, naturalmente, com toda a convicção de que a bondade do projecto merecia.

RMC — Estava nas primeiras reuniões?

JFA — Sim, estive nas primeiras reuniões, onde se começou a tentar uma configuração mais estruturada do funcionamento da instituição que, como sabe, na altura nem sequer dependia do Ministério da Educação. Não existia um ministério ligado directamente à investigação. E não se pode ignorar a importância dos organogramas, das formas de organização interna, e das dependências externas formais das instituições, no respectivo grau de autonomia e nas capacidades que são susceptíveis de desenvolver com eficiência. Mas repito que aí foi, de facto, a personalidade e o empenho do José Mariano Gago que marcou a evolução desse centro de racionalidade, de articulação e de financiamento.

RMC — E essa preocupação logo desde o início das ciências sociais estarem lá, foi marcante?

JFA — Sem dúvida. As ciências sociais são mais frágeis, em geral, do que as outras, por razões conhecidas que não é aqui o lugar para comentar. Elas sofrem ainda do longo equívoco da pretensa ausência de paradigma que uma parte dos nossos colegas de outras ciências persiste em atribuir-lhes. Finalmente, no caso específico do nosso país, elas vinham ainda por cima, na sua maior parte, de uma não-história. É evidente que a sequência dos factos teria sido diferente se não houvesse, para além da vontade e do empenho dos que praticavam o ofício, e de algumas personagens importantes e influentes, como o Sedas Nunes, também um apoio consistente do ponto de vista institucional e por parte do Estado. Felizmente houve, e portanto também por aí foi possível o crescimento das ciências sociais.

RMC — Estava a falar das questões teóricas e empíricas. Agora, falando mais especificamente da sociologia, como é que vê, enfim, essa evolução … houve obras marcantes na década de 80, algumas delas muito ligadas à sociologia rural. Houve o estudo de Fonte Arcada, que foi central, e que abriu imensas linhas de investigação associadas ao estudo, neste caso, de uma freguesia do noroeste português. Como é que depois vê essa evolução a partir desses anos 80, não sei se quer recuar um pouco, mas como é que vê essa evolução da sociologia nas temáticas, nos vários eixos de investigação?

JFA — Bom, vale a pena sublinhar já de início que não me parecerem que a sociologia que se faz em Portugal esteja hoje fora ou longe das correntes dominantes na Europa, nos Estados Unidos e no resto do mundo e, portanto, a nossa história é uma história sincronizada, por assim dizer, com o que se passa por esses outros países e outras regiões.

Posso voltar atrás aos anos 70 só para lhe dizer que o que mais notoriamente se passava, então, era um combate inter-paradigmático violento, de exclusões recíprocas: ou se era estruturo-funcionalista ou se era marxista, com mais algumas variantes possíveis... Essas marcas eram importantes na nossa formação, quando nós nascemos para a sociologia. Falando do que conheço melhor, esse pequeno grupo do GIS em que me incluía, que estando em Lisboa seguia com atenção o que se debatia e se escrevia fora das fronteiras, rejeitava, com alguma militância, essas conflitualidades extremas, embora também não fosse a favor de um sincretismo acrítico.

RMC — Claro.

JFA — Mas não fazia sentido para mim que por exemplo se dissesse: “Eu sou marxista. O Weber não presta, os estruturo-funcionalistas não valem, deite-se fora o interaccionismo simbólico”.

RMC — Que se catalogasse...

JFA — Não podia ser, como é evidente. E eu acho que isso teve alguma influência, em termos dos nossos estudantes, na forma e nos conteúdos da tal reprodução alargada, porque as pessoas que aprendiam, que começaram a aprender sociologia nesses anos, tinham professores que diziam estas coisas e, portanto não estavam envolvidas nesse tal combate de morte. Recorde-se que o clima político, durante bastante tempo, não era particularmente favorável ao bom senso… Penso que a co-existência, ela própria pacífica, se tornou em todo o caso a norma, e que os estudantes percebiam, mais uma vez para usar uma expressão habitual, que “não se pode deitar fora o menino com a água do banho”.

 Há elementos que são sempre aproveitáveis em contextos de integração teórica e também de análise empírica, com as implicações metodológicas e técnicas que convoca. Já agora, a propósito das escolhas teóricas e paradigmáticas e dos aproveitamentos eventualmente úteis susceptíveis de serem feitos a partir de escolhas mais ou menos distantes das nossas próprias, deixe-me dizer uma coisa em que estava a pensar agora, a partir da sua questão.

Julgo que há, no campo da sociologia, propostas que se aproximam bastante da filosofia social. Estou a pensar em autores justamente reconhecidos, que toda a gente leu, pelo menos que toda a gente comenta e referencia. Para dar exemplos europeus, é certamente o caso de Bourdieu — que me parece um caso à parte — de Beck, ou de Giddens. É também o caso de Bauman, de que se fala agora muito por causa da liquidez, de que todos nós precisamos e escasseia, como se sabe, embora ele ache que não. Perdoem-me a brincadeira. O que queria salientar é que estes autores, sendo todos bons sociólogos, fazem também aquilo que eu acho que é próximo da filosofia social. Não atribuo a isso um qualquer sentido pejorativo. Mas não há qualquer problema em aceitar e aproveitar alguns aspectos das respectivas propostas sem as aceitar todas…

RMC — Exacto.

JFA — A sociologia, como todas as ciências, tem de manter sempre uma atitude crítica. Estes autores, em função da sua qualidade e da sua notoriedade, têm o poder de cunhar moeda, digamos assim, ou seja, imprimem marcas às nossas sociedades ao darem-lhes rótulos. É a sociedade do conhecimento, é a sociedade em rede, é a sociedade líquida, é a sociedade de risco, é a sociedade da informação, é a sociedade pós-industrial, é a sociedade de consumo, é a sociedade pós-moderna, e por aí fora. Ora bem, não há nada de mal nisto, excepto que a enorme complexidade das sociedades, ditas de modernidade tardia, ficam a ter um rótulo, e isso tende a obscurecer outras dimensões, tende a operar uma ultra simplificação enganadora. A sociedade de conhecimento, por exemplo, é também uma sociedade de desconhecimento. Tenho também sérias dúvidas sobre se a sociedade é líquida, acho que não é nada líquida, julgo que as resistências e as oportunidades continuam a ter previsibilidades, e que continuam aí as classes, continuam a estar aí as instituições. Naturalmente, muito diferentes do que eram até aos finais do século passado, mudando continuamente as suas características…

RMC — O compromisso é um exercício diferente...

JFA — Exactamente, é preciso fazer permanentemente o exercício de selecção e aproveitamento. Mas o sector da sociologia a que me referi, a que se poderiam juntar inúmeros outros autores porque são o que na disciplina há de mais significativo, escreve livros. Digo isto para sublinhar que a sociologia é book oriented, por mais que alguns dos nossos colegas das ciências naturais, e até das nossas disciplinas, achem que só os artigos é que verdadeiramente contam. Também na sociologia os artigos contam muito, mas isso não pode levar a subestimar os livros, como vai acontecendo, aqui e ali, em júris universitários. Faz algum sentido extremar a alternativa? Há uma espécie de “jovens lobos” nas ciências sociais, que eu tenho encontrado não apenas em Portugal, gente doutorada e jovem que está a entrar no ofício, e que já assimilou essa postura de valorização praticamente exclusiva dos artigos como meio de comunicação científica. Têm em geral uma propensão empirista muito clara em termos epistemológicos. Caricaturando um pouco, poderia ser-lhes atribuída uma frase do tipo: “A teoria conta para pouco, não interessa muito, só existe aquilo que é observável em termos das metodologias quantitativas que eu domino ou julgo dominar”.

RMC — Um certo neo-positivismo, será?

JFA — Um certo neo-positivismo, um evidente empirismo, que… bom, é um pouco como aquela história da moeda, de procurar a moeda perdida no sítio iluminado pelo candeeiro da iluminação pública; se está mais longe, se por acaso ela rolou para outro sítio, já não interessa procurá-la. É claro que estou a exagerar ao caracterizar assim os extremos: de um lado a filosofia social, por assim dizer meta-sociológica, do outro lado o hiper--empirismo, subordinado ao recurso exclusivo a técnicas quantitativas, algumas sofisticadas, outras nem tanto. E ainda se vê, aqui e além, um resto de hiper-teoricismo, saído da atitude de que a realidade ou incomoda, ou não merece sequer atenção.

RMC — Depreendo é que há um vazio entre essas...

JFA — Não, não há. Estou a falar de extremos levados à caricatura. A sociologia que se faz fica por assim dizer no meio e contem inúmeras gradações irredutíveis a posturas extremas, teoricistas, ensaísticas ou empiristas.

RMC — Porque é que disse que Bourdieu era um caso à parte?

JFA — Porque o Bourdieu era um sociólogo com uma capacidade teórica extraordinária e que ao mesmo tempo tocou em praticamente todos os problemas relevantes da sociedade, mas sempre com uma preocupação empírica. É claro que também fez filosofia, como outros autores que mencionei, no sentido de generalizações inteligentes e heurísticas sobre o social, sem necessariamente obedecerem ao padrão expositivo convencional da disciplina. Ou seja, virtualmente mais próximas da doxa informada do que do logos… Por outro lado, ele elege também objectos de análise menos frequentes, embora não inéditos, como obras literárias. Em suma, trata-se de alguém que articula enorme capacidade teórica, uma abrangência ampla de interesses empíricos, e uma notável imaginação sociológica. Por isso me parece um caso um pouco à parte na história contemporânea da disciplina.

Evidentemente muitos outros sociólogos praticam essa junção virtuosa de teoria e empiria, incluindo os que antes mencionei. A mim interessam-me particularmente os que tentam enfrentar, com os utensílios da disciplina e os recursos do campo no seu conjunto, incluindo as inspirações da filosofia social, os enigmas da nossa modernidade. Naturalmente que fazem parte da caixa de ferramentas os recursos metodológicos e os recursos técnicos quantitativos e qualitativos, cada vez mais aperfeiçoados. Também aqui se foram felizmente esbatendo os raciocínios binários do tipo “ou isto” “ou aquilo”.

RMC — No caso da sociologia portuguesa, o estudo sobre Fonte Arcada ocupa esse meio, ou seja, é um estudo marcante?

JFA — De certa maneira julgo que sim. Era pelo menos o que nós desde o princípio tentávamos fazer. Aproveitar os novos tempos em que já era possível ir para o terreno fazer pesquisa e até era possível publicar. A nós pareceu-nos, e agora falo no plural, para incluir o José Madureira Pinto, que tentar perceber as estruturas agrárias num país que ainda nos anos 50 tinha metade da população activa na agricultura, tentar perceber o que aí se passava no sentido de ajudar a interpretar processos sociais globais no país, era uma boa aposta de pesquisa. Até porque, como sabe bem, no pós-74 já havia, no campo da antropologia e da sociologia, alguns estudos sobre a região da reforma agrária, do latifúndio, sobre a lógica assalariada do Sul.

Não é por acaso que entretanto a sociologia rural foi declinando um pouco, acompanhando idêntico declínio da própria agricultura, e a correspondente desvitalização parcial, não total, felizmente, dos espaços rurais. A desruralização do país fez-se, de resto, de forma muito rápida, pelos padrões comparativos europeus. Mas continuamos a ter sociologia rural, e ainda bem, em geral progressivamente enriquecida com as questões ambientais, ligadas por seu turno aos problemas do desenvolvimento e da sustentabilidade.

RMC — Mas no caso de Fonte Arcada, gostaria que contasse um bocadinho por que transcende, obviamente, o campo da sociologia rural, mas transcende muito também esse rural. Entra muito na questão da estratificação social, das classes sociais, das questões simbólicas, e que agora tem o regresso, 30 anos depois, não é? Gostava que também falasse um pouco desse percurso...

JFA — Foi uma experiência interessante. Pudemos regressar, com uma equipa refrescada de jovens investigadores, e utilizando inclusivamente novos instrumentos de pesquisa, incluindo a colaboração permanente de um cineasta, cujo trabalho se traduziu num filme de tipo etnográfico. Não é o caso de falar dessa “re-pesquisa” agora, mas já foi publicado um primeiro volume de resultados e sairá em breve um segundo. Quanto aos primeiros passos em direcção aos horizontes rurais, nós tínhamos começado a aquecer os músculos, digamos assim, também sobre essas questões, ainda antes de Abril e antes de termos podido fazer verdadeiramente trabalho empírico. Um dos produtos, nesse tempo, foi o livro Modalidades de Penetração do Capitalismo na Agricultura, com o Manuel Villaverde Cabral e o Eduardo Freitas. A questão das relações sociais nos campos estava assim nas nossas preocupações. Procurávamos fazer várias coisas, e uma delas era escapar às limitações das clássicas monografias. Havia muitas e boas monografias, algumas feitas, por exemplo, por pessoas formadas no Instituto Superior de Agronomia, com as quais era possível aprender bastante.

RMC — Sim.

JFA — Havia igualmente certas monografias que eram apanágio e resultantes do trabalho dos antropólogos e dos etnógrafos os quais, muitas vezes, pesquisavam nas regiões ditas exóticas e isolavam o seu terreno de contextos exteriores. Não era difícil isolá-los, aliás, porque com frequência eles estavam até fisicamente isolados.

 Nós tínhamos uma ideia básica a respeito da pesquisa que tinha ganho raízes nas perspectivas epistemológicas que partilhávamos, de um racionalismo aplicado, à Bachelard. No princípio estava a pergunta, no princípio estava a teoria. A sociedade não fala por si própria, é preciso interrogá-la, e a interrogação produz o tipo de resposta, não apenas a forma, mas certos conteúdos da resposta. O que isto significava, desde logo, era que o horizonte empírico da pesquisa não podia ser o dado primeiro: era necessário, a meu ver, articular uma teoria do social às perguntas iniciais, e depois contribuir para produzir algumas teorias auxiliares e de médio alcance, que prolongassem até à empiria as perspectivas da análise. Claro que teria de haver sempre disponibilidade para reconhecer, a benefício de inventário, que afinal o caminho podia não ser esse e que era preciso refazê-lo parcialmente. E as eventuais correcções de percurso têm naturalmente a realidade por referente, visto que a realidade tem de ser sempre o decisor em última instância, para falar assim, do que se passa em matéria científica.

Julgo, de facto, que esse trabalho de Fonte Arcada foi importante, não apenas para nós dois, claro. Do ponto de vista formal, também houve alguma novidade no plano académico, porque nós inauguramos uma coisa que depois não teve grande sequência, com alguma pena minha, que é partilhar empirias. Cada um fazia obviamente o seu trabalho próprio, mas o horizonte empírico era partilhado. E este modo de trabalhar julgo que pode ser produtivo em muitas situações: por que razão excluí-lo forçosamente das dissertações académicas? Aliás, cultivar o isolamento, ou também o secretismo de informações, com o objectivo de obter benefícios variados, não é, como se sabe, só próprio dos cientistas. Os produtores de informação, mesmo de informação publicamente relevante, tendem a guardá-la de olhares profanos. São vícios que têm vindo a ser superados até na pesquisa internacional. Merece particular apreciação, para dar um exemplo virtuoso, o European Social Survey que, uma vez produzidos os resultados, liberta as bases de dados imediatamente para consulta e trabalho directo de toda a gente. Parece ser essa a tendência.

Voltando a Fonte Arcada, a ideia era, assim, que formando nós uma equipa produtiva, fazia sentido, mesmo no quadro do doutoramento, partilhar algumas recolhas de informação sobre o nosso objecto, sem prejuízo de cada um estar livre de reservar o sentido que pretendesse à sequência da sua investigação e da sua escrita. E foi isso que fizemos.

RMC — Mas sobre o estudo de Fonte Arcada, há o regresso, trinta anos depois, não é?

JFA — O regresso, sim. O regresso não foi iniciativa minha, nem sequer do Zé. A questão é interessante também porque remete para as ligações intergeracionais, para a reprodução do trabalho de pesquisa, até para fazer alguma prospectiva em relação ao que vai acontecer às ciências sociais, à sociologia e às instituições onde elas funcionam, mas sobretudo aos conteúdos do que produzem. Foram as jovens gerações de investigadores, ligados à Universidade do Porto, que tinham lido os trabalhos, se interessaram por eles e nos propuseram essa revisitação.

RMC — Como é que interpreta isso?

JFA — A questão de revisitar é que é, provavelmente, a mais importante, a questão de revisitar um espaço estudado há mais ou menos tempo. Há tradições dessas na antropologia, mas bem menos na sociologia.

RMC — Em Rio de Onor, por exemplo?

JFA — Rio de Onor é um caso conhecido, de que também me estava a lembrar, e depois há algumas iniciativas internacionais no mesmo sentido. O Michael Burawoy, por exemplo, falava dessas questões da revisitação e valorizava-as muito em termos de pesquisa. Eu costumo dizer que uma das obrigações do cientista social, e do sociólogo em particular, é fazer prospectiva. Embora o termo “obrigação” seja talvez um pouco forte demais, a verdade é que se eu faço um estudo continuado, cuidadoso, tão rigoroso quanto eu sou capaz, sobre uma determinada situação que tenha relevância social, que tenha implicações em vários patamares da realidade social, então parece-me normal que tente dizer alguma coisa sobre o futuro. Ao analisar processos sociais, verifico implicitamente tendências. Umas serão fracas, ambíguas ou indecisas, outras serão mais consistentes e pesadas, umas e outras podem ser entre si total ou parcialmente contraditórias. Então é bom que eu torne explícito o que julguei perceber dessas tendências e proponha cenários, com os seus diferentes graus de probabilidade. Claro que, dentro do campo das ciências sociais, isso será relativamente mais fácil de fazer numas disciplinas do que noutras. De qualquer modo, a revisitação permite uma perspectiva crítica, utilíssima, sobre esses antigos esforços de prospectiva. E é necessário avançar para passos seguintes de colaboração interdisciplinar que exigem, em todo o caso, outras condições. Nós pudemos reforçar também a equipa, que além dos jovens sociólogos, contava também com especialistas de outras áreas disciplinares.

RMC — Ou seja, pelo que percebi, é importante para alguém que está a iniciar, enfim, formação em ciências sociais, primeiro a consolidação de uma disciplina, é isso?

JFA — É essa a minha opinião, sem dúvida alguma. Ao nível da licenciatura, no tempo em que tinham 4 ou 5 anos, existia a possibilidade de ter cadeiras de antropologia, de história, de economia. Claro que, nesse aspecto, Bolonha não facilitou complementaridades nos primeiros anos e, pelo contrário, expulsou essas e outras disciplinas por impossibilidade de as acomodar nos seis semestres do primeiro ciclo. A adaptação é em todo o caso possível, e consiste em conduzir para os anos do segundo ciclo e do terceiro essas formações complementares, essa hibridação, essa aprendizagem de outras linguagens, de outros temas, e de outros conteúdos. Não se pode é prescindir, logo no primeiro ciclo, da iniciação intensiva à formação de base, à formação disciplinar. Não há interdisciplinaridade sem disciplina. E a disciplina tem uma vertente substantiva, bem como uma vertente metodológica/técnica, ambas essenciais também como ponto de partida para futuras aventuras de encontros disciplinares e para as suas exigências.

RMC — Como é que vê estas gerações mais recentes de investigadores?

JFA — Em primeiro lugar, não vejo problema algum de relações intergeracionais no campo que eu conheço melhor, que é o da sociologia. Globalmente, parece-me que as jovens gerações que se iniciam agora na investigação estão hoje mais informadas e, sobretudo, tecnicamente melhor formadas.

RMC — Mais informação, o que é que quer dizer?

JFA — Bom, quando eu comecei a ensinar sociologia não havia pura e simplesmente exemplos de trabalhos feitos em Portugal, ou havia pouquíssimos. Por isso as ilustrações eram sempre estranhas, no sentido próprio do termo, ou seja, eram retiradas de contextos longe da experiência dos estudantes, o que, evidentemente, não facilitava o debate dos problemas.

 Depois, uma outra dificuldade que nós tínhamos, é que as cadeiras instrumentais do ponto de vista metodológico e técnico normalmente estavam a cargo de professores virtualmente muito competentes na vertente matemática e estatística, mas que não tinham qualquer formação na disciplina sociológica. Portanto, mais uma vez, os exemplos não eram dos mais apelativos, podendo obscurecer a utilidade do que era ensinado. Até o próprio conteúdo programático corria o risco de ficar relativamente desadequado. Ora isto tudo se modificou, como sabe. Em vários cursos, e não só aqui no ISCTE, quer nas licenciaturas, quer depois nos segundo e terceiro ciclos, passaram a surgir professores com a dupla formação. Para isso ajudou muito a preocupação metodológica acrescida, traduzida em fileiras que acompanham todo o primeiro ciclo e ajudam a convencer precocemente mais estudantes da importância dessa formação. Essa precocidade e continuidade contribuem mesmo, em alguns casos, para os seduzir no sentido de prosseguirem aprofundamentos pós-graduados. Bons atletas, em geral, nascem de uma prática muito alargada de atletas amadores, e no campo científico é a mesma coisa: se temos mais praticantes, temos mais probabilidade de ter gente com muito boas competências.

Problema diferente é o de saber se a situação é globalmente favorável a essas novas gerações. Aí a minha resposta tem de ser negativa. Aquilo de que lhe falava há pouco de um certo elitismo antigo, de um certo aristocratismo feito de precariedade mas também de aceitação “descontraída” que os contextos apesar de tudo permitiam, sobretudo os familiares e os do mercado de emprego, foi-se transformando para as novas gerações em processos ainda mais precários, mas num outro, e mais grave sentido. Não é claro como se poderá aproveitar, agora e no futuro, o talento e o empenhamento de muitos jovens investigadores

RMC — Como é que vê a questão da internacionalização das ciências, sobretudo das ciências sociais?

JFA — Há muitas dimensões que têm a ver com a internacionalização.

 A internacionalização é também conhecer o que se discute e o que se produz fora de portas, quais são as agendas de pesquisa, quais são as grandes tendências no mundo científico. Mas não chega, evidentemente, isso é o princípio do princípio.

 A internacionalização começa verdadeiramente com a presença activa nas instâncias internacionais em que a ciência é produzida, seja qual for o campo, e também, evidentemente, nas ciências sociais. Pertencendo às primeiras gerações da sociologia em Portugal, pude aperceber-me da importância dessa actividade logo no início dos anos 70, através da frequência de reuniões científicas e de congressos. Nessa altura, a presença portuguesa era exígua, não passávamos de dois ou três, por razões óbvias de insignificância numérica do campo. Tudo isso se modificou de forma drástica, sendo hoje não apenas numerosa a participação, mas alargada a muito mais diversificadas proveniências institucionais. Universidades públicas e privadas, centros de investigação de todo o país, enviam agora os seus produtores, os seus investigadores, mais ou menos jovens, a essas reuniões científicas internacionais e a esses congressos.

A questão da participação em projectos internacionais de pesquisa é igualmente essencial. Também nessa frente tivemos um atraso muito prolongado, que me parece em clara via de superação. Já a liderança de programas põe problemas um pouco mais complicados, visto que, para além do prestígio do proponente, torna-se em geral necessário dispor de recursos — como por exemplo “seed money” para convocar reuniões preparatórias — cujo acesso é mais difícil. Mesmo nesse campo tem-se progredido. As universidades criaram, já há anos, um apoio em Bruxelas que deu também alguma ajuda, sobretudo no sentido de divulgar em tempo útil informação para novos concursos e novos programas. Porque essa é outra questão fundamental, a de não sabermos apenas à última hora o que vai acontecer, sob pena de perdermos hipóteses para os concursos. Fizeram-se assim alguns esforços, e alguns com bons resultados, mas neste aspecto a situação periférica já não é nada favorável.

Em termos de conhecimento, de influência e de prestígio, uma dimensão da internacionalização refere-se à representação portuguesa em instâncias de decisão científica. Os pequenos países têm de estar especialmente motivados e atentos para esse tipo de participação, que é de resto bastante exigente e desmultiplicada. Portugal, de uma forma geral, não tem descurado essa frente. Liga-se a este tipo de representação aquela, porventura ainda mais significativa, que provem de via electiva, isto é, que coloca portugueses, por eleição de pares, na direcção de organismos coordenadores de investigação. E também aqui, na sociologia, se verificaram recentemente situações muito prestigiantes.

Não se pode esquecer um outro aspecto em que se realça a visibilidade internacional do país, que resulta das inúmeras participações portuguesas em dinâmicas de investigação fora e dentro de portas, muitas vezes positivamente reconhecida através de resultados e da atribuição de distinções e de prémios.

Finalmente, a mais evidente, e porventura a mais visível e regular das dimensões da internacionalização, tem a ver com as publicações. Já falámos disso de passagem e é certamente não apenas uma questão importante, mas bastante sujeita a controvérsia. Nem todos parecem reconhecer que, para além de inúmeras coisas em comum, as ciências têm entre si distinções que também se repercutem do seu modo de comunicar com os pares e com o público em geral.

Diversos aspectos são inteiramente pacíficos.

Desde logo, os resultados de pesquisa só o são em sentido forte, quando deixam de estar nas gavetas e são submetidos a escrutínio. Antes não eram produtos científicos? Basta recordar as leis de Mendel, que justamente ficaram anos na gaveta, para se responder positivamente. Só que durante esse tempo não tiveram qualquer utilidade.

Depois haverá consenso em que o inglês se afirmou como língua franca científica, e que terá de ser a língua normal — não a única — em todos os processos de comunicação. Julgo que resistências a esse respeito por parte de alguns países e de alguns sectores estão em vias de superação.

A terceira evidência partilhada é que os artigos constituem uma forma eficiente de comunicação em todos os campos científicos. Eles são ágeis, transmitem conhecimento de modo rápido, e permitem também mais depressa alimentar o conhecimento e promover o debate. Parece, aliás, que em algumas disciplinas científicas eles passaram a constituir praticamente a única forma de comunicação escrita.

Em algumas disciplinas do campo das ciências sociais, e com toda a certeza na sociologia, os livros continuam, a par dos artigos, a ter um papel essencial. Já falámos disso. Mas essa importância não diz apenas respeito aos autores clássicos do século xix ou xx, continua a ser verdade agora.

 Ainda num recente trabalho encomendado pelo Economic and Social Research Council do Reino Unido, destinado a avaliar a produtividade nas ciências sociais com recurso à bibliometria (contagem de publicações e contagem de citações/factores de impacto), se reconheciam especificidades às ciências sociais que tornavam essa avaliação mais problemática. Entre outros factores de diferença, assinalava-se aí que as ciências sociais têm uma orientação nacional mais acentuada, que têm maior importância os públicos não científicos, e que, justamente, as revistas desempenham um papel menor a favor da publicação em livros.

Os sociólogos continuam a ser conhecidos

RMC — Pelos livros…

JFA — Sim, pelos livros. Como se sabe publicamos naturalmente artigos, mas os livros são essenciais. Tenho dificuldade em pensar num sociólogo de grande notoriedade que não a conquistasse por livros que escreveu, independentemente dos artigos. Improvisando um exercício rápido de memória, só consigo lembrar-me de um: do Granovetter, e do seu célebre artigo dos anos 70, “The strenght of weak ties”.

RMC — Mas é só uma questão de tradição, o facto de ser uma tradição nas ciências sociais, ou é de facto um problema no sentido de que os artigos fragmentam o conhecimento?

JFA — Os artigos não fragmentam o conhecimento, necessariamente. Tudo depende dos conteúdos a transmitir. Mas é evidente que exposições com interligações complexas e extensas exigem dimensões mais amplas de exposição que os artigos estão impossibilitados de dar. Insisto, para evitar equívocos, que estou a falar de sociologia. Lembro-me bem de que, muitos anos atrás, o António Brotas me ofereceu a tese de doutoramento de Estado que tinha feito em Paris com o De Broglie, em física teórica, que tinha onze páginas! Percebe-se que não faz sentido uniformizar critérios de avaliação de ciências diversas?

 Para dar um exemplo pessoal, eu estou a escrever aquilo que, provavelmente, virá a ser um livrinho com cento e tal páginas que tem por tema principal as desigualdades sociais. Como é que nasce? Nasce do convite para nos 100 anos da República fazer uma conferência no Porto de enquadramento dessa questão. Bom, preparei-me, estudei mais sobre a matéria, que me não era completamente estranha, e lá fiz a conferência. E depois apeteceu--me tentar ligar com outras dimensões, tentar desenvolver um pouco. Há evidentemente muito trabalho feito sobre o tema, mas pareceu-me que podia trazer alguma coisa, incluindo informação empírica, com um certo interesse, focando também conteúdos relacionados com os valores e as classes sociais. Passei, a partir de certa altura, a perceber que fazia mais sentido escrever um livro, em vez de, por exemplo, quatro artigos. E a vantagem será, eventualmente, de permitir um grau de integração, uma unidade, que os artigos não possibilitariam. Quando se lê um livro de sociologia com qualidade é fácil de perceber a sua razão de ser, a razão por que não é trocável por um artigo ou por um conjunto de artigos.

Esta questão da desvalorização dos livros tem também relevância no contexto das avaliações curriculares em provas académicas e em concursos. Pelo meu lado tenho sempre tomado posição contra o que chamo leitura óptica dos curricula, que consiste em avaliá-los a partir de uma classificação de revistas feita algures, e depois ordenar os candidatos em função do número de publicações em revistas A, B ou C. Além de se delegar cegamente essa avaliação, prescindindo do esforço de tentar autonomamente perceber a qualidade das publicações e dos seus autores, independentemente do sítio e da língua de publicação, também os livros são à partida desvalorizados como suporte da comunicação científica. É claro que a implicação internacional dos candidatos deve ter uma apreciação específica e importante. Mas entendo mal a constituição de júris de supostos especialistas para fazerem meras contagens que uma secretária, com as devidas instruções, poderia perfeitamente fazer e até automaticamente com recurso a um programa de computador…Parece haver, em diversos aspectos, uma tendência para seguir acriticamente procedimentos de adequação duvidosa, que me parece, com toda a franqueza, provinciana.

Não quero, em todo o caso, ser mal entendido. É indispensável estimular os jovens investigadores a publicar bons artigos em revistas internacionais prestigiadas e a publicar em inglês. Eu próprio procurei dar um contributo ajudando a fundar o Portuguese Journal of Social Science, que dirigi durante dez anos, e que tem obtido elogios e boas audiências além fronteiras. Mas nada disso deve desencorajar a que escrevam igualmente em português e noutras línguas, e a que, se for o caso, escrevam livros. Tem pouco sentido, por outro lado, a procura obsessiva de publicar nas tais revistas A, como de resto reconhecem experientes colegas nossos, americanos e ingleses.

RMC — Como se trata de uma entrevista para uma revista científica, que é a Análise Social, diga-me como é que vê a Análise Social, que teve um papel particularmente importante também no início do GIS? E como é que vê também a relação das revistas nacionais portuguesas de sociologia e de ciências sociais, de uma forma geral, em relação com essa pressão para publicar em revistas A? Como é que elas se podem depois posicionar nesse campo internacional?

JFA — Bom, eu não tenho mérito algum nem no nascimento — a revista já existia, de resto, quando entrei para o GIS — nem no desenvolvimento da Análise Social, e é bom que se diga isso de partida. A revista era a nossa expressão possível, era a nossa expressão normal nesses tempos antes de Abril. Tem uma história bem antiga e notável de permitir a comunicação com públicos mais vastos daquilo que se ia fazendo, e tem o indiscutível merecimento não apenas do seu pioneirismo, mas sobretudo da qualidade que foi mantendo. A Análise Social não era uma revista de sociologia, como sabe, mas foi marcada nesses inícios pela disciplina, vocação que depois se confirmou, até por força da influência do Adérito Sedas Nunes. Mas também desde o princípio esteve aberta a outros campos das ciências sociais, tradição que se consolidou com a própria institucionalização do ICS.

Entretanto foram surgindo diversas outras revistas da área, algumas com méritos evidentes. Elas resultam também de um esforço de racionalização em relação às estruturas científicas no país que se tem saudavelmente repercutido nas instituições de pesquisa, na formação, e na atitude dos investigadores e, como é evidente, na qualidade do que produzem e dos veículos dessa produção. Salvo um ou outro eventual resíduo, não há hoje instituições de pesquisa que recusem prestar contas da sua actividade, como não há hoje revistas científicas que pretendam escapar à avaliação por pares dos artigos que lhes são propostos. Alguns pesos mortos do passado morreram, no processo, de morte mais ou menos natural.

Para dar um exemplo da qualidade média acrescida das revistas científicas portuguesas, e ao mesmo tempo de outras formas eventualmente menos visíveis de internacionalização, posso referir a plataforma SciElo, criada no âmbito da FCT, e que promove a edição gratuita on-line, sempre que solicitado, e as revistas preencham certas condições que implicam periodicidade regular, peer reviewing, modos de constituição dos conselhos e outras, que fazem parte de normas internacionalmente reconhecidas. Estão aceites e acessíveis — com inúmeras consultas verificadas — revistas de todas as áreas e de países da América Central e do Sul, da Espanha e de Portugal. A iniciativa foi brasileira, e a presença portuguesa é muito ampla, permitindo assim confirmar, não apenas a consciência crescente de quais são os requisitos e os padrões de uma revista, como também o desejo de alcançar audiências tão amplas quanto possível. Ou seja, também neste esforço se reforça a internacionalização.

RMC — Para finalizar, uma pergunta sobre a conjuntura de crise económica que se vive actualmente. Considera que o sistema científico em Portugal pode, eventualmente, estar em risco? Poderá haver algum retrocesso na medida em que, apesar de tudo, é um sistema ainda frágil?

JFA — Acho que pode, sem dúvida. Em sistemas muito mais antigos, como o inglês, por exemplo, as pessoas estão assustadas. Os cortes orçamentais nas universidades não vêm de ontem nem de anteontem. As reclamações contra o fecho de departamentos inteiros de ciências sociais no Reino Unido, por exemplo, estão bem aí, solicitando solidariedades europeias. Parece um prolongamento do thatcherismo, que John Ziman denunciava como o prólogo, ou mesmo o advento, da “ciência pós-académica”, implicando a perda progressiva do ethos científico. Portanto, sim, a resposta é sim, pode certamente haver marcha atrás neste processo.

 Ainda uma vez, a nossa situação periférica não ajuda. Por outro lado, e como já disse, eu não creio que tenhamos uma verdadeira comunidade científica, porque é muito dispersa, porque é fragmentada, porque não tem visibilidade, porque não tem estratégias conjuntas nem poder suficiente. Houve tentativas de lhe dar coerência e eficácia, como sabe, mas não resultaram e, ou acabaram, ou entraram em latência. Também essa dificuldade organizativa limita consideravelmente a nossa capacidade de presença junto dos órgãos de decisão e de tentar influenciar os acontecimentos. Mas ainda assim temos muita gente empenhada na investigação e no ensino, criámos hábitos de trabalhar em conjunto, forjámos cumplicidades. Se juntarmos a isso as associações profissionais e científicas, capazes de exercer actividades de representação e de intervenção, já se vê que, apesar de tudo, o campo científico não está completamente desprovido de recursos para continuar a ser um interlocutor com alguma importância.

 As fragilidades revelam-se contudo com a maior evidência, sobretudo nos contextos especialmente desfavoráveis que são, e por algum tempo continuarão a ser, os nossos. E como lhe digo, se noutras sociedades, com mais forte tradição, com um passado mais sustentado e mais reconhecido, com mais recursos, essas dificuldades são manifestas e estão todos os dias a mostrar-se, por que é que nós escaparíamos? Não creio que escapemos se as coisas, globalmente, evoluírem mal.

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