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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.202 Lisboa  2012

 

Deontologia e capitalização simbólica na advocacia portuguesa contemporânea*

 

Miguel Chaves**, João Sedas Nunes**

**FCSH, Universidade Nova de Lisboa; e-mail:miguel.chaves@fcsh.unl.pt; joaosedasnunes@fcsh.unl.pt

 

Resumo

Partindo de um estudo sobre os jovens que ingressam na advocacia portuguesa, este artigo retoma uma temática bastante arredada da sociologia contemporânea – a ético-deontologia dos grupos profissionais. Sustenta-se que os argumentos ético-deontológicos conduzem os jovens que acedem à profissão através do “protótipo liberal” a desenvolverem aspirações compatíveis com o “exercício liberal”, a avaliarem positivamente a sua situação profissional e a adquirirem capital simbólico, num momento marcado pela ascensão dos jovens colaboradores em grandes sociedades de advogados. O argumentário ético-deontológico faz ainda com que estes últimos, distantes do protótipo liberal, não adquiram uma supremacia simbólica absoluta no interior da profissão.

Palavras-chave: ético-deontologia; advocacia; capital simbólico; hierarquia simbólica.

 

Deontology and symbolic capital in Portuguese contemporary advocacy

Abstract

Bearing on a study about young people that enter Portuguese advocacy, this article goes back to a topic far from contemporary sociology – professional groups’ ethic-deontology. Its standpoint is that ethic-deontological arguments allow young lawyers embracing the profession through the “liberal prototype” to build up professional aspirations that favor both a “liberal exercise” and a positive evaluation of their professional situation.  This gives rise to a will to acquire symbolic capital in a context of young lawyers in major law firms. It is the ethic-deontological “cut” that prevents the latter, which move away from the liberal model, from having an absolute edge.

Keywords: ethic-deontology; advocacy; symbolic capital; symbolic hierarchy.

 

Reequacionando a problemática ético-deontológica

Desde a década de 1960, temos vindo a assistir, no contexto da sociologia das profissões, à crítica e progressiva perda de hegemonia do paradigma funcionalista, em particular da corrente parsoniana (Dubar e Tripier, 1998; Macdonald, 1995; Rodrigues (2002[1997]), processo comum a vários outros domínios da investigação sociológica. Nenhuma das dimensões de análise dos grupos profissionais ficou incólume a esse movimento reativo, nomeadamente aquela sobre a qual nos iremos debruçar – os aspetos ético-deontológicos das profissões.1

No quadro do estrutural-funcionalismo clássico, particularmente na obra de Parsons (1939), mas também em textos de Wilensky (1964), Barber (1965) ou Goode (1969), os aspetos ético-deontológicos correspondiam a uma das características omnipresentes em qualquer definição ideal-típica de “profissão”, contribuindo para as distinguir das “meras ocupações”. Os elementos éticos constituíam, além disso, os pilares da exigente formação moral a que todos os profissionais seriam submetidos. A sua interiorização sob a forma de normas impessoais seria, por sua vez, responsável, a par dos códigos normativos, pelo facto de os profissionais agirem segundo motivações altruísticas.

Em termos gerais, é possível considerar que nas abordagens posteriores, contrárias ao funcionalismo, as dimensões ético-deontológicas deixam de ser consideradas algo de intrinsecamente constitutivo dos grupos ­profissionais e dos processos de socialização daqueles que os integram, para passarem a ser equacionadas como um conjunto de elementos reivindicados pelos ­profissionais no sentido de legitimarem a sua situação privilegiada na divisão social do trabalho. Se é já possível reconhecer este tipo de pressupostos no trabalho de “refocalização” sociológica das profissões conduzido pelo interacionismo simbólico (Hughes, 1958; 1971), é, no entanto, a partir de um conjunto de obras de inspiração weberiana e marxista que se contesta, assumidamente, o modo como as perspetivas funcionalistas haviam conceptualizado esses aspetos. Autores como Roth (1974), Chapoulie (1973) ou Gyarmati (1975), entendem que a reivindicação da posse de putativas qualidades e atributos éticos pelos grupos profissionais se encontra inextricavelmente ligada à ideologia e aos interesses dos seus membros, e é portanto sob essa ótica que a “questão da deontologia” deve ser sociologicamente analisada. Este modo de ver tem particular impacto na obra de Freidson (1971;1986), que associa a ética profissional ao “poder profissional”, particularmente às formas de legitimação que lhe subjazem, e, apesar das suas diferenças, nos escritos de Larson (1977). Como é sabido, Magali Larson proclama que a reivindicação de pretensos atributos éticos, como o altruísmo, constitui, a par da monopolização de determinadas competências intelectuais, um dos elementos chave na defesa da “ideologia do profissionalismo”, ideologia que consiste num dos dispositivos estratégicos centrais adotados pelos grupos profissionais no sentido de criarem “mercados de trabalho fechados”, de desenvolverem “projetos de mobilidade social” e de garantirem a sua preservação diante de ameaças externas.2

A crítica do sentido axiológico da ético-deontologia presente no funcionalismo parsoniano desenvolvida por estas perspetivas faz, em nosso entender, pleno sentido. A perspetiva parsoniana acabava por representar (mesmo involuntariamente) uma espécie de contributo sociológico para o engrandecimento das profissões e para a legitimação do “poder profissional”. No entanto, e não obstante os seus méritos, as abordagens “pós-funcionalistas” não deixam também de comportar alguns riscos e limitações. Ao reduzirem as dimensões ético-deontológicas a um papel de meros artefactos ideológicos mobilizados pelos grupos profissionais diante da sociedade em geral, ou de grupos profissionais concorrentes, elas tenderam a menosprezar alguns dos efeitos que as dimensões ético-deontológicas podem exercer sobre a instituição e o funcionamento dos “mundos profissionais” e, concomitantemente, a sua análise por parte das ciências sociais.

O argumento proposto e defendido neste texto considera, justamente, que essas dimensões têm uma relevância analítica que extravasa, em diversos casos, a de meros constructos ideológicos orientados para a defesa dos privilégios das profissões face ao exterior, podendo, ao invés, afetar também os quadros representacionais internos de certas profissões. É o que entendemos suceder no contexto da advocacia portuguesa contemporânea, mais exatamente junto dos jovens recém-inseridos na advocacia lisboeta, população sobre a qual nos iremos debruçar. Avançamos dois argumentos. O primeiro é o de que alguns dos referentes ético-deontológicos que circulam junto dos jovens advogados3 afetam e complexificam a hierarquia simbólica vigente no meio profissional juvenil. Tal acontece, como veremos, porque esses referentes permitem valorizar os jovens que mais se aproximam do modelo liberal-clássico de exercício da profissão (tendencialmente mais descapitalizados em termos económicos, sociais e, em certa medida, também simbólicos), perante aqueles que, embora mais capitalizados, se afastam desse protótipo: os “jovens colaboradores em sociedades de advogados”.

Em segundo lugar, sustenta-se que esses mesmos referentes ético-deontológicos afetam as aspirações profissionais de uma minoria de recém-ingressados na profissão, marcando, por essa via, quer o seu projeto profissional, quer as avaliações que produzem da sua situação laboral concreta, ­concorrendo para que esta se torne positiva. Referimo-nos em concreto àqueles que de forma deliberada, e dispondo de outras possibilidades economicamente mais compensadoras, optam por formas de exercício da profissão próximas do modelo liberal-clássico, claramente menos rendíveis, sobretudo quando exercidas por jovens.

Qualquer destes factos apenas é possível porque, embora o exercício da ­advocacia em Lisboa se esteja gradualmente a afastar do formato liberal, afastamento resultante sobretudo, e como sublinharemos adiante, da expansão progressiva das formas societárias de exercício da profissão, os aspetos ético-deontológicos que lhe estão associados não só subsistem como continuam a ter uma relevância considerável na imagem que a profissão – através dos discursos dos profissionais – produz e difunde interna e externamente acerca de si própria.

A análise que aqui propomos é em grande medida tributária da obra de Pierre Bourdieu, com destaque para a teorização dos campos sociais, uma vez que resulta, em linhas gerais, da extensão à profissão do foro, aqui justamente conceptualizada como campo, de dois pressupostos nucleares desse património teórico: por um lado, o de que, embora possam ser atravessados por lógicas comuns a outros campos, e mesmo à globalidade do sistema social, os campos sociais possuem conjuntos de valores que lhe são característicos; por outro, que o investimento nesses valores constitui o modo através do qual os agentes envolvidos num dado campo se apropriam dos capitais que aí se encontram em circulação, nomeadamente das formas de capital simbólico que lhe são específicas. Consideramos que uma pressuposição implícita, mas central, na perspetiva de Bourdieu, sobretudo quando procuramos dar conta da problemática ético-deontológica, é precisamente a de que a finalidade, mesmo não consciente, do reconhecimento constitui, por assim dizer, a ultima ratio do investimento dos agentes sociais no jogo social. Esta “orientação última” para a obtenção de valor simbólico permite inclusive que, do ponto de vista analítico, as condutas aparentemente não racionais dos agentes, designadamente as menos suscetíveis de se converterem em capital económico ou social, sejam interpretáveis à luz das noções de “interesse” e “estratégia” (designadamente o próprio “ato desinteressado”, na medida em que seja desenvolvido no interior de campos em que o “desinteresse” se apresente como um valor em jogo).

Não sendo o momento para elencarmos de modo exaustivo alguns limites que encontramos na obra de Bourdieu e sobre os quais refletimos em detalhe noutros momentos (Nunes, 1996; 1999; Chaves, 2008, pp. 40-52; 2010, pp. 52-54 e 57-62) importa, contudo, chamar a atenção para um ponto que se torna especialmente relevante no âmbito do presente argumento. Cremos que ela tende a negligenciar a ideia de que, por vezes, os agentes que se encontram em posição dominada no espaço social, longe de soçobrarem perante a doxa vigente, apanágio dos dominantes, têm a capacidade de mobilizar recursos, nomeadamente argumentativos, no sentido de fazerem aceitar as suas ­reivindicações e visões do mundo como algo igualmente legítimo e que não se situa necessariamente num plano simbolicamente inferior. A luta e a negociação da realidade que têm lugar no interior dos campos sociais podem, inclusive, conduzir aqueles que possuem um maior volume de capitais a reconhecer o caráter válido, virtuoso ou mesmo paritário das práticas ou representações desenvolvidas por agentes sociais que, do ponto de vista dos capitais de que são portadores, se situam numa posição dominada. Trata-se, no fundo, de atenuar a visão dominocêntrica da obra de Bourdieu, em prol da elaboração de uma leitura mais dinâmica e negocial do funcionamento dos campos sociais.4

 

Componentes da ético-deontologia: finalidades, normas e valores profissionais

A informação utilizada neste artigo provém i) de um questionário aplicado a uma amostra representativa de jovens advogados que, após concluírem o estágio profissional, se inscreveram, entre os anos de 1998 e de 2002, na comarca de Lisboa da Ordem dos Advogados5; ii) de entrevistas em profundidade realizadas a 34 dos jovens inquiridos selecionados com base numa “amostra por contraste” gerada com o propósito de permitir captar a maior heterogeneidade possível de posições no campo da advocacia (Chaves, 2010, pp. 81-88); iii) de entrevistas levadas a cabo com 6 advogados seniores, aos quais se atribuiu o estatuto de informantes privilegiados. Procedeu-se ainda a uma iv) análise documental que adquiriu particular destaque na escrita do presente texto, embora nos tenhamos aqui circunscrito aos excertos textuais referentes às dimensões ético-deontológicas (idem, p. 135). A este propósito analisaram-se: os artigos que incidem sobre estas matérias publicados no Boletim da Ordem dos Advogados, desde 1982, ano de reinício da publicação, até junho de 2005; os Estatutos da Ordem dos Advogados de 1984 e os “novos estatutos” publicados em 2005; os diversos regulamentos do estágio (onde a presença das matérias deontológicas permaneceu constante, destacando-se quer nos planos curriculares, quer em termos avaliativos, já que a reprovação na avaliação deontológica tem por consequência a reprovação no próprio estágio); as conclusões finais dos diversos Congressos dos Advogados Portugueses, publicitadas no Boletim da Ordem6, onde ressalta a referência a aspetos desta natureza; finalmente, a análise de uma série de obras recentes, difundidas no interior da classe, que se propõem refletir sobre o presente e o futuro da profissão. De entre elas destacamos Advocacia Hoje. Que Fazer? (Neves, 2001), na qual diversos advogados, mas também magistrados e professores universitários, tratam a ético-deontologia como um tema de importância vital, sobre ele discorrendo em diversos artigos.

Precise-se que, inspirando-nos na proposta de Boon e Levin (1999), a ético-deontolologia profissional é, na aceção aqui proposta, uma realidade constituída por três dimensões que importa distinguir do ponto de vista ­analítico7: a) as finalidades últimas; isto é, as finalidades que justificariam a existência da própria profissão, devendo as práticas dos profissionais convergir idealmente para a sua concretização; b) as normas deontológicas propriamente ditas, ou seja, um conjunto de regras que estabelecem um código de conduta ­consagrado juridicamente, e cuja infração poderá ser sancionada através do levanta­mento de processos disciplinares – neste caso, da exclusiva ­competência da Ordem dos Advogados (art.º 90.º do E.O.A.); e c) os valores ­profissionais. Estes últimos transcendem as normas deontológicas, estando a coberto de mera regulamentação; servem antes, supostamente, de alicerces à fundação de uma “visão ética do mundo” própria da profissão em causa.

Ao distinguir estas três componentes do quadro ético-deontológico – finalidades, normas e valores –, não negamos que, do ponto de vista lógico, elas se encontram estreitamente associadas. Assim, por exemplo, as normas deontológicas fundamentam parte substancial da sua legitimidade no facto de permitirem concretizar as finalidades e os valores profissionais. No caso da advocacia, e a título de exemplo, é o que sucede com a “regra das incompatibilidades”, que salvaguardaria o valor da independência; ou com a proibição, até há bem pouco, de qualquer tipo de publicidade ou da quota litis,8 sob a justificação de que tais interdições permitiriam amenizar ou mesmo neutralizar a presença de “valores mercantilistas” na prática da profissão: se assim não fosse, esta poderia converter-se num total mercenato, que poria em causa o cumprimento das suas “nobres missões” (Arnaut, 2002).

 

Transformações da advocacia portuguesa da profissão liberal à advocacia societária

Com particular destaque na região de Lisboa, a advocacia portuguesa sofreu transformações mais profundas e céleres nos últimos 20 anos do que ao longo de todo o século XX. Tais alterações são em tudo semelhantes às que tiveram lugar antecipadamente noutros países, com realce para os eua, onde remontam aos inícios do século XX.9 Sinteticamente, poderíamos descrevê-las como o resultado da aproximação da profissão ao sistema económico capitalista.10 Essa aproximação consubstancia-se na crescente penetração das empresas na carteira global de clientes da advocacia e na ampliação da esfera das ­competências jurídicas especializadas, ajustadas às novas “necessidades do mercado”; leia-se, associadas à expansão de domínios do Direito com um forte conteúdo económico pouco desenvolvidos até há relativamente pouco tempo – o societário, o financeiro bancário, o penal económico, o fiscal, o fiscal ­internacional e ­aduaneiro, o direito da concorrência e o comercial.

Estas mudanças e a adaptação levada a cabo pelos profissionais do foro no sentido de, aproveitando as oportunidades económicas então surgidas, as integrarem nas suas práticas profissionais, conduziram a uma empresarialização de um número crescente de escritórios de advogados, que adquiriram a forma de “sociedades de advogados”. Essas entidades, definidas no plano jurídico como “sociedades civis em que dois ou mais advogados acordam no exercício, em comum, da profissão […] a fim de repartirem entre si os respectivos lucros”11, passaram, por seu lado, a dinamizar as referidas transformações, intensificando-as. Ao longo dos últimos anos o número e a dimensão destas estruturas têm aumentado de forma exponencial. Com efeito, segundo Caetano (2003, pp. 74-75), se em Portugal “as primeiras sociedades de advogados tiveram o seu início formal […] em 1980”, a partir de então não deixaram de se multiplicar. Até 2003 “haviam sido registadas na Ordem 674 sociedades de advogados”. O crescimento no período não foi todavia uniforme. O mesmo autor elucida que se “em toda a década de 1980 do século passado foram constituídas apenas 59 sociedades, ou seja, 8,7% do total existente em 2003”, já o “início da década de 1990 constituiu um despertar súbito para a adopção desta modalidade de exercício, de tal modo que, só nos primeiros anos, se formaram mais sociedades do que em toda a década anterior. No início deste século, verificou-se um novo impulso na constituição de sociedades de advogados, 40,7% das quais surgiram entre 2000 e 2003”. Notar-se-á aqui que, significativamente, do total de jovens advogados lisboetas que, em outubro de 2003, foram inquiridos no quadro do estudo (Chaves, 2010) que serviu de base ao presente artigo, 44,5% encontravam-se ligados à advocacia societária: 37,8% na qualidade de “colaboradores/prestadores de serviços numa sociedade de advogados”; 4,4% como “sócios de capital e indústria de uma sociedade de advogados”; e 2,3%, enquanto “sócios de indústria de uma sociedade de advogados”.

Antes dessas transformações terem ocorrido, a esmagadora maioria dos profissionais exercia a advocacia de acordo com um modelo da profissão que aqui intitulamos de liberal-clássico; modelo esse que apresentava uma grande semelhança nos diversos países europeus (Halpérin, 1996; Karpik, 1995). Descrevê-lo-emos, guardando em mente quatro dimensões estruturantes das profissões (Abbott, 1988) que convocaremos de novo mais tarde para caracterizar a advocacia societária (isto é, a advocacia protagonizada pelas sociedades): a organização do trabalho; os padrões de carreira; o tipo de clientes e o género de conhecimentos jurídicos investidos na prática profissional.

No exercício liberal-clássico, o trabalho de advogado era quase exclusiva­mente realizado a solo no interior de escritórios, grande parte individuais (embora no caso de Lisboa fosse já frequente, antes da década de 1990, o co-aluguer do espaço). Do advogado esperava-se que fosse proprietário dos seus equipamentos e o próprio exercício no domicílio familiar não só era admitido, como frequente. Para utilizar as palavras de Halpérin (1996), o exercício isolado da profissão constituía uma regra que, embora em muito casos não fosse formulada, não era contestada. A situação de advogado isolado apresentava-se também como a forma mais comum de ingresso na profissão. Os recém-chegados deveriam, desde logo, lançar-se numa carreira a solo, ou estabelecer uma relação próxima – por vezes de dependência – com um advogado sénior, geralmente patrono de estágio. Mas, mesmo nesses casos, a autonomia e o exercício por conta própria continuavam a emergir como o culminar natural de uma carreira bem sucedida.

Do ponto de vista da clientela, a advocacia liberal era, por sua vez, procurada dominantemente por pessoas singulares, o que não obstava a que, em certos contextos – entre os quais a capital portuguesa constituía mais uma vez exemplo flagrante –, alguns advogados possuíssem já no seu leque de clientes empresas industriais, comerciais e financeiras com as quais estabeleciam geralmente contratos de avença.

Finalmente, a este tipo de exercício da profissão associava-se, com algumas exceções, uma prevalência esmagadora do conhecimento generalista: cada advogado trabalhava simultaneamente em vários domínios do Direito, sendo, geralmente, suficiente o “domínio dos códigos civil e penal, respectivas leis adjetivas e um pouco de direito comercial” (Arnaut, 2002, p. 35).

Ora, as mudanças que se fizeram sentir no campo da advocacia tiveram como efeito o fim da hegemonia da forma liberal de exercício da profissão. Com o advento do modelo societário – institucionalizado sob a forma de médias ou grandes sociedades de advogados – o exercício da profissão é permeado pela lógica da empresa capitalista.12 Nesses loci societários, a prática da advocacia afasta-se significativamente do protótipo liberal. Desde logo, deparamo-nos no seu interior com uma forma de organização burocrática claramente orientada por princípios de produtividade e de eficiência, onde quer os lucros quer os honorários são contabilizados racionalmente, avaliando-se a produtividade global da estrutura e a de cada advogado em concreto. Em termos de organização e divisão do trabalho, ao invés das unidades económicas constituídas por um único indivíduo que trabalhava autonomamente, encontramo-nos perante grandes organizações, no interior das quais o trabalho é executado por equipas, orientadas para a resolução de determinados tipos específicos de questões jurídicas (Halpérin, 1996, p. 230). Cada coletivo é coordenado por advogados seniores que têm, geralmente, o estatuto de sócios, que partilham os lucros anuais, e que são acompanhados no seu trabalho por um conjunto de colaboradores/prestadores de serviços que desenvolvem a advocacia na qualidade de assalariados, auferindo uma remuneração mensal tendencialmente fixa. Os indivíduos que se encontram nesta última situação são geralmente advogados jovens.

Por sua vez, a progressão profissional na advocacia societária inicia-se, em termos ideais, com a entrada do jovem advogado na qualidade de “advogado-estagiário”, a que se segue o estatuto de “colaborador”, e, finalmente, a assunção do título de “sócio de indústria” ou de “sócio de capital e indústria”. Os patamares hierárquicos e as modalidades de ascensão na carreira variam, no entanto, de escritório para escritório. Em geral encontram-se correlacionados com a dimensão das sociedades, e tendem a ser tanto mais complexos quanto maior for a dimensão da sociedade em questão.

Em termos de clientela, pode afirmar-se que este modelo de exercício da advocacia se encontra claramente orientado para clientes que fazem parte do “mundo dos negócios” (Karpik, 1995; Halpérin, 1996): empresas financeiras, comerciais e industriais; de preferência grandes organizações (nomeadamente multinacionais), que têm condições para contratar os serviços jurídicos que a advocacia societária presta. O Estado é também um cliente preferencial.

A advocacia societária distingue-se ainda da advocacia liberal-clássica quanto aos conhecimentos jurídicos mobilizados. Nela ganharam máxima expressão os saberes especializados: cada setor intra-societário (ou, se se preferir, cada equipa de advogados) domina conhecimentos confinados a áreas específicas do Direito. A par disso, aí se verificou uma expansão dos domínios do Direito, expansão polarizada na 1) resolução das questões jurídicas com que se confronta o mundo empresarial num contexto de globalização económica e financeira (direito comercial, das sociedades, fiscal, internacional, penal financeiro, etc.), e na 2) emergência de novas áreas, tais como as que se encontram orientadas para as questões da propriedade intelectual ou das tecnologias da informação.13

 

A proeminência do quadro ético-deontológico da advocacia liberal-clássica e os novos aditamentos

Como seria de esperar, as transformações em curso na advocacia decorrentes do advento e expansão do modelo de exercício societário e da crescente introdução da advocacia na esfera económica tiveram consequências no cenário ético-deontológico da profissão, a que aludiremos mais adiante.

O ponto nuclear do presente argumento é, no entanto, o de que, apesar das mudanças registadas e atrás documentadas, os princípios ético-deontológicos associados ao modelo de exercício liberal-clássico se mantêm fortemente presentes no quadro legitimador da advocacia portuguesa contemporânea. Mais: são esses os princípios que a generalidade dos profissionais considera específicos da advocacia, funcionando ipso facto como marcadores identitários centrais da profissão. Eles encontram-se presentes nos estatutos da Ordem do Advogados, num conjunto de discursos cerimoniais onde a profissão ou profissionais insignes são celebrados, em obras de referência nas quais advogados ou ilustres convidados refletem sobre a própria profissão (Neves, 2001), e muito particularmente nas obras de natureza ético-deontológica adotadas no estágio da Ordem, como, por exemplo, em Iniciação à Advocacia (Arnaut, 2002), O Advogado e a Moral (Garçon, 1963) ou em A Alma da Toga (Gallardo, 1956 [1920]).

Tal facto facilitou a produção de discursos comuns no interior da profissão, propalando a “ancestralidade” e a durabilidade da ética profissional e fazendo radicar em tais traços a “confiabilidade” e consequentemente a grandeza da própria profissão. Veja-se, por exemplo, uma das obras centrais de formação deontológica dos jovens advogados portugueses da autoria de António Arnaut (2002). Aí se sublinha que, “se a complexidade da vida tornou o advogado diferente de seus pares antigos e recentes, os grandes princípios deontológicos e os objetivos da função mantêm-se inalteráveis, como fio invisível que une e identifica, ao longo dos séculos, os profissionais do foro. A ‘alma da toga’ não mudou, nem pode mudar. A ética é a pedra angular da dignidade da advocacia. Sem ela a profissão seria um mercenato” (idem, p. 37).14

Mas afinal que princípios ético-deontológicos associados à advocacia liberal são esses que moldaram a “alma da toga”, para utilizarmos uma expressão tantas vezes veiculada? Reflitamos sobre eles antes de elencarmos os mais recentes, associados às mudanças em curso.

A identificação da finalidade última da advocacia liberal-clássica parece ser bastante consensual: incumbir-lhe-ia a missão de colaborar na realização do Direito e da Justiça em conjunto com as restantes profissões jurídicas, nomeadamente a magistratura. Essa função encontra-se claramente enunciada nos estatutos da Ordem. À luz de tal princípio, os advogados defenderiam o “interesse público”, assumindo um papel vital e insubstituível na defesa das liberdades e garantias, do Estado de Direito Democrático, dos Direitos Humanos e, segundo uma terminologia recorrente, dos “fracos e oprimidos”.

A finalidade de defesa do interesse público estaria garantida na defesa de indivíduos singulares mas podia, e deveria, estender-se à própria esfera da ação legislativa (através do controlo da qualidade das leis), bem como à contenda e intervenção políticas. Em múltiplos países europeus, de que ­Portugal é exemplo paradigmático, a continuidade entre a atividade da oratória (da alegação e argumentação) nos tribunais e nos órgãos do Estado democrático, designadamente no parlamento, foi muito evidente ao longo dos séculos XIX e XX, avultando no número de parlamentares e membros da classe política advogados, embora a explicação para este fenómeno transcenda largamente o horizonte teleológico definido pelos princípios éticos da classe (Chaves, 2010, pp. 160-61).

Do ponto de vista dos valores, e partindo do vasto conjunto de literatura que reflete sobre as questões éticas do foro, dois merecem relevo, dado o cunho nevrálgico que assumem nas idealizações ventiladas em meio profissional acerca do “caráter singular do advogado”: a independência e o altruísmo.

O valor/imperativo moral da independência permeia qualquer obra ou observação dedicada a identificar os atributos éticos da advocacia, desde os textos de Mollot (1842), Cresson (1888), Appleton (1928), Hamelin e Damien (1981)15 até àqueles que acompanham, presentemente, a formação deontológica do estágio em Portugal (Arnaut, 2002; Gallardo, 1956; Garçon, 1963). A seguinte afirmação é característica: “Foi claro, desde sempre, que esta actividade tinha de ser exercida por homens livres e de bons costumes, desligados de qualquer servidão. [...] Só a liberdade alimenta a permanente rebeldia do advogado contra a injustiça, o arbítrio e a prepotência. [...] O advogado não pode estar subordinado nem ao poder político, nem ao poder económico, nem a terceiros, nem ao próprio cliente. Está apenas vinculado à sua consciência” (Arnaut, 2002, pp. 91-92). A independência, em conjugação com a indómita inclinação para servir a justiça, converteria o profissional do foro num sujeito naturalmente combativo, corajoso, irreverente, sem particular veneração pelas hierarquias (virtudes a que deveriam, no entanto, somar-se os preceitos, também eles desejavelmente introvertidos, da correção e da urbanidade).

Um segundo valor central proclamado no quadro da advocacia liberal-clássica é, como assinalámos, o do altruísmo. Dele resultaria uma espécie de apego natural do advogado ao cliente e à causa pública, desígnios elevados a que o profissional deveria acudir com espírito de missão e até de sacrifício pessoal. Estes traços encontram-se bem patentes na utilização do termo “sacerdócio”, evocado, por diversas vezes, nas entrevistas realizadas aos jovens advogados. Na sua expressão, por assim dizer, mais radical, o altruísmo reverter-se-ia em desinteresse; ou seja, numa particular inclinação para o desenvolvimento de condutas supostamente não votadas à obtenção de recompensas pessoais, nomeadamente de natureza económica. A expressão “desinteresse” não é, em si mesma, frequentemente utilizada no quadro da advocacia portuguesa contemporânea, ao contrário do que parece ter sucedido há algumas décadas, pelo menos noutros contextos nacionais (Karpik, 1995; Azziman, 1980).16 Surge todavia em alguns momentos, como por exemplo no elogio ao “caráter desinteressado” de algumas figuras modelares da profissão, sempre presente nos discursos de homenagem; mas também na preservação do nominativo “honorário”, em lugar dos termos mais comuns “salário” ou “remuneração”, para mencionar o pagamento dos serviços jurídicos prestados aos clientes. Em períodos recuados, a designação “honorário” traduzia a ideia de que entre o cliente e o advogado se estabelecia essencialmente uma dívida de honra, contraída e liquidada de forma voluntária, como se a relação entre ambos se estabelecesse, por assim dizer, no contexto de uma “economia do dom”.

É interessante constatar que estes três valores – independência, altruísmo e desinteresse – são diversas vezes evocados por advogados. Como se constituíssem dados indeléveis, essências da profissão, que, estribando-se na origem histórica e moral da ars juris, condensariam a grandeza da profissão. Esta composição patenteia-se amiúde em discursos cerimoniais, espelhando-se com excecional nitidez num texto de Arnaut (2002, p. 15): “A advocacia tem […] uma origem nobre, no verdadeiro sentido da palavra: nasceu pela necessidade moral de defender os fracos e os justos, e foi exercida, primordialmente, por homens livres e bons que, desprezando a vil pecúnia, apenas se norteavam pelo generoso espírito de servir a verdade, o direito, e a justiça, os três grandes pilares em que, ainda hoje, assenta a dignidade da nossa profissão. Servir a Justiça foi, desde sempre, a profunda motivação do advogado. Não é digno deste honroso título quem se desvia do recto caminho traçado pelos primitivos homens do foro”17.

Por fim, para observarmos as normas deontológicas teremos que recorrer aos Estatutos da Ordem dos Advogados. De entre todas as normas que compõem as disposições estatutárias que regem a advocacia em Portugal vale a pena relevar duas, uma vez que são as que mais se conectam aos valores da independência e do altruísmo, sendo portanto as mais associadas às particularidades da advocacia liberal-clássica. Tais normas permaneceram intocadas da versão de 1984 para a nova versão dos estatutos, que data de 2005. Em primeiro lugar, destaca-se o “dever de probidade, isenção e independência”, que adquire a sua forma mais substantiva no art.º 68.º dos Estatutos de 1984. Nele se define expressamente que “o exercício da advocacia é incompatível com qualquer atividade ou função que diminua a independência e a dignidade da profissão”. Em segundo lugar, avultam os “deveres para com a comunidade”, definidos no art.º 78.º, justamente os mais associados à finalidade nuclear da profissão – pugnar pela boa aplicação das leis e pela rápida administração da justiça; recusar o patrocínio às causas consideradas injustas; protestar contra as violações dos direitos humanos e combater as arbitrariedades.

Se procurarmos agora apreender as alterações no quadro ético-deontológico concomitantes do desenvolvimento da advocacia societária, destacar-se-á a introdução de novos elementos, e não propriamente a supressão dos anteriores, como teremos ocasião de realçar mais à frente. Do ponto de vista das finalidades, encontra-se hoje bastante mais presente na profissão a ideia de que um dos seus desígnios é o de contribuir para o desenvolvimento e para o funcionamento mais ágil do sistema económico. Tal finalidade seria prosseguida através do fornecimento de um suporte de informação jurídica às atividades dos agentes que, atuando na esfera dos negócios, se deparam com meandros legais cada vez mais complexos.

No que se refere aos valores, um houve que ganhou particular ascendente nas últimas décadas – “a competência”. Claro está que atributos como o conhecimento das leis ou a posse de capacidades argumentativas e retóricas já eram exaltados no início da década de 1980, ou mesmo em períodos anteriores. No entanto, nos dias que correm a exaltação da competência surge acoplada a três aspetos que alteram parcialmente o seu conteúdo. Em primeiro lugar, enfatiza-se grandemente o “saber-estar” face ao cliente, competência profissional particularmente ressaltada no interior das sociedades, percebendo-se bem porquê: é nestas que os clientes, provindo de classes dominantes18, sujeitam as performances relacionais dos jovens profissionais a um escrutínio mais codificado e minucioso. O enaltecimento da competência encontra-se, em segundo lugar, na advocacia contemporânea fortemente vinculado à proclamação das virtudes do conhecimento especializado. Em terceiro lugar, as competências são entendidas hoje, mais do que antes, como um conjunto de conhecimentos que se encontram em rápida alteração, exigindo aos profissionais esforços no sentido de se manterem em “estado de competência”. Daí os sistemáticos apelos à necessidade da “formação constante”, em tudo coincidentes com o extraordinário crescimento que se verifica na oferta formativa académica e extra-académica nos domínios do Direito.

No que respeita às normas deontológicas, registaram-se no arco temporal limitado pelas duas versões dos Estatutos da Ordem que já identificámos apenas ligeiras alterações. Na verdade, o que há de fundamental a destacar quando se cotejam essas duas versões é a estabilidade normativa. A única alteração significativa introduzida ocorreu no capítulo da publicidade. Passaram a tolerar-se formas de publicidade antes vedadas aos escritórios de advogados, como, por exemplo, a de poderem fazer menção “às línguas ou idiomas falados ou escritos” e “à área preferencial de atividade”; a “publicação de brochuras, escritos, circulares e artigos periódicos sobre temas jurídicos em imprensa especializada ou não” (onde o profissional pode não só identificar-se como advogado, mas também assinalar a organização profissional onde se integra) e a inclusão nessas brochuras “de fotografias, ilustrações e logótipos adotados” pelo escritório. Nada disto era permitido nos estatutos de 1984.

Depois deste percurso, é altura para procedermos a um balanço de síntese da evolução do quadro ético-deontológico da advocacia contemporânea portuguesa. O que se conclui é que as recentes inovações “ético-deontológicas” resultantes da emergência da advocacia societária não substituíram o anterior quadro ético-deontológico associado à advocacia liberal-clássica, pelo contrário, a ele se adicionaram, tornando o espólio ético-deontológico da advocacia contemporânea mais extenso e polifacetado.19 Mais, o património ético-deontológico herdado do estado anterior do campo continua a primar inter pares, uma vez que os recursos que o integram continuam a funcionar como bens capitalizáveis do ponto de vista simbólico, ou seja, como “trunfos” jogáveis na definição da hierarquia simbólica20 interna do campo – vê-lo-emos de seguida.

 

O ascendente dos colaboradores em médias e grandes sociedades no contexto da advocacia juvenil

De todas as alterações na hierarquia simbólica do campo profissional decorrentes do advento da advocacia societária reteremos, neste texto, apenas as que se refletem diretamente no posicionamento hierárquico dos jovens advogados.

A mais notória respeita ao surgimento de uma nova categoria intra-profissional – a dos “colaboradores de sociedades de advogados”. O lugar de colaborador em médias e grandes sociedades de advogados (geralmente as mais prósperas e bem cotadas) é a forma de inserção profissional ambicionada pela maior parte dos recém-chegados à advocacia. Aí ingressam, importa esclarecer, tendencialmente os indivíduos originários das classes dominantes, detentores das melhores médias escolares, e provenientes das universidades mais prestigiadas (Chaves, 2010; Chaves e Nunes, 2011).

Esta nova fileira de profissionais21 afasta-se do protótipo do “profissional liberal”, uma vez que aufere um montante salarial relativamente fixo, pago pelas sociedades onde trabalha; não dispõe de autonomia na escolha dos processos que acompanha; é especializada numa determinada área do Direito e desenvolve o seu percurso profissional no âmbito de uma estrutura de carreira pré-definida pela sociedade em questão, à semelhança do que acontece com os trabalhadores de qualquer organização privada ou pública.

Para os observadores externos ao campo profissional, bem como para os advogados que avaliam os pares acionando critérios de creditação simbólica transversais ao mundo social (não específicos pois do próprio campo), não restam dúvidas de que os jovens “colaboradores em sociedades de advogados”, médias e grandes, se destacam no panorama da advocacia juvenil lisboeta. Esse facto não é de estranhar: são múltiplas as fontes de angariação de capital simbólico de que dispõem. Desde logo, usufruem de rendimentos consideravelmente superiores aos obtidos por outros jovens advogados, e pela esmagadora maioria da população portuguesa em qualquer faixa etária, o que lhes permite dispor de um volume de capital económico que, tanto em si mesmo, como através das práticas de estilização da vida que permite desenvolver, constitui um poderoso meio de distinção social (49,3% obtêm rendimentos líquidos superiores a € 2000, quando no total do universo de advogados, e já contando com eles, apenas 25% vão além desse valor). Por outro lado, são também os “colaboradores em sociedades de advogados” que dispõem de mais capital social, em virtude de se encontrarem próximos, no seu quotidiano, dos clientes e dos pares mais bem cotados, em muitos casos arroláveis no quadro das elites nacionais e internacionais. Finalmente, o ingresso nas grandes sociedades é frequentemente interpretado como um sinal de êxito profissional, sucesso que funciona não só como fonte direta de aquisição de capital simbólico, mas também como veio indireto. Com efeito, o êxito indicia que o indivíduo “ganhador” campeia uma configuração de propriedades “notáveis”, propriedades que, independentemente de terem ou não um recorte meritocrático, são, per se, geradoras de ganhos simbólicos – a frequência de certa universidade bem cotada, o valor das classificações nela obtidas, a posse de determinadas competências raras ou simplesmente um “bom nascimento”.

A estes critérios de reconhecimento, isto é, de obtenção e acumulação de capital simbólico, como já se notou transversalmente difundidos em toda a sociedade, vêm somar-se outros, internos ao campo, associados à “noção de competência”. De facto, estar inscrito em médias e grandes sociedades significa encontrar-se simbolicamente associado à “advocacia moderna”, isto é, comprometido com uma prática profissional exaltante porque urbana e cosmopolita; indelevelmente associada à globalização e orientada para os mercados internacionais; capaz de assegurar, graças à especialização, serviços jurídicos de invulgar qualidade; e, ainda, inovadora, porque suscetível de fazer florescer ou de permitir aprofundar áreas do Direito que respondem a “novas necessidades sociais”, como, por exemplo, os direitos financeiro, fiscal, societário e comercial.

 

A ético-deontologia da advocacia liberal-clássica como recurso e fonte de capitalização simbólica

Do que ficou dito, poderia concluir-se que a fileira dos jovens profissionais em grandes sociedades detém, hoje em dia, ascendente simbólico hegemónico sobre todas as outras categorias de jovens advogados. Tal tese revela-se porém precipitada. Só seria válida se a hierarquia simbólica existente no campo da advocacia resultasse apenas da aplicação de critérios gerais, externos ao campo, ou seja, se a generalidade dos advogados ao avaliarem-se mutuamente se munissem tão-só, e em todas as circunstâncias, desse repertório de critérios transversais, o que sabemos não suceder. Sabemos, pelo contrário, que outros critérios, específicos da ação advogada (representações da distinção profissional que circulam somente no interior do campo profissional da advocacia e na base das quais os advogados produzem juízos de classificação uns sobre os outros), permeiam a hierarquia simbólica do campo. E sabendo isso, a tese “imediata” da hegemonia simbólica da fileira dos jovens que exercem a profissão em grandes sociedades tem de ceder, abrindo para a exigência científica de restituir o funcionamento “por dentro” do campo sob escrutínio. É justamente para observar o campo “por dentro” que importa estar atento ao modo como as dimensões ético-deontológicas aí são acionadas, evitando reduzi-las, no plano heurístico, à função de meros expedientes retóricos orientados para a construção de uma fachada do grupo profissional, legitimadores dos seus privilégios.

Captando os princípios ético-deontológicos com base nesse ângulo, a hierarquia simbólica torna-se bem menos linear.

Com efeito, se examinarmos o interior do campo avulta a existência no plano discursivo de um conjunto de “atributos virtuosos” a partir dos quais se enaltecem as formas de exercício mais conformes ao modelo liberal-clássico, sobressaindo ainda, “naturalmente”, o perfil de jovem advogado que nele converge – adotamos esta formulação porque, em bom rigor, a exaltação é feita pelos jovens vinculados a esse tipo de exercício, mas também, não raro, por outros que não o praticam e ou que dele se viram afastados. Esses atributos correspondem, precisamente, aos valores ético-deontológicos associados à advocacia liberal. Ao serem evocados, eles tendem a curto-circuitar os critérios de hierarquização responsáveis pelo “enobrecimento” da fileira de jovens profissionais das grandes sociedades, atenuando, pelo menos parcialmente, a sua força.

O primeiro e mais importante valor a ser mobilizado dessa forma é o da independência. Alega-se que este apenas pode ser respeitado através do exercício liberal-clássico. Só esse facultaria verdadeiramente aos jovens a possibilidade de desenvolverem a advocacia libertos de qualquer tipo de pressão ou condicionamento por parte dos clientes, ou de outros advogados, não dependendo da sua autoridade. A liberdade traduzir-se-ia quer em autonomia técnica, quer na capacidade de patrocinar ou recusar serviços jurídicos fundamentando a decisão, por exemplo, em razões de índole moral. Numa palavra, só a independência permitiria ao advogado obedecer devidamente às normas deontológicas inscritas nos Estatutos da O.A. e harmonizar as suas práticas com a finalidade última da profissão – a defesa da justiça.

A independência é, além disso, muitas vezes apresentada como o elemento identitário que melhor define a advocacia na sua expressão mais pura; aquele que conecta a profissão às suas origens e desígnios primordiais, a uma espécie de advocacia “genuína” que resistiria à lógica da empresarialização e à “perversão” do salariato. Este tipo de crença está, por exemplo, patente no depoimento de uma advogada que exerce a advocacia de forma isolada, apesar de dispor de uma carteira muito reduzida de clientes e de auferir baixos rendimentos.

 

Eu prefiro neste momento estar nesta fase, nesta situação, pelo menos um ano, do que neste momento estar já a decidir ir trabalhar para um outro escritório qualquer de um outro advogado. Porque aí, no fundo, acabo por ser uma assalariada, que é aquilo que acontece. São assalariados. Falam que a Ordem defende muito a independência da profissão mas no fundo, na prática, isto não está a acontecer. As pessoas acabam por ser assalariadas, a realidade é esta. [Jovem advogada; advogada que exerce a advocacia isoladamente num escritório]

 

Um segundo valor que contribui para a promoção da advocacia liberal, e por essa via para a atenuação da supremacia simbólica das formas de exercício societárias, é o do altruísmo. Como sucede com o da independência, sustenta-se que a correspondência a este valor apenas seria preenchida, na sua plenitude, através da prática liberal. Supostamente, é esta que plenamente se adequa às áreas do Direito que tipicamente o demandam, áreas descuradas, para não dizer repelidas, pela advocacia societária, em especial a exercida nas médias e grandes sociedades – o Direito da família e sobretudo o Direito penal (somente 1,4 % dos jovens colaboradores em médias e grandes sociedades declara exercer Direito penal).

Um dos aspetos destacados no exercício do Direito penal, nos depoimentos que obtivemos, vai exatamente no sentido de afirmar que é esse o ramo que, por essência, orienta a prática da advocacia para a defesa dos direitos, liberdades e garantias das pessoas, principalmente das mais desprotegidas. Ele possibilitaria, portanto, mais do que qualquer outro domínio da arte de advogar, concretizar a vertente humanista da profissão, dirigida para a defesa do “outro” e, muito particularmente, do “indivíduo comum”. Isto mesmo testemunha uma advogada que possui clientes individuais e que se encontra muito envolvida no acompanhamento de “defesas oficiosas”22.

 

(Prefiro o Penal) porque está mais próximo daquela ideia que eu tinha de querer ajudar o próximo. Parecia-me a mim que em Penal e em Família. […] Parece-me que é aquela parte que realmente afeta a vida de alguém. Em que se formos realmente bons, vamos conseguir mudar alguma coisa. Repare, em Comercial, somos realmente bons, mas pronto. Se somos muito maus nota-se, mas a diferença entre alguém mais ou menos e um ­bocadinho acima não se nota muito. Aliás, quando fiz os psicotécnicos, a profissão ideal para mim seria sempre assistente social, o que eu achei que nem pensar. Claramente não ia correr nada bem, porque as pessoas que eu conhecia que eram assistentes sociais trabalhavam com toxicodependentes e eu não. Não tenho assim muito apego por essa… por esse tipo de problema. E, portanto, achei que nem pensar. [Jovem advogada; advogada independente sem escritório que colabora, em simultâneo, numa pequena sociedade de advogados]

 

É preciso, porém, notar que a mobilização dos dois valores referenciados – independência e altruísmo – não permite apenas valorizar as formas de exercício liberais. Ela favorece, igualmente, os próprios jovens que as põem em prática. Ao procurarem corresponder-lhes, esses indivíduos demonstrariam audácia e persistência para, solitariamente e perante todos os obstáculos, travarem uma luta quotidiana e sem tréguas contra múltiplas adversidades: a necessidade de conquistarem um espaço no mercado, afinal nunca totalmente estabilizado, o confronto desgastante com a burocrática máquina judicial, o embate com magistrados que não respeitam a dignidade das funções do advogado, e – talvez a maior de todas as contrariedades – a tarimba de clientes incumpridores. Os depoimentos a respeito da dificuldade de se cobrarem os honorários são recorrentes.

 

Temos de lidar com uma série de coisas […] e depois é uma luta desenfreada. É uma coisa muito rica, está sempre a dar luta! Eu costumo dizer que é uma profissão que desafia, que é um desafio constante, para quem quer progredir. Agora quem não quer, se calhar, não desafia nada, não é? Fica lá no escritório a fazer contratos, mas pronto, e está muito confortável em sociedades de advogados a receber o dele e acabou! E agora o sócio xpto23 tem ali um trabalho que é bom para mim, as pessoas pagam bem, que é uma vantagem para quem trabalha em sociedades de advogados. É muito mais fácil cobrar honorários, porque a pessoa sente o peso de estar ali uma instituição e aquela coisa formal de ter que pagar… [Jovem advogada; colaboradora de advogado individual com alguns clientes próprios]

 

Finalmente, e como a anterior afirmação deixa já transparecer, é também com base nestes valores que se procede à apreciação, por vezes mordaz, dos “jovens colaboradores em sociedades”. Sublinha-se a coragem do advogado independente por contraste com o putativo caráter “acomodado” do jovem colaborador das sociedades. Esta qualidade, várias vezes referida, surge bem evidenciada nas declarações de uma das advogadas entrevistadas. Ao ser ­questionada sobre qual o modo de exercício que mais se aproxima daquilo que entende por advocacia, refere que “é o advogado que vai por ele, e que caminha e que faz o seu próprio lugar ao sol, que trilha. Esse é o advogado para mim, o advogado como deve ser”. E logo a seguir:

 

Sabe porque é que eles vão para sociedades de advogados? Sabe qual é o principal? Eles não dizem, mas eu sinto. É o estar nesta profissão, que é um trapézio sem rede. Eles são trapezistas, mas são trapezistas com rede, ao contrário dos advogados como eu, que são trapezistas a 100%. Se não estiver lá rede, eu vou na mesma saltar sem rede. Agora eles têm a segurança da rede. São inseguros, a maior parte desses advogados. Não estou a dizer todos. E procuram a sociedade porque exatamente não têm essa garra. Nem para se aventurarem sozinhos, nem para cobrar os honorários que, como lhe digo, é difícil. E eles já sabem à partida que o deles está garantido. É uma questão de estabilidade. [Jovem advogada; colaboradora de advogado com alguns clientes próprios]

 

Em suma, ao beneficiarem os advogados que mais se aproximam do exercício liberal, em detrimento dos “colaboradores em sociedades”, os valores característicos do modelo liberal-clássico permitem aos primeiros acumular capital simbólico, tornando assim bem menos linear e mais complexa a hierarquia simbólica interna ao campo. Como já havíamos sugerido, a alta permea­bilidade dessa hierarquia aos “valores liberais” revela-se principalmente no facto de estes serem espelhados pelos próprios advogados que se encontram a trabalhar em grandes estruturas societárias. Alguns chegam mesmo a pôr em causa a bondade da sua própria situação profissional, engrandecendo o tipo de advocacia empreendido pelos jovens economicamente mais descapitalizados, mergulhados nas peripécias (e nas angústias de solvência económica) do exercício “tradicional”. É o que revelam as seguintes afirmações produzidas por dois advogados que, mal concluíram o estágio profissional, ingressaram como colaboradores em duas das sociedades mais bem cotadas e prósperas a nível nacional.

 

O meu caso (colaborador de sociedade) – e penso que seja o da maior parte das pessoas –, são empregados (risos). São empregados numa sociedade, uma data de profissionais liberais que não se dá por liberais. Só se a única liberalidade for a de não ter contrato... Assim é a única característica liberal que haverá na advocacia tal como a exerço. Será a possibilidade de eu amanhã, se não me apetecer ficar aqui mais e estiver cansado vou-me embora. Vou para outro sítio. E não tenho que dar satisfações a mais ninguém, a não ser uma eventual consideração para com a sociedade, no sentido de permanecer um certo período de tempo até que alguém preencha o meu lugar. [Jovem advogado; colaborador numa grande sociedade de advogados]

Sim, nós não somos propriamente liberais… assumo que admiro essas pessoas que vão tentar exercer a advocacia nesses termos, embora talvez já não haja muitos e, se calhar, se pudessem, preferiam estar aqui. Mas admito que admiro: vão à luta, correm mais riscos. É preciso coragem também, obviamente. Teria dificuldade em estar na pele deles. [Jovem advogada; colaboradora numa grande sociedade de advogados]

 

A ético-deontologia da advocacia liberal como fonte de aspirações e de valorização da situação profissional

A proclamação dos valores da independência e do altruísmo não interfere contudo, exclusivamente, no processo de hierarquização simbólica do campo profissional. Ela tem também impacto na definição daquilo que certos jovens valorizam e pretendem obter no ou através do trabalho que realizam enquanto advogados, leia-se, nas suas aspirações profissionais. Por conseguinte, esses valores inscrevem-se no processo motivacional que leva os indivíduos a desejarem ocupar determinadas posições, ao invés de outras, no campo da advocacia. Ao mesmo tempo, a sua presença no quadro percetivo e de juízo dos jovens que desenvolvem a profissão em moldes liberais clássicos afeta a avaliação que esses produzem da sua situação profissional concreta, tornando-a positiva ou, pelo menos, amenizando alguns dos seus infortúnios e desaires, sobretudo os que se prendem à descapitalização económica.

O sinal mais robusto da repercussão desses valores na formação das aspirações profissionais aflora no facto de um número minoritário mas não negligenciável de neófitos, dispondo da efetiva oportunidade de ingressar como “colaborador” em sociedades de advogados, optar por prescindir deliberadamente dessa possibilidade, abdicando assim da obtenção de uma remuneração elevada ou estável, em nome do desenvolvimento da advocacia em moldes independentes (não subordinados) ou altruísticos (sociorientados). Essa vontade foi afirmada em diversos depoimentos. Destacamos aqui o de uma jovem que protesta (com alguma veemência) o interesse em apostar na advocacia liberal (logo, independente), uma vez que o trabalho numa grande sociedade envolve um estatuto de assalariamento, que rejeita:

 

É um contrato de trabalho, mesmo que tenha que passar recibos verdes, é um contrato de trabalho na mesma. Não conseguia… Não conseguia, nem nunca poderia… Não. Não dava, até porque eu quero fazer as coisas por mim e isso não me iria permitir. [Jovem advogada; trabalha no escritório do pai, também advogado, com quem realiza trabalhos em parceria, tendo igualmente alguns clientes próprios]

Noutros casos, são as próprias aspirações altruísticas a serem apontadas como motivo para essa opção contracorrente. É o que sucede nos dois casos seguintes. No primeiro consagra-se a secundarização dos aspetos remuneratórios por confronto com a relevância da “orientação para o outro”, associando-a ao caráter gratificante das atividades diárias que esse género de orientação permite desenvolver; no segundo, evoca-se a noção de “sacerdócio” para caraterizar a condição do advogado independente, associação semântica entre ministério clerical e função profissional frequentemente ensaiada no passado, que continua a irromper, de quando em vez, no discurso de jovens recém ingressados no métier, como já havíamos sublinhado.

 

É assim: para além de gostar de praticar a advocacia nesta forma, independente, eu gosto de ajudar as pessoas. Por isso tinha sempre necessariamente de escolher uma profissão em que me realizasse, fazendo isso. E acho que a pessoa poder ter uma estabilidade, ou seja, não é o dinheiro pelo dinheiro. Eu quero o dinheiro pelos objetivos que tenho que realizar e necessariamente não chego lá sem ele. Mas não é o dinheiro pelo dinheiro, o dinheiro pelo gostar de ter o dinheiro, não, de maneira nenhuma. Acho que a pessoa tem que ter uma profissão, isso é que nos realiza e nos dá o crédito e também, digamos assim, acho que até é meritório. Acho que até é bom não se ter muito dinheiro porque depois uma pessoa nunca tem contacto com determinadas realidades que nos enriquecem, que são as realidades com que eu lido no dia a dia. O que não quer dizer que, às vezes, não saia deprimida. [Jovem advogada; colaboradora de advogado individual com alguns clientes próprios]

Entrevistador: Então no caso de ter rendimentos suficientes que permitissem dispensar o trabalho remunerado, faria, se bem depreendi, um atendimento gracioso…

Entrevistado: Exatamente. Seria de facto a única forma que é possível de exercer. A única forma, não digo, mas… uma espécie de sacerdócio. Sacerdócio do ponto de vista em que não há aluguer da consciência. Há a motivação altruísta e uma visão da justiça um pouco desamparada, quer dizer, mais livre. Eu costumo dizer que o advogado, de facto, é um homem livre, que é ele que pensa por si. Enfim, até o próprio juiz está condicionado à verdade que lhe é apresentada. Mas o advogado pode até investigar um pouco. Pode até acreditar naquilo, pode não fazer nada disto se não quer fazer. Quer dizer, essa liberdade será tanto maior quanto menos apego houver à remuneração.

Entrevistador: Mas porquê, já agora?

Entrevistado: Porque gosto, porque gosto de fazer. É assim: não é pelo dinheiro. É como as oficiosas… isso é o caso típico. Não é pelo dinheiro. Mas dá-me gozo fazer, ajudar os… Não vou dizer “ajudar os pobrezinhos”, mas ajudar os que têm dificuldades. E mesmo os outros. Eu uma vez numa entrevista disse que os advogados têm muito de padre, porque ajudam os outros. Os outros quando estão em aflição vêm falar com o advogado e com o padre: “Sr. padre, o que é que eu faço?” e “Sr. Advogado, o que é que eu faço?”. É um bocado assim. É um bocado uma ideia cristã da função do advogado, até certo ponto. [Jovem advogado; colaborador de um advogado individual com quem partilha as despesas de escritório. Tem, simultaneamente, alguns clientes próprios e um contrato de prestação de serviços como jurista num organismo público]

 

A importância que as aspirações profissionais conectadas com os princípios da advocacia liberal têm junto da população envolvida nesse género de exercício transparece ainda em “dados extensivos”, precisando, dados obtidos via a aplicação de inquérito por questionário por nós desenhado. Com efeito, ao confrontarmos a totalidade dos jovens advogados com um leque de contrapartidas que se procuram obter no ou através do trabalho (utilizando os itens destinados a mensurar os “valores do trabalho” mobilizados pelo International Social SurveyProgramme) (Vala, 2000) – “trabalho seguro e estável”; “remuneração elevada”; “boas oportunidades de promoção”; “trabalho interessante”; “trabalho em que a pessoa tenha autonomia”; “trabalho que permita ajudar as outras pessoas”; “trabalho útil à sociedade” e “trabalho em que a pessoa decida o seu horário e dias de trabalho” –, pedindo-lhes para selecionarem as duas mais importantes, observamos que, no segmento que mais se aproxima do protótipo liberal, 16,8% elegem o valor da “autonomia”, e 21,8% um “trabalho que permita ajudar as outras pessoas”, valor percentual que também se regista para a escolha do item “remuneração elevada”. Inversamente, no segmento dos jovens profissionais das médias e grandes sociedades a importância dos dois valores da “autonomia” e do “altruísmo” cai respectivamente para 8,5% e 7%, ao passo que a porção dos que dão prioridade à “remuneração elevada” ascende a 46,5% (Chaves, 2010, p. 314). Numa palavra, são os jovens mais próximos do protótipo liberal que inequivocamente mais se filiam nos “paradigmas” do género de advocacia que praticam, num contexto curiosa e significativamente marcado pela distribuição diferenciada das aspirações pelo campo ­profissional.

A sobrerrepresentação das aspirações associadas à advocacia liberal junto dos jovens mais envolvidos nesse género de exercício é, como se referiu, suscetível de marcar também positivamente a avaliação que esses jovens fazem da sua situação profissional concreta. Basta, para tal, que acreditem e sintam que tais aspirações são, de facto, realizáveis nessa situação (Vala, 2000, p. 83). E o que verificamos é que, real ou imaginariamente – a questão aqui pouco importa –, a maioria deles entende, efetivamente, que quer o desígnio da independência quer o da prática profissional sociorientada são cumpridos no seu quotidiano profissional. De entre o grupo de indivíduos associados à advocacia liberal-clássica que acabámos de mencionar, 91,6% concordam, total ou parcialmente, que o seu ofício lhes permite trabalhar com bastante autonomia, sendo ainda maior (96,1%) a parcela que crê que ele lhes permite ajudar outras pessoas. Estas crenças acerca da possibilidade de concretizarem na sua atividade profissional parte das aspirações que transportam ajuda a explicar que um número elevado (92,4%) afirme, numa avaliação de síntese, estar “satisfeito” ou “muito satisfeito” com a sua situação profissional (Chaves, 2010, p. 334), não obstante um contingente maioritário manifestar um sensível descontentamento com o nível de rendimento – 70,2% discordam total ou parcialmente da afirmação “A minha remuneração é elevada” (Chaves, 2010, p. 413).

Vimos sugerindo que os valores profissionais têm um impacto na formação de aspirações face ao trabalho e, por essa via, na avaliação que os indivíduos fazem da sua situação profissional concreta. Trata-se de um processo dinâmico e complexo que não iremos esmiuçar. Para impedir interpretações indevidas queremos contudo deixar uma nota sobre o processo de formação das aspirações. A sobrevalorização da independência ou da sociorientação introjetadas em aspirações por parte dos jovens que se acercam do modelo liberal-clássico, e a menor importância por esses atribuída aos fatores remuneratórios não podem ser “ingenuamente” restituídas como efeito de um processo de formação de aspirações que se desenrolou a montante da entrada no mercado de trabalho. São também, em muitos casos, o resultado do ajustamento, à posteriori, dessas aspirações às condicionantes impostas pela sua posição real, em particular à impossibilidade que muitos desses indivíduos anteveem de vir a ingressar em grandes sociedades e de, por essa via, conquistarem uma condição económica ímpar. Como demonstrámos noutros momentos (Chaves, 2010; Chaves, Nunes e Mendes, 2009; Chaves e Nunes, 2011), o acesso a esses espaços não só é restrito como se encontra em grande medida reservado às classes dominantes.

A propósito do processo de ajustamento que envolve a sobrevalorização da “autonomia” e das inclinações sociorientadas, e a depreciação das aspirações remuneratórias, importa ainda realçar que ele operará articuladamente. Na verdade, o sobreinvestimento nas primeiras resultará amiúde de mecanismos compensatórios desencadeados para “resolver” a impotência de concretizar as segundas (Chaves, 2010). Ainda que esse ajustamento compensatório se desenrole, em larga medida para a grande maioria, a um nível não-consciente, tal não impediu que nos fosse “revelado” de forma lúcida por um jovem advogado que exerce a advocacia na sua forma liberal clássica, reportando-se ao seu próprio caso.

 

Eu disse há pouco que compenso com altruísmo. O que quero dizer é assim… isto não quer dizer que não goste de ajudar os outros, como faço com alguns clientes meus e já fiz nas oficiosas. E gosto de fazer. Mas eu tenho algumas ambições financeiras, talvez até mais do que a maioria, mas enquanto não o consigo, compenso com altruísmo. [Jovem advogado; advogado que exerce autonomamente partilhando a renda do escritório]

 

Como é sabido, também o processo de ajustamento ontológico das aspirações às suas condições reais de concretização (ou seja, do desejável ao realizável) é fortemente enfatizado na sociologia bourdiana que, sem deixar de reconhecer a persistência de múltiplas formas de desencontro anómico entre aspirações e oportunidades de concretização, o considera essencial para compreender a harmonia tendencial entre disposições e campos/posições que atravessa grande parte do “mundo social”. Não podemos portanto finalizar este artigo sem sublinhar que se o objetivo fosse o de analisar em profundidade o processo de ajustamento das aspirações às condições reais de concretização que tem lugar no campo da advocacia portuguesa, o pensamento do mentor das Actes de la RechercheenSciencesSociales afigurar-se-ia uma vez mais incontornável.

 

Conclusão

Embora nos revejamos nas perspetivas que consideram que os elementos ético-deontológicos reivindicados pelos grupos profissionais adquirem um papel na legitimação dos privilégios das profissões no quadro da divisão social do trabalho, defendemos que a sua relevância está longe de se esgotar nesse efeito. Pelo contrário, em certos contextos, como é o caso dos jovens advogados lisboetas, os elementos ético-deontológicos reivindicados – com destaque para a independência e para a implicação em práticas sociorientadas – conhecem outro tipo de impactos que devem ser analisados. Em primeiro lugar, concluí­mos que ao serem difundidos no interior do campo profissional da advocacia, esses elementos são mobilizados como fontes de obtenção/acumulação de capital simbólico por parte dos jovens associados à advocacia liberal-clássica, permitindo-lhes assim atenuar/neutralizar o ascendente simbólico da fileira dos jovens “colaboradores em grandes sociedades de advogados” que, tudo indica, sem a mobilização desses argumentos de cariz ético-deontológico, se tornaria imparável, conduzindo à constituição de um estado de hegemonia.

Em segundo lugar, verificámos que quer pelo efeito que produzem na hierarquia simbólica do campo, quer pelo modo como interferem nas aspirações profissionais dos jovens advogados que se aproximam do exercício liberal-clássico, tais elementos ético-deontológicos afetam favoravelmente a avaliação que esses jovens produzem acerca da sua situação profissional concreta.

Seriam estas regularidades revertidas, ou pelo menos matizadas – vale a pena interrogarmo-nos neste momento conclusivo – se o nosso estudo, em vez de ter incidido exclusivamente nos jovens advogados lisboetas, houvesse abarcado todos os jovens advogados? O que aconteceria aos processos sociosimbólicos analisados se, a par dos lisboetas, se “observassem” jovens advogados que exercem fora da capital? Não estarão estes sujeitos a malhas institucionais e relações de sentido consideravelmente diferentes, pontuadas desde logo pela inexistência de “sociedades de advogados”? Não podendo contar com “a prova dos dados” podemos ainda assim avançar com uma conjetura congruente com a própria pesquisa realizada: a “universalização” do objeto de estudo pouco impacto teria nas conclusões vertidas no presente texto. Mesmo sabendo-se que, fora de Lisboa, a configuração da prática profissional é radicalmente menos permeada pela advocacia societária, parece altamente improvável que essa diferença seja precisada (muito menos acentuada) por uma diluição dos operadores de normalização simbólica do espaço da advocacia que vingam nos jovens advogados lisboetas. Pelo contrário, mais forças se gerarão para conservar um arbítrio cultural adverso à mercantilização da profissão do foro e suscetível de acomodar o desenvolvimento de aspirações compagináveis com o “exercício liberal”.

Ainda que a título secundário, não queremos deixar de, num balanço final do resgate científico da problemática das formações ético-deontológicas, realizado aqui num quadro de clara inspiração bourdiana, aludir a um modelo de objetivação sociológica que nos últimos anos tem ganho algum protagonismo na sociologia de inspiração gaulesa. Referimo-nos ao modelo das economias da grandeza, pioneiramente imaginado e articulado por LucBoltanski e Laurent Thévenot (1991). Uma vez que se trata de um modelo centrado no sentido moral dos sujeitos e no modo como esse sentido integra (ou especifica) diferentes regimes de ação e envolvimento, cremos que também ele contém potencial heurístico para restituir objetos que tomam por matéria-prima as construções ético-deontológicas, particularmente as que se expressam no plano discursivo e em códigos formalizados, gerando, por seu turno, vastos repertórios de juízos críticos. Não esquecendo naturalmente a fricção existente entre essa sociologia – dita da crítica – e a sociologia que essa sociologia reputa de crítica, justamente o estrutural-construtivismo bourdiano, consideramos estar aqui perante um objeto que estimula o ensaio de combinatórias sociológicas entre os “dois modos de conceptualizar” que a fricção citada por enquanto não deixa adivinhar. Haverá por certo ocasião para, em oportunidade futura, investirmos nessa tentativa de encontro.

 

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*Recebido a 26-04-2011. Aceite para publicação a 16-11-2011.

 

Notas

1As obras referidas neste parágrafo propõem ainda boas recensões sobre a forma como a “deontologia profissional” tem sido encarada na sociologia.

2Acerca da advocacia, veja-se como este tipo de perspetivas se encontram patentes, por exemplo, no trabalho de Azziman (1980).

3Uma sociologia dos “jovens advogados” não pode ignorar que adota um indexador ­polissémico, permeável a conteúdos normativos. Estamos bem cientes de que o termo “jovem”, como todos os que se franqueiam a trânsito entre categorias nativas e analíticas, e ao mesmo tempo são objeto de intensas lutas políticas de classificação, merece da sociologia a máxima prudência na sua utilização. Que sentido é aqui prosseguido recorrendo ao qualificativo “jovem”? No essencial trata-se de demarcar uma condição (ela mesmo heterogénea e fluida) dentro da profissão do foro caracterizada em termos de inserção profissional (Chaves, 2010, pp. 64-66): nela avulta um espaço de possíveis singularmente marcado pelo início de um percurso, por um capital profissional reduzido e por uma especial incerteza de reconhecimento profissional. É por isso que, quanto à sua operacionalização, se decidiu associar ao critério etário (limite de inclusão colocado nos 34 anos) – critério adotado no sentido de permitir, tanto quanto possível, a comparação dos dados gerados com os obtidos noutros trabalhos, em particular no Inquérito aos Advogados Portugueses (Caetano, 2003) e no estudo Gerações e Valores na Sociedade Portuguesa (Pais, 1998) – um critério de experiência profissional, estipulando-se que não poderia exceder 5 anos. Daí terem-se inquirido apenas “jovens advogados” que tivessem con­cluído o estágio profissional – de cuja conclusão com êxito depende a obtenção da licença para o exercício profissional – dentro dos 5 anos prévios à inquirição. Este limite, por seu turno, foi definido com base em dois critérios que se reforçaram mutuamente: os 5 anos após a entrada no mercado de trabalho é um dos limites adotados, com frequência, em trabalhos desenvolvidos sobre a inserção profissional dos jovens (Couppié e Mansuy, 2001, p.12) ou nos “inquéritos de percurso” aplicados aos diplomados do ensino superior (odes 2002); situa-se também em 5 anos o arco temporal mínimo legalmente prescrito a partir do qual se autoriza os advogados a conver­terem-se em patronos de estágio – leia-se de iniciação – dos recém-chegados ao grupo profissional, tudo indiciando, portanto, que este constituirá o momento em que, na profissão, se considera que a fase de tirocínio se encontra oficialmente concluída.

4 Não obstante as diferenças consideráveis que resultam do nosso enquadramento teórico e da especificidade do campo profissional em questão, a nossa análise estabelece pontos de contacto com a produzida por Carapinheiro (1991) ou Chauvenet (1973) acerca da profissão médica.

5O inquérito foi aplicado em outubro de 2003, a uma amostra representativa do universo de profissionais inscritos na Ordem dos Advogados entre 1 de janeiro de 1998 e 31 de dezembro de 2002, que possuíam o seu domicílio profissional como advogados no concelho de Lisboa e uma idade inferior a 35 anos, independentemente de possuírem a sua matricula na Ordem “ativa” ou “suspensa”. Esse universo era constituído por 2469 indivíduos, 1863 com a inscrição ativa e 606 com a inscrição suspensa, tendo-se inquirido 16% da população total. A amostra foi extraída de uma base de sondagem disponibilizada pela oa, de acordo com um processo aleatório sistemático, estratificada por situação da inscrição na Ordem (ativo/suspenso). No grupo dos “ativos” a margem de erro situou-se nos 5%, para um nível de confiança de 95%; junto da população com a inscrição suspensa a margem de erro ascendeu a 9%, para igual nível de confiança. O centramento nos profissionais que possuíam o seu domicílio profissional no concelho de Lisboa deveu-se, por um lado, a ser neste concelho que mais se expandiu a advocacia na sua forma societária, movimento que pretendíamos analisar com maior detalhe; por outro lado, a ­limitações logísticas que impossibilitaram a extensão do estudo à totalidade do território ­nacional.

6Referimo-nos aos congressos de 1985 (II Congresso, Lisboa, 19 a 22 de dezembro), 1989 (I Congresso Extraordinário, Lisboa, 4 a 7 de maio), 1990 (III Congresso, Porto, 25 a 28 de outubro), 1995 (iv Congresso, Funchal, 18 a 21 de maio) e 2000 (v Congresso, Lisboa, 17 a 20 de maio).

7Para uma abordagem das questões ético-deontológicas no quadro das transformações da advocacia contemporânea, consultar Economides (1992) e o livro coordenado por Barcelóiii e Cramton (1999), com destaque para os artigos de Cramton (1992, pp. 267-274) e de Ader (1999, pp. 351-362). V. também Rosenkranzet al. (1995), Sheinman (1997) e, para diferentes casos nacionais, Burrage (1996), Sheer e Webley (1997), Paterson (1997) e Shultz (1997).

8Situação que se verifica “tipicamente quando um litigante se compromete a entregar […] uma quota-parte de certos valores que disputa, como único pagamento […] e único reembolso de todas as despesas e encargos que a pendência implique, desde que nada tenha de despender se a pretensão não obtiver êxito.” (Candal cit. in Arnaut, 2002, p. 118).

9Já o próprio Wright Mills (1951) desenvolvera uma reflexão brilhante sobre estas transformações da advocacia, inserindo-a no estudo e na crítica que produz acerca do processo massivo de assalariamento dos trabalhadores independentes que vinha ocorrendo na sociedade americana do século XX. A propósito ainda da situação da advocacia americana recomenda-se a consulta de Spangler (1986), Abel (1989), Heinz e Laummann (1983), Carlin (1994), Seron (1997), ou de abordagens já com algumas décadas mas igualmente esclarecedoras, com destaque para Blaustein e Porter (1954). Acerca do contexto europeu v. Halpérin (1996) e, especificamente para o caso inglês, Thomas (1992).

10Sobre a transformação da profissão registada a nível internacional a par das dinâmicas de transformação do capitalismo e dos processos de globalização económica v. Flood (1995;1996), Dezalay e Sugarman (eds.) (1995), Lee (1992) e Whelon e McBarnet (1992).

11Em Portugal a criação de sociedades de advogados é permitida desde 1979, através da aprovação do Decreto-Lei n.º 513-79, de 26 de dezembro, recentemente revogado pela publicação do Decreto-Lei n.º 229/2004, de 10 de dezembro.

12Alguns advogados afirmam, contudo, discordar desta equivalência. A tentativa de distinguir “sociedades” de “empresas” encontrar-se-ia presente na salvaguarda estatutária do “princípio da natureza não mercantil das sociedades de advogados, não se remetendo a sua regulação para o direito comercial, como acontece noutras ordens jurídicas”. Esta “salvaguarda” encontra-se consignada no novo estatuto jurídico das Sociedades de Advogados (Decreto-Lei n.º 229/2004 de 10 de dezembro).

13Este contexto de alargamento e segmentação do universo global do conhecimento jurídico encontra-se associado, como não poderia deixar de ser, a um acréscimo do mercado de formação universitária e à ascensão no plano internacional das law schools norte-americanas (Audit, 2001, p. 11).

14É curioso constatar como a ideia da “permanência da ética” e a sua reivindicação enquanto fonte de vinculação ao passado se encontra presente desde os primeiros tratados sobre a profissão. Como sustenta Mollot (1842), considerado por Karpik o autor do primeiro tratado sobre os direitos e deveres do advogado, os grandes princípios do Barreau permaneciam os “tradicionais”, mesmo depois de todos os processos revolucionários ocorridos em França desde a segunda metade do século XVIII: probidade, desinteresse, moderação, independência e dignidade.

15Referimos apenas alguns dos mais marcantes produzidos desde os finais do século XVIII no quadro da advocacia francesa, particularmente influente no que concerne a estas matérias.

16Veja-se o modo como Karpik (1995, pp. 162-164) se refere longamente a estes aspetos na abordagem histórica por si desenvolvida acerca da advocacia francesa. Em sentido idêntico vão as conclusões de Halpérin (1996, p. 216) na sua extensa comparação das profissões jurídicas e judiciárias em diversos países europeus, ou ainda de Cocks e Jarausch (1990) acerca da profissão na Alemanha.

17São virtualmente inesgotáveis os exemplos de afirmações produzidas em contexto internacional em que os valores centrais da advocacia são apresentados como estando ancorados num passado remoto e de como se manifestaram em muitos momentos através da conduta da classe ou de advogados singulares. Para exemplos nacionais esclarecedores, v. Arnaut (2002. p. 92) ou Raposo (2001, p. 143).

18Importa precisar que a noção de “classes dominantes” abarca neste texto um espectro de situações sociais mais aberto (e diverso) do que se poderia à primeira impressão pensar. Em vez de reter apenas as diferentes fracções da burguesia (burguesia financeira; burguesia empresarial e proprietária; burguesia dirigente e profissional), também identificada – na gramática teórica que utilizámos em outro texto (Chaves e Nunes, 2011) – por empresários, dirigentes e profissionais liberais – ou seja, a classe dominante – quisemos incluir lugares de classe nos quais convirjam modalidades diversas de capitalização e distribuição de recursos sociais, abrangendo-se os económicos, os culturais e os simbólicos. Houve, por assim dizer, a preocupação de construir uma noção analítica que integrasse na lógica da “dominância” a lógica da “conjugação” (Costa, 1999, p. 238). Daí o emprego do plural – classes dominantes – em detrimento do singular – classe dominante. A nosso ver a eventual perda de precisão teórico-conceptual é largamente compensada pelo potencial heurístico que a noção mais abrangente encerra ao permear um objeto em que os capitais simbólicos constituem matéria-prima central. De facto, o apuramento das condições sociais “dominantes” que favorecem uma relação de familiaridade incorporada com esses capitais e respetivas hierarquias implica que não se lhe subtraiam lugares de classe virgulados por modalidades de capitalização fundamentalmente não-económica: falamos no essencial da fração mais qualificada das “novas classes médias”: a pequena burguesia técnica e de enquadramento.

19Não se verificaram, portanto, alterações notórias e geradoras de conflitos claros a este nível no caso português, ao contrário do que sucedeu, por exemplo, em França (Karpik, 1995, pp. 336-421).

20Para que não subsistam dúvidas quanto ao conteúdo da definição, importa vincar que uma hierarquia simbólica é entendida neste texto como uma seriação de categorias e de agentes individuais decorrente da desigual distribuição de capital simbólico. Para uma definição especialmente clara deste conceito ver Accardo (1983, p. 73). Para outros desenvolvimentos, consultar Bourdieu (1989 [1984]) e Chaney (1996).

21Evitamos propositadamente reproduzir a taxinomia “empresarial” que manda classificar como “colaboradores” todos aqueles que mantêm uma relação laboral com a entidade que remunera o seu trabalho. Mas isso não invalida que consideremos a sua inclusão na gramática da “advocacia das sociedades” muitíssimo significativa: de facto ela em si mesma firma a mercantilização da profissão do foro que a advocacia societária representa. Não queremos com isto dizer essa mercantilização seja exclusiva das sociedades de advogados; apenas que nestas ela reveste formas simbólicas “transparentes”.

22Tipo de defesa em que o advogado não tem procuração do réu mas é nomeado pela Ordem dos Advogados, pretendendo assim assegurar-se o acesso ao direito a indivíduos que se considera não terem condições económicas para suportar os custos inerentes.

23A expressão “xpto” pretende classificar alguém ou alguma coisa como “muito importante” ou de “qualidade superior”.

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