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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.200 Lisboa  2011

 

Entrevista a Robert Rowland

por Catarina Frois

 

Catarina Frois é doutorada em antropologia, professora auxiliar convidada no ISCTE-IUL e investigadora no CRIA-IUL. A sua investigação tem vindo a centrar-se na temática da vigilância e nas políticas públicas de combate à criminalidade.

É autora de Vigilância e Poder (Mundos Sociais, 2011), Dependência, Estigma e Anonimato nas Associações de 12 Passos (ICS, 2009) e organizadora da colectânea A Sociedade Vigilante. Ensaios sobre Identificação, Vigilância e Privacidade (ICS, 2008).

Robert Rowland (São Paulo, Brasil, 1945) estudou letras clássicas e ciências sociais na Universidade de Cambridge. Antes de vir para Lisboa, onde foi professor catedrático convidado de antropologia no ISCTE-IUL entre 1979 e 2010, foi investigador em antropologia na Universidade de Kent, lecturer em estudos interdisciplinares na Universidade de East Anglia e professor de história económica na Faculdade de Economia do Porto. Foi, ainda, director do núcleo de sociologia histórica do Instituto Gulbenkian de Ciência (1982-1987), e professor de história social europeia no Instituto Universitário Europeu, em Florença (1987-95). É, actualmente, investigador do CRIA-IUL e presidente da Associação Portuguesa de Antropologia. Fez trabalho de campo sobre a literatura oral do Nordeste brasileiro (1965) e sobre a dinâmica política local desde 1861 no Sul da Itália (1968-1970), tendo-se dedicado, em seguida, a diferentes temas na área da antropologia histórica: os processos de feitiçaria na Europa, a inquisição e os cristãos-novos em Portugal, a demografia histórica e história da família na Península Ibérica, os processos migratórios entre Portugal e o Brasil, e os discursos de identidade nacional no Brasil (séculos xix-xx). Prepara actualmente um estudo histórico sobre a etnografia dos Todas da Índia meridional.

 

Catarina Frois (CF) — Gostaria que me falasse, primeiro, sobre a evolução das ciências sociais em Portugal e sobre o papel que desempenhou neste processo.

Robert Rowland (RR) — É uma história complicada... Em relação à minha participação neste processo, seria preciso regressar a 1974, quando fui convidado a vir para Portugal pela Faculdade de Economia do Porto. A ideia, nessa altura, era a de tentar organizar nessa faculdade um departamento de ciências sociais. A Faculdade de Economia do Porto tinha uma ligação estreita com a Faculdade de Direito de Coimbra, e o ensino concentrava-se fundamentalmente em temas ligados à economia da empresa. Após o 25 de Abril o projecto era o de alargar o espaço do ensino da economia, para já para a macroeconomia e também para as ciências sociais, o que implicava modificações bastante profundas. Lembro-me, por exemplo, de que alguns anos antes, em 1970 ou 1971, tinha estado em Lisboa. Estava na altura a fazer uma pesquisa bibliográfica sobre a economia portuguesa no início do século xx e fui ver o que havia na Biblioteca Nacional. A secção de economia intitulava-se “Economia e parcimónia” e os livros, incluindo livros bastante recentes de teoria macroeconómica, como Value and Capital de John Hicks, estavam classificados sob a rubrica “Economia e parcimónia”. Na Faculdade de Economia do Porto havia, como disse, muita administração de empresas, muito direito, muita contabilidade, e pretendia-se, na sequência do 25 de Abril, começar a estruturar um curso mais moderno. O nosso projecto acabou por ser o de organizar o curso, que era de 5 anos, à volta de um tronco comum de 3 anos, com matemática e estatística, e com cadeiras básicas de macroeconomia, microeconomia e ciências sociais; depois, no 4.º e 5.º anos, haveria uma especialização relativa (num esquema major/minor) em que um aluno podia, por exemplo, fazer dois terços das cadeiras em macroeconomia e um terço em ciências sociais, ou dois terços em ciências sociais e um em macroeconomia. Ou seja, um dos três conjuntos de cadeiras caía fora, e havia uma especialização relativa num outro dos três.

Esse projecto acabou por ser inviabilizado por razões políticas. Cedendo a pressões da direita portuense, o então ministro da Educação, Mário Sottomayor Cardia, decretou o encerramento da Faculdade e só permitiu a sua reabertura sob o controlo de uma comissão de reestruturação, encarregada de purgar o corpo docente e elaborar um novo plano de curso. Em relação a este, o ministro declarou, numa reunião na qual participei, que não iria permitir o ensino das ciências sociais nas faculdades de economia porque isso seria — cito — “uma receita de marxismo”. As ciências sociais teriam o seu lugar na universidade, mas numa instituição própria. Nesse sentido, ele iria proceder à regularização da situação do ISCTE.

Face a esta situação, o que eu tinha ido tentar fazer no Porto deixou de ter muito sentido. Soube, entretanto, que o ISCTE estava interessado em contratar docentes e escrevi-lhes. Passado algum tempo, respondeu-me o professor Sedas Nunes, que era então presidente do Conselho Científico, pedindo-me que viesse a Lisboa para conversarmos. Disse-me que estava à procura de alguém para organizar a área de metodologia de ciências sociais. Na altura — soube mais tarde — ele estava em conflito com um sector dos docentes de sociologia por causa da aplicação no ISCTE do Decreto de gestão universitária. Julgo que estaria, de certo modo, a preparar a sua saída, e a tentar cobrir essa área — que era a sua — que deixaria vazia. Pouco depois, de facto, ele saiu do ISCTE, indo primeiro para o governo Pintassilgo, depois para a Universidade Nova.

O que ele me estava a propor era, em parte, o que eu próprio tinha proposto fazer no Porto, e correspondia, também, a coisas que tinha feito na Inglaterra. A minha formação inicial tinha sido em “clássicas” e história antiga, depois estudei macroeconomia, sociologia e antropologia, e fiz três anos de trabalho de campo no Sul da Itália, na área de antropologia do desenvolvimento. A seguir, tinha ficado responsável pela criação de uma secção interdisciplinar numa universidade inglesa, onde dava aulas de história social e antropologia. Depois dessas experiências, a proposta de me dedicar explicitamente à área de metodologia pareceu-me interessante. Disse-lhe que aceitava o desafio, apesar de essa não ser, propriamente, a minha vocação. Ele disse “Então façamos o seguinte: o senhor doutor vem para Lisboa, organiza a área, forma um ou dois assistentes que possam assegurar o ensino das cadeiras do tronco comum na área da metodologia, e, mais tarde, quando tiver feito isso, pode passar para uma área que seja mais do seu interesse”.

Na altura eu era professor de história económica no Porto e sugeri-lhe que talvez me pudesse integrar na secção de história do ISCTE. Ele torceu um pouco o nariz, e explicou-me que era capaz de ser complicado, que eles tinham outras prioridades. Disseram-me, mais tarde, que teria havido uma sondagem informal nesse sentido, e que os historiadores não teriam mostrado muita receptividade. Na altura, estavam mais empenhados numa história económica e social tradicional, de inspiração marxista, e a articulação que eu propunha entre a história e a antropologia parecia-lhes ter pouco interesse.

Sugeri, então, como alternativa, a hipótese de começar a desenvolver no ISCTE uma área de antropologia. Respondeu-me apenas, com algum cepticismo, que se eu conseguisse convencer os sociólogos, poderia contar com o seu apoio. E foi com base nessa espécie de acordo informal que acabei vindo para o ISCTE em 1979, inicialmente como professor catedrático convidado da área de sociologia.

Mas a criação do curso de antropologia teve a sua origem na própria dinâmica institucional do ISCTE. Após a saída de Sedas Nunes, o Instituto passou por uma fase complicada. O Ministério da Educação não aceitava que o ISCTE continuasse a ser um instituto autónomo, não integrado em qualquer universidade, e propôs a sua integração na Universidade de Lisboa, onde poderia ficar, devido ao escasso número de docentes doutorados, sob a tutela da Faculdade de Direito. A estratégia defensiva que acabámos por desenhar ao nível do Conselho Científico passava pelo recrutamento de mais docentes doutorados — que na altura, e no contexto das ciências sociais, eram uma espécie rara — e pela diversificação científico-pedagógica. Em relação ao primeiro aspecto, foi possível encontrar alguns antropólogos doutorados interessados em vir para Portugal, e, num primeiro momento, foram feitas duas novas contratações nessa área, que vieram reforçar os três que já leccionávamos cadeiras de antropologia no curso de sociologia. Em relação ao segundo, resolvemos avançar com a proposta de criação de duas novas licenciaturas: uma em antropologia social, a outra (que acabou por não se concretizar devido ao falecimento do professor Silva Leal) em administração social.

A proposta de criação do curso de antropologia seguiu para o Ministério, que após alguma discussão resolveu aprová-la. De repente, durante as férias de verão de 1982, chegou um ofício do Ministério a pedir o plano de curso para aprovação formal e publicação no Diário da República. O prazo, como sempre, era brevíssimo e muitos dos colegas estavam fora de Lisboa. Lembro-me que numa tarde, sentado numa esplanada do Jardim de Algés, peguei num pedaço de papel e compus um plano de curso, uma espécie de ementa de restaurante chinês. Primeiro as cadeiras do tronco comum (que era obrigatório nos cursos de ciências sociais), uma fileira central — Introdução à antropologia, antropologia social I e II — com as duas cadeiras laterais de antropologia das sociedades complexas e etnologia portuguesa, e, por fim, o desdobramento nas três antropologias especializadas — económica, política e do simbólico. Depois de rapidamente aprovado pelo Conselho Científico e enviado para o Ministério, tratou-se de dar corpo a esse esqueleto, definindo com mais calma o conteúdo e a relação entre as cadeiras.

Essa já foi uma tarefa colectiva, uma vez que, como disse, tinha sido possível entretanto proceder à contratação de mais docentes para a área de antropologia. Quando eu vim para o ISCTE, em 1979, havia mais duas pessoas que davam aulas de antropologia no curso de sociologia: havia o José Fialho, na área de antropologia política, e o Joaquim Pais de Brito que dava uma cadeira de etnologia portuguesa. Eu próprio passei a dar, para além da cadeira geral de metodologia, a antropologia das sociedades complexas. A esse grupo inicial vieram juntar-se, mais tarde,  Raúl Iturra e  João de Pina-Cabral, que tinham acabado de concluir o doutoramento em Cambridge e Oxford, respectivamente, e José Carlos Gomes da Silva, que pediu transferência da Universidade Nova para o ISCTE. Foi com esse corpo docente, pequeno mas muito consistente para a época, que tínhamos avançado com a proposta de curso e que tratamos, uma vez o curso aprovado, de dar corpo ao manifesto.

Ao contrário do que se podia pensar, portanto, o nosso não foi um projecto planeado e pensado de antemão de criação de um curso e departamento de antropologia. Foi, em certa medida, uma resposta improvisada a uma conjuntura institucional adversa. Por isso, também não foi, como muitas vezes se diz, um projecto de implantação de um departamento de antropologia de acordo com o modelo britânico. Se acabou por ter uma forte componente britânica, isso deveu-se, em parte, ao facto de esse ter sido, implicitamente, o modelo subjacente ao plano de curso, e em parte ao facto de alguns dos docentes na fase inicial terem tido uma formação britânica. Mas houve também, pelo contrário, a preocupação consciente de incluir pessoas de outras formações:  José Carlos Gomes da Silva, que se doutorara na Bélgica, era estruturalista, Joaquim Pais de Brito inseria-se na tradição etnográfica portuguesa, José Fialho estudou em Paris com Balandier, Jorge Freitas Branco doutorou-se na Alemanha com uma tese sobre cultura material. Nélia Dias, que chegou um pouco mais tarde, tinha feito uma tese de história da antropologia na École des Hautes Études en Sciences Sociales. Houve, de facto, uma tentativa consciente de, na medida do possível, abrir ao máximo o leque das influências teóricas e tradições nacionais.

Outra preocupação que houve foi a de centrar a actividade do departamento no contexto português, estabelecendo uma ligação estreita com o departamento de sociologia — em função, sobretudo, do tronco comum durante os primeiros anos do curso — e em especial com a área de sociologia rural. O currículo tinha como base, obviamente, a antropologia clássica, mas ao nível dos dois últimos anos apontávamos no sentido de uma investigação do contexto português, em articulação com a sociologia e com a história. Primeiro, porque sentíamos que estava ainda tudo por descobrir; depois, porque de qualquer forma não haveria verbas para investigação fora de Portugal, e, finalmente, porque de certa maneira parecia-nos que era aquilo que fazia falta nessa altura à antropologia portuguesa, na sequência do que tinha sido iniciado com o estudo de José Cutileiro sobre o Alentejo, cuja epígrafe era Portugal, questão que eu trago comigo mesmo.

Nesse sentido, no contexto do ISCTE, a criação do departamento de antropologia tinha muito que ver com uma perspectiva interdisciplinar no contexto das ciências sociais; fomos, de certa forma, obrigados a fazer isso porque estávamos, como dizem os ingleses, a “tentar levantar-nos pelos nossos próprios atacadores”. E foi um esforço interessante. Tínhamos começado com seis docentes, como referi, e graças ao tronco comum obrigatório, que tinha cadeiras de metodologia, sociologia, e estatística, leccionadas por docentes de outras áreas, só com esses seis nós conseguíamos montar, progressivamente, as cadeiras antropológicas dos primeiros anos do curso e, ao mesmo tempo, começar a formar os assistentes estagiários que entretanto iam sendo recrutados. Assim, quando foi preciso começar o 3.º e 4.º ano, em que as cadeiras já eram todas de antropologia, tínhamos assistentes que podiam, sob a orientação de um dos professores, assegurar as aulas das cadeiras do 1.º e 2.º ano. Foi assim que a coisa começou.

CF — E como era a relação com outras instituições onde havia antropologia?

RR — O mais correcto seria, talvez, dizer que não havia relações. Ou, pelo menos, relações formais com as instituições, porque relações pessoais entre antropólogos, essas obviamente havia. Logo quando fizemos a proposta de criação do curso, começou, segundo consta, a haver pressões informais ao nível do Ministério, da parte das outras escolas onde havia cursos de antropologia, para que este novo curso não fosse aprovado.

Talvez por razões de concorrência, talvez por razões políticas, porque na altura o ISCTE ainda estava fortemente conotado com a Esquerda. Consta, também, que o secretário de Estado do Ensino Superior, Romão Dias, terá respondido que iria aprovar a proposta, sobre a qual tinha obtido pareceres favoráveis (um dos quais do professor Sedas Nunes), e que se as outras escolas continuassem a achar que três cursos eram demais, passados alguns anos far-se-ia uma avaliação dos três e mandava-se fechar o curso mais fraco. E não houve mais pressões.

Com o departamento de antropologia da Universidade Nova as relações institucionais foram de início muito reduzidas. Havia uma certa concorrência institucional, mas havia também algumas tensões internas nesse departamento, que levaram a que não só José Carlos Gomes da Silva, como também vários assistentes e alguns dos melhores alunos, se transferissem para o ISCTE. Isso não contribuiu para relações de boa vizinhança, pelo menos no que diz respeito a algumas pessoas, e foi preciso algum tempo para que essas relações se desanuviassem.

Com o ISCSP as relações foram igualmente complicadas. O ISCSP tinha tido uma história bastante turbulenta após o 25 de Abril, com o saneamento de professores ligados ao antigo regime, e o Ministério da Educação acabou por intervir e encerrar a escola, considerando que se encontrava numa situação de “degradação pedagógica”. Alguns docentes passaram para a Universidade Nova e alguns deles também vieram para o ISCTE. O regresso dos antigos professores saneados não contribuiu para o aprofundamento de relações com um departamento como o nosso, cujo projecto representava um corte em relação ao modelo vigente antes de 1974. Em termos formais nunca houve problemas, e aos poucos as relações foram-se normalizando, com professores a participarem em júris da outra escola, etc. Mas na prática, durante esse primeiro período, os contactos eram muito reduzidos.

CF — Quais foram as principais linhas teóricas e empíricas desde esse período em que a antropologia se estabelece em Portugal, até agora?

RR — Uma caracterização em termos teóricos é difícil. O que aconteceu na década de 80 foi sobretudo uma tentativa de refundação da antropologia em Portugal, segundo o modelo da antropologia que se praticava na comunidade científica internacional. Não me parece que se possa falar, em relação com esse período, de modelos teóricos dominantes. Havia, pelo menos no ISCTE, um pluralismo teórico que reflectia a formação muito variada dos nossos docentes. Mas havia, apesar disso, diferenças em termos de tradições dominantes. A Universidade Nova tinha um modelo mais afrancesado, o nosso do ISCTE era mais britânico, mas no fundo as características eram bastante similares. Durante o primeiro período tratou-se essencialmente de pôr a antropologia em dia e fazer com que estabelecessem raízes em Portugal, com a formação de uma nova geração de antropólogos.

No seguimento do 25 de Abril, tínhamos tido a preocupação de centrar a investigação no contexto português. Não havia verba para investigação. Nas ex-colónias o clima não era muito favorável para actividades de investigação de antropólogos portugueses, que estavam naquela altura mais ou menos fora da questão. E uma antropologia centrada não exclusiva, mas prioritariamente, no espaço português e europeu dificilmente se poderia filiar numa outra linha teórica que não as que havia nos centros hegemónicos: franceses, britânicos, mais tarde os americanos, porque o campo da antropologia era determinado mais pelo terreno do que pelas tradições. E, no caso específico do ISCTE, havia, como já disse, tradições variadas que co-existiam aqui na escola.

A primeira geração formada no ISCTE teve uma formação muito sólida em termos de antropologia clássica. Houve antigos alunos nossos que foram fazer o mestrado ou o doutoramento em centros estrangeiros e constataram que a sua formação, no que dizia respeito aos clássicos, era às vezes mais sólida que a dos seus colegas estrangeiros. Em resumo, eu diria que foi essa dupla preocupação de se proceder a uma refundação da antropologia em Portugal, por um lado, a partir das preocupações que tinham marcado o seu desenvolvimento nos centros hegemónicos — o que nos levou a insistir na importância de clássicos como Malinowski e Evans-Pritchard — e, por outro, de definir o campo privilegiado da antropologia em termos do terreno português, com fortes ligações com a sociologia e com a história, que marcou o momento de arranque do nosso projecto.

Num segundo momento, a minha impressão é que houve um processo significativo de diversificação, para o qual terá contribuído o facto de ter começado a haver recursos para pesquisas fora de Portugal. Mas esse é um período que eu conheço mal, porque os oito anos que passei em Florença corresponderam precisamente a essa viragem. Mas foi o período em que João de Pina Cabral foi trabalhar para Macau, foi o período em que Brian O’Neill passou de Trás-os-Montes para o Sudeste asiático, foi o período em que começou a haver mais verbas para investigação e a ser possível fazer mais coisas no contexto africano. Mais tarde, começou a haver um interesse acrescido pelo Brasil, e pela colaboração com a antropologia brasileira. Mas, como disse, estive fora durante o período em que teve início essa mudança de orientação, e só o acompanhei de longe.

CF — Mencionou a sua ida para Florença. O que lá esteve a fazer tinha alguma coisa a ver com a antropologia em Portugal? E, quando regressou, que mudanças encontrou?

RR — Directamente, tinha pouco a ver com o programa de antropologia do ISCTE. Como disse há pouco, o meu trabalho de investigação situava-se, desde os tempos do meu trabalho de campo no Sul da Itália em finais dos anos 1960, na zona de fronteira entre a antropologia e a história. Durante a primeira metade da década de 80 dirigi um centro de investigação no Instituto Gulbenkian de Ciência, o Núcleo de Sociologia Histórica, onde iniciámos um programa interdisciplinar que incluía estudos de antropologia, demografia e história da família, e história social. Foi no âmbito desse programa que participei num seminário sobre antropologia histórica no Instituto Universitário Europeu, em Florença. Em 1987, o Instituto anunciou um concurso para o preenchimento da cátedra de história social europeia (cujo anterior titular tinha sido Carlo Poni, um dos pioneiros da micro-história). O respectivo edital indicava, como factor de preferência, uma experiência de investigação interdisciplinar e um interesse pela articulação entre a história e a antropologia. Tendo ganho o concurso, acabei indo para Florença com uma licença sem vencimento, e lá fiquei durante o tempo máximo permitido, que era de oito anos. Durante esse período desenvolvi alguns projectos de investigação e fui responsável pela orientação de quinze doutoramentos de história social europeia, sobretudo de história moderna, alguns dos quais com temas explicitamente antropológicos, como sejam as alianças matrimoniais, as dinâmicas familiares e os sistemas de sucessão, ou as relações entre família, património e emigração. Três desses doutorandos eram antropólogos de formação, mas nenhum era português.

Quando regressei a Lisboa, em 1995, encontrei um departamento de antropologia maior e muito diferente daquele que tinha deixado. Alguns dos melhores alunos das primeiras turmas tinham sido recrutados como assistentes estagiários, tinham feito mestrados ou provas de aptidão, e estavam com os doutoramentos adiantados ou concluídos. À volta de alguns dos professores da primeira fase, responsáveis pelas cadeiras leccionadas pelos “seus” assistentes e orientadores dos respectivos doutoramentos, tinham-se formado grupos rivais de docentes, que se ocupavam de temas afins e funcionavam em grupo nas reuniões de departamento. A dinâmica era completamente outra.

Havia, para já, uma muito maior diversificação. E não só ao nível do ISCTE. O departamento da Universidade Nova também se havia transformado. Tinha sido criado um novo departamento em Coimbra. Para dar uma ideia da escala da transformação, o departamento do ISCTE tinha-se transformado num dos maiores departamentos de antropologia social da Europa ocidental — quando eu regressei, se não me engano éramos 23 ou 24 antropólogos num mesmo departamento, o que era bastante mais do que na maioria dos departamentos britânicos — e as pessoas tinham multiplicado as suas pesquisas, as pessoas que tinham sido nossos alunos nos anos 80 já estavam a terminar os doutoramentos, alguns em diferentes centros estrangeiros, e estava-se a entrar numa nova fase. Essa diversificação foi também extremamente fecunda em termos da aquisição de novas perspectivas teóricas. Deixou de haver — se é que alguma vez houve — algum modelo hegemónico.

CF — E ter aparecido o ICS fez alguma diferença em relação à ligação da antropologia com outras ciências sociais, a um maior diálogo entre disciplinas?

RR — Tenho sempre um certo receio em fazer comentários sobre outras instituições, que não conheço pessoalmente. As relações entre o ISCTE e o GIS (depois ICS) foram inicialmente muito estreitas, eu diria, quase incestuosas. Numa primeira fase, com a presença do Sedas Nunes em ambas as instituições; e mais tarde, mesmo depois de ele ter saído do ISCTE, mantiveram-se relações muito estreitas, quer com ele pessoalmente, quer com alguns dos seus mais próximos colaboradores.

A impressão que eu tenho é que foi a institucionalização da carreira de investigador — que abriu possibilidades de carreira para pessoas que até então tinham acumulado posições nas duas instituições — que acabou por levar a uma certa separação, ou divisão do trabalho. Isto ainda no período em que o ICS estava alojado aqui no edifício do ISCTE.

Ao mesmo tempo, a impressão que eu tenho, puramente subjectiva, é que o crescimento do ISCTE e dos seus departamentos, sobretudo o crescimento paralelo da antropologia e da sociologia, levou à condenação do nosso projecto inicial inter-disciplinar. Esse projecto tinha a sua base, em parte, no facto de os cursos de sociologia e antropologia terem começado por ter um tronco comum. Numa primeira fase, o primeiro ano era de facto comum, e os alunos só optavam entre fazerem sociologia ou antropologia a partir do 2.º ano. Mas esse clima começou a desaparecer à medida que cada departamento se consolidou, começou a desenvolver a sua própria especificidade, e a tentar afirmar uma identidade própria.

Em relação ao ICS, a impressão (sempre pessoal e subjectiva) que eu tenho, é de que numa primeira fase as pessoas contavam muito mais que os rótulos disciplinares e que a existência de uma rede de relações pessoais acabou por promover uma actividade multi-disciplinar e inter-discipinar bastante intensa, mas que a seguir o próprio crescimento do ICS e a disponibilidade de mais recursos levou a que as pessoas vissem mais oportunidades na especialização e na afirmação disciplinar.

No ISCTE isto viu-se claramente na evolução paralela da antropologia e da sociologia. Algumas pessoas no departamento de sociologia começaram bastante cedo a ver o seu futuro em termos da afirmação autónoma da disciplina, ao mesmo tempo que a nova geração de antropólogos, passada a fase “refundacional”, começou a adoptar como seu grupo de referência a comunidade internacional dos antropólogos, deixando para trás a ideia de um projecto interdisciplinar de estudo da realidade portuguesa. Chegamos, assim, àquilo que para mim é um absurdo: que neste momento, no ISCTE, haja duas escolas separadas e rivais, uma de sociologia e políticas públicas, outra de ciências sociais e humanas.

 Visto de fora, o ICS parece estar a seguir um percurso algo parecido em que, havendo recursos, as pessoas podem apostar mais nas suas próprias redes disciplinares internacionais. A própria lógica de avaliação que é imposta ao nível das universidades acaba por fazer com que as pessoas ganhem mais em inserir-se nessas redes, nos seus colóquios e publicações, etc. Mesmo que a instituição adopte linhas temáticas transversais, esta lógica acaba por levar a que as pessoas apostem mais em percursos disciplinares. Mas, como já disse, esta é uma impressão pessoal e subjectiva, baseada numa observação externa e não-participante.

CF — Falou-me da primeira geração de antropólogos depois do 25 de Abril. Para além dessa, consegue destacar alguma outra geração?

RR — Em relação à questão das gerações — e cingindo-me ao universo do ISCTE, embora me pareça que, em certa medida o mesmo se possa dizer do ICS — parece-me que há um problema. No fundo, temos só duas gerações de antropólogos.

A primeira geração é constituída por aqueles que foram docentes durante os primeiros anos. Alguns já saíram do ISCTE, indo para outras instituições ou reformando-se, como é o meu caso, outros ainda cá estão. São os séniores actuais, e são pessoas que tiveram formações bastante variadas.

A segunda geração é quase exclusivamente constituída por pessoas que se formaram aqui no ISCTE (embora alguns tenham vindo da Universidade Nova) durante os anos 80, e entraram para as vagas que se abriram durante a primeira fase de expansão do departamento, em finais dos anos 80 e início dos anos 90. O crescimento rápido do departamento levou a que bastantes vagas se abrissem, fossem ocupadas, e depois não houve mais. Na ausência de uma expansão continuada, e salvo um ou outro caso excepcional de substituição, o departamento é constituído hoje por pessoas que entraram para o corpo docente há cerca de 20 anos.

Trata-se, enfim, de uma “nova geração” já um tanto envelhecida. Os rapazes e as raparigas que foram nossos alunos nos anos 80 estão agora a abeirar-se dos 50 anos, mais ou menos, o que em qualquer instituição os aproxima da faixa sénior; e não há outra a seguir. Em termos do ensino da antropologia não há uma “nova geração”, o que é extremamente grave. Não só pelos horizontes de futuro que se fecham para os mais novos, mas também porque o ensino deixa de ser renovado. Algumas das pessoas que vieram depois conseguiram lugares, mesmo que transitoriamente, em outras instituições — o ICS teve, aqui, um papel importante — mas a situação da nova geração — ou, melhor, das novas gerações — é, vista a partir do ISCTE, extremamente precária.

Em outras instituições — estou a pensar na Universidade Nova, onde parece ter havido uma renovação mais significativa — talvez a situação esteja um pouco diferente, mas em geral o facto de a antropologia ter crescido muito rapidamente durante os anos 80 e começo dos anos 90 acabou por levar a que demasiada gente na mesma faixa etária ocupe todos os lugares. O que significa que o desenvolvimento da antropologia hoje em dia não passe pelo ensino. São pouquíssimas as pessoas que têm oportunidade de entrar para um lugar no ensino, e dão-se situações como a do ISCTE, em que só agora alguns bolseiros de pós-doc. começam a poder dar aulas, ou como a da Universidade Nova, cuja política de contratar docentes a tempo parcial (30%) permite que algumas pessoas adquiram experiência, façam currículo, e possam concorrer em melhores condições a eventuais concursos que venham a abrir, e garante, ao mesmo tempo, alguma renovação dos conteúdos do ensino. Mesmo que tenha havido, na Universidade Nova, mais renovação do que no ISCTE, vejo a situação da antropologia, no seu conjunto, como muito problemática.

CF — Problemática no sentido do ensino?

RR — No sentido de não haver uma relação continuada entre ensino e investigação. O revezar-se normal das gerações foi interrompido, e muitas das pessoas que estão a fazer investigação em antropologia têm o acesso ao ensino bloqueado. Mesmo no interior de cada departamento, a própria orientação dos doutoramentos não faz parte de um processo continuado de renovação institucional.

CF — Pois isso também faz com que não haja novos temas, novas perspectivas, etc. Quando lhe disse que iríamos falar sobre as últimas duas décadas, disse-me “A partir dos anos 90 está tudo parado!”. O que é que queria dizer com isso?

RR — Isso era apenas um desabafo, ou talvez uma provocação. Para usar outra linguagem, digamos que há bloqueios estruturais que se verificam desde os anos 90, que resultam de uma expansão demasiado rápida e não continuada, e que criaram uma situação em que — é um fenómeno que se vê também em outros contextos, como o italiano — as melhores pessoas, para conseguirem emprego, têm de sair do país. Nestas condições, não tem muito sentido pensar em termos da evolução das ciências sociais desde 1990, como se o contexto institucional, e os seus bloqueios, não fossem determinantes.

CF — Acha que o mesmo se passa com outras ciências sociais, por exemplo a sociologia?

RR — Em relação à sociologia não tenho um conhecimento directo, as minhas são apenas, e novamente, as impressões de alguém de fora. Parece-me que houve um elemento que foi positivo no desenvolvimento da sociologia, pelo menos na sociologia do ISCTE: é o facto de logo após o 25 de Abril se ter começado a estabelecer uma ligação bastante estreita, em termos de uma sociologia aplicada a políticas públicas, com alguns ministérios e serviços públicos, em áreas como a sociologia do trabalho, sociologia urbana, o sector da habitação, etc.

Essas áreas foram sendo desenvolvidas de maneira sistemática, com uma participação activa dos sociólogos do ISCTE, e nalguns casos do GIS/ICS, o que permitiu que a sociologia se afirmasse como ciência social aplicada, em grande parte à sombra do poder, e que pudesse contar com bastantes recursos — pelos menos até agora. Mas este facto traduz-se, também, no facto de a escola de sociologia criada aqui no ISCTE ter adoptado a designação de Escola de sociologia e políticas públicas. Trata-se essencialmente, nesse sentido, de uma sociologia aplicada, possivelmente com uma vocação menos marcada para a internacionalização e para a discussão teórica, e mais voltada para a aplicação a contextos e a problemas específicos portugueses. Mas quando o campo da sociologia é definido em função das políticas públicas de um país, e ainda por cima de um país pequeno, isto acaba por levar a uma abordagem global que, com um pouco de má vontade, se poderia chamar de paroquial. É um risco.

CF — Mas em certa medida, é compensado pelo sucesso da afirmação da disciplina.

RR — Sim, evidentemente. A questão é a de avaliar custos e benefícios. Em termos de afirmação institucional disciplinar, a sociologia portuguesa é uma success story. Disso não tenho dúvidas. Mas talvez porque eu venho de outra geração... quer dizer, a sociologia que eu estudei não é isso, e quando eu penso na sociologia em termos do que teria podido ser o desenvolvimento das ciências sociais em Portugal, não só da sociologia mas também da antropologia, da ciência política, da própria história social, vejo o preço como sendo bastante elevado.

CF — Como é que poderia ter sido?

RR — Não sei. Não sei até que ponto havia alternativas. É possível que se tivessem tentado seguir uma outra via tivessem acabado por se encontrar na mesma situação em que está a antropologia.

CF — Tem uma visão muito fatalista ou quase pessimista da antropologia em Portugal.

RR — Não diria isso. Talvez um pouco desencantada, mas não pessimista. Porque mesmo se, no plano institucional, não sou ingénuo e não vejo grandes possibilidades, em termos de qualidade e de capacidade eu vejo um potencial muito grande ao nível das novas gerações. É um pouco por isso que transmito esse desencantamento, porque eu vejo que as novas gerações estão bloqueadas. É uma visão que não é simplesmente pessimista, do género “a antropologia acabou”. Não, eu vejo que apesar dessas condições extremamente negativas, existem essas novas gerações, que prometem muito, mas que em termos institucionais vêem as portas quase todas fechadas.

CF — Quais é que acha que são as principais potencialidades para o futuro da antropologia mas também das ciências sociais em Portugal?

RR — Bom, a nível de mudanças sociais na sociedade portuguesa, eu diria que neste momento o panorama não tem qualquer comparação com aquilo que havia no início dos anos 80. Os desafios já não são tanto os da “modernização”, decorrendo, antes, das consequências da globalização sobre a sociedade portuguesa. Em termos de compreensão do que se está a passar, parece-me que este é um período em que a antropologia teria e deveria ter um papel extremamente importante a desempenhar.

Estou a pensar, por exemplo, numa notícia que apareceu nos jornais nos últimos dias: uma mulher, em Alvalade, no Alentejo, contratou um ucraniano para assassinar um pai-de-santo brasileiro residente em Cascais, por se sentir traída em relação à cura que ele prometera fazer ao seu filho deficiente. Veja as coisas que estão em jogo nessa história; eu não conheço os pormenores da história, apenas a notícia que vinha no jornal. Mas o que está aqui em jogo, em termos de expectativas, relações inter-culturais, etc., é algo que escapa completamente aos padrões e paradigmas das ciências sociais convencionais, e corre o risco de escapar completamente ao tipo de perguntas colocadas num inquérito sociológico, daqueles em que até certo ponto as respostas estão já implícitas nas perguntas. O que seria preciso, aqui, era um trabalho etnográfico à antiga, com trabalho de campo prolongado e não apenas um conjunto de entrevistas semi-estruturadas, para podermos recuperar, através do contacto directo, o jogo das representações e expectativas que esteve por trás de um caso destes, e reconstruir o seu sentido num contexto de mudanças sociais a vários níveis.

É claro que dentro da própria sociologia há pessoas que fazem etnografia — ou dizem que a fazem, mas através de entrevistas e não da observação participante — e que reconheceram a importância deste tipo de jogo de representações culturais, mas parece-me que a antropologia, num contexto desses, poderia desempenhar um papel extremamente importante. Como também poderia ter um papel importante na compreensão de outras situações, como no estudo das dinâmicas interpessoais que se estabelecem no interior das instituições, sobretudo quando estão em jogo situações de poder formal ou simbólico. Num país como Portugal as instituições nem sempre operam de acordo com o figurino que esteve na base de abordagens como a da sociologia das organizações, por exemplo, e aqui a etnografia dos corredores do poder, quer ao nível político, quer ao nível da administração, quer nas próprias empresas, poderia render muita coisa.

É nesse sentido que eu digo que existe uma oferta muito significativa do lado da antropologia, em termos de investigação de qualidade, por parte dessa nova geração que tem poucas saídas profissionais, ao mesmo tempo que há um conjunto de questões extremamente importantes às quais esses antropólogos poderiam dar resposta, se existissem condições institucionais para isso.

Como exemplo, poderia citar um campo específico com o qual tenho tido algum contacto, que é o da antropologia da saúde. Aqui, o olhar crítico do antropólogo em relação à rotinização das práticas médicas em relação a populações de imigrantes tem permitido detectar, e às vezes contribuir para resolver, problemas decorrentes do confronto entre culturas. Estamos, aqui, longe da imagem estereotipada do antropólogo que estuda tribos em via de desaparecimento, ou populações rurais que perderam o comboio da modernização. O facto de a globalização não implicar forçosamente, ou — diria eu — não implicar de todo, uma ocidentalização homogénea das populações e culturas significa que será sempre relativa a pertinência do modelo de sociedade urbano-industrial de mercado que está na base da maioria dos conceitos das restantes ciências sociais, e da sociologia em particular. O papel da antropologia é, ou deveria ser, pelo menos, crucial neste contexto — mesmo se, actualmente, a sua importância não é reconhecida pelas instituições envolvidas. Perguntou há pouco se eu estava pessimista em relação ao futuro da antropologia. Eu responderia que não, mas que face aos bloqueios que constato, e que impedem as novas gerações de antropologia de dar o seu contributo, a minha atitude é de desencanto.

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