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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  n.200 Lisboa  2011

 

Depoimento de um dos fundadores da Análise Social: Ab initio

 

Raul da Silva Pereira*

* Membro fundador do GIS.

 

A Análise Social surgiu, como revista do Gabinete de Investigações Sociais (GIS), nos princípios de 1963. Em 1988 foi publicado o seu n.º 100. Tinham passado 25 anos. Agora, à beira do meio século, temos o n.º 200. Seria difícil ocultar um sentimento de júbilo perante o êxito desta jornada, mas esse mesmo êxito obriga-nos a olhar, simultaneamente, para o passado e para o futuro.

Do futuro, outros, mais jovens, se ocuparão. Mas do que até agora foi feito, permitam-me que me associe com entusiasmo a esta comemoração, certo de que o testemunho dos mais velhos é também um alimento (apenas um) para o reforço da vontade dos mais novos. Há nesta atitude alguma satisfação — perdoem-me se for vaidade — por ter feito parte do pequeno grupo que esteve no começo. Dos poucos que sobrevivem, creio que sou também o mais velho. Mas isso mesmo me permite recuar ainda mais no tempo, para quando a Análise Social nem sequer podia ser um sonho. Quando o sonho era apenas criar um espaço para o estudo dos problemas sociais, depois ampliado para as ciências sociais em geral, e a sociologia em particular.

No n.º 100 da revista, o professor Adérito Sedas Nunes, que foi o incansável lutador para a sua criação e, depois, para o seu desenvolvimento, enquanto a frágil saúde lho permitiu, descreveu tudo o que é essencial para a compreensão das ideias que estiveram na base, não só da revista como do Gabinete de Investigações Sociais, que deu origem ao actual Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Aqui, apenas algumas reflexões pessoais e um ou outro pormenor circunstancial, justificado pelo acompanhamento constante da publicação da Análise Social durante os seus primeiros dez anos; e também pela história dos treze anos que a antecederam.

Adérito Sedas Nunes era um ano mais novo do que eu e, nos finais da década de 40, ambos éramos licenciados pelo Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras — o ISCEF, antecessor do ISEG e do ISCTE — única instituição universitária no campo dos estudos de economia até 1953, ano da criação da Faculdade de Economia do Porto. O nosso relacionamento era, portanto, muito anterior ao n.º 1 da Análise Social. E o facto de serem de nossa autoria os dois primeiros artigos que figuram na capa desse número explica a situação. Os treze anos que precederam a criação do Gabinete de Investigações Sociais (no âmbito do ISCEF e, portanto, como instituição universitária) e o lançamento da revista Análise Social, foram de grande importância para o êxito que a iniciativa veio a alcançar. Ao longo desses anos, um grupo de estudiosos debruçou-se sobre variados aspectos da temática social, consultou e juntou documentação, reflectiu, teve esperanças e frustrações, escreveu e publicou muitas coisas; e constituiu um núcleo coeso, um tanto informal, quase uma equipa de trabalho — era o Gabinete de Estudos Corporativos (GEC) e a sua revista.

Porquê a existência desse Gabinete, como surgiu e se manteve durante tanto tempo? Num país onde praticamente não existia o ensino das ciências sociais, era no ISCEF que, por via do estudo da economia — teorias, doutrinas, factos — se fazia maior aproximação a essa área extremamente vasta do conhecimento. Em 1949 concluíam a sua formatura os primeiros alunos admitidos no ISCEF logo após o fim da Segunda Guerra Mundial. Esta geração começara o curso com a imagem de um mundo dividido pela Guerra Fria e uma Europa parcialmente destruída (recordo uma recolha de géneros para os universitários de Colónia, reduzida a escombros), vivera intensamente as eleições para deputados de 1945 e terminara em plena campanha presidencial do general Norton de Matos, quatro anos depois. Assistira a um simulacro de abertura política e à repressão que se lhe seguiu: foram demitidos alguns dos nossos melhores professores universitários, entre os quais um do próprio ISCEF, o professor Bento de Jesus Caraça.

Mas às interrogações postas pelo pós-guerra — as novas fronteiras da Europa, a independência dos territórios coloniais, a vitória do trabalhismo na Grã-Bretanha, e tantas outras questões com incidências nos campos económico e social — eram inexistentes as resposta da universidade, até porque uma discussão aberta sobre estes temas não era compatível com o preceito, então vigente, da “defesa da ordem social estabelecida” — preceito suficientemente vago e abrangente para eliminar qualquer ideia de mudança.

Embora alguns temas de actualidade fossem aflorados nas aulas de economia política do professor Marques Guedes, eram sobretudo as lições do professor Pires Cardoso, na cadeira de direito corporativo, que suscitavam maior interesse. Este interesse tinha que ver, sobretudo, com a concepção de corporativismo subjacente às lições: era um corporativismo de associação, que se contrapunha ao corporativismo de estado, pelo qual se regiam as instituições do regime político português; e que também se distinguia — como se lê nos apontamentos das suas Lições de Direito Corporativo (pp. 122-123) — da experiência corporativa italiana, na qual “a organização corporativa, sendo embora fundamental, não deixava de ser um pormenor do estado fascista, visto que nem sequer a corporação tinha um alcance geral, mas se limitava ao campo das actividades económicas (...) podendo concluir-se que esta concepção totalitária era mais uma característica do regime fascista italiano do que do seu regime corporativo, este inteiramente subordinado àquele”.

Não admira, pois, que durante a viagem a Espanha dos finalistas de 1949, alguns dos participantes tenham sugerido ao professor Pires Cardoso, que os acompanhava, a criação de um gabinete, de que ele seria o director, para estudar os problemas do sistema corporativo. Seria uma forma de aprofundar matérias tratadas nas aulas, sobre as quais se geravam dúvidas e discussões, sem embargo do cuidado posto na exposição, que fazia daquela cadeira uma das mais apreciadas do ISCEF. Surgiu assim o Gabinete de Estudos Corporativos.

Como, apesar de finalista, não participei daquela viagem, também não tomei parte na decisão. Tão-pouco assisti aos primeiros passos da fundação do Gabinete, o qual fui encontrar no ano seguinte, já “instalado” (numa sala com cerca de 10 m2 de umas águas-furtadas) no Centro Universitário da Mocidade Portuguesa, na Praça das Flores, n.º 51. A inserção do GEC naquele Centro fora a única possibilidade de instalação não só material, mas até mesmo institucional, que o professor Pires Cardoso encontrara para poder desfrutar de um apoio mínimo que lhe permitisse publicar uma revista sobre as matérias em questão, a qual surgiu com o nome de Revista do Gabinete de Estudos Corporativos.

Verdade seja que o GEC veio a ser um espaço de discussão de ideias bastante livre, apesar de inserido numa organização com aquelas características. De facto, a Mocidade Portuguesa nunca interferiu em qualquer aspecto da vida do Gabinete, cujos membros nem sequer eram seus filiados, ao longo dos treze anos da sua precária existência. Para isso terá talvez contribuído o facto de a MP estar já então distante da sua militância inicial. Esta tolerância reflectia de algum modo o vazio ideológico das instituições mais representativas do regime, ao albergar um gabinete de estudos que em matéria de corporativismo — a doutrina oficial do regime — se revelava mais como um poço de dúvidas do que como um alfobre de certezas.

Mas o segredo da sobrevivência do GEC teve também outras componentes. Uma delas foi o “estilo” da sua actuação, cuja importância se iria revelar enorme na fase de transição para o Gabinete de Investigações Sociais. Efectivamente, uma análise do conteúdo da Revista do GEC revela-nos o apagamento progressivo dos temas de natureza corporativa — cuja existência ia no entanto justificando a da própria revista — e o crescimento paralelo dos temas de carácter social, muitos deles ligados à problemática do trabalho e da empresa. Cerca de três quartos do espaço ocupado por artigos e trabalhos de investigação originais a partir de 1956 versaram assuntos não directamente relacionados com a temática corporativa. O GEC aproveitou toda a margem de manobra que era possível nas condições difíceis em que trabalhava. Todos tínhamos a consciência de que não poderíamos abusar da “cobertura ideológica” do professor Pires Cardoso — um corporativista convicto em progressivo desencanto — e sabíamos que seria muito difícil encontrar solução alternativa que não fosse a extinção pura e simples do Gabinete, o que significaria a perda total do trabalho já realizado.

Do núcleo inicial de colaboradores destacam-se Xavier Pintado e Francisco Pereira de Moura, logo no n.º 1 (1950); Adérito Sedas Nunes surge a partir do n.º 9 (1952), Maria Manuela da Silva a partir do n.º 20 (1954), Mário Murteira do n.º 33 (1958). A indicação destes nomes pode parecer uma injustiça para os muitos que aqui faltam, mas teve a única preocupação de recordar os primeiros com trabalhos publicados na revista do GEC, e alguns dos que continuaram nas páginas da Análise Social, tendo participado na sua transição. A colecção completa da revista aí está para testemunhar, com as suas virtudes e defeitos, todos quantos fomos e tudo o que fizemos.

Mas por maiores que fossem os esforços desenvolvidos por este pequeno grupo e pelos outros colaboradores que se lhe juntaram, quase sempre ocasionais, a revista continuava a dirigir-se quase exclusivamente para assinantes, parte deles de carácter institucional, como o próprio Ministério das Corporações, que deste modo ajudava a suportar as despesas do seu funcionamento. O público, mesmo o de nível universitário, ignorava-a. E quando Sedas Nunes escreve no deu depoimento que “o Gabinete, praticamente, não tinha audiência exterior”, poderei acrescentar um episódio que bem o demonstra: no sentido de reforçar os argumentos favoráveis a uma mudança que se impunha, tomei a iniciativa de apresentar numa das reuniões em que se discutia o futuro do Gabinete, os últimos resultados conhecidos sobre a venda directa da revista; e lembro-me que do último número publicado se tinham vendido ao público apenas dois exemplares! Este simples facto calou fundo no espírito do professor Pires Cardoso, cuja sensatez era sobejamente conhecida.

A criação do Gabinete de Investigações Sociais representou de facto uma ruptura, embora disfarçada, por motivos óbvios. Mas esta ruptura estava de há muito latente, traduzindo-se pelo quase total apagamento dos temas corporativos e pelo maior desenvolvimento possível dos temas sociais em geral. Ao longo dos doze anos da Revista do GEC1foram muitos os cuidados a ter. E, provavelmente, foi a chancela da Mocidade Portuguesa que evitou uma análise mais atenta por parte da “mesa censória”, em matéria ideológica. Mas na passagem do GEC para o GIS esses cuidados não foram menores. O editorial do último número da Revista do Gabinete de Estudos Corporativos (o n.º 48), intitulava-se “A transferência do Gabinete para a Universidade Técnica”, e nele se diziam palavras tranquilizadoras: “antecipadamente se conta com a aquiescência dos actuais assinantes desta revista, no sentido de considerarem como sua continuação a nova revista a lançar”. O conhecimento de qual seria a tal “nova revista a lançar” viria a ser dado depois, caso a caso, aos assinantes da antiga. Mas ao surgir o primeiro número da nova revista — a Análise Social — nem a mais pequena referência é feita ao Gabinete de Estudos Corporativos e à revista cessante. Porque se queria que tudo começasse de novo. “A revista Análise Social — diz-se na apresentação — é uma publicação trimestral editada pelo Gabinete de Investigações Sociais, recentemente criado na Universidade Técnica de Lisboa e funcionando junto do Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras”. Assim, sem mais! Como se tudo começasse ali! Era uma espécie de divórcio por mútuo consentimento, mas evitando testemunhas incómodas. A Análise Social deveria ser julgada (e só) pelo que viesse a ser.

É também a altura de abrir aqui um parêntesis sobre o nome da nova revista. Porque havia dois nomes possíveis; e porque a opção escolhida tem um significado próprio. Assim, se o novo Gabinete se chamava “de Investigações Sociais”, natural seria que a nova revista se chamasse Investigação Social. Porquê, então se optou por Análise Social? Agora, passado meio século, a memória recusa-se a enumerar os prós e os contras de ambos aqueles nomes, embora já houvesse um paralelismo com o Gabinete de Investigações Económicas, também no ISCEF, cuja revista se chamava Análise Económica. Mas não estaremos muito longe da verdade se dissermos que o nome Investigação Social sugeria mais o estudo de teorias e de doutrinas, enquanto Análise Social se afigurava mais abrangente, comportando também as políticas de cariz social, de que o país tanto carecia, e para as quais a população universitária se mostrava tão sensível. A prová-lo esteve o rápido esgotamento dos 3000 exemplares do n.º 7-8, sobre “Aspectos sociais do desenvolvimento económico em Portugal”, logo no ano seguinte ao arranque da revista, como “número especial comemorativo do cinquentenário do ISCEF”. E não há exagero se dissermos que a publicação desse número marcou definitivamente o futuro da Análise Social.

A partir de então, sentíamos algum peso a menos sobre as nossas cabeças, que continuavam, no entanto, a aspirar a mais do que era possível. Por isso, a prudência (estilística, mas não só) iria manter-se durante mais outros doze anos, até 25 de Abril de 1974. Mas, pelo menos, o rótulo já não comprometia ninguém. O selo da Universidade Técnica de Lisboa, impresso nas capas da Análise Social (até 1970) era a garantia de nova rota, mais ambiciosa e mais segura. Entretanto, o apoio dos dois Ministérios, da Educação e das Corporações, manteve-se com a assinatura de um certo número de exemplares, como se nada tivesse acontecido. Adérito Sedas Nunes explica, no já citado depoimento, a importância política desse apoio, à luz das atitudes dos respectivos ministros.

Nesta “cobertura política”, se assim lhe poderemos chamar, havia porém uma certa ambiguidade ou, para sermos mais precisos, havia os limites decorrentes do sistema político vigente e das suas instituições operacionais. Recordo, por exemplo, que o único breve contacto com a censura não foi com a Revista do GEC, mas com a Análise Social, por causa da publicidade à revista: um anúncio que foi publicado no Diário Popular, mas recusado ao Diário de Lisboa. A dúvida, que estava no facto de se publicitar “uma revista universitária de temas sociais” — palavras-chave que estariam muito mal vistas nos serviços da censura! — foi prontamente sanada com a invocação dos ministérios patrocinadores, e a inscrição de mais um nome na lista de ofertas da Análise Social...

Episódios destes, que hoje recordamos como anedóticos, balizavam, pela simples possibilidade de acontecerem, o debate sadio das ideias. Alguns temas importantes, como tudo o que se referisse a África, eram com frequência omitidos: apenas três trabalhos sobre temas africanos, dois deles do saudoso Alfredo de Sousa, foram publicados antes de 1974. Recordo, como exemplo, “Les socialismes africans”, do filósofo francês Jean-Yves Calvez, que chegou a estar programado para um dos números da revista e, por fim, resolvemos não publicar.

No citado depoimento de Sedas Nunes, deparamos a certa altura com as seguintes palavras: “Agora como ontem, agora como há vinte e cinco anos, nem a revista nem o Instituto, se quiserem manter-se no espaço cultural que a própria revista e o GIS abriram, podem deixar-se absorver pela preocupação obsessiva de estudar problemas sociais, económicos, políticos ou culturais (...), muito menos pelo intuito de para eles encontrar soluções; mas também não podem alhear-se olimpicamente deles na escolha dos seus temas e campos de investigação”. Palavras estas que subscrevo inteiramente. Foi essa, aliás, a intenção inicial, embora num contexto político muito diferente. Uma intenção que ficou patente logo no primeiro número. E que continua a corresponder a necessidades diversas, mas todas igualmente válidas e actuais.

 

Notas

1 A Revista do GEC publicou-se de 1950 a 1961; 1962 foi um ano consagrado à organização do GIS  e a Análise Social só aparece em 1963.

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