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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.200 Lisboa  2011

 

Entrevista a Mário Murteira

por José Manuel Rolo

 

José Manuel Rolo nasceu em Ílhavo em 1941, estudou em Aveiro e no Porto, vindo a doutorar-se em economia no Instituto Superior de Economia da Universidade Técnica de Lisboa, onde exerceu funções de docência. Foi investigador do GIS/ICS, consultor de vários departamentos do Estado (DCP, GEP/MIT, JNICT), representante do Governo em numerosas reuniões internacionais e consultor dos Governos da Guiné-Bissau, Angola e Cabo Verde. Desempenhou diversos cargos relacionados com a Comissão Europeia e foi ainda investigador coordenador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (1998-2011).

Mário Murteira é um dos cada vez mais raros economistas portugueses de renome nacional e internacional que conviveram de perto com o aparecimento, a evolução e a aplicação das teorias e das políticas económicas que moldaram a economia e a sociedade portuguesas nos últimos cinquenta anos.

Sobretudo a partir dos anos 1960, Mário Murteira desenvolveu uma intensa actividade nos domínios da intervenção cívica, do ensino, da investigação e da gestão da coisa pública, tendo sido ministro de vários governos provisórios posteriores ao 25 de Abril de 1974.

É autor de uma vasta obra de investigação sobre a realidade portuguesa e internacional, em que se destacam os estudos sobre economia do trabalho, economia do conhecimento, cooperação internacional e globalização.

O seu último livro Portugal nas Transições — O Calendário Português desde 1950, constitui uma síntese poderosa das suas convicções sobre Portugal, a Europa e o Mundo.

 

Desde o fim da Segunda Guerra Mundial até à adesão à EFTA, o ensino, a investigação e as políticas públicas no domínio da economia foram fortemente influenciadas pelas concepções políticas de Salazar, que privilegiavam uma economia corporativa proteccionista assente no papel central do Estado na organização da vida económica que, num contexto de orçamento equilibrado e de moeda forte, condicionava e disciplinava a acção da iniciativa privada que se propunha contribuir para o “fomento” (era esta a palavra) da economia.

Depois da adesão à EFTA em 1960, e praticamente até 1974, a economia portuguesa abriu-se significativamente ao exterior com proveitos substanciais tanto no plano económico e social, os quais, contudo, se revelaram insuficientes para impedir o surto emigratório que quase despovoou o país, como no plano das ideias económicas que, com a adopção dos planos de fomento, se abriram ao estudo e à divulgação das teorias desenvolvimentistas em Portugal. São igualmente deste período os primeiros esforços  destinados a institucionalizar o ensino e a investigação nos domínios do chamado mainstream da economia.

Entre 1974 e 1986, a economia portuguesa navegou ao sabor das mais variadas concepções económicas, que incluíam os desenvolvimentistas “puros e duros”; os macroeconomistas, prioritariamente preocupados com a estabilidade das variáveis económicas, nomeadamente com o controlo da inflacção; os marxistas, que pretendiam implantar uma economia socialista; e os adeptos das teorias da dependência e do desenvolvimento autocentrado, independente dos grandes blocos económicos, que advogavam o proteccionismo e a auto-suficiência e apostavam em políticas de substituição de importações, em controlos do investimento directo estrangeiro e na cooperação com o chamado Terceiro Mundo.

A partir de 1986 e até aos nossos dias, acabaram por prevalecer os macroeconomistas, uns mais mainstreamers do que outros, que negociaram a adesão às Comunidades Europeias e que, desde então, geriram com divergências uma economia persistentemente frágil, apesar de fortemente subsidiada, em que o Estado continuou a ocupar um lugar central.

Desde Abril de 2011, no contexto de uma economia estagnada e manietada por impensáveis desequilíbrios internos e externos, parece ter chegado a vez das concepções teóricas e das políticas neoliberais se afirmarem. O seu programa de acção baseia-se nos “memorandos de entendimento” assinados em Maio pelos partidos do chamado “arco da governação” (CDS, PSD, e PS) e pela UE, o BCE e o FMI.

José Manuel Rolo (JMR) — No âmbito das comemorações dos cinquenta anos da criação do Gabinete de Investigações Sociais (que deu origem ao actual Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa) e da revista Análise Social, como recorda os seus fundadores e os seus próximos — as suas personalidades, os seus papéis sociais e os seus desígnios políticos ao serviço do desenvolvimento da sociedade portuguesa?

Mário Murteira (MM) — Remexendo os remotos fundos da minha memória, recordo o Gabinete de Estudos Corporativos, dirigido pelo então professor de direito corporativo, Pires Cardoso. De onde nasceria, anos mais tarde, o Gabinete de Investigações Sociais, que por seu turno, a certa altura, originou o actual ICS.

Mas, na realidade, quem dirigia o GEC, como depois o GIS, era o professor Adérito Sedas Nunes, que foi o único e autêntico fundador da “investigação social” no nosso país. Ambos os gabinetes nasceram associados ao ISCEF e, portanto, à Universidade Técnica de Lisboa.

O GEC trouxe a lume a Revista do Gabinete de Estudos Corporativos, enquanto a Análise Social, como seria de esperar, é filha do GIS.

Pela mesma altura, é também criado o Gabinete de Investigação Económica, que gerou a revista Análise Económica. Todavia, secou em pouco tempo, ao contrário da Análise Social, que se manteve até hoje.

Lembro as nossas reuniões, numa sala próxima da entrada do Instituto, junto a um pequeno jardim, onde nascera (nunca soube como e porquê), um pequeno lago onde nadavam peixinhos vermelhos… Isto, pelos finais dos anos 1950, princípio dos 60.

Por essa altura, foi também criado o Centro de Estudos Sociais e Corporativos, dirigido por Sedas Nunes, de que fui investigador-assistente. Em 1961, começou a funcionar o Instituto de Estudos Sociais, integrado no Plano de Formação Social e Corporativa, onde me estreei no ensino de “economia de trabalho”. Do IES, resultaria em 1972-1973, a criação do ISCTE, este já com formato universitário, e juntando às “ciências do trabalho” o estudo da empresa. Um “casamento” que, com o decorrer do tempo, se revelou muito feliz e fecundo…

Dos pioneiros, recordo o Mário Pinto, a Manuela Silva, o Raul da Silva Pereira, este mais com tarefas de secretariado, sem prejuízo de também seguir um projecto próprio de investigação.

Julgo que convém destacar dois aspectos nesta “crónica genética”. Em primeiro lugar, numa sociedade controlada pela censura e pela PIDE, a relativa liberdade concedida aos “estudos corporativos” convidava a estendê-los aos “estudos sociais”. Muito do que se publicou na revista do GEC (por exemplo, um artigo polémico de Francisco Pereira de Moura sobre “Estagnação ou crescimento da economia portuguesa?”) seria cortado pela censura noutras publicações. E a experiência dos chamados “planos de fomento”, iniciada em 1953, subtraiu também à censura muitos estudos económicos e sociais sobre Portugal. A palavra “fomento”, afinal, escondia a temática do “desenvolvimento”.

Em segundo lugar, essa relativa “liberdade” não se estendia à “sociologia”, propriamente dita, pois esta sugeria desde logo algo de subversivo. Coisas assustadoras como “proletariado”, “luta de classes”, “imperialismo”, eram invocadas pela disciplina. Que, afinal, com o tempo, passou a fazer figura tão inocente no panorama das (reais ou supostas) “ciências sociais”!

E, na verdade, não são “ciências” no mesmo sentido que a física, a biologia ou a astronomia. As “ciências” sociais são muito mais condicionadas pela ideologia, ou visão do mundo, própria do investigador. Que não tem geralmente grande consciência disso, e pensa sempre ter perfeita objectividade nas suas análises. E a ideologia dominante nas ciências sociais, não só em Portugal, modificou-se substancialmente nas últimas décadas.

A própria história do GIS, desde as origens do GEC, é bom exemplo disso. É ainda curioso registar, em época tão controlada e fechada sobre si própria, a suposta “inocência” da economia e dos “estudos sociais”, estes entendidos, afinal, como a análise da envolvente “corporativa” do sistema económico.

JMR — Tratando-se na sua maioria de economistas, por que é que o seu projecto não se circunscreveu ao estudo da economia? Por que é que, em contrapartida, preferiram adoptar uma visão multidisciplinar da sociedade?

MM — Tal como A. Sedas Nunes, não estávamos interessados na economia “pura e dura” (ao contrário de Pereira de Moura, que sempre procurou ser “apenas economista”), mas antes nos “aspectos” sociais. Com o tempo, sobretudo depois de 1974, esses aspectos foram sendo separados em diversas áreas disciplinares, como gavetas só acessíveis a certos eleitos. Processo que se acentuou, como é óbvio, com a criação do ISCTE.

No meu caso pessoal, esta evolução passou primeiro pela economia do trabalho, depois pela economia do desenvolvimento, e já nos anos 1990 pela economia global, no contexto do processo que entretanto iria mobilizar a minha maior atenção, a globalização do sistema da economia de mercado. E isto sempre procurando conhecer com melhores instrumentos analíticos a realidade complexa e movediça do capitalismo.

Seguindo “faróis” tão distintos como Marx, Schumpeter, Perroux e, mais recentemente, Immanuel Wallerstein, o analista da economia-mundo, e o pai do management, isto é, Peter Drucker.

E, ao mesmo tempo, tentando uma carreira pessoal de globe trotter, para observar localmente na América do Norte e do Sul, na China e na África, o que se passava no mundo. Nunca acreditei apenas no que se “diz”, ou no que se “escreve”, mas quanto possível, tentava “visitar os locais do crime”, para perceber com os meus próprios olhos o essencial dos argumentos da vida real. Não segui o exemplo do Hercule Poirot, detective imaginado por Agatha Christie, que apenas se baseava na dedução brilhante produzida pela sua extraordinária inteligência…

É nesse tempo que crio a revista Economia Global e Gestão, inicialmente em colaboração com um centro de investigação de Cantão, mas depois de colaboração também gradualmente mais globalizada. Essa publicação é editada pelo INDEG/ISCTE, e ainda sou o seu director no 16.º ano de publicação.

Isto é afinal reconhecer que neste percurso pessoal, se regista uma forte mudança na minha visão do mundo, reconhecendo também (claro!) que esse mundo mudou profundamente.

Mas, ao mesmo tempo, mantendo certas características nas minhas “lentes” pessoais: rejeitando uma visão redutora e simplista, capaz de ser traduzida em modelos matemáticos aparentemente rigorosos, mas de uma cândida e pudica miopia para aspectos mais complexos e controversos; alargando o conceito de “económico” de forma a captar movimentos essenciais da dinâmica histórica; procurando no horizonte da pesquisa outras regiões do sistema mundial para além do berço da economia política, isto é, olhando também para Leste e para o Sul.

JMR — O evoluir das concepções, das teorias e das políticas económicas adoptadas em Portugal nos últimos cinquenta anos descritas brevemente na introdução a esta entrevista merece-lhe algum comentário? Como interpreta a participação do GIS/ICS e da Análise Social nesta evolução?

MM — Ao contrário do que advogava um economista brasileiro, Celso Furtado, defensor do “pensamento próprio”, em Portugal nunca chegou a estruturar-se algo merecedor desse nome em matéria económica. Conheci o Celso pessoalmente em 1974, em Paris, onde se encontrava exilado no tempo da ditadura brasileira, para o convidar em nome de Vasco Gonçalves, então primeiro ministro, para vir a Portugal.

Teve reuniões com o Conselho da Revolução e fez conferências no ISEG. Foi então muito escutado, mas creio que cada vez menos entendido, à medida que o processo português se ia radicalizando.

Assim, não creio que Celso Furtado tenha conseguido semear em Portugal um “pensamento próprio” em matéria económica. Um seu distinto discípulo, Alfredo de Sousa, trágica e prematuramente falecido, fez doutoramento na Sorbonne com uma tese de raiz metodológica na econometria, sobre funções consumo em África. Não creio que Celso tenha tido grande influência na preparação dessa tese... Aliás, tão-pouco julgo que o GIS/ICS, e a própria Análise Social, tenham alguma vez sequer formulado esse objectivo do “pensamento próprio”.

Simplificando talvez demasiado, a Análise Social foi inicialmente, sobretudo, um instrumento crítico da sociedade portuguesa, para depois espelhar diferentes trajectórias disciplinares em obediência a diversos paradigmas da investigação social.

JMR — Tendo-se implantado em Portugal com significado depois de 1974 com o regresso de um grande número de economistas que escolheram doutorar-se nos EUA e no Reino Unido, como é que se explica que só agora é que as concepções liberais da economia tenham adquirido o acolhimento político que lhe está a ser concedido pelo actual governo? Será que a globalização e, mais recentemente, a crise financeira mundial e o fracasso da resposta à crise foram determinantes?

MM — O acolhimento do actual governo ao paradigma liberal, a meu ver, está relacionado com a tradicional ausência de “pensamento próprio”. Temos a tradição de seguir algum mainstream importado, e essa corrente dominante hoje vai mais na direcção da Direita, ou seja, da conservação da “ordem” (ou “desordem”) existente, do que na direcção contrária, ou seja, da transformação mais ou menos radical e profunda do status quo. Mas também é verdade, julgo eu, que na presente conjuntura ideológica no ocidente, em particular na Europa, não existe verdadeiramente um pensamento alternativo consistente e convincente. Os próprios comunistas que se consideram herdeiros espirituais de Marx, mas têm dificuldade em julgar e explicar a desastrosa experiência do “socialismo real”, segundo o modelo soviético, não conseguem mais, afinal, do que julgar o capitalismo, quando muito, de um ponto de vista ético. Embora, é certo, surjam iniciativas honestas e criativas (também em Portugal) no sentido de contribuírem para esse pensamento alternativo.

Claro que há muita matéria para indignação e protesto nas ruas, mas esse ruído de multidões descontentes não gerou ainda uma estratégia eficaz de conquista e gestão do poder político. Além do mais, constata-se a frustração de novas gerações que, muitas vezes ao contrário dos seus pais, não encontram o emprego esperado à saída da escola ou da universidade. A chamada classe política está por todo o lado desacreditada e, para o cidadão comum, é cúmplice das injustiças vigentes, mais do que meio eficaz da sua superação.

Entretanto, manda o poder do capitalismo financeiro, com académicos hipócritas ou simplesmente míopes a servirem-lhe “música de fundo”. Vão “assobiando e olhando para o lado” para não se comprometerem com os desempregados e sem-abrigo que gradualmente estão povoando as ruas das cidades.

Mas a situação é diferente nos chamados países “emergentes”, cada um com as suas características próprias, isto é, a China, a Índia, a Rússia e o Brasil. Assistimos também ao declínio da influência do ocidente, em particular dos EUA, no quadro da economia mundial.

No fim de contas, creio que esta alvorada do século xxi não promete futuros luminosos, como muitos sonhavam no século passado, mas sem dúvida promete mudanças radicais na “ordem” vigente para as próximas décadas. Mudanças que eu não viverei, ao contrário dos meus filhos e netos.

JMR — Os últimos governos socialistas apoiaram substancialmente o desenvolvimento das ciências sociais em Portugal, incluindo a economia. Contudo, um grande número de economistas portugueses da área da economia política depara com grandes dificuldades em candidatar os seus projectos de investigação a financiamentos públicos. Como explicar e resolver este problema?

MM — Julgo que o apoio governamental ao desenvolvimento das ciências sociais em Portugal tem pecado por excessiva subordinação ao chamado mainstream. Tem valor o que for publicado em revistas mais conformes aos paradigmas dominantes, ou que for gerado ou inspirado em universidades mais “respeitáveis” desse ponto de vista, limitando portanto o espaço reservado a outras correntes de pensamento. Eu próprio fui um dos subscritores de um apelo à FCT para abrir o leque das suas preferências.

De passagem, acho curioso que nos domínios da economia e da gestão, a Universidade Católica seja das mais ortodoxas, no sentido referido. Gostaria de saber que inspiração encontra essa universidade na chamada “doutrina social da igreja”. Também encontro grande preocupação de ortodoxia académica na chamada Universidade “Nova” de Lisboa.

Pelo contrário, tenho registado maior capacidade de inovar consistentemente nestas matérias em universidades fora de Lisboa, como as de Coimbra e Aveiro.

Claro que esta questão está relacionada com a problemática do “pensamento próprio” que abordei na pergunta anterior.

JMR —Ao contrário do que os especialistas dos mais diversos sectores da sociedade portuguesa, incluindo os economistas, chegaram a admitir, a adesão às “Comunidades Europeias” não contribuiu para quebrar os ciclos viciosos do atraso português. Mais recentemente, não conseguiu evitar que Portugal mergulhasse numa crise financeira à qual a economia não está em condições de responder adequadamente. Pode-se concluir daqui que a nossa integração na Europa constituiu um erro estratégico?

MM — Não creio que a decisão de aderir às Comunidades Europeias fosse um erro estratégico de Portugal. Quando essa decisão tem efeitos práticos, no final dos anos 1980, o país vinha de uma conjuntura de “estabilização”, segundo as receitas do FMI, e Cavaco Silva não faz a Primavera, mas surge quando ela é possível, isto é, já estava aberto o caminho para um rápido crescimento económico, como Portugal nunca conseguira desde 1974.

Mas foi uma grande oportunidade perdida de dar novo impulso ao desenvolvimento sustentado da economia portuguesa. Volumes consideráveis de ajuda externa a Portugal não foram geridos da melhor forma. Aos factores internos de uma crise estrutural que se foram agravando, juntou-se desde cerca de 2008 uma envolvente externa de grave crise sistémica. Ambas não foram ainda superadas e, infelizmente, não parece que caminhemos nesse sentido.

JMR — Como se posiciona em relação aos que entendem que Portugal deveria começar a preparar a saída do Euro?

MM — Não creio que faça sentido, nas condições actuais, Portugal sair do Euro por iniciativa própria. Para usar uma expressão popular, isso seria nas condições actuais, “depois da queda, coice”. Não estão asseguradas condições satisfatórias mínimas, políticas, sociais e económicas, para transitar da integração (mesmo numa Europa semi-falhada) para novas experiências de deriva periférica.

Mas isso pode acontecer sem ser por iniciativa própria, mas antes por força de uma eventual desagregação da UEM, coisa que não está fora do campo das possibilidades, tão patente é a fragilidade da construção europeia e a própria fraqueza estratégica do duo França-Alemanha.

JMR — Quais são, no seu entender, as causas profundas do chamado “atraso português”? No actual contexto da globalização e da crise qual é o papel da economia na decifração de tão enigmático como persistente problema?

MM — No meu último livro, tento decifrar com alguma profundidade as razões desse “atraso português”, sem pretender recuar até séculos passados e ao olhar amargurado de Antero de Quental no seu famoso ensaio sobre as “Causas da decadência dos povos peninsulares”. Mas não creio que esse atraso possa ser “explicado” em termos puramente económicos, mas antes numa perspectiva sociocultural mais abrangente.

Julgo que há duas ordens de factores a reter. Limito-me aqui a uma explicação telegráfica do que pretendo dizer.

Por um lado, regista-se a frequente incapacidade das organizações para tomarem decisões objectivamente fundamentadas em tempo útil. Não interessa “ter razão” tarde de mais. Somos muitas vezes “oportunistas”, mas não é tão frequente sermos “oportunos”. Daqui a necessidade de formularmos uma “teoria da in-decisão”, para compreender melhor as razões desta limitação.

Um caso flagrante e extremo do que refiro encontra-se na experiência tardia de descolonização em Portugal.

Por outro lado, temos aquilo que designo por “ideologia portuguesa”. Um complexo nacional de inferioridade, que nos conduz a valorizar o que se faz “lá fora” e desprezar o que se faz “cá dentro”. É revelador confrontar o nosso complexo de inferioridade com o complexo de superioridade dos nossos vizinhos ibéricos.

JMR — O ensino e a investigação em economia desenvolveram-se significativamente nos últimos vinte anos. Tendo participado activamente nesses processos, como encara os desenvolvimentos futuros da disciplina? Acha que os paradigmas disponíveis conseguem explicar as novas complexidades derivadas da globalização, da liberalização dos mercados e do aprofundamento das interdependências?

MM — Julgo que há algumas grandes temáticas no mundo actual que desafiam a investigação social, e não apenas económica. Não vejo grande fecundidade analítica da economia pura, mas antes na combinação de diferentes técnicas analíticas, entre elas, a economia, a sociologia e a história, como aliás já propunha Schumpeter.

Eis algumas das temáticas que refiro: as múltiplas dimensões do processo de globalização do capitalismo; o processo de produção, acumulação e difusão do conhecimento, incluindo o papel das TIC (tecnologias da informação e comunicação); os conceitos de “desenvolvimento humano” em contexto de democratização cultural.

Mas sei que a economia “pura e dura” continuará a produzir receitas para a gestão virtuosa das economias (ditas) de mercado.

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