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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.200 Lisboa  2011

 

Entrevista a Miriam Halpern Pereira

por José Vicente Serrão

 

José Vicente Serrão é doutorado em história moderna e contemporânea pelo ISCTE-IUL e Professor Associado deste instituto. Especialista na época moderna (com ensino e investigação nas áreas de economia, política e pensamento económico, impérios e colonialismo, diplomacia e política externa, sociedade rural, urbanismo e demografia), trabalha actualmente sobre direitos de propriedade, territorialização e conflito nos espaços imperiais.

Miriam Halpern Pereira (n. 1937), Catedrática Emérita do ISCTE-IUL, é uma figura de referência maior da historiografia portuguesa das últimas décadas. Licenciada em história e filosofia pela Faculdade de Letras de Lisboa (1962) e doutorada em história pela Sorbonne (1969), iniciou a sua carreira académica profissional em França, como investigadora do CNRS e professora da Universidade de Vincennes. Regressando a Portugal em 1972, tornou-se professora do ISCTE, onde progressivamente formou uma equipa de ensino e investigação em história moderna e contemporânea, congregada em torno do Centro de Estudos de História Contemporânea e do Departamento de História. Miriam Halpern Pereira foi igualmente fundadora (e directora até 2008) da revista Ler História, uma das mais importantes revistas portuguesas da especialidade. Entre 2001 e 2004 foi directora-geral dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo, cargo que representou o culminar de uma dedicação de longa data à problemática das fontes e dos arquivos em Portugal, da qual já havia sobressaído a direcção de um Roteiro das Fontes para a História Contemporânea (1984-1985).

A sua vasta obra tem incidido principalmente na discussão dos problemas de desenvolvimento económico, mudança política e transformações sociais, associados à formação do Portugal contemporâneo nos séculos xix e xx, com estudos sobre a emigração, os níveis de vida, os padrões de consumo, a economia agrícola, a industrialização, o comércio externo, o problema dos mercados, as questões financeiras, as lutas liberais, as políticas económicas, o papel das instituições ou os modelos de governança, entre outros. Dos seus muitos artigos e livros, refiram-se apenas aqui o último, O Gosto pela História (2010), onde reuniu vários estudos recentes sobre aqueles temas e também sobre teoria e metodologia da História, assim como o seu primeiro livro, intitulado Livre-câmbio e Desenvolvimento Económico em Portugal (1971), uma obra que desde logo marcou o panorama historiográfico nacional, tanto pela sua novidade interpretativa sobre a transição para o Portugal contemporâneo como pelos debates a que deu origem.

 

José Vicente Serrão (JVS) — Deu como título ao seu último livro O Gosto pela História (Lisboa, ICS, 2010), o que parece ser o testemunho mais eloquente do balanço próprio que faz de 50 anos de carreira como historiadora. Como é que nasceu esse gosto pela História?

Miriam Halpern Pereira (MHP) — Nasceu na realidade muito cedo, aí no 2.º ciclo do antigo Liceu. Entre os 13 e os 15 anos tive uma excelente professora de história, já contei esta história muitas vezes, a M. Emília Cordeiro Ferreira, que era uma pessoa notável de todos os pontos de vista, como professora e como cidadã. Eu até aí não gostava nada de história. Tinha tido um professor tradicional na 4.ª classe, que ensinava aquela história muito aborrecida, cronológica e estritamente política, contrastando com o ensino da escola americana onde iniciara a minha escolarização (da qual me ficou o único livro da escola primária que guardei até hoje!). Cordeiro Ferreira realmente criou-me o interesse pela história. Mais tarde a M. Lucília Estanco Louro viria a desenvolvê-lo. De qualquer maneira, eu também me interessei muito por biologia, tendo estado hesitante em seguir a fileira científica, e no último ciclo do liceu por filosofia. Li muita coisa, tudo menos o manual do Aresta, foi até nessa altura que li o primeiro livro de Marx, As Teses de Feuerbach, emprestado pelo Augusto Abelaira, atitude muito corajosa na época para um professor do liceu. Quando entrei para a faculdade, não estava nada definido o que é que eu preferia, se a filosofia, se a história. Nesse aspecto, a faculdade foi particularmente frustrante. Se, no conjunto, o nível de ensino era muito mau, o da filosofia era certamente ainda pior do que o da história (nos anos seguintes alterou-se um pouco, com a entrada de novos elementos) e foi assim que eu acabei por enveredar pela história.

JVS — Diz-se muitas vezes que a história que um historiador faz é determinada pela sua experiência de vida, pelas suas vivências culturais, pelo seu estatuto social, pelas suas convicções políticas, cívicas ou ideológicas. No seu caso pessoal, diria que é isso que principalmente explica as suas escolhas de trabalho, ou elas foram determinadas por outro tipo de circunstâncias?

MHP — É difícil de dizer. Eu a posteriori construí uma explicação que me parece lógica, mas que é capaz de ser um pouco uma construção, porque se tivesse tido outros professores melhores em filosofia talvez me tivesse dedicado à reflexão filosófica, de que eu gostava realmente muito. Portanto, em certa medida, deveu-se a um acaso. Mas eu acho que esse acaso realmente acabou, no contexto pessoal, por ter uma função de integração. Eu tinha um problema de identidade nacional, devido às minhas origens familiares. No fundo eu tenho uma origem diversificada em termos europeus, tenho componentes culturais diversas na minha formação e tinha optado por ser portuguesa. Foi uma opção racional, porque tinha outras opções, inclusivamente a de mudar de país. Foi uma escolha que eu fiz claramente, entre os 15 e os 17 anos, e o estudo da história deu-me um passado colectivo e foi uma forma de integração indirecta. Recordo também uma professora de literatura extraordinária que tive no final do liceu que nos falava da geração de 70, de Fernando Pessoa e Mário de Sá Carneiro, ousando afrontar o reitor. Intrigavam-me muito as causas do atraso de Portugal, os problemas levantados pela geração de 70, etc. É um tema que me interessou desde muito cedo.

JVS — Mas alguma vez sentiu, por exemplo, que fez história para fazer política, ou que estava a fazer história para responder a preocupações cívicas, de cidadania, suas ou da sua geração?

MHP — É também uma questão que é difícil, porque é sempre uma interpretação. Eu não me dei conta que isso estivesse a acontecer, não fiz história para responder directamente a preocupações políticas, que de facto tinha, mas já me foi observado numas provas académicas que o meu interesse pelas revoluções liberais depois do 25 de Abril tinha muito a ver com a situação política. Eu não me dei conta, não surgiu assim. Surgiu até muito ligado a um certo vazio que havia nesse domínio científico e à necessidade de falar dessa época aos meus alunos. Para mim, esse interesse esteve muito mais ligado ao ensino, e por isso lhe dediquei até um livro, que era também uma antologia e que estava escrito um pouco como um manual, quase sem notas e com pouca ou quase nenhuma bibliografia. Na realidade eu até estava um tanto em contra-ciclo. Muitos investigadores interessaram-se então pelo movimento operário, eu interessei-me pelas revoluções liberais. Fui das primeiras historiadoras a mostrar a importância das revoluções liberais, questão na época polémica, hoje finalmente já geralmente admitida. Falta dedicar-lhe um feriado, mas a conjuntura é adversa, até se fala em suprimir o feriado do 5 de Outubro, o que se me afigura muito grave. O simbolismo desta data é muito forte. Constituiu durante décadas uma comemoração da resistência democrática ao Estado Novo. Porque não suprimir o 1.º de Dezembro, de invenção recente? A data de 1640 é distante, a sua celebração está desactualizada em tempo de paz com a Espanha e de integração na União Europeia. Voltando à sua pergunta, admito que tenha havido alguma influência política de forma indirecta nos meus trabalhos de investigação e isso não me parece em caso algum um mal, desde que não se deforme a realidade histórica para fins políticos. Acho que não me aconteceu nunca tal coisa.

JVS — Há uma pergunta que sempre tive vontade de lhe fazer: dos muitos livros e trabalhos que publicou, sobre temas muito diversos, qual é que gostou mais de fazer ou de qual é que guarda uma melhor memória?

MHP — Não sei… eu gosto sempre muito daquilo que estou a fazer em determinado momento. Aliás, só me interesso por aquilo que estou a fazer nesse momento. Isso é que é realmente apaixonante. Depois, quando acabo, está resolvido o problema que eu procurei esclarecer e distancio-me um bocado. Passados uns anos posso voltar, mas com novas interrogações. Aconteceu-me no decorrer do meu estudo recente sobre “instituições e desenvolvimento económico” reler a minha tese de licenciatura sobre a crise de 1876, e até verificar que havia informação que podia ser interessante nesse novo contexto. Foi assim que decidi depositar este trabalho na Biblioteca Nacional e nas principais bibliotecas universitárias. Até então só existia numa estante da minha arrecadação, pois me ausentei sem discutir a tese que tinha sido aceite na Faculdade de Letras. Voltando à sua pergunta, não tenho nenhuma preferência especial por nenhum trabalho que tenha feito. Acho que, de certo modo, todos deixaram de me interessar a partir do momento em que encontrei resposta para as minhas interrogações. Mas não significa que fico indiferente. E defendo com vigor as minhas interpretações, quando questionadas.

JVS — Em que é que está a trabalhar actualmente? Qual o tema que a ocupa neste momento?

MHP — Eu normalmente só gosto de falar dos trabalhos que acabei. Tenho sempre receio que não acabe um trabalho que comecei, seja ele qual for, sem grande fundamento para isso, aliás. Será que vai correr bem? Claro que não é a mesma ânsia que eu tinha antigamente mas, de qualquer maneira, pode sempre correr mal, pode não dar, posso não ficar satisfeita com o resultado da investigação, por um motivo ou por outro. Nestes últimos dois anos, além de dois livros publicados (Mouzinho da Silveira, reedição que me deu bastante trabalho, e O Gosto pela História), e do trabalho de síntese já mencionado sobre “instituições”, estudei três temas republicanos, um sobre a República e a questão social, outro sobre a República e o voto, e outro ainda sobre a política da emigração nessa época. Acabei recentemente um pequeno trabalho para apresentar em São Paulo na próxima semana, relacionado também com a emigração, “A emergência do conceito de emigrante na política de emigração”. Até agora não havia um estudo sobre a categoria jurídica de emigrante e achei curioso descobrir a sua articulação com a cronologia e a evolução sociológica do fenómeno em análise. Podia parecer um regresso a um tema estudado, mas não foi, pois estudei quase toda a legislação sobre a emigração de oitocentos e das primeiras décadas do século passado com uma perspectiva completamente diferente da anterior, sobre a política da emigração em si mesma. Agora acabei-o, já respondi à minha pergunta, à pergunta que eu me tinha colocado no princípio, e o assunto está mais ou menos encerrado para mim. Também preparei um livro, acabado de publicar agora no Brasil, com vários estudos meus. O que eu vou fazer a seguir? Não lhe vou dizer, porque, como já expliquei, tenho esse hábito, só falo das coisas quando as concluo. A minha agenda de trabalho para o próximo ano é um desafio com o qual estou muito entusiasmada. Vamos ver o que é que dá.

JVS — Voltemos então ao passado. Há pouco referiu algumas pessoas que tiveram influência na sua formação inicial. Penso que também poderia ter interesse para os leitores desta revista saber quais foram os historiadores, ou outros intelectuais, portugueses ou estrangeiros, que mais a marcaram ao longo da sua carreira académica, fosse pela positiva ou pela negativa.

MHP —Portugueses primeiro. Eu comecei por estudar em Portugal e tive um contacto mais directo (então apenas através dos livros) com autores como o Armando Castro, que foi muito importante no meu interesse pelo século xix. Um livrinho que ele publicou na Cosmos, com todos os limites que tinha, era das poucas coisas que havia. Mais tarde apareceu um livro do Magalhães Godinho, Prix et monnaies. Os livros do Godinho sobre os Descobrimentos também foram importantes, mas como eu não me interessei por essa época, só têm relevância no conjunto da minha formação metodológica, de crítica das fontes e da manipulação e propaganda política colonialista. Depois, a um nível mais geral, o António José Saraiva, com os seus livros sobre a cultura portuguesa do século xix ou o livro sobre o Herculano. O livro do Barradas de Carvalho sobre o Herculano menos, porque só o conheci mais tarde. Também os livros do Joel Serrão sobre o século xix, aqueles primeiros livros, Temas Oitocentistas, que também surgiram nessa altura, nos finais dos anos 50. Há ainda um livro, hoje muito esquecido mas que teve a sua importância, uma História Contemporânea do Povo Português, em dois volumes, de Flausino Torres. E parece-me que não estou a esquecer ninguém muito relevante. A paisagem intelectual era tão pobre neste domínio…

Depois, como sabe, eu estive vários anos em Paris, e há todo um universo que se abre. É extraordinário o atraso que havia na altura em Portugal, o que não se conhecia de livros que já eram clássicos, e que já estavam até em certa medida a ficar desactualizados, mas que para mim foram extremamente importantes. Por exemplo, a obra do Labrousse, da qual nem mesmo uma síntese traduzida em espanhol tinha chegado a Portugal. Depois, claro, o meu orientador de tese, Pierre Vilar, que foi realmente muito importante na abertura de novos horizontes. Assim como Braudel, que eu também não conhecia. Já se falava dele um pouco em Portugal, mas sobretudo não se conheciam os seus livros fundamentais, conheciam-se mais os livros de divulgação e não os grandes livros básicos desse e doutros autores. Frequentei também na EHESS um seminário de sociologia, de C. Bettelheim, e um de matemática para as ciências sociais, do professor e matemático Barbut, muito útil e interessante.

JVS — Foram então sobretudo essas grandes figuras da historiografia francesa aquelas que tiveram uma maior influência?

MHP — Numa primeira fase sim. Mas também a obra de vários economistas, desde os clássicos Aftalion, Marx ou Schumpeter, até Samir Amin, Imanuel Wallerstein, entre outros. Para cada tema que fui estudando ao longo da vida fui sempre encontrando novos autores, como Perrot, Agulhon, Rosanvallon. De língua inglesa também — Sewell, Thompson, Sabel e Zeitlin, Esping-Andersen, tantos outros que estão sempre claramente explicitados nos meus diversos trabalhos. De qualquer maneira, mesmo antes de sair de Lisboa, eu conhecia também, e tinha até mais contacto (sempre intelectual e não pessoal) com a historiografia inglesa, através do Instituto Britânico de Lisboa que tinha uma bela biblioteca nessa altura. Até fiquei admirada por uma série de autores ingleses não serem conhecidos nem estarem traduzidos em França. Quando me interessei, por exemplo, por um autor como E. P. Thompson, muito mais tarde, fiquei admiradíssima de verificar que a tradução francesa era muito tardia, o mesmo sucedendo com Hobsbawm, creio que mais conhecido em Portugal do que em França até aos anos 1980. Nessa época, nos anos 60, a cultura francesa era muito fechada e muito pouco europeia. Tinha também os seus próprios limites, como a inglesa. Realmente cada país vivia muito fechado sobre a sua própria cultura, sobre os seus próprios trabalhos científicos. Se calhar um dos primeiros autores a ter uma perspectiva europeia da história e a contribuir muito nesse sentido, terá sido mesmo o Hobsbawm, que muitas vezes é desprezado por ser generalista. Há quem só refira os livros que ele escreveu na primeira fase, ligados a problemas sociais, a revoltas, mas eu acho que os outros livros dele, no fundo virados para um grande público, foram extremamente importantes para criar uma ideia de história europeia. Não vejo nenhum outro autor que tenha tido tanta importância nesse domínio como ele, o que talvez se explique pela sua própria experiência familiar.

JVS — Esse género de abordagens mais macro — as grandes narrativas, as grandes explicações — é o que corresponde ao tipo de história que mais a seduz?

MHP — Eu acho que é preciso ser capaz de integrar aquele pequeno universo que estamos a estudar, seja um país seja um determinado problema da história desse país, numa visão sempre mais ampla. Senão, esse problema que estamos a estudar não tem nenhum interesse. Ele nunca existiu isolado, é uma construção artificial. Eu, quanto mais estudo a história dos séculos xix e xx, mais me estou a dar conta de que há uma sincronia frequente nas medidas que se tomam em vários países, nomeadamente no Sul da Europa. E há uma evolução conjunta. Há uma Europa há muito tempo. A relação entre os países é muito intensa, como se sabe, e portanto há uma história interligada, não de caminhos paralelos que não se encontram. A história de Portugal não se pode compreender, no mínimo, sem a história de Espanha que é aqui ao lado. Nós normalmente fazemo-la voltados de costas. Temos o Atlântico, para o qual nos virámos. Estamos sempre a olhar para o mar e não olhamos para o continente. Fazemos muito mal.

JVS — Na linha da pergunta que lhe fiz atrás, sobre os autores que mais a influenciaram, gostava de lhe perguntar também se alguma vez sentiu que fazia parte de uma “escola”, uma escola historiográfica. Alguma vez teve esse sentimento de pertença, nem que seja olhando hoje retrospectivamente?

MHP — Sim, sim, absolutamente. Eu sempre me senti integrada numa linha historiográfica muito ampla que rejeita a compartimentação do real em fatias isoladas, por exemplo estudando só a economia, ou só o social, o cultural ou o político. Portanto, pertenço sem dúvida nenhuma àquele tipo de historiador que vive numa ansiedade muito grande porque acha sempre que não tem uma visão de conjunto suficiente ou que provavelmente não articulou ainda o tema que estudou numa história mais geral de uma forma satisfatória. Não vou falar de história total. Isso é um mito, como já sabemos. Mas é um mito que, apesar de tudo, é estimulante, se calhar como todas as construções ideais, que têm a função de nos propor um objectivo difícil de alcançar mas do qual temos de tentar aproximar-nos. E sou contra uma história estritamente quantitativa, mas não rejeito o quantitativo. O real é tão complexo que não podemos isolar nenhuma das abordagens disponíveis.

JVS — Com uma carreira de 50 anos, mas sempre muito atenta ao que se faz por esse mundo fora, que balanço é que faz das principais mudanças ou dos momentos mais marcantes da historiografia internacional ao longo de todo este período?

MHP — Bom, é evidente que uma das grandes crises da historiografia está ligada à chamada “crise do marxismo”. É evidente que foi um momento de incerteza para muitos historiadores, a inexistência de um modelo (se é que havia um só modelo). Mas essa crise foi muito produtiva, a meu ver, porque a historiografia, ou pelo menos uma parte da historiografia que estava dependente desse modelo, encontrou outros caminhos. Eu acho que realmente hoje essa crise está ultrapassada e muito bem. Se calhar, já ninguém se lembra dela e já se pode olhar para a obra de Marx ou de historiadores marxistas de uma forma mais independente, mais autónoma, sem aceitar tudo de uma forma “religiosa”, mas também sem rejeitar tudo de uma forma igualmente intransigente. Portanto, acho que hoje há até uma visão mais crítica e mais rica da História.

JVS — Num certo sentido, através daquilo a que agora se chama o “global turn” e o “material return”, parece mesmo assistir-se hoje a um retorno a algumas componentes da historiografia dos anos 50, 60 ou 70 (não necessariamente a historiografia marxista, ou só essa), que está a reabilitar aquela abordagem mais global e mais material da história que tinha sido muito posta em causa pelas perspectivas pós-modernas e pós-estruturalistas. Como é que interpreta estas tendências?

MHP — Sim, há uma linha culturalista que talvez tenha chegado a um ponto extremo e que hoje parece estar a ser enriquecida por uma abordagem mais complexa.

JVS — Olhando agora um pouco para o caso português, gostaria de saber a sua opinião sobre as relações entre as sucessivas gerações de historiadores que tem encontrado.

MHP — Vamos deixar de lado evidentemente a questão das relações pessoais, porque isso para mim não tem qualquer interesse, a não ser um interesse afectivo e pessoal. O que me está a perguntar, portanto, é se tem havido, em termos científicos, uma transmissão cultural que foi útil?

JVS — Sim, e também se acha que a evolução se tem pautado mais por rupturas entre as diferentes gerações, ou se, pelo contrário, tem prevalecido uma linha de continuidade. Ou mesmo se, do seu ponto de vista, o problema das transições geracionais nem sequer é muito significativo na historiografia portuguesa…

MHP — Pensando na actualidade, vejo por vezes que há nalguns jovens historiadores uma vontade de criarem falsas rupturas. Pessoalmente, nos temas que estudei sempre me interessou ver as origens, quem é que tinha trabalhado o tema antes, como o tinha efectuado, fazer um ponto da situação e definir-me em relação ao que estava feito, muitas vezes em oposição ou com uma orientação diferente. Acho muito interessante fazer o ponto da situação, mostrar de onde se partiu e acentuar, se é o caso, a ruptura ou a inovação de cada nova investigação. Não reconhecer que se está a contribuir para uma linha de desenvolvimento que já existia anteriormente parece-me empobrecedor, inclusivamente para o conhecimento da própria historiografia. Essa atitude existe, felizmente só numa minoria de jovens investigadores, por vezes só por ignorância... O papel dos seus orientadores é pois fundamental. Podem e devem ter uma posição activa em relação às boas práticas científicas, ou seja, às normas deontológicas. Isso seria importante para a historiografia e para o progresso científico.

JVS — Numa perspectiva mais geral, como é que vê a história e a historiografia hoje, em Portugal?

MHP — Vejo de uma maneira muito positiva. Acho que houve realmente um alargamento da comunidade científica. Pela primeira vez, pode-se falar de uma comunidade científica. Ainda que ela seja pequena quando comparada com a de outros países, já existe uma comunidade científica, o que era uma coisa que não existia antigamente. Lembro-me de sentir muito a falta de diálogo quando comecei a trabalhar e quando voltei para Portugal em 1973. Quando entrei no ISCTE, senti a necessidade de constituir um centro de investigação — o Centro de Estudos de História Contemporânea Portuguesa, como então se chamava, foi um dos primeiros centros novos neste domínio. Foi difícil, não existiam as condições institucionais, nem financeiras de hoje, mas apesar disso singrou bem e teve um papel impulsionador. Hoje os investigadores que começam a sua carreira encontram sempre parceiros com quem discutir o assunto que estão a estudar e isso é extremamente estimulante e é importante para o progresso científico. Houve não só um alargamento temático, mas também uma subida qualitativa do nível médio. Indiscutivelmente. Vejo de uma maneira muito positiva o desenvolvimento da historiografia em Portugal nos últimos anos. É notável o que se progrediu em tão pouco tempo. As publicações de livros e de revistas especializadas espelham esse ritmo da investigação, além das revistas institucionais já existentes, que foram renovadas, surgiram várias revistas novas, como a nossa Ler História, tornando mais fácil a difusão dos trabalhos recentes, particularmente importante para jovens historiadores/as. A diversidade de editoras e a má difusão nas livrarias de pequenas editoras institucionais e privadas é que constitui hoje um grande problema. Vale-nos a net. É pena, porque eu gosto de ir às livrarias, onde, aqui como nos outros países, há cada vez mais só best-sellers, em geral de fraca qualidade.

JVS — E, olhando para o futuro, qual é que acha que deveria ser a “agenda” da historiografia portuguesa? Quais são os principais desafios, problemas e oportunidades que ela enfrenta? Enfim, por onde é que poderia ou deveria evoluir?

MHP — Em termos muito genéricos, eu acho que devia enveredar mais por uma história comparada, integrada na Península Ibérica em primeiro lugar, e, em segundo, integrada na Europa. Essa dimensão comparada é fundamental, descobrem-se aspectos muito inovadores e muito enriquecedores. Além disso reconstitui-se a realidade como ela foi. A realidade teve sempre uma dimensão ibérica e europeia. E, claro, também atlântica, uma vertente que já está mais integrada na historiografia portuguesa, embora de uma forma por vezes demasiado nacionalista. Quando se estuda o império, por exemplo, estuda-se apenas o império português, não se estuda como é que evoluíram comparativamente outros impérios, pelo menos o império espanhol. Eu sei que já há historiadores que estão a trabalhar com essa dimensão multinacional e estão a fazer um trabalho muito interessante.

JVS — A própria questão da internacionalização da historiografia portuguesa, que na comunidade se discute muitas vezes, parece-lhe que está a evoluir da maneira certa, ou que há sequer possibilidades de uma verdadeira internacionalização desta historiografia, sendo Portugal um pequeno país?

MHP — Eu acho que a única maneira de fazer essa internacionalização a sério é pela história comparada, porque a história de Portugal isoladamente interessa pouco ao meio científico. Quer dizer, é fácil a história da França ou da Inglaterra ou da Alemanha interessar a qualquer cidadão japonês ou a um cidadão indiano. É mais difícil interessá-lo pela história de Portugal, apesar das ligações distantes existentes noutros tempos, e de que poucos sabem... A geopolítica tem uma enorme influência nas ciências sociais. De qualquer maneira, é evidente que um pequeno país só se pode tornar interessante com uma história integrada, comparada, que mostre ao mesmo tempo a sua especificidade, onde ela existe, e também o que ela tem de comum.

JVS — Passando agora para um plano mais alargado, em que é que a história se distingue, e em que é que se aproxima, das outras ciências sociais?

MHP — A questão do tempo é fundamental, como é evidente. É o tempo que distingue a história de outras ciências sociais que se situam no presente. Claro que sabemos que essa é uma fronteira que nos últimos anos tendeu a esbater-se, na medida em que nas outras ciências sociais, por exemplo na antropologia e na sociologia, também houve um interesse pelo passado, pelas origens. Há antropólogos e sociólogos que se tornaram historiadores e assimilaram por completo a percepção de que o tempo é fundamental, de que as categorias e os conceitos económicos, sociais, políticas não são abstractos e intemporais. Mas, em geral, a perspectiva não é a mesma. Nas outras ciências sociais visa-se a definição de leis gerais intemporais. Ora, a grande diferença entre a sociedade e a natureza física é o tempo social.

JVS — E, por falar em ciências sociais, como é que vê a sua evolução em Portugal no último meio século?

MHP — Também houve um progresso extraordinário. Aliás, para começar, a maior parte delas não existia praticamente. De um modo geral, a história é a ciência social mais antiga em todo o mundo, e em Portugal era praticamente aquela que era tolerada e que até era favorecida, num certo sentido, pelo Estado Novo. Como se sabe, a sociologia era proibida, a própria palavra era proibida. Daí a origem do nome deste instituto, “ISCTE” (Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa), porque não se podia falar de sociologia mesmo quando ela existia. Portanto, havia as ciências do trabalho. A antropologia tinha-se desenvolvido no século xix. Tivemos uma antropologia física e mesmo uma antropologia humana, talvez mais etnologia, que apareceu ao mesmo tempo que nos outros países, e ligada à expansão colonial. Tivemos os nossos pioneiros mas depois houve um corte enorme. Tirando dois ou três nomes, de facto houve um definhamento da antropologia. A psicologia era um desastre. Enfim, existia, mas as pessoas que se dedicavam a ela eram pessoas que não tinham qualidades intelectuais, pura e simplesmente, tirando uma excepção ou outra, claro, ligada mais à medicina e outros trabalhos. Mas isso não é bem a psicologia, é mais a psiquiatria. A geografia realmente foi privilegiada. A geografia humana foi tolerada e essa teve maior continuidade no seu desenvolvimento. Mas, de um modo geral, é evidente que as ciências sociais se implantaram de uma forma mais definida, mais estável, e tiveram um enorme desenvolvimento nos últimos 50 anos em Portugal. Também aí, como é evidente, se constituíram comunidades científicas consideráveis.

JVS — Como é que classificaria o papel desempenhado pela revista Análise Social, e também pelo Instituto de Ciências Sociais, neste processo de afirmação das ciências sociais em Portugal?

MHP — Bom, antes de haver o ICS houve o GIS, portanto a Análise Social era uma revista do GIS e o GIS era uma instituição ligada ao Instituto Superior de Economia. Foi criado por um grupo de economistas porque não havia sociólogos. O Adérito Sedas Nunes é um self-made sociólogo, vem da economia. Outros ficaram ligados à economia, como o Mário Murteira. O GIS, depois de ter estado ligado ao ISEF, como se chamava nessa altura, criou uma certa autonomia mas acabou também por ter uma existência muito ligada ao ISCTE. Não do ponto de vista institucional, porque se manteve sempre autónomo, embora o Adérito Sedas Nunes tenha tido um projecto de integração do GIS no ISCTE, que estava pronto quando veio o 25 de Abril. É claro, com a evolução subsequente pôs de lado esse projecto, e com razão. Mas uma grande parte dos investigadores do então GIS, e mesmo no princípio do próprio ICS, eram professores do ISCTE, que foi um grande suporte financeiro no desenvolvimento do GIS e do ICS. Não havia investigadores a pleno tempo, a carreira de investigador é relativamente recente. Portanto, no princípio houve uma relação entre o ISCTE, o GIS e o ICS, que agora ainda existe, mas em termos muito diferentes e de muito maior autonomia. Até porque o ISCTE constituiu entretanto os seus próprios centros de investigação, com uma importância indiscutível.

Mas falou-me da Análise Social. A Análise Social é uma revista que teve, e continua a ter, um papel extremamente importante na difusão dos conhecimentos científicos nas diferentes áreas da história e das ciências sociais. Foi, aliás, a revista onde eu publiquei o primeiro artigo que escrevi, sobre demografia, que era o meu primeiro capítulo da tese. Não tinha mais nada escrito quando o Sedas apareceu em Paris e se lembrou de me convidar para colaborar na Análise Social. É uma revista que soube acompanhar a evolução dos tempos e que hoje, para grande felicidade dos investigadores, está digitalizada. Tem, é claro, um suporte financeiro que lhe permite sofrer o desgaste da digitalização, o qual pode ser um problema para as revistas. Mas dá muito jeito que esteja digitalizada e é muito importante para a difusão dos trabalhos nela publicados.

JVS — Qual é o papel que atribui aos factores institucionais ou ao enquadramento institucional na explicação do modo como as ciências sociais evoluíram em Portugal nas últimas décadas?

MHP — Fundamental, e nunca é demais salientar a importância de um Estado democrático, onde existe liberdade de expressão. Mas não teria sido suficiente. Foi fundamental a política de apoio à ciência, em particular às ciências sociais, das últimas décadas, por parte do Estado e também de instituições privadas, entre as quais se destaca a Fundação Gulbenkian. Veio ao encontro do meio académico onde se tinham vindo a constituir vários centros de investigação novos. Os programas de financiamento plurianual são fundamentais, juntaram-se ao modelo pré-existente de projectos individuais e colectivos de investigação. Sublinhe-se o incremento dado à qualificação académica, mediante bolsas de diferentes níveis, em particular de mestrado e doutoramento. Foram determinantes para o crescimento da comunidade científica. Hoje, o estrato mais jovem desta comunidade confronta-se porém com a política de contenção do corpo académico dos últimos anos e o consequente envelhecimento do corpo académico. Um problema muito grave, que pode anular os benefícios da política de desenvolvimento científico na área das ciências sociais, pela qual o mundo empresarial pouco se interessa em tempos normais e ainda menos em época de crise. A implementação da internacionalização tem sido  outra vertente importante da política científica. Mas não posso concordar com a desvalorização da produção em língua portuguesa e em publicações portuguesas, nem com os juris só de investigadores estrangeiros, que a tem acompanhado. Isso parece-me uma forma de matar a componente científica da cultura portuguesa, uma espécie de harakiri cultural!

JVS — Falar das ciências sociais e das relações entre elas leva-nos também a pensar na interdisciplinaridade, um conceito, como todos sabemos, difícil de definir e talvez ainda mais de aplicar. Normalmente, na comunidade académica há uma retórica predominante em favor da interdisciplinaridade e dos seus benefícios. Ora, eu gostava de lhe colocar a questão ao contrário: o que é que se pode perder com a interdisciplinaridade?

MHP — Isso é estranho!

JVS — É provocador…

MHP — É provocador, sim, porque eu acho que se perde imenso, acho que seria um regresso, um empobrecimento do conhecimento científico na área das ciências sociais e da história. É inconcebível que se voltasse atrás. A interdisciplinaridade tornou-se uma maneira de trabalhar natural. Em certa medida, já não nos damos bem conta disso, porque se tornou um hábito intelectual, quando vamos estudar determinado tema, lermos o que se escreveu sobre esse tema em diferentes dimensões, para termos uma visão de conjunto que é certamente enriquecedora do nosso próprio trabalho. Isso é uma dimensão do trabalho intelectual que deve ser quase automática. As pessoas que não seguem esse caminho são aqueles historiadores amadores, enfim, são aqueles elementos que, no fundo, a comunidade científica vê como marginais, embora possam ter um grande êxito comercial, eventualmente mais do que os outros.

JVS — Para acabarmos a entrevista eu queria voltar novamente à história e ao seu papel na sociedade. Num momento como este, em que o país está mergulhado numa depressão profunda, o que é que a história e os historiadores têm para oferecer? No mínimo, o que é que a história ou os historiadores têm para dizer?

MHP — Bem, infelizmente os historiadores têm imenso para dizer. Infelizmente, porque momentos muito dramáticos como este já foram vividos em Portugal e, portanto, os historiadores podem por exemplo evocar a grande crise de 1808, a de 1891, mas também a crise dos anos 1929-1930, que foi terrível e conduziu a uma ditadura terrível e muito dramática, eu acho. Durou umas décadas e deu cabo da vida de muita gente. Não vejo a questão só em termos económicos. É uma causa do atraso de que ainda hoje sofremos, o que aconteceu com o Estado Novo. Ainda hoje sofremos, em todos os domínios, muito mais do que temos consciência. Os historiadores podem lembrar isso, acho que pode ter utilidade. Infelizmente os historiadores estão a ser pouco lembrados, ou melhor, não é bem os historiadores, é a história que está a ser mal evocada, numa linha de propaganda. Agora, tem-se evocado de uma maneira parcial. Por exemplo, uma ideia falsa que tem estado a ser difundida é a de que nós, tirando alguns períodos excepcionais, sempre tivemos uma situação de dívida externa, foi sempre tudo igual. O que, de resto, não se percebe e entra até em contradição com o outro lado do discurso político actual, que atribui uma origem muito precisa e muito limitada no tempo a esta dívida. Mas as duas linhas coexistem nas mesmas pessoas exactamente. O que é curioso, nem se dão conta da contradição.

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