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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.202 Lisboa  2012

 

A heráldica em Portugal no século XIX: sob o signo da renovação*

 

Miguel Metelo de Seixas**

**CHAM-IEM/FCSH-Universidade Nova de Lisboa; e-mail: miguelmeteloseixas@gmail.com

 

Resumo

Os fenómenos revolucionários do século XIX tiveram profundos reflexos sobre a heráldica portuguesa. Por intervenção governativa, a renovação envolveu tanto os emblemas dinásticos e estatais, como os dos municípios, não só de um ponto de vista formal, mas também pela alteração do seu impacto como cultura visual. Em simultâneo, a heráldica de família e a eclesiástica decaíram, em favor da heráldica associativa, militar, comercial e imaginária. O saber da armaria declinou na razão inversa da aplicação da heráldica às formas literárias, artísticas, propagandísticas e publicitárias da sociedade contemporânea. O século XIX foi crucial para a renovação da heráldica portuguesa.

Palavras-chave: heráldica; sociedade; representação; século XIX; revolução.

 

Portuguese heraldry in nineteenth century: under the sign of renovation

Abstract

The revolutionary phenomena of the nineteenth century had profound consequences on Portuguese heraldry. Through governmental intervention, the renovation included dynastic, national, and municipal emblems, not only regarding the formal point of view, but also by altering its impact as visual culture. At the same time, familiar and ecclesiastical heraldry yielded to associative, military, commercial, and imaginary heraldry. The ancient knowledge of blazon also declined in inverse ratio to the application of heraldry to literature, art, advertising, and propaganda. The nineteenth century was therefore crucial for Portuguese heraldry renovation.

Keywords: heraldry; society; representation; nineteenth century; revolution.

 

Introdução

O estudo da heráldica portuguesa, que permanece geralmente distanciado dos temas tratados pela investigação universitária, tem até agora privilegiado um enquadramento cronológico e social preciso: o da heráldica das famílias da nobreza entre a Idade Média e o período Moderno. O escopo do presente trabalho consiste em chamar a atenção para a importância de que a heráldica se revestiu, como forma de representação da organização política e social, no período da monarquia constitucional; e, bem assim, mostrar como o uso de insígnias heráldicas extravasava em muito o quadro restrito da nobreza. Para esse efeito, serão sucessivamente analisados os usos emblemáticos de diversas entidades que recorreram à representação heráldica: a dinastia e o Estado; os municípios; as famílias da nova aristocracia; o clero; associações e empresas; e entidades imaginárias. Para cada uma destas categorias, procurar-se-á mostrar de que forma a revolução que atingiu a sociedade portuguesa oitocentista se repercutiu na autorrepresentação que os diversos agentes sociais construíram de si próprios por via da heráldica; e também se avaliará o impacto diferenciado que estes diversos tipos de armas tiveram na renovação semiológica da heráldica, consubstanciando a sua integração numa cultura industrial, burguesa e liberal. Por fim, caracterizar-se-á a produção de obras heráldicas oitocentistas, comparando-a com a do Antigo Regime, de forma a avaliar até que ponto também ela se modificou em contacto com este século revolucionário.

 

Heráldica dinástica e estatal

A transferência da família real e da corte portuguesa para o Brasil em 1807 trouxe uma série de consequências imprevisíveis, algumas das quais do foro heráldico. Com efeito, poucos anos após a sua chegada, o príncipe D. João instituiu, a 8 de Maio de 1810, um corpo de oficiais de armas na nova sede da monarquia.1 Nessa ocasião, o regente alterou a tradicional composição da corporação tal como existia desde o reinado de D. Manuel i, criando o cargo de rei de armas América, Ásia e África, disposição que veio a provocar acesa contenda jurídica com o rei de armas Portugal. De certo modo, os problemas decorrentes de tal situação teriam sido previsíveis. Afinal, tratou-se de mais uma vertente da duplicação das instituições régias, com a série de emulações e conflitos que daí decorreram. Imprevisível, em contrapartida, foi o efeito que a transferência teve sobre as próprias armas reais.

Por Carta de Lei datada de 16 de dezembro de 1815, o príncipe regente elevava o Brasil à condição de reino, em paridade com os de Portugal e dos Algarves, formando o conjunto uma tríplice monarquia denominada Reino Unido de Portugal e do Brasil e Algarves. O falecimento da rainha D. Maria I, a 20 de março de 1816, veio alçar à realeza aquele que há muito exercia o cargo de regente no impedimento da sua mãe, e por essa via reforçar o conjunto de disposições operadas no sentido de concretizar a política de afirmação do reino do Brasil.

Entre essas disposições, contou-se desde logo a criação dos símbolos do novo reino. Para esse efeito, D. João VI expediu a Carta de Lei de 13 de Maio de 1816, que vinha criar oficialmente a heráldica do Brasil e regulamentar a do Reino Unido (Sameiro, 1976; Seixas, 2001, 2008a). O preâmbulo deste documento faz uma referência explícita a um antecedente histórico, referindo-se à ideia de “incorporar em hum só Escudo Real as Armas de todos os tres Reinos, assim; e da mesma fórma que o Senhor Rei Dom Affonso Terceiro, de Gloriosa Memoria, Unindo outróra o Reino dos Algarves ao de Portugal, Uniotambem as suas Armas respectivas”2. Esta atitude inseria-se na mentalidade da época: na fase final do Antigo Regime, plena de mudanças amiúde difíceis de compreender e de controlar, os homens tendiam a apegar-se ao passado, invocando-o mesmo (ou sobretudo) quando se encontravam a criar realidades novas. Até os revolucionários entusiastas, filiados no movimento das Luzes e adeptos da supremacia da Razão, partiam do pressuposto de que, ao combaterem as desigualdades tradicionais e ao erguerem uma sociedade mais justa, estavam na verdade a restaurar uma realidade primitiva, a recuperar um equilíbrio perdido durante séculos (Cassirer, 1961, p. 225). Do mesmo modo, ao inventar as armas do Reino Unido, foi-se procurar um antecedente histórico na suposta incorporação da heráldica do reino do Algarve nas armas reais por D. Afonso III.

A ideia básica dos criadores das armas do Reino Unido retomava, pois, o conceito do somatório das armas dos reinos que o compunham. Outra questão era a forma que essa soma tomaria. Está claro que o caso anterior – as supostas armas do Algarve – não serviam de modelo, se é que alguma vez se pensou nesta possibilidade: como se poderia incorporar mais uma bordadura, e como adequar a esfera armilar à bordadura? A solução mais normal, conforme à prática corrente, apontava para uma simples partição do escudo: não era essa a forma adotada, quase universalmente, pelas monarquias europeias do século XVIII? Contudo, não se optou por esta solução.

A solução escolhida revelou-se, na verdade, inovadora. Optou-se por fazer figurar as armas do Brasil num escudo de formato redondo, totalmente preenchido pela esfera; sobre este escudo, colocaram-se as armas do reino de ­Portugal e dos Algarves; e, sobre o conjunto, impôs-se a coroa real fechada. A escolha de um escudo redondo não parece difícil de explicar. Tal forma era adequada, por um lado, à representação de uma esfera, e, por outro, à presença em moedas. Já no reinado de D. João V as próprias armas reais portuguesas haviam assumido a forma redonda em algumas das suas moedas, como as dobras. Era também uma forma corrente nas armas de algumas monarquias europeias, das quais se destaca a francesa (Pinoteau, 1998, pp. 31-120).

Trata-se, na verdade, de um processo original de conjugar as armas dos dois (ou três) reinos. Sem qualquer pretensão de saber o que terá ditado esta escolha tão pouco usual, repare-se no facto de o escudo de Portugal – centro histórico da monarquia – se encontrar efetivamente ao centro da composição; tendo à sua volta a esfera, como se fosse o império ultramarino fruto da sua dilatação. E essa mesma esfera, símbolo do Brasil, encontrava-se a suportar o escudo de Portugal, assim como o Brasil, na realidade, se revelava como sustentáculo da monarquia lusa.

Embora raras, existem provas de que, por vezes, as armas de cada reino foram usadas de forma claramente distinta, como elemento identificativo apenas do reino em questão. O vestígio mais significativo desse uso parcelar das armas de cada um dos reinos encontra-se nas próprias insígnias solenes da realeza, mandadas realizar por D. João VI em 1817, nomeadamente o cetro e o manto (Godinho, 1992, pp. 132-133; Guedes e Taxinha, 1980, pp. 66-68; Rodrigues, 1999, pp. 177 e 394).

Importa reter que o documento promulgado em 1816 correspondia a uma medida pela qual a Coroa legislava sobre a composição da sua representação heráldica, que era assim dotada de um caráter legal. Pela simbólica então instituída, a Coroa assumia-se como constituída pela junção de entidades políticas diversificadas, cada qual dotada de territórios próprios, unidas por um passado histórico partilhado e sob a égide de uma dinastia comum. Cada uma dessas três entidades político-territoriais tinha os seus emblemas próprios, simbolicamente expressivos da comunhão histórica e dinástica que os envolvia, os quais se fundiam nas armas do Reino Unido. Assim, o advento do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves aparece diretamente relacionado com a manifestação de uma consciência da simbólica do território na heráldica oficial.

As armas do Reino Unido tiveram uma existência efémera, pois deixaram de ser usadas após a morte de D. João VI, em 1826, quando a abdicação de D. Pedro arredou de vez a hipótese de reunião das Coroas portuguesa e brasileira. Tratou-se de um momento crucial para a emblemática estatal de ambos os países. Com efeito, caso D. Pedro iv, reconhecido como sucessor da Coroa pela regência de D. Isabel Maria, houvesse assumido o trono e, ­consequentemente, reunificado as duas monarquias, seria possível que retomasse as armas do extinto Reino Unido. Mas D. Pedro abdicou do trono português em sua filha D. Maria da Glória. Ora, pelas leis de transmissão heráldica, e do ponto de vista meramente dinástico, as armas reais portuguesas cabiam ao filho varão de D. Pedro, aquele que viria a ser o imperador D. Pedro II do Brasil, como chefe da dinastia. Excluindo D. Pedro IV, era seu filho D. Pedro II o natural herdeiro das armas de seu avô D. João VI, quer no que respeita à heráldica do Reino Unido, quer às armas reais portuguesas.

O critério dinástico não foi seguido. Em vez dele, prevaleceu o conceito institucional. Por altura da abdicação de D. Pedro IV, as armas do Reino Unido já não correspondiam a nenhuma realidade política efetiva. Quanto às armas reais portuguesas, acompanharam a transmissão da Coroa portuguesa a D. Maria II. O filho varão de D. Pedro IV, seguindo o mesmo princípio, ficou com as armas imperiais brasileiras. Esta solução pode parecer evidente aos nossos olhos. Mas não o era em termos dinásticos, e prova que, na época, as armas reais portuguesas estariam primordialmente ligadas à simbólica da Coroa, e só subsidiariamente à da dinastia.

Assim, em 1826, o regresso das armas reais portuguesas à modalidade pré-1816 pareceu normal. Não se conhece contestação de uma solução que teoricamente contrariava os princípios dinásticos de transmissão das armas. O que implica que tais princípios não tinham peso, na época, sequer para serem tidos em conta, quando subjugados pela dimensão estatal. Pela mesma ordem de razões, quando D. Pedro regressou a Portugal para apoiar a causa liberal e a realeza de sua filha em luta contra D. Miguel, assumiu o título de duque de Bragança e, ao mesmo tempo, passou a usar as antigas armas desta Casa, na sua primitiva modalidade (Azevedo, 1999, pp. 453-466). Escolha insólita, quando se tem em mente que tal ordenamento havia deixado de ser usado em finais do século xv. A vontade de separar os usos dinásticos dos estatais, claramente afirmada pela opção tomada por D. Pedro, inscrevia-se, é certo, num contexto em que o portador das insígnias detinha um estatuto incerto: ex-rei, ex-imperador, tomara a regência sem mais direito que a sua vontade e a anuência dos liberais exilados (não todos, porém), da mesma forma que passara a ostentar o título ducal brigantino numa eventual referência ao facto de ser herdeiro da sua filha enquanto esta não tivesse descendência. Mas o precedente aberto por D. Pedro acabou por ter eco mais tarde. O príncipe herdeiro D. Carlos, quando recebeu das mãos de D. Luís o governo dos bens da Casa de Bragança e o respetivo título, passou a usar aquelas mesmas armas ducais. E mesmo depois de rei, continuou a ostentá-las sempre que queria vincar que a sua presença tinha um caráter particular e não oficial (Azevedo, 2009). O que prova que as armas reais, definitivamente, haviam balançado para o entendimento quase exclusivo como armas do reino, no sentido político-institucional, territorial e nacional. Isso mesmo haveria de determinar a sua manutenção na simbólica do Estado, mesmo depois de proclamada a República, com a natural exclusão da coroa, que representava a própria instituição monárquica.

 

Heráldica municipal

Em simultâneo com as profundas modificações a que as armas reais foram submetidas, verificou-se também a ingerência do Estado em matéria que até então havia permanecido fora da sua alçada. Com efeito, inaugurou-se uma política de concessões régias pelas quais se procedia ao acrescentamento das armas municipais como instrumento de recompensa pela participação de determinadas localidades em atos cívicos e militares considerados notórios. A criação de insígnias falerísticas precedeu e influenciou, neste sentido, a dimensão heráldica. Com efeito, em recompensa ao celebrado ato dos pescadores olhanenses que atravessaram o Atlântico num caíque para irem levar ao regente a notícia de que se iniciara no reino um movimento generalizado de expulsão das tropas francesas, o príncipe D. João decretou em 1808 a elevação do lugar de Olhão a vila, com o nome de Olhão da Restauração, e concedeu aos seus moradores o uso de uma medalha alusiva ao ato: “Permito outro-sim, que os habitantes dela usem de uma Medalha na qual esteja gravada a letra – O – com a legenda – Viva a Restauração e o Principe Regente Nosso Senhor”3. Em consequência desta concessão régia, o município olhanense, criado somente em 1826, veio a assumir um escudo partido: de um lado, figuravam as armas reais, do outro a letra O com a legenda Viva a Restauração e o Principe R[egente] N[osso] S[enhor], em orla.4

Mais significativo da intervenção estatal sobre a heráldica autárquica se afigurou o procedimento tomado pela regência de D. João em 1813: pela Carta de Lei de 13 de maio, as armas da cidade do Porto eram aumentadas com dois braços armados, colocados a encimar as torres que já figuravam no brasão original, um deles erguendo uma espada enramada de louro, o outro um estandarte com as armas reais. O acrescentamento honroso destinava-se a relembrar a sublevação da urbe contra os invasores franceses no ano de 1808. Na sequência da concessão, a Câmara Municipal do Porto tomou uma iniciativa inédita, ao solicitar que lhe fosse passada pelo rei de armas Portugal uma carta de brasão com o novo ordenamento, que pudesse servir de modelo para as variadas aplicações das insígnias:

 

Porque cumpre que as Armas da Cidade, assim accrescentadas por Mercê de V. Magestadeapareção sempre uniformes ou sejão gravadas, esculpidas, ou pintadas, e isto só pode observar-se havendo hum padrão que sirva de governo: reccorrem os Supplicantes a V. Magestade para que se digne haver por bem ordenar que o Rei d’Armas Portugal, ou quem suas vezes fiser, desenhe e lhes dê hum Escudo em que segundo os preceitos geraes da Heraldia [sic] apareção as antigas Armas, acima descriptas, com o accrescentamento […].5

 

Em 1824, a concessão portuense foi objeto de pequenas mas significativas alterações, que remetiam para a atualização da simbólica estatal, com inclusão das insígnias do reino do Brasil. Tanto no caso de Olhão como no do Porto, a Coroa assumia, pois, um papel de interferência direta nas insígnias municipais, quer pela criação de armas, quer por acrescentamento honroso a um brasão já existente e dotado de acréscimos que tinham a ver com a sua fidelidade à própria Coroa. Tais procedimentos já existiam e eram usuais na heráldica de família. Mas não na armaria municipal. As concessões do príncipe regente D. João apareciam não só como novidades, mas também como atos isolados. Cedo, porém, se lhes juntariam outros.

Assim, no rescaldo da vitória das forças liberais na guerra civil de 1828-1834, foram doados acrescentamentos como forma de assinalar o envolvimento heroico de certas povoações na luta contra D. Miguel. O Porto, bastião da causa liberal, recebeu do regente D. Pedro, por Decreto de 4 de abril de 1833, a Ordem da Torre e Espada, com menção expressa de que o respetivo colar deveria passar a figurar em redor do escudo, bem como a denominação de invicta. Por Decreto de 14 de janeiro de 1837, redigido por Almeida Garrett e promulgado por Passos Manuel em nome de D. Maria II, as armas ­municipais desta cidade foram ainda engrandecidas de forma substancial: esquarteladas com as reais, receberam um escudete sobre-o-todo carregado com um coração de ouro, passando a ser encimadas por um coronel de duque do qual irrompia em timbre o dragão sainte de verde da Casa Real, tal como se usava então (Azevedo, 1989, pp. 21-38). Esta série de acrescentamentos comemorava a resistência contra o cerco miguelista e traduzia a ligação privilegiada do defunto regente D. Pedro com a cidade à qual legara o seu coração.

O governo de Passos Manuel revelou uma propensão inédita para concessões similares, por vezes aliadas a uma alteração toponímica que expressava a fidelidade aos valores liberais vitoriosos. Assim, a 7 de dezembro de 1836, a vila de Punhete passou a denominar-se Constância, recebendo um escudo partido: no primeiro campo figuravam as armas reais; no segundo, de prata, uma bandeira partida de azul e de prata, brocante uma banda de vermelho carregada com a legenda a rainha e a carta em letras de ouro; bordadura de azul carregada da legenda constante firme e leal só constância soube ser em letras de ouro; o escudo era encimado pela coroa real fechada, envolto pela fita e insígnia da Ordem da Torre e Espada, e ladeado por dois ramos de loureiro de verde passados em aspa. Por Decreto de 12 de janeiro de 1837, duas cidades açorianas receberam também mercês heráldicas. Angra, que passava a chamar-se do Heroísmo, ostentava um escudo esquartelado, com o primeiro e quarto campos de vermelho, com um braço armado empunhando uma espada, tudo de prata; o segundo e o terceiro de prata, com um açor de negro; escudete sobre-o-todo de Portugal-Antigo; coroa mural tendo em timbre um braço do escudo sainte; e, a circundar o conjunto, o colar e insígnia da Ordem da Torre e Espada. À vila da Praia, cognominada da Vitória, era atribuído um escudo cortado, tendo no primeiro em campo de vermelho, uma torre de ouro, no segundo, de prata uma nau de negro, vestida e embandeirada de vermelho e de azul, navegando sobre ponta ondada do mesmo; escudete sobre-o-todo de prata com a legenda onze de agosto de 1829 em letras de azul; coroa naval tendo por timbre uma torre de negro com uma bandeira partida de azul e de prata hasteada. Em data incerta, por fim, a vila de Almada recebeu o acrescentamento de um chefe de prata carregado com uma coroa real fechada, também em memória da sua participação na guerra civil, por ter servido de ponto de partida para a tomada de Lisboa a 24 de julho de 1833.

Todas estas concessões revelavam elementos comuns. Antes de mais, elas correspondiam a uma forte valorização de símbolos representativos do novo regime que se impusera ao reino. Na toponímia, eram fixadas as virtudes cívicas e militares que se deviam recordar: a constância, o heroísmo, a vitória. Já nos ordenamentos heráldicos, algumas figuras reenviavam para a representação de feitos militares, tal como o braço armado, a torre ou a nau; também se incorporavam nas armas a legenda alusiva à data de uma vitória alcançada, bem como as coroas alusivas ao caráter cívico (a mural, copiada dos antigos usos romanos) ou à vitória naval. Mas era de longe predominante a presença de insígnias que lembravam a soberania régia (coronel ducal, armas reais, escudete de Portugal-Antigo, dragão) ou, mais especificamente, aqueles que se consideravam como símbolos exclusivos do novo regime: a bandeira azul e branca, cujas cores eram também escolhidas para esmaltes de certos campos e figuras das armas, e a menção expressa da carta constitucional, cuja representação ornamentava outrossim a insígnia da Ordem da Torre e Espada, então refundada com o intuito declarado de premiar os que haviam combatido pela causa liberal. Também se aludia expressamente à rainha, alçada a figura tutelar em nome de cujos direitos se havia travado o combate.

Por via da disseminação destes signos próprios, a monarquia constitucional construía um repertório simbológico distinto daquele que fora usado durante o Antigo Regime. Procurava-se deste modo reforçar a legitimidade da nova organização política, vincando os princípios que constituíam a sua base cívica e difundindo a sua simbólica exclusiva, com realce para as cores azul e branca. Pode salientar-se, aliás, a ligação sentimental ou emotiva que se procurava construir entre os cidadãos e os símbolos da nação, em particular a bandeira. Alexandre Herculano (1910 [1832], p. 85), ao testemunhar o momento em que o exército reunido por D. Pedro IV para combater D. Miguel finalmente desembarcava no Mindelo, evocava a cena nos seguintes termos:

 

O sitio onde deviamos desembarcar era um extenso areal, cercado de pequenas collinas [...]. Das embarcaçoenssairam alguns marinheiros, e foram cravar uma bandeira n’um monticulo de area, e ninguem ousou contradizer-lhes. Era este o pendão da liberdade, como nós, foragido, e em quanto elle era alli plantado, juravamos nós astea-lo sobre todas as montanhas da patria, e fazer curvar os tyrannos ante elle, ou perecer nesta gloriosa empreza.

 

Um pouco adiante, o escritor e, na ocasião, soldado, relatava que no fim desse mesmo dia o imperador, como era tratado D. Pedro, arengou os seus companheiros de armas e entregou-lhes, em memória daquele dia glorioso, uma bandeira azul e branca:

 

Curtas foram as suas palavras e o silencio nossa resposta. Um soldado, para isso escolhido, saiu das fileiras a recebe-la. Era homem ja entrado em annos. A barba branca lhe caía no peito, avultando sobre a negridão das armas que vestia. Abraçado com o pendão o bom do velho ficou por largo espaço mudo, e as lagrymas lhe corriam pelas faces, que padecimentos, e annos tinham sulcado, e um intimo soluçar e longo choro se ouvia por todos os lados, que asselavam o juramento de vencer ou morrer [Herculano, 1910 [1832], p. 87].

À dimensão patética da cena, juntava-se um caráter de epifania reconhecido e sentido pelos presentes, no dizer de Herculano: a bandeira era a um tempo manifestação simbólica e presença concreta da nação e do ideal por que aqueles soldados combatiam. Note-se, por fim, que os ordenamentos concedidos revelavam um grau de similitude com a heráldica de família que, até então, se havia omitido na autárquica, nomeadamente quanto ao uso do esquartelado, das condecorações e, em menor medida, da coroa (Sameiro, 1986a, p. 98)

A política de criação ou de acrescentamento das armas municipais continha ainda outra característica intrínseca para a qual se deve atentar. Independentemente do teor das insígnias, o princípio em si afigurava-se inovador. Haviam até então existido, é certo, algumas alusões a armas de concelhos concedidas ou acrescentadas por reis de Portugal. Mas não passavam de relatos mais ou menos míticos, desprovidos de suporte documental; e mesmo que tal existisse, seriam sempre casos esporádicos. A verdade é que, até ao século XIX, a Coroa evitara imiscuir-se num assunto que não considerava do seu foro. As insígnias identificativas dos concelhos – de cuja origem se havia, na maior parte dos casos, perdido a memória –, eram assumidas pelas entidades representadas sem necessidade de confirmação ou de sancionamento por parte do rei e dos seus oficiais competentes em matéria de armaria. Nem o poder central promovia qualquer ingerência no domínio da escolha das armas municipais, nem os concelhos procuravam obter a aprovação da Coroa para os sinais que usavam para a sua identificação.

Houvera, no entanto, outras formas heráldicas pelas quais se expressara, no Antigo Regime, a relação entre poder central e poder local. Alguns concelhos adotaram como próprios certos elementos identificativos do monarca, nomeadamente as armas reais (escudo, coroa, anjos tenentes), as empresas de certos soberanos (o pelicano de D. João II, a esfera armilar de D. Manuel I e de D. João III, as setas de D. Sebastião) ou a cruz da Ordem de Cristo, de que os soberanos foram governadores a partir do reinado do Venturoso. Do ponto de vista heráldico, tal procedimento constituía um abuso, visto que as armas eram estritamente identificativas do rei de Portugal e, por extensão, do seu reino. Como tal, podiam ser usadas pelas entidades, magistrados ou ­oficiais que representavam o monarca. O que não era o caso dos concelhos. Esta indevida apropriação das insígnias régias levanta questões difíceis de resolver. O estudo do fenómeno aguarda um levantamento das ocorrências, que permita compará-las e tirar conclusões alicerçadas (São Payo, 1972). Entretanto, a visão geral decorrente do armorial compilado por José Marques da Silva em meados do século XIX, bem como o estudo de alguns casos específicos, permite avançar algumas hipóteses. É possível que pela apropriação das insígnias régias os municípios pretendessem exprimir a relação privilegiada que mantinham com a Coroa, de cuja autoridade relevavam diretamente. Aplicando a mesma lógica aos concelhos que dependiam de determinado poder senhorial, verifica-se que estes adotaram por vezes as insígnias dos respetivos senhores, quer se tratasse de armas de família, de ordens militares, de ordens religiosas ou mesmo de empresas. De resto, era comum a figuração dos sinais identificativos do rei ou dos senhores nos principais símbolos da administração e da justiça locais: o pelourinho e a carta de foral. A transposição dessas insígnias para outras manifestações, como estandartes, selos e pedras de armas, pareceria natural. Mesmo que nessa passagem o sentido original da presença das insígnias régias ou senhoriais sofresse uma transmutação de peso: no pelourinho como na carta de foral, elas representavam a autoridade em cujo nome se exercia a justiça ou se promulgava o documento, ao passo que as demais manifestações deveriam ser propriamente identificativas do concelho. Uma solução intermédia passava pela representação conjunta das armas reais e das municipais. Pelo que se conhece do fenómeno6, pode afirmar-se que aquelas eram figuradas em posição honrosa, ora em cima, ora à dextra; ao passo que estas assumiam uma localização subalternizada, ora em baixo, ora à sinistra, omitindo-se mesmo, por vezes, incluí-las dentro de um escudo. Desta forma, a representação conjunta espelhava a relação de poder existente entre o soberano e o município, funcionando como sinal de reconhecimento e respeito pela suprema autoridade régia.

Assim, até ao advento do liberalismo e da centralização do Estado que ele acarretou, as armas municipais ou exprimiam simplesmente a realidade administrativa local, ou eram figuradas em vizinhança e subordinação às régias. Tratava-se de uma demonstração simbólica da relação existente entre o poder central e o poder local no Antigo Regime, em que uma plena sujeição teórica se conjugava sem percalços de maior com a prática de uma ampla autonomia e com o cultivo das idiossincrasias locais. De qualquer forma, mesmo quando os concelhos se apropriavam das insígnias do poder régio, tal ato não resultava de uma imposição deste, mas sim de uma opção que as edilidades tomavam, aliás sem consultar a autoridade heráldica existente no reino, ou solicitar autorização a qualquer outra entidade. Nesse sentido, a adoção das armas ou das empresas régias continuava a ser uma forma de heráldica assumida, semelhante à que se verificava nas armas municipais.

A política de concessões iniciada na regência do príncipe D. João e ampliada no reinado de D. Maria III inscrevia-se como outra das formas de afirmação do Estado centralizado. Quer pela criação das armas do Reino Unido, quer pela outorga de armas municipais, o Estado passava a avocar uma função normativa fora do âmbito restrito da heráldica de família, a que até então se confinara. Logo tal prática se estenderia e daria mais frutos. Em 1837, a povoação de Sabrosa, na sequência da sua elevação à condição de vila no ano anterior, solicitou à rainha que lhe concedesse armas. Obteve-as por Decreto de 12 de maio. As insígnias concedidas a Sabrosa não lhe advinham de feito algum: apenas correspondiam à expressão de uma nova dignidade administrativa alcançada pela povoação. Mas as circunstâncias da criação das armas foram significativas, pois o concelho solicitou e auferiu do governo, por decreto, um determinado ordenamento. Tal situação expressava duas realidades complementares: por um lado, o Estado chamava para si a criação da heráldica municipal; por outro, certos concelhos mostravam-se dispostos a reconhecer-lhe tal autoridade.

A afirmação dessa capacidade revelou-se, contudo, bastante parcelar. O Estado procurou, decerto, estendê-la desde logo aos domínios ultramarinos. Por Decreto de 22 de outubro de 1844, foram atribuídas armas à cidade da Praia e à vila de Santa Catarina, ambas na ilha de Santiago, arquipélago de Cabo Verde. Os ordenamentos concedidos incluíam uma inovação importante para o futuro da heráldica ultramarina portuguesa: o princípio de que tais armas deviam compreender, além de signos específicos das povoações, elementos da simbólica nacional (um campo com Portugal-Antigo), outros representativos das respetivas unidades geográfico-administrativas (neste caso, dez estrelas em representação das ilhas do arquipélago; cinco pedras, uma mitra e um báculo, uma roda de navalhas em alusão à produção salífera e aos oragos das ilhas, Santiago e Santa Catarina), outros ainda colhidos na história (um escudete com a cruz da Ordem de Cristo remetia para a figura do infante D. Henrique), e a encimar o conjunto uma coroa mural expressiva de dignidade cívica. Desta forma, além de se arrogar o direito de concessão de armas aos municípios ultramarinos, o Estado procurava instituir para estes uma normalização e codificação simbológica das armas, de maneira a que exprimissem claramente a integração nos conjuntos mais vastos da respetiva província e do império português. Tal forma de organizar os ordenamentos heráldicos, codificando e repetindo determinadas partições, figuras ou elementos ­exteriores a fim de instituir um conjunto de equivalências simbólicas, apartava-se do entendimento que até então havia regido a heráldica portuguesa. Pode vislumbrar-se aí uma transposição do género de codificações que na época regiam a vexilologia militar (Sales,1930; Morais-Alexandre, 2009), bem como a falerística das ordens honoríficas (Estrela, 2008); mas não será arriscado entroncar também tal forma de organização heráldica no modelo fornecido pelo sistema napoleónico e já imitado por vários outros Estados, do ponto de vista da filiação dos recursos heráldicos (Mathieu, 1946, pp. 247-258).

Além de Cabo Verde, também os Açores foram objeto de semelhante tentativa de uniformização heráldica. Nas armas concedidas em 1865 por D. Luís I à cidade da Horta, constava o mesmo quartel de Portugal-Antigo a assinalar a integração no conjunto de territórios sob soberania portuguesa, ao passo que o arquipélago era simbolizado por um açor; como elementos identificativos próprios, contavam-se repetidas figuras alusivas ao regime liberal (num quartel, um busto de D. Pedro IV e uma coroa e cetro alusivos à sua abdicação; noutro, em campo de azul um livro de prata com a inscrição 29 de abril de 1826, figuração da carta constitucional com as cores liberais) e um castelo; a rematar o conjunto, o coronel de duque e por timbre o braço armado de prata, usuais nestas concessões.

Contudo, os esforços de centralização e sistematização da heráldica ­autárquica pelo Estado português careceram de continuidade na sua aplicação. Na verdade, nos anos 60, só se encontram duas outras concessões, ambas coincidentes com a criação de novos concelhos, Olivais e Belém, originados pelo desmembramento da autarquia lisboeta. O primeiro destes municípios a obter armas foi o dos Olivais. Pela correspondência que manteve com a câmara de Lisboa na sequência da aclamação de 1855, sabe-se que, logo após a sua criação, o concelho fez uso das armas reais e que depois apresentou ao rei de armas Portugal “um modelo para ter um sinette”. Esta autoridade heráldica providenciou então a correção do ordenamento remetido, a qual foi objeto de decreto régio e publicação no Diário do Governo7. O concelho de Belém, por sua vez, usou de início as armas reais; mas, pretendendo ter insígnias próprias, um vereador apresentou à respetiva câmara um projeto, depois enviado para aprovação pelo rei de armas Portugal, com a invocação do precedente da vizinha autarquia dos Olivais8. Em resultado destas diligências, foram atri­buídas armas ao concelho de Belém por Decreto de 3 de setembro de 1862.9 Em ambos os casos, verificou-se a observação de um procedimento administrativo do maior interesse: a iniciativa de criação das armas partiu das municipalidades, que submeteram os projetos à autoridade do rei de armas principal; este emitiu um parecer com o ordenamento corrigido nos pontos que entendia; levado à aprovação do governo, o brasão assim constituído foi objeto de decreto e de publicação oficial, completada pela emissão da respetiva carta de armas. Encontra-se portanto nestas situações uma notória tentativa de apropriação pelo Estado, e com a conivência dos municípios requerentes, dos mecanismos de criação da heráldica autárquica, com o envolvimento ativo dos seus oficiais de armas e com o explícito reconhecimento da autoridade que estes exerciam na matéria.

Em consequência da intervenção do rei de armas Portugal, as insígnias concedidas aos concelhos de Olivais e de Belém, além de terem sido objeto de cartas de armas, originaram também iluminuras inseridas no Thezouro de Nobreza iniciado por frei Manuel de Santo António e Silva no século XVIII e que, tendo permanecido incorporado no cartório da Nobreza, continuou a ser preenchido, na centúria seguinte, com a representação das armas concedidas como mercês novas.10 Tal prática foi seguida, a partir de então, para os municípios agraciados com benesses similares, como Moçâmedes, que recebeu armas em 1893.11

Existem outros indícios da tentativa de imposição da autoridade dos oficiais de armas sobre a heráldica autárquica. É conhecida a correspondência que o escrivão da nobreza, Henrique Carlos de Campos, dirigiu a algumas câmaras desde 1862, informando-as de que para poderem usar armas teriam de se encartar no seu cartório e pagar os direitos da respetiva mercê (Azevedo, 1903, pp. 275-278). Tal procedimento verificou-se mesmo em casos de cidades cujas armas detinham uma origem remota e um uso ininterrupto mais que consagrado e incontestável. A iniciativa do escrivão da nobreza constituía pois uma inovação de peso, visto que até então as tentativas de apropriação da heráldica municipal por parte do poder central se haviam limitado aos casos em que se verificava uma criação ex nihil, ou uma alteração de armas pré-existentes por motivo de acrescentamento honroso. As intenções do escrivão da nobreza eram outras, ou melhor, tomavam como ponto de partida uma situação em que a intervenção estatal parecia plenamente justificável (a criação ou a modificação) para procurar alargar tal princípio à generalidade dos concelhos. O que não colhia justificação à luz dos precedentes históricos.

Este entendimento acabou por redundar na Portaria de 26 de agosto de 188112, pela qual o ministro dos Negócios do Reino, Rodrigues Sampaio, ­ordenava aos governadores civis dos distritos metropolitanos e das ilhas adjacentes que instassem junto das câmaras municipais e outras corporações para que estas registassem as suas armas no cartório da Nobreza. Pode considerar-se tal diploma como a “primeira tentativa oficial e consistente de organização de um registo de heráldica municipal” (Sameiro, 1986a), que teria levado à possível existência de um armorial autárquico oficial, como atesta o facto de o escrivão da nobreza se referir, no processo de registo de armas de Portalegre, a um livro de Registo dos Brazões de Armas das Camaras Municipaes e Corporações, “estabelecido em virtude da Portaria do Ministerio do Reino do Ministerio do Reino de vinte e seis de agosto de mil oitocentos oitenta e um”13. Mas as implicações da portaria de Rodrigues Sampaio iam além da natureza de mero registo. A disposição afetava também a natureza assumida que as insígnias autárquicas haviam mantido até então (com algumas exceções, como se viu), em prol de uma nova essência de heráldica concedida, ou pelo menos oficialmente reconhecida, pelo poder central. Com o que tal granjeava como instrumento de centralização e de normalização da armaria autárquica às mãos do Estado.

Como era previsível, as câmaras municipais forneceram escassíssima resposta à iniciativa ministerial. Apenas as cidades de Angra do Heroísmo, Elvas e Portalegre parecem ter demonstrado alguma sensibilidade ao apelo. A primeira limitou-se, contudo, a enviar uma curta memória sobre os seus usos heráldicos, acompanhada de belas iluminuras, pelo que se depreende que não pretendia abrir qualquer processo de registo, até porque já havia beneficiado, em 1837, de um decreto de concessão de armas.14 As outras duas, alegando certa confusão acerca das suas insígnias e a inexistência de qualquer registo oficial delas, conformaram-se com a portaria e abriram processo no cartório da Nobreza, sem contudo chegarem a concluí-lo e receberem a respetiva carta de armas.15

As razões do insucesso da medida governamental são fáceis de perscrutar. A portaria de Rodrigues Sampaio tinha objetivos e implicações, tanto do foro político como fiscal, suscetíveis de atrair a hostilidade das câmaras para o seu cumprimento. Do ponto de vista político, constituía uma subordinação simbólica que a maior parte dos municípios consideraria inaceitável, tanto mais que ia contra uma longa tradição de práticas reiteradas quanto ao caráter assumido da heráldica autárquica. Do ponto de vista fiscal, envolvia custos consideráveis, que, aliás, poderão ter contribuído para a decisão de Rodrigues Sampaio, uma vez que, na declarada e profunda crise financeira que o Estado então atravessava, esse apresentar-se-ia como expediente para minorar o défice público. Nem o ministério do Reino, nem os governadores civis teriam, de resto, instrumentos de pressão idóneos para aguilhoar as câmaras no sentido de estas satisfazerem o teor da portaria. Aos municípios bastou, portanto, opor uma espécie de resistência passiva para que falhasse o projeto de registo geral intentado pelo governo.

Assim, a tentativa de apropriação da heráldica autárquica pelo Estado nunca chegou a ser levada por diante de forma eficaz durante a vigência da monarquia constitucional. A heráldica assumida continuou a prevalecer largamente. Mas se não se mostraram, por regra, dispostos a aceitar a imposição normativa do Estado em matéria das insígnias autárquicas e da obrigação do seu registo oficial, os dirigentes concelhios, em contrapartida, aderiram em massa ao antigo recurso de adoção das armas reais. Mediante tal procedimento, inseriam o seu município na esteira do movimento de afirmação do Estado centralizado, mas sem custos monetários nem excessivas demonstrações de subordinação política. É o que parece indiciar o inquérito dirigido às câmaras por Marques da Silva entre 1855 e o princípio do decénio de 1870. Por essa fonte, verifica-se que cerca de um terço dos municípios fazia uso das armas reais (151 casos ao todo, num universo de 495 autarquias abrangidas pelo armorial). Informações complementares assinaladas no mesmo armorial permitem traçar um quadro mais pormenorizado das formas de que se revestia a adoção das insígnias régias, dividindo-as em três categorias.

Em primeiro lugar, em aproximadamente dois terços das ocorrências (97 casos em 151), não se mencionava a existência de insígnias próprias do concelho, ou registava-se de forma explícita o desconhecimento de que elas tivessem jamais existido. Nessas circunstâncias, as armas reais eram assumidas como forma de assinalar a pertença ao mesmo conjunto, simbolizando pois a integração do município na monarquia e na nação. A única referência que permitia distinguir a imagem como identificativa do concelho era a legenda com o respetivo nome. Deste modo, a imagem formava-se de duas unidades complementares: de um lado, a representação gráfica das armas reais, que explicitava a integração do município numa realidade política mais vasta, aliás comum a todos os concelhos; do outro, a simples menção escrita do nome do município, que cumpria a função de individualizar a mensagem.

Em segundo lugar, em cerca de um quinto do total (29 casos em 151), os municípios declaravam que haviam abandonado as antigas armas próprias, substituindo-as pelas armas reais. Na maior parte, os concelhos que procederam desta maneira haviam pertencido a algum poder senhorial, laico ou eclesiástico, cujas insígnias eles usavam durante o Antigo Regime. A substituição destas pelas armas reais assinalava portanto a alteração do estatuto administrativo do concelho, decorrente da extinção dos antigos senhorios e das reformas municipais empreendidas pelo Estado liberal, com os seus princípios uniformizadores e centralizadores.

Por fim, em terceiro lugar, existia o conjunto numericamente menos numeroso (25 casos em 151, ou seja, cerca de um sexto) em que se verificava a conjugação de armas reais e próprias dentro de um mesmo escudo. Seguia-se para esse efeito a fórmula de um escudo partido ou esquartelado, em que as insígnias régias se inscreviam à dextra e as próprias à sinistra, revelando assim uma hierarquia de leitura que remetia para a subordinação das segundas às primeiras. Este fenómeno tanto ocorria com armas novas ou acrescentadas mediante intervenção estatal (relembrem-se as insígnias dos Olivais e do Porto), como com armas antigas que a partir de certa altura, por escolha do respetivo município, passaram a figurar conjugadas com as reais. Neste âmbito, afigura-se paradigmático o que se passou com aquele que pretendia assumir a primazia simbólica dos municípios do reino: o de Lisboa.

As armas da capital remontavam ao século XIII, tendo como elementos constantes uma nau vogante e dois corvos, em alusão ao patrono da cidade; como era natural numa insígnia antiga e assumida, o ordenamento heráldico foi sendo sujeito, ao longo dos tempos, a numerosas variações de composição e de estilo. Desde a centúria seguinte, conhecem-se exemplares em que as armas municipais passaram a ser representadas em associação às reais, mas em escudos separados e com cedência do lugar de honra a estas, como era hábito (Fonseca, 1921; Fragoso, 2002). A partir da reconstrução pombalina dos paços do concelho, o município lisboeta adotou um escudo partido das armas reais e das suas próprias, que foi figurado no teto do salão nobre. Quando ­Marques da Silva compilou o seu armorial, contudo, a câmara usava uma versão mais complexa, pois mantinha as armas reais no primeiro campo mas dividia o segundo, cortando-o: em cima figurava a nau tradicional e em baixo um campo azul com uma esfera armilar de ouro. A nau, por sua vez, aparecia por vezes embandeirada de forma a demonstrar uma orientação ideológica: de vermelho e azul no reinado de D. Miguel; de azul e branco na monarquia constitucional. Verificavam-se portanto dois fenómenos: a flutuação assinalável do ordenamento heráldico da capital; e a contaminação das insígnias municipais pelas estatais.

Essas foram as motivações que levaram o executivo camarário a impetrar diligências que se podem, a diversos títulos, considerar surpreendentes. Na sessão camarária de 21 de maio de 1896, foi exposta a desordem que grassava na figuração das insígnias municipais lisboetas, citando-se expressamente o que certos jornais haviam publicado a tal respeito, bem como o que constava do primeiro volume da monumental obra Elementos para a Historia do Municipio de Lisboa, de Eduardo Freire de Oliveira, editada pela própria câmara.16 Tal situação tinha de ser corrigida:

Julgando, pois, de reconhecida utilidade corrigir todas estas irregularidades e remediar esta confusão, de modo que o emblema heraldico que representa o primeiro municipio do Reino não seja uma pintura phantastica e arbitraria, mas um brazão de caracter official e authentico, conforme as leis estabelecidas.17

 

Reconhecendo embora que as armas da cidade de Lisboa provinham de “remotas eras”, o vereador propunha que o brasão fosse “rectificado e authenticado pela repartição da armaria segundo a tradição historica e as regras heraldicas”, de modo a que “fique tendo uma forma regular e permanente”. O executivo camarário devia pois dirigir-se ao responsável pelo cartório da Nobreza para que lhe fosse passado o “competente titulo”, que daí em diante serviria como “padrão invariavel das armas que lhe pertencem”. Alegava ainda que, no arquivo camarário, não constava documento algum de concessão ou reconhecimento das ditas armas; e que a iniciativa proposta correspondia às directrizes promulgadas pela Portaria de 26 de agosto de 1881. A proposta “foi submetida á discussão e, não havendo quem usasse da palavra posta á votação e approvada”.

Em consequência, apresentou-se um requerimento ao governo, em que se sintetizavam as razões do procedimento:

 

A Camara Municipal de Lisboa não possuindo no seu archivo titulo legal do Brazão de que usa desde remotas eras, e sabendo que o dito Brazão tem sido reproduzido em differentes pontos por varias maneiras sem conservar a uniformidade inherente a estes distinctivos honorificos, que devem ser inalteraveis para poderem representar perpetuamente os individuos e as corporações…18

 

Dirigindo-se ao Ministério dos Negócios do Reino, a Câmara Municipal de Lisboa solicitou portanto que lhe fossem oficialmente atribuídas armas. O parecer redigido em consequência pelo escrivão da nobreza revelava-se interessante a diversos níveis. Começava por declarar que a câmara agia para “que sejaratificado e authenticado pela Repartição da Armaria, o Escudo d’Armas de que uza este Municipio desde remotas éras, a fim de ser confirmada a legitimidadeda posse, e a origem historica do Brasão”; e debruçava-se rapidamente sobre estas duas características, fazendo remontar as armas ao reinado de D. Pedro I e explicando a sua simbologia alusiva à trasladação do corpo do padroeiro da cidade na época de D. Afonso Henriques. De seguida, o escrivão da nobreza aludia à ausência de registo oficial das insígnias, explicando-a pela vetustez da sua utilização e remetendo para o facto de a realidade heráldica ter precedido a criação da respetiva autoridade e dos instrumentos de concessão ou reconhecimento de armas:

 

É certoque a Camara está de posse d’este Brasão desde tempos assás remmotos, mas não possue no seu archivo, Titulo algum legal d’estadistinção, onde se achem discriptas e pintadas as Armas, o que não é para admirar porque na epocha a que se allude (reinado de D. Pedro i) provavelmente ainda se não passavam Cartas d’Armasem forma; e muitas vezes os Brasões constavam dos Foraes dos Municipios.19

 

A inexistência de um modelo fixo das armas permitia o florescimento de variadíssimas interpretações gráficas, o que se considerava de evitar, tanto mais que o brasão se via amiúde “redusido a uma pintura fantastica e muitas vezes redicula”. A carta de armas passada pela repartição de armaria serviria pois de “padrão invariavel adoptado de hora em deante em todas as reproduções que se fiserem do Brasão do primeiro Municipio do Reino”. Não obstante, o parecer tomava o cuidado de advertirque o reconhecimento operado “não significa Mercê nova, mas simplesmente a confirmação de um facto antiquissimo e plenamente authorisado pelo decurso dos seculos”, salientando assim o direito heráldico inerente de que gozava o município. Em resultado do parecer foi passada ao município uma carta de armas e estas foram iluminadas no Thezouro da Nobreza que então servia de registo das armas reconhecidas.20

A iniciativa lisboeta não estimulou emulação por parte dos demais municípios portugueses: o seu exemplo não foi copiado. Pelo contrário, ela tornou-se até em alvo de contestação e de reação municipalista. O facto de a câmara se ter rebaixado a solicitar ao governo a aprovação das suas insígnias, ao arrepio da tradição secular e generalizada, foi erguido como exemplo de indevida submissão ao Estado centralizador e de cerceamento simbólico das liberdades autárquicas. Já sob o regime republicano, a controvérsia gerada em redor das armas levou ao seu abandono unilateral (sem consulta ao governo e sem revogação do diploma instituidor) e à sua substituição por um emblema assumido, expurgado também de alusões a uma devoção religiosa que, aos olhos dos dirigentes de então, raiava a pura superstição. A nova insígnia apresentava apenas uma birreme greco-romana, rodeada do colar da Ordem da Torre e Espada e da legenda sobre todas excelente e maioral (da qual Quirino da Fonseca diria que “apenas sobreleva pela curiosidade de ser um triplice pleonasmo em quatro palavras”21). A adoção deste emblema, em quebra com o que o município havia continua e comprovadamente usado desde o século XIII, viria mais tarde, e por via da intensa polémica que por sua vez gerou, a fornecer a base para o questionamento e reformulação da heráldica autárquica portuguesa nas vésperas do Estado Novo.

A ingerência dos emblemas considerados nacionais nas insígnias municipais revestiu, de resto, formas complementares à da sua presença nas armas. Na verdade, tal penetração simbólica verificou-se em várias manifestações patentes em locais e objetos ligados à simbólica do poder.22 Assim, as varas dos vereadores, que no Antigo Regime costumavam ser vermelhas, passaram amiúde a ostentar as consideradas cores nacionais, ou seja, o azul e o branco. No que se refere aos lugares de expressão do poder concelhio, saliente-se a renovação dos paços concelhios, cuja decoração passou a integrar, de forma diversificada, alusões à simbólica nacional, nomeadamente em pinturas alegóricas (em que surgia, por exemplo, a personificação da Lusitânia ou a da carta constitucional) e representações da bandeira azul e branca figuradas com destaque em espaços privilegiados (átrio, escadaria, gabinete do presidente, salão nobre). As armas reais também marcavam presença no estandarte concelhio (por vezes conjugadas com as autárquicas), no papel timbrado, no selo, nas cadeiras destinadas às reuniões do executivo camarário, e mesmo nas urnas de voto. Assistiu-se pois a uma disseminação dos símbolos que, na monarquia constitucional, eram adotados como nacionais; querendo com isto dizer que se entendia que eles já não identificavam primacialmente o rei nem mesmo o Estado, mas sim um conceito mais amplo de “comunidade imaginada”, na expressão de Benedict Anderson (1991), unida por laços históricos, culturais e cívicos. Para cujo sentimento de união tais símbolos serviam, concretamente, como estímulo. Foi aliás tal entendimento generalizado que ditou a conservação das armas reais (sem a coroa que simbolizava a instituição monárquica) como escudo nacional após a proclamação da República. Mesmo quanto à bandeira, teve então lugar um debate intenso, com muitos republicanos a defenderem a manutenção da azul e branca por crerem que se tratava de uma insígnia nacional, e não de natureza dinástica ou representativa do regime monárquico.23

Afigura-se fundamental compreender que a renovação por que passaram quer a heráldica dinástica, estatal e nacional, quer a heráldica municipal, não se prende apenas com as suas características intrínsecas (a sua morfologia, tanto do ponto de vista técnico de constituição das armas, como dos valores simbólicos que lhes estavam associados) ou jurídico-administrativas. Tais aspetos eram decerto importantes e espelhavam as mudanças pelas quais passava a organização política e social oitocentista. Mas não menos relevante será tentar apreender em que medida as armas estatais e municipais gozaram, no século XIX, de um impacto visual inovador. O tema das manifestações concretas das armas raramente é abordado pelos heraldistas, que preferem, de um modo geral, analisá-las como abstrações. Menéndez Pidal salientou, porém, que a heráldica, enquanto realidade semântica, vive essencialmente das suas manifestações plásticas e opera como um código complexo, com os seus emissores, destinatários, observadores e, naturalmente, com uma assinalável flutuação de valores interpretativos dos signos conforme a natureza dessas manifestações plásticas e dos agentes implicados nos processos de emissão/receção (Menéndez Pidal de Navascués,1993). Dir-se-á, nesse sentido, que a heráldica é, na essência, uma forma de cultura visual.

Ora, as manifestações plásticas da heráldica estatal e municipal no século XIX funcionaram, por parte das entidades emissoras (isto é, Coroa/Estado e municípios), como instrumentos de expressão do seu poder e da sua legitimidade histórica (Seixas, 2010). Por vezes, estas manifestações conjugavam-se entre si e integravam-se de forma significativa quer nos rituais de consagração do poder (nomeadamente as aclamações régias), quer nos espaços e objetos que simbolizavam tal poder (como a sala de sessões do Parlamento e os paços do concelho lisboeta, no primeiro caso, ou as bandeiras, as varas e os uniformes, no segundo). Outras vezes, tais manifestações heráldicas apareciam em locais e circunstâncias quer de caráter fixo, como os monumentos, quer efémero, como os cortejos comemorativos, que lhes conferiam um determinado significado histórico. Ao associar as armas, em manifestações públicas observáveis por milhares de pessoas, a eventos passados e a valores de cariz historicista, o Estado e os municípios usavam a heráldica como forma de propaganda, de didática e de construção de uma memória coletiva, tanto local como nacional. Da parte dos destinatários de tal fenómeno comunicacional, isto é, da parte dos cidadãos, as armas associavam-se assim a um conjunto de valores de natureza patriótica, tanto do ponto de vista intelectual (a ligação daqueles signos a determinadas instituições, figuras, episódios, feitos) como sentimental (a relação dos signos com determinadas crenças, exemplos, virtudes, valores). Em qualquer caso, a heráldica estatal e municipal, por via das suas diversificadas e públicas manifestações plásticas, passou a desempenhar um papel de agente de cultura visual plenamente integrado na lógica de construção da memória coletiva portuguesa.

 

Heráldica de família e eclesiástica

O panorama da heráldica de família e eclesiástica apresenta, a esse respeito, características diferentes. É certo que se pode, com as devidas reservas, traçar algum paralelo entre a situação que se verificava na heráldica municipal oitocentista e aquela que, na mesma época, atravessava a heráldica de família. Também nesta, as armas assumidas haviam convivido sem interrupção com as concedidas ou reconhecidas pela autoridade oficial desde que esta fora criada, na transição da Idade Média para a Moderna.24 As primeiras reservas a tal comparação prendem-se com a proporção que esses dois tipos de heráldica assumiam no seio das insígnias municipais ou linhagísticas: ao passo que nas primeiras as armas concedidas e registadas formavam uma escassa minoria, nas segundas a relação comparativa era certamente menos desequilibrada. É certo que os ventos de mudança também se fizeram sentir, em parte, na heráldica de família na transição do Antigo Regime para a monarquia constitucional.

Durante os séculos XVII e XVIII, imperara a construção da ligação simbológica entre os requerentes de armas e as velhas linhagens homónimas, o que conduzira a algumas idiossincrasias da heráldica portuguesa de família, nomeadamente o facto de a partição limitativa dos escudos se impor como realidade estrutural (Norton, 2004). Tal configuração começou a sofrer alterações no século XVIII, nomeadamente no período pombalino, quando a ­algumas das famílias burguesas alçadas ao estatuto da nobreza foram atribuídas armas novas, criadas de raiz para o efeito. Assim sucedeu, por exemplo, com os irmãos capitalistas Cruz, a quem foi concedido o uso do apelido Sobral, e de umas armas diferentes de quaisquer outras já existentes; ou com o célebre comerciante Jácome Ratton, cujas armas duplamente falantes remetiam para um invulgar jogo de palavras, uma vez que continham um rato e um atum. O retomar da política de concessão de armas novas prendia-se com a alteração da origem social dos agraciados com concessões heráldicas: em vez de se inserirem na ficção genealógico-simbólica da integração nas antigas linhagens homónimas e da apropriação das respectivas insígnias, os novos agraciados com títulos ou com armas preferiram, amiúde, assumir a sua condição de novidade. Talvez porque a ficção seria, em muitos casos, difícil de manter. Mas também porque, se o prestígio da velha nobreza continuava a existir, sobrepunha-se-lhe cada vez mais a valorização do mérito individual. À tradicional importância dada à linhagem de origem, passara a justapor-se o conceito de que era igualmente valorizável aquele que lograva obter público reconhecimento de uma ascensão social baseada no mérito e no sucesso. Os valores liberais e burgueses haviam impregnado a nova aristocracia, continuando a conviver com os velhos princípios da fidalguia, cujo peso económico e político se ia imparavelmente esboroando.

Em consequência deste conjunto de alterações, assistiu-se a uma renovação da heráldica de família durante a monarquia constitucional. De certo modo, a armaria oitocentista marcou uma reaproximação em direção ao modelo formado e posto em prática nos séculos XV e XVI, abandonando uma heráldica de apelidos em favor de uma heráldica de indivíduos e de famílias. Em simultâneo, também do ponto de vista simbológico se abriram perspetivas:

 

Enquanto na época barroca, quando predominava a cultura aristocrática, as pessoas se esforçavam por fazer parecer que tinha sido herdado aquilo que de facto tinham adquirido, e por isso mesmo os brasões concedidos imitavam os antigos, no final da Monarquia, quando a cultura burguesa começava a triunfar, muitos nobilitados ostentam brasões de um gosto heráldico totalmente novo, em que aparecem símbolos da “indústria”, do “comércio” – até do “trabalho”! – conceitos que faziam parte do imaginário de um negociante ou industrial bem sucedido, mas pouco tinham a ver com o universo mental dos fidalgos antigos [Vasconcelos, 2004, p. 106].

 

Com o retomar da formação de armas novas, procedeu-se ipso facto à renovação das figuras heráldicas do brasonário português. Estas romperam o modelo limitado e asfixiante em que se haviam cristalizado no Antigo Regime. De repente, a revolução social e industrial entrou pelo universo bafiento do brasão, levando consigo génios da engenharia, réguas, compassos e fios-de-prumo, árvores de chá, comboios saindo de túneis, formigas, cornucópias, olhos, figuras alegóricas da fortuna, do comércio, da indústria, trechos de via férrea, globos-mundo a mostrarem o Brasil, navios mercantes.25 Em suma, os símbolos do triunfo de uma nova camada dominante. Que nem sempre precisava ou quereria travestir-se com as roupagens da anterior, mas antes exprimir o orgulho do que considerava como qualidades e circunstâncias essenciais no mundo contemporâneo. Esta revolução das figuras heráldicas oitocentistas não constituiu um fenómeno apenas português, antes europeu26 ou mesmo ocidental, uma vez que se estendeu à armaria dos Estados americanos e das suas respetivas elites.27

E se nem sempre o efeito estético terá sido dos mais felizes, a verdade é que se rompeu o confinamento repetitivo e estéril a que as armas de família se haviam atido nos dois séculos anteriores. Claro que as armas novas não ­vieram erradicar as antigas. As linhagens tradicionais continuaram a ostentar as insígnias da sua prosápia, e algumas famílias emergentes preferiram seguir o preceito do Antigo Regime e adotar emblemas que estabeleciam uma ligação simbológica com as estirpes fidalgas, mesmo quando a ficção genealógica se revelava literalmente improvável.28 Assim, a realidade da heráldica de família era marcada por uma variedade insuspeita, à partida, para aquele que folheasse as páginas dos armoriais: nela conviviam armas assumidas com as que provinham de concessão ou reconhecimento régio; símbolos antigos ligados às famílias da velha nobreza (ou que pretendiam sê-lo) ombreavam com emblemas novos, expressivos do lugar que as elites emergentes haviam alcançado e que, por via dos seus brasões, lhes era reconhecido pelo Estado e pela sociedade.

Encontra-se por realizar o estudo comparativo desta realidade diversificada da heráldica de família oitocentista. Investigação difícil, na verdade, na medida em que apenas se dispõe do registo das armas (novas ou não) que foram objeto de processo por parte da Coroa, o que permite arrolá-las e classificá-las; ao passo que a maior parte das insígnias em uso seria simplesmente assumida pelos utentes, o que levanta problemas heurísticos gravíssimos para a compreensão da dimensão desse fenómeno, por causa da extrema diversidade e dispersão das fontes, essencialmente de natureza plástica e não documental. Só um trabalho de fundo, que se abalançasse a tal levantamento, poderia fornecer dados mais aturados, permitindo então um estudo comparativo entre a heráldica concedida e a assumida, e levando assim à avaliação do impacto relativo das criações saídas das mãos dos oficiais de armas. Também neste ponto, a atenção dos heraldistas tem-se centrado na análise das armas enquanto realidades abstratas, suscetíveis de serem estudadas pela sua carga semântica intrínseca; mas a realidade do fenómeno heráldico aponta ainda noutro sentido, em que se salienta a sua natureza essencialmente plástica. O entendimento abstrato, simbólico e normativo das armas pode ter levado a uma avaliação da realidade heráldica que convém, na verdade, caldear com o seu entendimento enquanto cultura visual. Não obstante a ausência de um levantamento que permita compreender a heráldica de família tal como ela foi efetivamente vivenciada no século XIX, pode contudo considerar-se que o conjunto desses emblemas – através do convívio entre armas concedidas e assumidas, bem como entre armas novas e antigas –, espelharia a composição heteróclita da aristocracia oitocentista, tanto no que respeitava às suas origens genealógicas e sociais diferenciadas, como ao desigual entendimento que tinham da própria condição nobiliárquica.

Outro fator deve ser ainda considerado, decorrente da condição das armas de família como símbolos identitários das linhagens, ou seja, da elaboração de uma imagem da sucessão geracional de um grupo ligado por elos de parentesco. Na construção da identidade das linhagens, as armas desempenharam, desde a Idade Média e ao longo de toda a Idade Moderna, um papel de relevo, afirmando-se como elemento simultaneamente representativo, constitutivo e comprovativo da personalidade das famílias que se apresentavam como dotadas de uma linearidade sucessória. O papel dos emblemas heráldicos dever-se-á cotejar, neste âmbito, com dois outros fatores igualmente associados à definição das linhagens, aliás estreitamente ligados à expressão respetivamente abstrata e plástica das armas: por um lado, a escolha de uma onomástica característica e tendencialmente fixa; e, por outro, a detenção e transmissão de património indivisível e inalienável (o que implicava também a constituição de um arquivo próprio, de natureza tanto administrativa como histórica, instrumento de construção e salvaguarda da memória familiar). Nesse sentido, o século XIX correspondeu inequivocamente a uma quebra do sustentáculo material (e também simbólico) do modelo linhagístico, pela extinção quer da instituição vincular, quer de outras formas de acumulação e transmissão de bens e cargos, como as ordens religiosas e militares (na sua vertente não apenas honorífica), quer ainda pela anulação do papel da Coroa como distribuidora dos ­rendimentos adstritos a estas instituições. Neste contexto, as linhagens, mesmo quando mantiveram alguma coesão interna e transmissão de identidade e memória própria, tenderam a deixar de atuar, enquanto tal, como agentes sociais relevantes. Daí adveio uma mutação assinalável na projeção social das armas de família: se elas mantiveram o seu papel identitário, na medida em que continuaram a simbolizar as respectivas unidades familiares, foram perdendo a sua função social tradicional, precisamente porque deixaram de representar a ligação a um património entendido como base material da existência da linhagem. Por isso, a heráldica de família tendeu a cristalizar-se em manifestações de notoriedade pública cada vez menos relevante, passando para um foro mais privado que público. E tornou-se, visivelmente, cada vez menos importante no seio do fenómeno geral da heráldica contemporânea.

Também no campo da heráldica eclesiástica se alinharam mudanças (­Seixas, 2008c, pp. 415-477). Algumas refletiam de forma direta as alterações na composição do clero, como a diminuição do peso da heráldica das ordens religiosas em resultado da extinção destas. Outras eram menos evidentes, relacionando-se, por exemplo, com a quebra da heráldica imaginária em função da flutuação da religiosidade. Mas foi nas armas do clero secular que o século XIX revelou maiores inovações. Em primeiro lugar, pela restrição da influência da heráldica de família. Até então, uma parte substancial dos prelados era oriunda da nobreza tradicional e transpunha para as suas armas as insígnias das respetivas linhagens; contudo, à medida que se foi impondo um alargamento do espectro social de origem, tornou-se predominante o princípio da escolha de símbolos próprios (o que se designa por armas de fé). Desta forma, também na heráldica eclesiástica se assistiu a uma notória diversificação de figuras e ao renovamento da imaginação heráldica. Em contrapartida, a Santa Sé levou até às últimas consequências o princípio segundo o qual as armas eclesiásticas deveriam constituir uma clara representação do lugar que o seu detentor ocupava na hierarquia da Igreja. Para esse efeito, a cúria romana definiu uma vasta panóplia de elementos exteriores (que já vinham sendo usados, na sua maior parte, desde o final da Idade Média) e conferiu-lhes um sentido preciso, criando em simultâneo os instrumentos legais destinados a garantir a sua aplicação sistemática (Sameiro, 1986b). O século XIX correspondeu portanto, para a heráldica eclesiástica, a uma época de diminuição do peso das insígnias das congregações e das famílias, de diversificação de figuras, a que se aliou um forte caráter normativo, imposto pela Santa Sé e expressivo de hierarquização.

Estas modificações de natureza normativa não devem, contudo, deixar de ser completadas com a avaliação do impacto que a heráldica eclesiástica terá tido na sociedade oitocentista. Avaliação que, mais uma vez, se revela difícil, por depender de dados indisponíveis relativos à frequência das manifestações plásticas. Mesmo sem estar na posse de tais dados, não será contudo arriscado afirmar que as armas das congregações religiosas teriam, no Antigo Regime, uma expressão pública notória, em consonância com o papel socioeconómico de relevo que tais instituições desempenhavam na vida das comunidades; de forma semelhante, as armas dos membros do clero secular deveriam então gozar de ampla projeção pública, sobretudo por via das ações de mecenato dos prelados, patente sobretudo em numerosas edificações de prestígio. No século XIX, é provável que ambas estas manifestações públicas de heráldica eclesiástica tenham sofrido uma acentuada tendência para a diminuição. No caso das primeiras, devido à extinção das ordens religiosas; no das segundas, por via da quebra do impacto que o clero detinha, de forma geral, na sociedade, e em particular quando se considera a edificação de património religioso. Em consequência, pode inferir-se que as armas eclesiásticas passaram a ter, na sociedade liberal, um uso mais pessoal, tanto no sentido de caracterizarem menos as instituições religiosas que os membros individuais do clero, como no de o seu uso se restringir tendencialmente a um circuito mais fechado, dentro da própria Igreja ou, quando muito, junto de uma comunidade que, embora predominante, já não abarcava toda a sociedade.

Tanto no caso da heráldica de família como no da eclesiástica, ocorre, assim, um duplo fenómeno no século XIX: por um lado, a sua relativa renovação em matéria lexical; por outro, a gradual restrição das suas manifestações plásticas e a sua perda de influência no conjunto da heráldica contemporânea.

 

Heráldica associativa, militar, corporativa, comercial, imaginária.

Como que em resposta a esta restrição do alcance da heráldica de família e eclesiástica, o século XIX registou uma tendência para o alargamento das entidades que passaram a recorrer a este código para sua identificação e representação. O fenómeno encontra-se largamente por estudar, mas desde já se podem assinalar algumas das suas dimensões. Contudo, apenas se delinearão os contornos que tais vertentes heráldicas assumiram a partir do século XIX, pois um estudo mais aprofundado terá de partir de um levantamento das suas manifestações, o que implica um trabalho vastíssimo de pesquisa, dada a dispersão e multiplicidade das fontes. O presente artigo limitar-se-á, portanto, a evocar hipóteses, recorrendo a alguns casos concretos.

Em primeiro lugar, a heráldica associativa. Se o Antigo Regime havia sido marcado pela presença de instituições de cariz corporativo, que formavam os diferentes corpos de uma monarquia entendida e autorrepresentada como entidade compósita, já a sociedade liberal e burguesa privilegiou as entidades associativas. Estas, na sequência do culto pela liberdade individual, correspondiam ao princípio da livre associação entre homens, já não segundo os constrangimentos de nascença ou de categoria social, mas sim em aplicação dos direitos e obrigações de uma cidadania ativa e voluntária. Muitas das associações criadas no século XIX recorreram a emblemas heráldicos para sua identificação, retomando amiúde elementos de armas pré-existentes, mas combinando-os de maneiras novas. Assim, por exemplo, a Sociedade de Geografia de Lisboa, criada em 1875, retomou como suas as armas reais portuguesas, sobrepondo-as porém a uma esfera armilar. Ao optar por semelhante solução, esta associação vincava o seu cunho patriótico, patente na escolha das armas consideradas nacionais, e a sua preocupação centrada primordialmente no império ultramarino, de que a esfera armilar era tomada como emblema. Neste caso, verifica-se que ambos os signos, armas reais e esfera armilar, passaram a ter, assim conjugados, uma forte carga historicista. Mas a heráldica também esteve presente noutros tipos de associações, nomeadamente as desportivas. O século XIX correspondeu ao surgimento e à disseminação do desporto como prática social e, em certos casos, como fenómeno de massa – caso em que o futebol alcançou expressão notória. Os clubes desportivos cedo recorreram aos emblemas heráldicos, aos quais conferiram um uso que viria a aproximar-se do que se praticara no período medieval, quer no que respeita às suas aplicações ao vestuário dos jogadores e às bandeiras identificativas da associação, quer ainda à sua adoção pelos adeptos, aliás com aplicações corporais e ligações emotivas que a restante heráldica há muito perdera.29 A emblemática das associações desportivas aguarda que seja feito o seu levantamento, a partir do qual será possível estudar quer a sua tipologia formal, quer as suas aplicações plásticas concretas. Assinale-se porém, desde já, a possibilidade de relação dos emblemas desportivos a outras formas de heráldica pré-existente, nomeadamente a municipal (caso do Futebol Clube do Porto) ou a de família (caso do Sporting Clube de Portugal). Já no século xx, os emblemas heráldicos serão igualmente usados para a identificação das novas corporações, então criadas (Langhans, 1966, pp. 363-389). Um caso à parte será ainda o da heráldica militar (Sameiro, 1983; Seixas e Colaço, 2008; Morais-Alexandre, 2009), tanto do exército como da marinha: nestas instituições, os elementos identificativos eram essencialmente de natureza vexilológica e, no século XIX, denotou-se uma certa preferência por emblemática não heráldica; apenas no século seguinte se institucionalizou e tornou norma o recurso a brasões.

Em segundo lugar, a heráldica comercial.30 Muitas empresas adotaram emblemas heráldicos quer para a sua própria identificação, quer para a dos seus produtos, geralmente com o intuito de os associar a uma imagem de ­prestígio decorrente dos antigos sinais, a partir de então prestes a serem ­reproduzidos em quantidades literalmente industriais. Além das armas associadas a ­empresas comerciais, industriais ou agrícolas, ou ainda, de forma específica, a determinados produtos, a heráldica também passou a estar presente por via da ostentação das insígnias de determinadas Casas reais ou principescas. Em Portugal, este fenómeno conheceu especial projeção nos reinados de D. Luís I e de D. Carlos I, quando o estatuto de fornecedor da Casa Real mais se difundiu, sendo submetido a trâmites administrativos e fiscais que passavam pela mordomia-mor (Matos, 2009). Tal como no caso da heráldica associativa, os emblemas escolhidos pelas empresas comerciais tanto podiam retomar outros pré-existentes, como compor-se de novas figuras, adaptadas ao figurino heráldico: assim, o alfaiate Nunes Corrêa adotou como armas para o seu estabelecimento comercial, sito em Lisboa, um esquartelado composto por figuras alusivas ao seu ofício e à localização da sua loja, na rua Augusta. Tais armas decoram abundantemente a fachada e o interior do estabelecimento (hoje figuram mesmo como elemento central dos sacos de plástico fornecidos aos clientes), mas encontram-se ausentes do palacete que o mesmo comerciante edificou na avenida da Liberdade, o que prova que se considerava o emblema como identificativo da empresa, não da pessoa ou da família.

Por fim, também na dimensão literária e artística a heráldica oitocentista se impôs pela inovação. Desde a Idade Média que existira, certamente, uma relação profunda entre armaria e literatura (Boudreau, 2006, pp. 1-97), bem como entre heráldica e arte (Pastoureau, 2009). Não só por via da presença de elementos heráldicos em obras literárias ou artísticas (a qual podia atingir um nível tão elevado que tais produções formavam por vezes autênticos armoriais), mas também pela produção de géneros específicos, nomeadamente os cancioneiros de armaria. Mas o século XIX foi mais longe. Desde os autores românticos ou realistas (Loskoutoff, 1996, 1999-2000; Vasconcellos, 2002) até os simbolistas e modernistas (Pastoureau, 1986; O’Shea, 1986), várias correntes vincaram o paralelismo existente entre a criação literária e a heráldica, conferindo novos sentidos à caduca linguagem do brasão e explorando consonâncias e metalinguagens até então insuspeitas. Na literatura portuguesa, encontra-se por realizar o estudo sistemático de tais ocorrências. Saliente-se que, mais do que anedótica ou circunstancial, a presença de elementos heráldicos imaginários pode radicar numa relação profunda com a própria criação literária, como é o caso consumado de Camilo Pessanha (Seixas, 2008b). Também no domínio da arte, a heráldica imaginária fascinou alguns produtores, nomeadamente o pintor Amadeo de Souza-Cardoso (Borges, 2008). Mais uma vez, também neste domínio se abriam as portas a uma dimensão que a centúria seguinte viria a explorar de modo por vezes surpreendente, como no caso do armorial surrealista (Coq e Pastoureau, 1977).

De um modo geral, embora faltem, na atual situação dos estudos, levantamentos que permitam compreender a extensão e características do fenómeno, pode afirmar-se que o século XIX assistiu ao trasbordamento e disseminação da heráldica como instrumento de identificação e de publicidade de todo o género de instituições. Retomando por vezes emblemas de existência anterior (nomeadamente de cariz estatal, municipal, familiar ou mesmo eclesiástico), as novas armas conferiram-lhes outros significados e utilizações, fazendo com que a heráldica entrasse na era industrial. E nela vingasse. Foi em grande parte por via deste alargamento das suas modalidades, dos seus utentes e dos seus usos que a heráldica abriu os caminhos para a sua sobrevivência e para a projeção, a tantos títulos surpreendente, que viria a alcançar nos séculos xx e xxi.

 

Cultura heráldica

As alterações profundas sofridas pela armaria ao longo do século XIX tiveram, inevitavelmente, consequências radicais na criação e edição de obras heráldicas. Em primeiro lugar, como reflexo da alteração da função política, cultural e social que estas haviam desempenhado no Antigo Regime. Verificou-se, assim, uma diminuição drástica na produção de tratados de armaria e de armoriais, género que havia até então proliferado. Quando se indaga quem escreveu tratados de armaria após a implantação do liberalismo, encontram-se escassos nomes. Apenas algumas obras que aparecem como exceções. Como a de Luís Gonzaga Pereira, com o curioso título, pleonástico, de Armaria de Brasão, derradeiro sobrevivente de um género que perdera a sua razão funcional de existir. Note-se, aliás, que o autor estava ligado à temática heráldica por via da sua profissão de gravador da Casa da Moeda de Lisboa, havendo pois causas específicas para o seu interesse. Surgiram, por vezes, tentativas de compilação de um armorial das famílias portuguesas publicado em fascículos, como as de Aquiles Monteverde (1841), Artur Alberto de Avelar (1889) ou Seabra de Albuquerque (1879), porém nunca passaram de parcos números. É certo que foram igualmente publicadas obras genealógicas e nobiliárquicas que continham as armas das famílias tratadas, porém foram escassas, relevando-se do mesmo Seabra de Albuquerque (1861), a Nobiliarchia Conimbricense…; e, de Albano da Silveira Pinto (1883-1890) (autor do prefácio da obra anterior), a Resenha das Familias Titulares, depois completada pelo visconde de Sanches de Baêna. Ao longo do século XIX, de resto, não se imprimiu ou reimprimiu sequer qualquer tratado de heráldica ou manual de brasão; apenas as gravuras da obra do abade de Vallemont, na versão portuguesa de Pedro de Sousa de Castelo Branco, foram objeto de uma curiosa edição colorida.31 Mesmo no âmbito do cartório da Nobreza, verificou-se o definitivo abandono do projeto de produção de um grande tratado e armorial de referência pelas autoridades competentes. Os oficiais de armas limitaram-se, como se viu, a acrescentar os códices que lhes foram transmitidos pelos reformadores setecentistas, sem evidenciar intenção de realizar obras próprias e muito menos de vir a publicar o que quer que fosse. Com uma única exceção conhecida, até agora inédita: um pequeno tratado iluminado sobre as diferenças heráldicas da Casa Real portuguesa, redigido pelo escrivão da nobreza, iluminado pelo rei de armas Portugal e entregue à rainha D. Maria Pia em 1885, com o intuito de estabelecer uma norma consistente e justificada que se pudesse seguir, dali em diante, para as atribuições de armas aos membros da dinastia reinante.32

Já na fase final da monarquia constitucional, foram impressos dois livros que se podem considerar significativos para compreender o declínio a que havia chegado o género dos manuais de brasão e tratados de heráldica. Um deles, de J.A. Corrêa Leite Ribeiro, limitava-se a um resumo descarnado do que se consideravam as regras da armaria: ao longo de 138 páginas, o autor encavalitava preceitos, qual deles o mais desprovido de aplicação prática. Júlio de Castilho, autor de um dos prefácios, abri-lo-ia mesmo com estas palavras provocadoras: “Uma das uteis disciplinas de outr’ora mais inuteis hoje, é a Arte do Brasão”33. A autoria do outro cabia ao conde de Aurora; num pequeno volume intitulado Codigo de Civilidade e Costumes do Bom Tom seguido do CodigoHeraldico (sciencia do brazão), a heráldica formava uma espécie de aditamento a um manual de civilidade, género muito difundido na sociedade burguesa finissecular.34 A dimensão técnica da heráldica, ou seja, a armaria ou brasão, deixara de desempenhar uma função cultural de relevo. Passara por ela um século revolucionário.

 

Conclusão

A heráldica acompanhou e refletiu as profundas modificações a que a sociedade portuguesa foi submetida com a derrocada do Antigo Regime e o advento da monarquia constitucional. Tal asserção verificou-se em diversos campos. Assim, a heráldica ligada à Coroa transitou de um entendimento dinástico para uma noção territorial e, em seguida, estatal. Na armaria autárquica, presenciaram-se as primeiras ingerências do Estado na organização das insígnias dos municípios, tendentes à sua uniformização e submissão a uma autoridade centralizada. Em ambos os casos, a heráldica afirmou-se como instrumento de propaganda colocado ao serviço do Estado e dos municípios, com emissão, difusão e receção das representações plásticas das respectivas armas junto de um vasto público: os cidadãos e munícipes. Na heráldica de família, verificou-se alguma ambiguidade no que respeita à ­inovação: os modelos anteriores continuaram a existir, embora confrontados com a criação de armas novas, compostas mediante um léxico iconográfico transmissor de valores liberais e burgueses. Na heráldica eclesiástica, observou-se igualmente a diminuição do peso das armas de famílias tradicionais, em prol de escolhas simbológicas inovadoras, que refletiam a nova composição social do clero; bem como uma tentativa de centralização e uniformização por parte da Santa Sé. Tanto no caso da heráldica de família como no da eclesiástica, contudo, a principal alteração diz respeito à perda de impacto que ambas sofreram no seio da cultura oitocentista, devido ao decréscimo de influência quer das linhagens, quer da Igreja, daí advindo um uso cada vez mais restrito, menos público, dos emblemas familiares e eclesiásticos. Em contrapartida, novos campos se abriram para a heráldica associativa, militar, corporativa, comercial e imaginária. Todas elas conheceram uma verdadeira explosão, fazendo com que este antigo sistema emblemático transitasse em simultâneo para a era industrial e para novas formas de expressão artística e literária. Por fim, do ponto de vista da produção de obras heráldicas, assistiu-se à queda abrupta dos armoriais e tratados de armaria, produções cada vez mais confinadas. Na verdade, na era revolucionária oitocentista, a heráldica, longe de definhar, tornou-se num instrumento privilegiado de afirmação de identidade dos corpos sociais, de propaganda política, de publicidade comercial. Sob uma enganadora capa de continuidade formal, a heráldica mudou de paradigma semiológico e logrou renovar-se, entrando assim na sociedade industrial e de consumo de massa.

 

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*Recebido a 14-06-2010. Aceite para publicação a 17-12-2010.

 

Notas

1Sobre a questão da transferência dos oficiais de armas portugueses para o Brasil, as criações de novos cargos e as polémicas geradas a esse respeito, consultem-se as diversas obras de Rui Vieira da Cunha (1966, 1967, 1969, 1971, 1974, 1996).

2Carta de Lei (1817).

3Alvará de 15 de novembro de 1808, apud Nobre (1984, p. 76).

4Silva (s.d., t. ii, fl. 256; t. v, fl. 622 e t. vi, fl. 275).

5ANTT, Cartório da Nobreza, Processos de Justificação de Nobreza, m. 55, n.º 15.

6Vejam-se, por exemplo, as manifestações arroladas para o caso pinhelense em Seixas (2004).

7Silva (s.d., t. II, pp. 243-244 e 291).

8Silva (s.d., t. II, p. 263 e t. VI, p. 68).

9Sobre a carga historicista e as implicações políticas das armas de Belém, cf. Silva e Seixas (2009, pp. 218-221), Seixas e Galvão-Telles (2005, pp. 207-212) e Matos (1998).

10ANTT, Cartório da Nobreza, liv. 16, fl. 263.

11ANTT, Cartório da Nobreza, Processos de Justificação de Nobreza, m. 65, n.º 50; ANTT, ­Cartório da Nobreza, livro 17, fl. h.

12Transcrita em Azevedo (1903, pp. 277-278).

13ANTT, Cartório da Nobreza, Processos de Justificação de Nobreza, m. 65, n.º 47.

14ANTT, Cartório da Nobreza, Processos de Justificação de Nobreza, m. 49, n.º 19.

15ANTT, Cartório da Nobreza, Processos de Justificação de Nobreza, m. 65, n.º 47 e n.º 49.

16ANTT, Cartório da Nobreza, Processos de Justificação de Nobreza, m. 66, n.º 5. Recorde-se que o município do Porto já em 1813 invocara semelhante utilidade para a carta de armas solicitada; não se tratava porém, no caso portuense, de corrigir uma situação desregrada, mas antes de evitar que se chegasse a tal ponto.

17ANTT, Cartório da Nobreza, Processos de Justificação de Nobreza, m. 66, n.º 5.

18ANTT, Cartório da Nobreza, Processos de Justificação de Nobreza, m. 66, n.º 5.

19ANTT, Cartório da Nobreza, Processos de Justificação de Nobreza, m. 66, n.º 5.

20ANTT, Cartório da Nobreza, liv. 17, fl. j.

21Fonseca (1921, p. 35).

22Não existindo um inventário geral de tais manifestações, os exemplos de seguida aduzidos referem-se a casos que vêm referidos no armorial de José Marques da Silva. Igualmente se teve em conta o caso, estudado em maior profundidade, dos municípios de Fronteira e de Pinhel. Cf. Seixas (2004); Seixas e Galvão-Telles (2002).

23A passagem dos sinais vexilológicos de natureza inicialmente dinástica para uma dimensão nacional foi problematizada em Pastoureau (2004, pp. 245-268); para o caso português, v. Seixas e Paço d’Arcos (2004).

24O problema já foi assinalado por Amaral (2008b), Rêgo (2008, pp. 185-186), Seixas e ­Galvão-Telles (2009).

25Valdez (1935), passim. Já foi estudada a influência que a energia do vapor e em especial o caminho-de-ferro, realidade que tanto marcou a mentalidade oitocentista, exerceram sobre a heráldica autárquica inglesa e galesa: Duerloo (1986).

26Para uma visão comparada da cultura heráldica nos vários países da Europa, consulte-se Redondo Veintemillas et al. (2004, t. 2).

27Cf. Smith de Vasconcellos (1918); Cunha (1965); Zieber (1984 [1895]); Schwarcz (2003); Frasquet (2006).

28Caso evidente, por exemplo, do 1.º barão e visconde do Cercal. Cf. Seixas (2006-2007).

29A temática ainda não foi abordada de forma científica no caso português. Para a sua problematização e estado da questão, v. Salvi e Savorelli (2008).

30A temática da heráldica comercial tampouco foi, até ao presente, objeto de estudos científicos em Portugal, com exceção de Seixas (2002).

31Obra recentemente reeditada com um estudo introdutório que identifica os dois responsáveis pela edição oitocentista: Francisco Cândido dos Anjos Rodrigues e João José dos Santos. Cf. Amaral (2008a).

32Campos (s.d.).

33Ribeiro (1907, p. 7).

34Aurora (1894).

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