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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.203 Lisboa abr. 2012

 

Sociologia, história e crítica social: notas para um programa comum

 

Tiago Fernandes*

*Departamento de Estudos Políticos, Universidade Nova de Lisboa. E-mail: tiago.fernandes@eui.eu

 

Discutidos neste ensaio:

 

BAERT, Patrick e SILVA, Filipe Carreira da (2010), Social Theory in the Twentieth Century and Beyond, Cambridge, UK, Polity Press. ISBN: 978-0-7456-3980-2.

 

JOAS, Hans e KNOBL, Wolfgang (2010), Social Theory. Twenty Introductory Lectures, Cambridge, UK, Cambridge University Press. ISBN: 978-0-5216-9088-1.

 

Não é comum publicarem-se livros com a erudição e a magnitude destes dois. Aqui estão duas das mais completas sistematizações críticas do pensamento social do século XX. Está lá tudo, desde o funcionalismo (Parsons, Merton, Luhman, Alexander) até às recentes teorizações da modernidade (Sassen e as cidades globais; Beck e a sociedade de risco; Bauman e a modernidade líquida), passando pelo estruturalismo francês (Saussure, Levi-Strauss), o interacionismo simbólico (Mead, Goffman), a escolha racional, a sociologia histórica, Foucault, a sociologia do conflito (Coser, Dahrendorf) e o feminismo. A linguagem é clara e acessível. Ambos os livros enunciam o fracasso do funcionalismo como teoria geral da sociedade e documentam o modo como as ciências sociais contemporâneas evoluíram para um saudável pluralismo. No caso de Baert e Carreira da Silva, propõe-se ainda um novo projeto teórico, ao estabelecerem as ciências sociais como um ramo das humanidades. Nas palavras destes autores, a teoria social deve orientar-se para o que definem como um “neo-pragmatismo de inspiração hermenêutica”. Por estas razões, são duas obras do maior interesse e atualidade para qualquer estudioso das diversas áreas das ciências sociais (ciência política, sociologia, história e antropologia).

Estas obras, contudo, teriam ganho com uma discussão teórica que fosse menos orientada para uma exposição das diversas “escolas” e mais para uma discussão analítica e que partisse logo de um ou dois problemas centrais. Na nossa opinião, há dois problemas importantes nas ciências sociais contemporâneas que ressaltam destes dois livros e que mereciam talvez um maior aprofundamento. O primeiro é o enfoque empírico da análise sociológica. Aqui a variação vai desde o nível micro (como os encontros fortuitos entre dois indivíduos; a família; as relações de vizinhança) ao macro (normas culturais; tradições burocráticas; organização da economia). O segundo é o grau em que a teoria é não só causal e descritiva mas também um projeto explícito de crítica social. Este aspeto, por exemplo, é claramente defendido por Baert e Carreira da Silva, para quem “o conhecimento pode estar ligado a uma variedade de objetivos, sendo a explicação apenas um deles”. Esta é também uma das originalidades deste livro, ao incluir uma excelente discussão das diversas formas como a ética e os princípios de valor estão presentes de forma mais ou menos explícita nas teorias sociais.

Podemos assim combinar estas duas dimensões para produzir um mapa conceptual da teoria social moderna. Há teorias micro que são neutrais de valores (como por exemplo a escolha-racional), e outras que também incluem um projeto crítico da sociedade (vejam-se os casos de Mead e do ­interacio­nismo simbólico). E há teorias macro sem programa crítico explícito (o funcionalismo de Parsons e Merton; a teoria da estruturação de Giddens) e outras declaradamente “críticas” (a genealogia de Foucault; a teoria da ação comunicacional de Habermas; Bourdieu).

Pensamos que nenhum destes programas é totalmente satisfatório. As teorias macro e neutras de valores são incapazes de explicar a variação empírica contida no processo de modernização. Dimensões da modernidade como a industrialização, a secularização, a democratização e a racionalidade eram consideradas convergentes. Mas muitos processos históricos não se enquadram neste padrão. Como explicar a racionalidade burocrática-legal dos impérios romano e chinês em sociedades maioritariamente tradicionais e rurais? Ou os casos em que a democracia se estabelecia à medida que a identificação ­religiosa aumentava, como nos EUA e na Holanda? Mais ainda, estas teorias funcionam a um tão elevado nível de abstração que é difícil não se aplicarem em todo o lado. Que sociedade não sofre de uma dualidade da ação e da estrutura (Giddens)? Se todas as sociedades têm esta tensão interna, então de que serve enunciá-la?

As teorias estruturais “críticas” baseiam-se na reavaliação do racionalismo ocidental iluminista, inicialmente um projeto de autoemancipação e liberdade, mas que também gerou resultados desumanizadores e monstruosos. Como explicar, por exemplo, que a elevada alfabetização, participação cívica e racionalização burocrática e industrial alemã tenham culminado no totalitarismo nazi? Ou que o movimento socialista tenha também gerado o pesadelo estalinista? Como distinguir uma esfera pública orientada para a deliberação e discussão racionais de um sistema de mass media estruturado na manipulação de símbolos de status, na publicidade e na exclusão de correntes de opinião? Por que motivo a qualidade e a racionalidade do debate público eram melhores no século XVIII do que no século XX (Habermas)? As teorias estruturais críticas fazem um ótimo trabalho ao enunciarem o lado negro da modernidade, mas também não explicam as condições e processos causais nas origens do fracasso do iluminismo.

As teorias da escolha racional têm problemas diferentes. Os autores criticam-nas por serem simples. Não achamos que isso seja um mau aspeto, pois a função de uma teoria é simplificar a realidade. Pior são os pressupostos irrealistas destas teorias. A racionalidade dos atores é pré-existente e exterior à sociedade, independente do contexto. Nesse sentido, paradoxalmente, a escolha racional tem semelhanças com o pensamento funcionalista, ao assumir que os atores sociais partilham uma definição universal de interesses, racionalidade e objetivos. Isto leva a resultados triviais e a uma espécie de voluntarismo muito pouco interessante. As coisas acontecem porque os atores acharam racional negociar assim. É claro que muitos fenómenos são desta natureza (pense-se, por exemplo, nas negociações entre atores políticos institucionais como os governos, os partidos ou os presidentes). São é pouco interessantes. O que deveria ser questionado são as condições estruturais que predispõem atores situados em situações similares às vezes a negociar, e outras a não negociar. Mas isto não pode ser respondido sem atenção ao contexto político, social e histórico.

Na nossa opinião, os fenómenos sociais mais interessantes são aqueles que resultam de consequências não antecipadas da ação social, que não foram previstos pelos atores nos contextos de negociação, mas que têm consequências estruturantes a médio e longo prazo. Por exemplo, os países onde foi “negociado” um regime liberal no século XVIII (Reino Unido, Estados Unidos, Suíça), onde o liberalismo foi precoce, estavam menos adaptados a construir em meados do século XX um Estado-providência universalista. Ao erigirem todo um sistema constitucional baseado nos princípios do individualismo e da autoconfiança individual, estes regimes estavam mais adaptados a sociedades rurais de pequenos camponeses e com uma pequena classe média urbana, mas sem grandes desigualdades sociais do que às estruturas sociais altamente desiguais decorrentes da industrialização. Quando em finais do século XIX a industrialização gerou massivas desigualdades sociais e a emergência de novos grupos sociais como o proletariado urbano e rural, o sistema político estava muito mais impermeável a reconhecer direitos sociais universais, pois estes baseiam-se em critérios de classe ou grupo e não em critérios de necessidade individual. Mas foi mais fácil em países menos liberais e mais tradicionalistas, onde o antigo regime sobreviveu mais tempo (Suécia, Alemanha) (­Esping-Andersen, 1998; Rueschemeyer, Stephens e Stephens, 1992). Para se apreender esta variação, é necessária uma análise atenta não só ao contexto mas a processos de longa duração.

No entanto, um aspeto positivo das teorias da ação racional foi a maior atenção à ação individual, sobretudo ao confrontarem as teorias macro com a necessidade de demonstrarem de que forma os processos mais gerais se traduzem e precisam de ser reproduzidos através de comportamentos individuais. Este é um dos pontos fortes também das propostas pragmatistas, tradição na qual estes dois livros explicitamente se filiam. Mas aqui a análise micro é considerada antes como uma interação simbólica. Códigos culturais de plasticidade contextual determinam a ação dos indivíduos. Ao mesmo tempo, este é também um programa crítico. O pragmatismo é um projeto de emancipação individual e de construção de um “eu” mais racional e livre. Baert e Carreira da Silva propõem, nesse âmbito, um novo humanismo, em que “comunidades adotam novos vocabulários, descrevendo-se a si próprias à luz da nova informação disponível”. O investigador aqui é menos um profissional e mais um artífice (craftsman) num processo de autodescoberta, que torna as suas ­opiniões, preferências e preconceitos públicos e os assume como o ponto de partida para a investigação.

Baert e Carreira da Silva devem ser felicitados por proporem que as ciências sociais voltem às suas raízes profundas: o humanismo racionalista. Mas temos já algumas dúvidas quanto à forma como os autores propõem desenvolver este programa em termos de estratégia de investigação sobre temas específicos. Em primeiro lugar não é claro o estatuto da teoria, entendida agora não como a teoria mais geral do humanismo pragmatista, mas como um conjunto de asserções analíticas destinadas a providenciar enunciados plausíveis sobre o funcionamento do mundo. A posição de Baert e Carreira da Silva rejeita tanto a tradição dedutiva – e aqui estamos de acordo – como aquilo a que chamam “tradição representacional”, em que as teorias são aplicadas a instâncias selecionadas da realidade. As duas posições distinguem-se pelo estatuto da investigação empírica. Na tradição dedutiva, esta serve para arbitrar diferentes interpretações da realidade; na segunda, serve para ilustrar teorias. Pensamos que esta distinção é muito pouco clara, pois também na posição dedutiva o papel da investigação empírica está desvalorizado. Nas teorias dedutivas comprovam-se sempre os seus pressupostos, já que o nível de generalização é tão alto que cabem lá sempre quaisquer dados sem pôr em causa os argumentos centrais da teoria. Era essa, aliás, uma das principais críticas dirigidas ao funcionalismo.

Para efeitos de identificar abordagens estéreis nas ciências sociais pensamos que a já antiga distinção entre empirismo abstrato e grande teoria é mais útil (Mills, 1959). A primeira é uma aplicação mecânica e acrítica de métodos quantitativos à realidade, uma espécie de cientismo baseado na sofisticação metodológica. A segunda é a teorização pelo prazer de teorizar, uma especulação palavrosa sobre o mundo. Nenhuma é capaz de produzir conhecimento significativo sobre as sociedades humanas para um público alargado. O debate académico – e sobretudo o debate público – ficam apenas acessíveis a grupos de técnicos (no empirismo abstrato) e a iniciados na seita (na grande teoria). Note-se, aliás, que as origens desta distinção decorrem de preocupações pragmatistas. Charles Wright Mills, que lançou as bases da moderna sociologia histórica, era um pragmatista radical (Mills, 1964), defensor da sociologia como um craft e não como uma ciência, em que o processo de compreensão de fenómenos sociais resultava de uma interação permanente entre indução e dedução.

E é aqui que, porventura, se encontra a maior lacuna destes livros, numa insuficiente discussão da sociologia histórica. Baert e Carreira Silva referem Giddens como o autor pioneiro neste campo, o que é incorreto. O debate é iniciado por Mills na década de 1950 com a crítica do funcionalismo evolucionista de Parsons e do empirismo metodológico de Paul Lazarsfeld e depois desenvolvido empiricamente nos estudos comparativos de Barrington Moore (1966) e Reinhard Bendix (1969). Joas e Knoble situam a sociologia histórica no campo da sociologia do conflito ou reduzem-na ao estudo comparativo das civilizações, defendido por Shmuel Eisenstadt e seguidores. Mas há sociólogos do conflito que não são históricos (Lewis Coser; os primeiros trabalhos de Ralf Dahrendorf) e também sociólogos históricos menos preocupados com o conflito (Reinhard Bendix, que dedicou grande parte sua obra a explicar padrões de autoridade nas sociedades modernas e pré-modernas). E Eisenstadt nunca abandou os conceitos centrais do funcionalismo.

Tudo isto seriam pormenores, se não fosse a incapacidade de estas obras entenderem a sociologia histórica contemporânea como um projeto intelectual autónomo. A sociologia histórica é uma abordagem (mais do que uma teoria) eclética que se distingue por pensar e explicar fenómenos de interesse (democratização; participação política; padrões de sociedade civil; cismas religiosos) como resultado das consequências inesperadas da ação entre grupos situados no espaço e no tempo. A sua fonte de inspiração para compreender as dinâmicas do mundo moderno são os trabalhos mais historiográficos dos autores clássicos, como Marx (O 18 de Brumário de Luís Bonaparte), Weber (A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo), Durkheim (Ética Profissional e Moral Cívica) e Tocqueville (Democracia na América). Mas decorre também das preocupações morais e políticas do ensaísmo humanista e da filosofia contemporâneas, que colocam como questões centrais os limites da autoridade do Estado, os termos da reciprocidade humana, os critérios sobre o sofrimento humano injustificado, enfim, os princípios de uma sociedade justa (Rawls, 1973; Shklar, 1984).

Em termos de métodos é também eclética, combinando com frequência análises estatísticas de um grande número de casos com estudos aprofundados de poucos casos. Conceptualmente toma a sério a investigação sobre a política, entendida não como um conjunto de regras formais (como na escolha racional) ou comportamentos atomizados e abstraídos de contexto histórico (como nos estudos quantitativos), mas como o resultado de interações entre indivíduos e grupos por recursos de poder e status. Conceitos como classe social, desigualdade política, poder, autonomia, elites e massas, legitimidade, manipulação, capitalismo, burocracia, liberdade e opressão são centrais nesta abordagem e passíveis de operacionalização. Não é fácil essa tradução em dimensões e indicadores. Mas vale a pena tentar, pois só assim se podem responder a questões verdadeiramente interessantes, que contribuam para o entendimento dos limites e das possibilidades da liberdade nas sociedades humanas modernas (Moore, 1978). Em si próprios não constituem um objetivo político, de que o cientista social seja o ideólogo ou o propagandista. Requerem antes imaginação, conhecimento histórico e a noção de que em todas as épocas históricas há uma tensão entre mundos possíveis de emancipação e opressão. É por isso difícil ver de que forma uma agenda neo-pragmatista, com a qual concordo, possa dispensar estas preocupações.

 

BIBLIOGRAFIA

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MOORE JR., B. (1966), Social Origins of Dictatorship and Democracy. Lord and Peasant in the Making of the Modern World, Londres, Harmondsworth-Penguin.         [ Links ]

MOORE JR., B. (1978), Injustice. The Social Bases of Obedience and Revolt, Nova Iorque, M.E. Sharpe.         [ Links ]

RAWLS, J. (1973), A Theory of Justice, Cambridge, Ma., The Belknap Press of Harvard University Press.         [ Links ]

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