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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.200 Lisboa  2011

 

Os trilhos da ciência política portuguesa: uma conversa com David Goldey

 

Pedro Ramos Pinto*

* Lecturer em história internacional na Universidade de Manchester. A sua investigação combina perspectivas da ciência política e sociologia com a investigação histórica, debruçando-se sobre o papel dos movimentos sociais na Revolução portuguesa e na história das relações entre estado e sociedade durante o século xx português. O seu livro, Lisbon Rising: Urban Social Movements in the Portuguese Revolution será publicado em 2012 pela University of Manchester Press.

 

A ligação de David Goldey à ciência politica portuguesa tem vindo a acompanhar o desenvolvimento da nossa democracia, e oferece à disciplina uma sensibilidade extraordinária para o factor humano na política. O seu ensino e conselho continuam a ser uma referência para várias gerações de politólogos. O Portuguese Studies Workshop, que por muitos anos co-dirigiu em Oxford com Hermínio Martins, foi um ponto de passagem obrigatório para as ciências sociais e humanas deste país, um verdadeiro modelo para um fórum intelectual que combina rigor, criatividade e profissionalismo com calor humano. Muitos investigadores portugueses conhecem a generosidade e hospitalidade de David e Patricia Goldey em Oxford. Para este número comemorativo da Análise Social foi a nossa vez de ter o prazer de conversar com alguém que, com modéstia e simpatia, mas também enorme poder de observação e uma admirável inteligência crítica, vem contribuindo para o desenvolvimento da ciência politica em Portugal há quase quatro décadas.1

A entrevista, com direito a vista para o pátio do Lincoln College, teve o sabor das boas conversas que seguem os seus próprios ritmos e enveredam por caminhos inesperados. Neste texto reunimos e sintetizamos as observações de David Goldey em torno de alguns temas que foram sobressaindo: os seus primeiros encontros com Portugal e com os politólogos portugueses; a sua experiência de investigação no país, mas também as suas observações sobre a trajectória e futuro da ciência política.

O primeiro contacto de David Goldey com Portugal surgiu por mão de Patricia, que havia conhecido em Oxford. Portugal foi a lua-de-mel, no mesmo ano do seu casamento: “a nossa primeira visita a Portugal foi em 1971, seguida por nova viagem em 1972, porque a Patricia inciava um estudo antropológico sobre a emigração no Norte do país, no Gerês, na zona das Terras de Bouro”. As primeiras impressões que recorda são de um país “entristecido”, em que as pessoas haviam deixado de acreditar no regime, mas onde também não se via a possibilidade de este ter um fim. Apesar de uma afinidade com as pessoas e a terra, David não via em Portugal um objecto de estudo que o aliciasse: “nunca tinha conhecido um estado-polícia e esse aspecto não me agradou de todo... pensei para comigo que não era um país onde quisesse ficar, porque não me interessavam de todo as manobras da polícia política”.

Mas é também nesses anos que em Oxford se tecem as ligações à diáspora de investigadores portugueses, que vão passando pela universidade britânica. Como David nos relembra, a emigração não era, então, algo que se passasse só no mundo rural, e grande parte da investigação científica em política e sociologia sobre Portugal era feita no exílio, no caso de Oxford com nomes como José Cutileiro e Hermínio Martins. Em Portugal havia o GIS, que mais tarde se tornaria o Instituto de Ciências Sociais, bem como o Centro de Estudos de Economia Agrária da Fundação Gulbenkian no palácio Pombal em Oeiras, onde estava Armando Trigo de Abreu, “centelhas interessantes” de ciências sociais num contexto muito limitado pela ditadura. Mas, para David Goldey, “a minha impressão desses tempo é que na medida em que havia ciências sociais em Portugal, era sobretudo na economia, com Pereira de Moura, já num sentido de crítica [ao regime]. Para além disso existiam os tecnocratas que trabalhavam para o governo, muitos já ligados à oposição, como o João Cravinho”.

Os limites à possibilidade de explorar as novas ciências sociais no Portugal dos anos 60 e 70 eram, obviamente, políticos mas iam muito para lá de entraves impostos ao ensino e à investigação fora dos parâmetros permitidos pelo regime. Até ao nível mais básico do acesso ao conhecimento, as limitações eram enormes: David recorda que quando Patricia começou a sua pesquisa na Biblioteca Nacional, ainda antes da Revolução, não lhe era permitido consultar o catálogo, o que tornava o acesso ao conhecimento dependente de indicações de investigadores “da situação” ou da triagem feita por bibliotecários — “o outro único sítio (que conheça) onde isto se passava era em Moscovo antes da Perestroika”.

O fim do regime chegou inesperadamente, especialmente nas regiões mais remotas onde Patricia continuava o trabalho de campo para o seu doutoramento. Anos mais tarde, conta-nos David, Patricia perguntou a uma das suas assistentes da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro o que significava para ela a Revolução. A resposta ilustra bem o sentimento de um futuro interrompido, que David recorda ter sentido nas suas primeiras visitas a Portugal: o 25 de Abril, para a jovem assistente, representava sobretudo a chegada de um irmão mais novo — os seus pais haviam decidido não arriscar mais filhos porque se fosse um rapaz seria enviado para África.

Seria a Revolução, e sobretudo as primeiras eleições democráticas, que despertariam o interesse de David Goldey por investigar mais a fundo a realidade portuguesa. Patricia viria a Portugal para o 1.º de Maio de 1974, e David chegou no Verão para a acompanhar durante mais uma temporada de investigação pelas Terras de Bouro. Mas seria apenas em 1976, ao acompanhar as primeiras eleições legislativas e presidenciais, que David iniciaria de facto a sua ligação a Portugal como politólogo. Ao mesmo tempo, em Oxford, o contacto com a comunidade de investigadores portugueses e estes novos interesses viriam a dar início a uma longa colaboração com Hermínio Martins, com quem David funda e dirige o Portuguese Studies Workshop no St. Anthony’s College, seminário que durante mais de vinte anos foi um fórum de grande importância para todos aqueles (portugueses ou não), que investigam a realidade nacional. Para David, o workshop era “um modo de me manter em contacto com o que se ia passando” entre as visitas anuais durante o Verão. Ao princípio houve um grande interesse nos encontros regulares do Portuguese Studies Workshop, enquanto o “caso” português foi notícia, mas com o tempo foi sendo criada uma comunidade mais pequena, mas assídua, aberta e interdisciplinar, que incluía aqueles que trabalhavam também sobre o Brasil ou a África lusófona. A importância desta comunidade informal foi mais tarde confirmada e reforçada com a criação do Centro Camões em 2001, e com a passagem dos seus directores, como Maria João Branco e Luísa Pinto Teixeira. O workshop e as muitas amizades que estabeleceu com três gerações de investigadores portugueses que passaram por Oxford dão a David Goldey uma perspectiva única sobre a evolução das ciências sociais em Portugal em geral, e em particular sobre a ciência política.

O grupo de investigadores que trabalhava em Oxford no período anterior à Revolução assistiu ao 25 de Abril com uma mistura de entusiasmo e hesitação, e muitos esperaram pela libertação dos presos políticos para decidir o seu regresso ao país. Mas rapidamente Oxford esvaziou-se de portugueses: naturalmente “era bastante mais interessante regressar a Portugal”. Para David, o regresso da “geração do exílio” a Portugal deixou a sua marca na evolução da disciplina no país. No contexto da transformação de instituições e da convulsão política, a evolução da ciência política “foi mas lenta do que noutros sítios”, mas ao mesmo tempo marcada pela “extrema competência” da geração contemporânea à Revolução. Para David, este percurso está ligado de um modo fundamental à abertura disciplinar desta geração, em que politólogos, sociólogos, e historiadores vindos de várias escolas — como a francesa ou a anglo-saxónica — vieram refundar e enriquecer as ciências sociais em Portugal. Foi também uma geração com uma experiência essencialmente diferente, em que “a primeira abordagem à política teve lugar na oposição ao um estado-polícia, em que era preciso ter cuidado para não se ser preso e estar preparado para fugir do país a qualquer momento”.

Depois do 25 de Abril — de certo modo tal como antes — esta geração encontrou-se não só a investigar, como a fazer política: “dada a pequena dimensão da elite qualificada, era uma polivalência necessária [...], nada surpreendente”, mas, como refere David, “ter experiência política não é uma desvantagem no que toca ao seu estudo, [...] a experiência política só se torna uma desvantagem se o que se fizer [em ciência política] for condicionado por uma visão limitada pela ideologia ou ao serviço do nosso interesse político. Quando é assim torna-se partidária”.

Uma grande parte da geração de cientistas sociais que trabalhava fora de Portugal no fim dos anos 60, princípio dos anos 70, estava efectivamente exilada em consequência da sua acção política. Mas apesar de retomarem, ou continuarem a sua actividade política no regresso a Portugal — e até de mudarem a sua posição política no ambiente mais aberto do pós-25 de Abril — no que toca à investigação, grande parte desta geração “era capaz de pôr de lado as suas filiações políticas” e seriam “muito mais as personalidades” em vez da política, que influenciariam a sua abordagem.

Ao longo da sua carreira, David observou a transformação dos interesses e métodos da ciência política internacional, transformação que teve também os seus reflexos na disciplina em Portugal. Aqui, nota-se sobretudo a crescente influência dos métodos quantitativos, sobretudo nos estudos sobre eleições e votação. David acompanhou a crescente sofisticação das campanhas eleitorais e observou como a crescente procura por parte dos partidos estimulou o crescimento de metodologias quantitativas, um desenvolvimento personificado por uma nova geração que estudou fora do país, agora em circunstâncias diferentes, e que ao regressar iniciou os primeiros cursos de análise política quantitativa no ICS, no ISCTE, e noutras universidades.

David considera que estes desenvolvimentos criaram uma geração com “competências que eu nunca tive e que lhes abrem outras perspectivas”, vendo nisto uma vantagem e um novo potencial para a disciplina. Porém, a proliferação da visão quantitativa da ciência política também traz consigo perigos: “o que me parece problemático nisso não é uma tentativa de conseguir maior rigor, antes o modo como essa ambição é muitas vezes compreendida”, levando à ideia “de que só o que é quantificável é digno de estudo”. Para David, a disciplina deveria estar mais aberta a múltiplas formas de questionar a política. “Há por vezes a noção de que é preciso delimitar o campo de observação aos fenómenos que apresentam certos tipos de dados”. Quando se procede assim, corre-se o risco de condicionar os resultados em virtude das perguntas que se fazem e dos métodos que se escolhem: “ao estreitar a base de informação... abandona-se uma visão mais alargada, e isola-se o objecto de estudo de uma narrativa abrangente, quando a política é uma narrativa em que tudo acontece simultaneamente, contraditoriamente, e com resultados inesperados”. Assim, “se construirmos um projecto de investigação que não leve isso em conta vamos obter um resultado que será muito elegante, mas pouco revelador, ou revelador de uma forma muito limitada”.

Esta evolução, argumenta David, tem consequências não só para o modo, mas também para os objectos de estudo. Por um lado, os métodos quantitativos e a língua inglesa ajudam à internacionalização, o que é positivo, mas dada a força da ciência politica norte-americana, isso quer dizer em grande medida americanização. “O problema”, diz-nos, “é que na ciência política americana dá-se cada vez menos valor ao especialista neste ou naquele país”, dando-se preferência aos métodos comparativos, muitas vezes com poucos frutos, pois “como é que se pode comparar sem conhecer cada país em profundidade?”.

A preocupação de David Goldey com a diversidade de abordagens no futuro da ciência política é algo que tem as suas raízes na sua experiência no estudo da política portuguesa, para o qual trouxe os métodos e o poder de observação crítica que havia desenvolvido no estudo da Quinta República Francesa. Amigos e contactos que haviam passado por Oxford e que tinham sido reencontrados em Portugal — como Armando Trigo de Abreu, Manuel Villaverde Cabral, João Cravinho, Filomena Mónica, António Barreto, João de Pina-Cabral e Rui Feijó — abriram as portas a uma série de oportunidades para observar o funcionamento da política portuguesa de perto, começando com uma série de entrevistas efectuadas em 1978, focando o período da Revolução. Alguns anos mais tarde, David acompanhou a campanha de um deputado do PSD/PPD no distrito de Castelo Branco, e também as campanhas presidencial de Mário Soares e de Jorge Sampaio — trajectos narrados em detalhe na sua entrevista com Rui Feijó e Manuel Villaverde Cabral. Como nos diz David, “o que fiz em Portugal foi o que faço em França, e isso é algo diferente das técnicas modernas da ciência política: é essencialmente antropologia política e observação participante. Vai-se em campanha com as pessoas, fala-se com elas, vai-se a reuniões, e vêem-se programas de televisão — assim se observa como as pessoas reagem: é o que gosto de fazer, e o que me dá a sensação de liberdade”.

A prática e o conselho de David Goldey, e o grande número de politólogos portugueses que continua a marcar, fazem dele a ponte entre várias gerações em Portugal. Muitos dos caminhos da ciência política em Portugal passam pelo Lincoln College e pelo Portuguese Studies Workshop em St. Anthony’s, com enorme benefício para todos os que os percorrem e para a investigação no nosso país. Conversar com David alerta-nos para a diversidade e possibilidades da investigação em política, num momento em que talvez comecemos a reencontrá-las, após um período de uniformização sobre a égide dos estudos quantitativos. A experiência e a familiaridade de David com a realidade portuguesa, mas sobretudo a sua inigualável capacidade para combinar um distanciamento crítico com uma afabilidade e simpatia muito humana, fazem dele uma referência para todos os que o vão encontrando ou reencontrando em Oxford ou na casa perto da Azóia (Sintra), onde passa largas temporadas. A sua referência marca muita da ciência política nas páginas da Análise Social das últimas quatro décadas, cujo contributo é a melhor homenagem a uma pessoa excepcional.

 

Notas

1O recente festschrift de homenagem a David Goldey oferece uma biografia pessoal e intelectual mais completa, pela pena de Manuel Villaverde Cabral e Rui Feijó, amigos e colaboradores de longa data: “David B. Goldey: auto-retrato com amigos em pano de fundo”. In M. Costa Lobo, R. G. Feijó e M. Villaverde Cabral (eds.), Portugal, Uma Democracia em Construção: Ensaios de Homenagem a David B. Goldey, Lisboa, Imprensa das Ciências Sociais, 2009, pp. 11-40.        [ Links ]

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