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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.204 Lisboa jul. 2012

 

Estado e políticas sociais sobre a velhice em Portugal (1990-2008)

State and old age social policies in Portugal (1990-2008)

 

Sónia Cardoso*, Maria Helena Santos*, Maria Isabel Baptista* e Susana Clemente**

*Iscte, Instituto Universitário de Lisboa. E-mails: sonia.cardoso@iscte.pt; helena.dias.santos@hotmail.com; isabel.r.baptista@gmail.com.

**IGOT, Instituto de Geografia e Ordenamento do Território. E-mail: clemente.susana@gmail.com

 

Resumo

Partindo do princípio de que o Estado, através da implementação das políticas sociais de velhice, tem contribuído fortemente para a institucionalização do problema social da velhice e para a construção das representações do que é “ser velho”, este artigo fará uma reflexão crítica em torno de algum do discurso governamental que teve por alvo a velhice em Portugal. Pretendem-se identificar algumas tendências na gestão pública da velhice e o sentido das políticas sociais na definição desta categoria e do que é “ser idoso” na sociedade portuguesa. A discussão centrar-se-á nos resultados da análise qualitativa dos conteúdos das medidas governamentais (publicadas em Diário da República), que determinaram o modo de gestão pública da velhice em Portugal entre 1990 e 2008.

Palavras-chave: velhice; políticas sociais; Estado; grupo idosos.

 

Abstract

Assuming that the State, through the implementation of social policies for old age, has contributed greatly to the institutionalization of the social problem of old age and the construction of representations of what is “being old”, this article makes a critical reflection of some of the governmental speech that targeted the elderly in Portugal. It identifies trends in public administration of old age and the sense of social policies in defining the contours of addressing it. We make a qualitative analysis of the contents of the government measures (published in the Official Gazette) that determined the public administration of “the old age theme” in Portugal from 1990 to 2008.

Keywords: old age; social policies; State; elderly group.

 

INTRODUÇÃO

A velhice, tal como a entendemos atualmente, é uma criação da história (­Philibert, 1984, p. 18). Uma história da qual faz parte, por um lado, o processo de industrialização das sociedades europeias e a consequente emergência do problema de uma classe trabalhadora envelhecida (Guillemard, 1986, p. 33); e, por outro, a articulação entre a política económica e a política social no âmbito do Estado-providência1 e a implementação dos regimes de segurança social (Leal, 1998, p. 24). Estes aspetos viriam a consolidar os processos de transferência de responsabilidade face às gerações mais velhas da família para a sociedade (para o Estado, o trabalhador e a entidade empregadora) (­Fernandes, 1997, p. 23).

Estes factos estiveram na origem da institucionalização do encargo social da velhice e da emergência desta como uma categoria social autónoma e homogénea, estreitamente ligada à noção de reforma e delimitada por critérios como a idade e o tempo de atividade laboral (Guillemard, 1986, p. 31). Deste modo, as relações entre a velhice, assim “identificada”, (Guillemard op. cit. in Fernandes, 1997, p. 23) e a sociedade passam a ser estruturadas, de forma implícita ou explícita, pelo conjunto das intervenções públicas designadas por políticas sociais de velhice (Guillemard op. cit. in Fernandes, 1997, p. 139). Pelo que, através destas, não só se foi institucionalizando o modo de gestão pública da velhice, como também se foi construindo socialmente o conceito de velhice e de pessoa idosa.

Tendo por base estes pressupostos, começaremos por analisar os contornos assumidos pela velhice como problema social, na transição do século XX para o século XXI. De seguida, apresenta-se uma breve caracterização evolutiva das intervenções públicas que tiveram por alvo a gestão da velhice em Portugal (do Estado Novo à primeira década do século XXI). Finalmente, analisaremos os conteúdos das principais medidas governamentais que determinaram o modo de gestão pública da velhice entre 1990 e 2008.

 

A VELHICE ADMINISTRATIVA

De facto, atualmente a velhice apresenta-se com uma identidade própria, com contornos nítidos e independentes em relação ao indivíduo. Os idosos encontram-se coletivamente identificados com um determinado grupo de idade, com direito a prestações financeiras como contrapartida da perda do estatuto de ativos. Na opinião de Maria João Valente Rosa (1992, p. 188), na conceção predominante da velhice em termos legislativos (uma idade em que se beneficia do direito a uma certa proteção financeira e ao estatuto de reformado), e que Michel Loriaux (op. cit. in Rosa 1992, p. 189) denominou de “velhice administrativa”, deve ter-se em conta dois aspetos: o direito e a concretização desse direito.

O primeiro corresponde, em princípio, a uma garantia essencial de integração do indivíduo na sociedade, através do justo acesso a direitos sociais (numa sociedade em que a questão não é mais “qual o meu dever”, mas “quais os meus direitos”) (Commaille, 1996, p. 209). O segundo compreende a forma como esse direito é praticado, ou seja, arbitrariamente, privilegiando certos critérios de idade e de estatuto (Rosa, 1992, p. 188).

Ora, para que se possa atribuir uma idade precisa de entrada na velhice, é necessário entendê-la como uma fase da vida convencional, em que as regulamentações sociais neutralizam as repercussões biológicas diferenciáveis da idade. Assim, a idade decretada como marca de entrada na “velhice administrativa” não pode ser interpretada como a tradução real da perda, ou redução de certos atributos físicos ou psicológicos, pois o processo de envelhecimento biológico é variável consoante os indivíduos (Rosa, 1993, p. 686). Nem pode ser entendida como a tradução normalizada do processo de envelhecimento biológico, pois se assim fosse, os progressos da medicina ou da biologia sobre o retardar das manifestações de senescência, deveriam ter tido como consequência uma elevação gradual da idade legal da reforma, ou uma maior mobilização dos trabalhadores com idades mais avançadas no sistema produtivo, o que raramente se verificou (Guillemard, 1995).

De facto, a idade normal da reforma manteve-se, até há pouco tempo, invariavelmente nos mesmos valores em grande parte dos países europeus, inclusive Portugal (Rosa, 1992, p.188).

A este propósito, e referindo-se à ideia da reforma como marcador por excelência da entrada na velhice, Renaud Santerre (1995, p. 79) menciona a existência de “três velhices”: os “jovens” velhos dos 65 aos 75 anos, os “médios” velhos dos 75 aos 85 anos e os “velhos” velhos com mais de 85 anos. Esta categorização baseia-se nos papéis e funções sociais diferenciados que cada um destes subgrupos assume na sociedade e na família, na transição para o século XXI. Daí tornar-se difícil, segundo este autor, qualificar a reforma como a entrada na velhice quando não se sabe de que velhice se trata, questão que se agrava, ainda, com a crescente mobilidade não só das idades de entrada na velhice, como também das idades de pensão ou reforma.

É neste sentido que Bourdelais (1995, p. 36) afirma também, relativamente ao grupo dos indivíduos de 60 e mais anos, que muito o separa do da mesma faixa etária nos finais do século XIX, princípios do século XX, não só ao nível do seu peso relativo na população e na esperança de vida, como do seu estado de saúde e papel na família. Uma realidade que terá sido esquecida pela sociedade contemporânea ao reter apenas a noção de envelhecimento da população, que acabou por retomar e ampliar a perceção negativa da velhice que marcou os finais do século XIX. Foi neste sentido que esta noção, saída do discurso ­científico, propagada nos meios dirigentes e na opinião pública, pesou sobre as representações contemporâneas da velhice e das práticas sociais que daí emergiram (Fernandes, 2008, p. 76). Bourdelais vai mais longe, ao afirmar que a aplicação da noção de envelhecimento demográfico à análise da evolução da população, levou à utilização de categorias de idade obsoletas que contribuem, de certa forma, para tornar anacrónica a nossa perceção sobre as pessoas idosas.

Os efeitos negativos da utilização das idades fixas de entrada na velhice (60 ou 65 anos) durante mais de meio século, prática ampliada pelo sucesso da noção de envelhecimento demográfico, que foi construída sobre essa imobilidade, são incontestáveis. Eles conduziram, na opinião de ­Bourdelais (1995, p. 37), a analisar as projeções da população sem ter em conta a amplitude da dissociação entre idade civil e idade física, entre idade social e real. ­Contribuíram, também, para condensar as representações da velhice em categorias que não correspondem já à realidade social da idade, a qual mudou consideravelmente após 1950. Esses efeitos derivam, assim, na manutenção de uma ligação secular estabelecida entre a reforma e a entrada na velhice (­Bourdelais, 1995, p. 41).

Na verdade, a divergência entre as noções de velhice biológica e de “velhice administrativa” são cada vez maiores, apesar de ambas se poderem refletir na relação idade cronológica/atividade produtiva. Tal facto, vem salientar que o reconhecimento do direito à inatividade profissional e ao benefício, a partir de uma dada idade, de uma pensão de reforma, são determinados não pelas reais capacidades dos indivíduos, mas correspondem antes a uma opção da sociedade em termos de política social (Rosa, 1992, p. 194).

É nesta medida que Guillemard (1995, p. 50), por exemplo, refere que o processo de invenção das reformas (como o da sua transformação em sistemas públicos de proteção social) compreende um elemento não negligen­ciável de instrumentalização da política de emprego e, em particular, do novo instrumento de regulação dos fluxos de mão-de-obra e de saída definitiva do mercado de trabalho. A autora, com base num estudo comparativo internacional sobre as novas formas de transição entre atividade e reforma, deu conta de como dispositivos de proteção social (programas intermédios entre o trabalho e a reforma) que regulam a saída definitiva da atividade, representam novas construções sociais do percurso das idades da vida e novas definições da idade da velhice (Guillemard, 1995, p. 50).

A reforma já não é, pois, o princípio unificador que dá um sentido homogéneo e uma identidade à “terceira fase” da vida (identificada com a velhice e o direito ao repouso ou à saída da atividade laboral), e que sucedia, no âmbito de um modelo de ciclo de vida ternário, a uma “segunda fase”, identificada com a vida adulta e com o trabalho (ou atividade), e que por sua vez era antecedida por uma “primeira fase”, identificada com a juventude e a formação. A indeterminação social do grupo dos mais velhos acentua-se, enquanto a inatividade definitiva, a velhice e a reforma já não se sobrepõem.

Com efeito, a “velhice profissional”, ou o que Xavier Gaulier (op. cit. in Fernandes, 1997, p. 9) apelida de “envelhecimento social”, começa com a inatividade definitiva muito antes da reforma. O ritmo atual de desenvolvimento tecnológico conduz a situações paradoxais como as que vivem os trabalhadores que foram despedidos por serem demasiado velhos, e que não se puderam reformar por serem demasiado novos (Fernandes, 1997, p. 9). “É-se jovem biologicamente até cada vez mais tarde e velho socialmente, cada vez mais cedo” (Gaulier op. cit. in Fernandes, 1997, p. 9). Toda a organização do fim do percurso de idades se apaga e, no mesmo movimento, a instituição ternária do ciclo de vida decompõe-se, perdendo as suas etapas rigidez e previsibilidade (Fernandes, 1997, p. 65).

Finalmente, este movimento de desinstitucionalização do fim de percurso das idades da vida, marcado pela precariedade, não coloca só em causa a possibilidade de uma representação contínua e previsível do decorrer da vida, como também o próprio sistema de reciprocidade dos compromissos entre gerações, que a ele está estreitamente associado. Assim, não é só uma certa conceção de reforma que se encontra em causa, mas também o contrato intergeracional sobre o qual ela repousa, no âmbito dos modernos regimes de segurança social.

Um contrato de solidariedade intergeracional alargado (a longo termo), mediatizado pelo Estado, que coloca em jogo várias gerações sucessivas numa sociedade apanhada pela aceleração do tempo (na qual o percurso das idades da vida já não se inscreve numa temporalidade longa com marcas cronológicas fixas e estandardizadas), e em que a fiabilidade da reciprocidade dos compromissos entre gerações deixou de se impor com a mesma força.

Os ativos começam a duvidar que as gerações seguintes contribuam para a sua reforma com a mesma “convicção” com que eles se quotizam para os reformados de hoje, visto que a estratégia temporal de vida sobre a qual se funda a transferência da reforma supõe o adiar da compensação, pela alienação do trabalho, em troca da garantia de um direito ao repouso no fim da vida. Assim, os recursos de sentido que motivam esta estratégia têm-se tornado mais raros, na medida em que o percurso das idades já não inscreve os indivíduos numa continuidade e previsibilidade do decorrer da vida (Fernandes, 1997, p.64).

Ora, na problemática da velhice, as conceções dominantes, na opinião de Michel Cicurel (op. cit. in Fernandes, 1997, p. 165), assentam em dois pressupostos infundados. O primeiro é o de que os trabalhadores mais velhos deixam a vida profissional por vontade própria, ou por incapacidade. O segundo é o de que os inativos não fazem nada de útil e que apenas os ativos produzem. O primeiro aspeto relaciona-se com o segundo, e nem um nem outro têm em conta as transformações ocorridas recentemente.

De facto, a passagem à reforma (ou à pré-reforma) pode acontecer muito precocemente, por volta dos 50 anos, e as incapacidades decorrentes da velhice estão, nessa idade, a uns 20 anos, em média, de distância. Esses aspetos também não consideram “a complexidade de factores e dinâmicas estruturais que configuram, simultaneamente, a especificidade e a diversidade interna […] [que determinam os diferentes] perfis sociais das pessoas idosas” (Mauritti, 2004, p. 339). Está-se assim perante uma velhice que não se constata, mas sim que se decreta. O envelhecimento aqui em causa é, sobretudo, produto de códigos sociais e legislativos. E se é verdade que os idosos do futuro vão ser mais numerosos e que a sua esperança de vida será mais elevada, também é verdade que a sua qualidade de vida será muito superior à das anteriores gerações mais velhas. Estas razões contribuirão provavelmente para alterar o conceito de velhice e para a falência dos princípios assistenciais dos sistemas de reforma, tal como existem atualmente.

 

POLÍTICAS SOCIAIS DE VELHICE EM PORTUGAL

As políticas sociais de velhice, entendidas como o conjunto das intervenções públicas que estruturam as relações entre velhice e sociedade, encerram em torno da sua evolução todo o trabalho permanente de construção e de reconstrução da realidade social da velhice (Guillemard, 1984, p.121).

Contudo, segundo Guillemard (1984, p. 126), as configurações das relações sociais que estão na base da evolução das decisões em matéria de políticas de velhice indiciam a presença de uma múltipla causalidade ou de uma interpenetração de interesses múltiplos. Ou seja, como políticas sociais que são, não refletem totalmente a ordem do Estado ou a expressão de uma dominação, nem a ordem das relações de classe ou da luta de classes, mas sim, e a cada momento, a forma de articulação, em constante tensão e transformação, entre essas duas ordens. Em síntese, elas são a expressão da complexidade e mobilidade que marcam as relações que ocorrem permanentemente entre o Estado e a sociedade civil.

Em Portugal, a evolução das políticas sociais de velhice surge desde logo condicionada pelo facto de a institucionalização do direito generalizado à reforma, associado à edificação de um sistema de segurança social, só ter ocorrido após a Revolução de abril de 1974, em claro desfasamento face aos outros países europeus (Leal, 1998, p. 62). A herança do regime previdencial que antecedeu a Revolução de 1974 constitui outro importante condicionalismo. No âmbito do Estado Novo, a velhice foi alvo de dois tipos de tratamento através da assistência pública, e outro através das instituições da previdência social. O primeiro confundia-a com a indigência e a invalidez, relegando-a para locais apropriados como os asilos, dependentes da ação de instituições de caridade tradicionais em Portugal de índole laico e religioso (Decreto-Lei n.º 28522 de 17 de março de 1938). O segundo tipo colocava-a entre os riscos como a doença, a invalidez e o desemprego involuntário a que estavam sujeitos os trabalhadores por conta de outrem, em especial do comércio e da indústria. Riscos que eram suportados pelas contribuições das entidades patronais e dos próprios trabalhadores, obrigatórias ou facultativas, conforme a instituição de previdência (caixas) onde se encontravam quotizados.

Deste modo, no pós 25 de Abril de 1974 existia em Portugal um número considerável de pessoas que, não tendo chegado a contribuir, ou não tendo contribuído o tempo suficiente para qualquer caixa de pensões, viria a ­usufruir de uma pensão social de montante muito baixo (Fernandes, 2008, p. 143). Em 1974, a criação de uma pensão social para todos os que tivessem mais de 65 anos, ou fossem inválidos e não beneficiassem de qualquer esquema de ­previdência, foi ainda a primeira medida corretiva das injustiças (­Fernandes, 1997, p. 133). Entretanto, em 1977 alargou-se o campo de aplicação deste benefício a todas as pessoas com mais de 65 anos que não tivessem exercido atividade remunerada, introduzindo assim um regime não contributivo.

O programa do I Governo Provisório apresentou algumas orientações quanto à política social, das quais faziam parte a “adopção de novas linhas providenciais da proteção na invalidez, na incapacidade e, em último lugar, na velhice, em especial aos órfãos, diminuídos e mutilados de guerra” (Maia op. cit. in Fernandes, 1997, p.133). A velhice aqui referida, em associação com as outras situações que põem em risco e sobrevivência, não apresenta ainda contornos específicos.

O II Governo Provisório, no seu programa, faz referências tão pouco profundas sobre a velhice, que os progressos advêm mais da necessidade de corrigir os erros de trás, à luz dos modelos de outros países, do que da avaliação e da consciência de um benefício a que se tem direito. A este propósito, Fernandes (1997, p. 144) refere que daquele programa fazem parte algumas medidas que visam a adoção de novas providências na invalidez e velhice, decorrentes de um diagnóstico pouco atento aos problemas, como sejam a “criação de pequenas unidades residenciais para o acolhimento dos idosos sem família e a total remodelação dos asilos de terceira idade”2. As preocupações na época centravam-se em aspetos mais quantitativos, como a generalização e a atualização das reformas.

É com a Constituição de 1976 que se consagram as condições para a universalização do direito a uma reforma de velhice, e se reconhece socialmente esta fase da vida como a Terceira Idade, identificando-se assim a velhice como categoria social autónoma.

De acordo com o artigo 63.º da Constituição de 1976: “O Estado promoverá uma política da terceira idade que garanta a segurança económica das pessoas idosas e a política da terceira idade deverá ainda proporcionar condições de habitação e convívio familiar e comunitário que evitem e superem o isolamento ou a marginalização social das pessoas idosas e lhes ofereçam as oportunidades de criar e desenvolver formas de realização pessoal através de uma participação activa na vida da comunidade”.

Deste modo, expressam-se neste texto os princípios ideológicos divulgados a partir do Relatório Laroque3. A velhice surge com novos contornos, definidos a partir da identificação dos problemas. E a necessidade de integração e de participação na comunidade surgirão como as novas preocupações em termos de futuras políticas de velhice (Fernandes, 1997, p. 145).

A este propósito, Leal (1998, p. 167) refere que a Constituição de 1976 adotou a expressão da (ou de) Terceira Idade na alínea b) do art.º 67.º e nos dois números do art.º 72.º, não se tratando, no entanto, de uma evolução terminológica, uma vez que a expressão já tinha sido utilizada (pelo Decreto-Lei n.º 413/71 de 27 de setembro). De acordo com o texto constitucional, a política da terceira idade deverá ter como objetivo a garantia da segurança económica das pessoas idosas e a sua integração social. Contudo, as disposições constitucionais que se referem à política da terceira idade padecem, segundo este autor, de evidentes imperfeições. Porquanto, não se compreende a razão por que a alínea b) do art.º 67.º coloca esta política a par do desenvolvimento de uma rede nacional materno-infantil. E o n.º 2 do art.º 72.º mistura e confunde os objetivos últimos da política da Terceira Idade com os seus objetivos intermédios (1998, p. 167).

Desde o início da década de 70 que na continuidade das políticas sociais de velhice, as instituições criadas têm por referência princípios de prevenção da dependência e de integração das pessoas idosas na comunidade (Fernandes, 1997, p. 148).

De facto, a partir de 1978, constata-se que a proteção social aos idosos, por parte do Estado, não se restringe apenas ao apoio económico sob a forma de prestações pecuniárias, de modo a garantir as condições mínimas de sobrevivência. Efetivamente começa a denotar-se uma preocupação, até então praticamente inexistente, em desenvolver infraestruturas de apoio ao idoso que favorecessem a sua integração e participação na sociedade.

Esta preocupação com os idosos estende-se até ao final da década de 70, como se comprova pelas medidas propostas no âmbito do programa do V Governo, e que se traduzem, nomeadamente, em intervenções específicas a favor de grupos sociais nos quais se inserem os idosos.

No entanto, é na década de 80, como refere Fernando Maia (1985), que o Estado assumirá um forte papel ao nível da proteção social. Esta maior intervenção do Estado face aos idosos está bem patente nas medidas legislativas do VI, VII e VIII Governos. Para além da preocupação em atualizar periodicamente as pensões, de forma a manter e, se possível, melhorar o poder de compra da população idosa, assistiu-se também a uma preocupação em alargar e aperfeiçoar as redes de equipamentos sociais de proteção à população idosa que já se vinham anteriormente delineando.

Todavia, é no ano de 1983, com o programa do IX Governo, que se intensifica o papel interventor do Estado face aos idosos, constatando-se uma crescente “humanização” das políticas sociais da velhice através da criação de novos mecanismos valorizadores de uma relativa independência e autonomização do idoso. Este intuito concretiza-se através da pretensão de admitir como único limite ao desempenho de um papel ativo por parte dos idosos as exigências de qualificação e do mercado do trabalho, assim como através das propostas que visavam desenvolver um conjunto de medidas de sensibilização quer via ensino, quer mediante a comunicação social.

Trata-se, no fundo, de perspetivar o idoso não como um encargo para a sociedade, atribuindo-lhe um papel de natureza passiva em função da idade convencional da reforma (65 anos), mas antes de lhe reconhecer um novo estatuto que passava por possibilitar-lhe um papel mais ativo e participativo na sociedade: “um ancião não é um resto, é um cidadão na plena maturidade; jurídica e socialmente igual aos demais cidadãos, carecido de realização social e da participação activa na vida em sociedade”4.

Esta tendência para a valorização social dos idosos continua presente nos anos de 1986 e 1987, que correspondem aos X e XI Governos, respetivamente. Contudo, neste último governo, a proposta de flexibilização da idade da reforma antecipada e de pré-reforma traduz já uma tentativa de gerir o final da carreira ativa dos trabalhadores de idades mais avançadas em função das necessidades do mercado de trabalho. Uma tendência que se acentuará ao longo dos anos 90 do século XX, mas que entrará em rota de colisão com a necessidade de garantir a sustentabilidade financeira do sistema de Segurança Social5(Fernandes, 2008).

Este sistema assenta num modelo de gestão em que as quotas de despesa com as pensões de reforma são mais elevadas do que as relativas a outros tipos de despesa (Ferrera, 1999, p. 461; Ferrera et al., 2000, pp. 54-60), o que, na transição para o século XXI, condiciona fortemente a sua sustentabilidade pela maturidade do sistema de pensões do regime geral, e pelo aumento crescente do número de pensionistas.

Assim, a reforma da segurança social portuguesa deverá ser pensada como um processo que terá de ser acompanhado de outras medidas complementares, que permitam acautelar as situações de necessidade de grupos de idosos cada vez mais vastos. Medidas que passam pelo assistencialismo, ou por uma crescente tendência para a responsabilização individual face à proteção social. Estas últimas envolvem, fundamentalmente, a institucionalização de regimes complementares de proteção social, fazendo apelo à poupança individual.

 

MEDIDAS LEGISLATIVAS SOBRE A VELHICE (1990 A 2008)6

Propomo-nos, de seguida, averiguar as continuidades e as rupturas de sentido que as medidas adotadas pelo Estado na gestão pública da velhice conheceram nas duas últimas décadas, e os seus reflexos na definição desta categoria e do que é ser idoso em Portugal no início do século XXI. Para tal, procedemos a uma compilação de todos os documentos legislativos que, direta ou indiretamente (de forma explícita ou implícita), visaram a população idosa, desde 1990 até maio de 2008 (com base na consulta de Diários da República).

Depois da recolha da informação, procedeu-se ao seu tratamento analítico, que aqui assumiu uma vertente iminentemente qualitativa (Bardin, 2000). Neste sentido, começou por ser elaborada uma grelha de análise7 a partir da qual se construíram quadros síntese, dos quais derivaram alguns resultados que passamos a apresentar.

 

Número de medidas emitidas

Numa primeira abordagem do gráfico 1, podemos verificar que existe uma clara disparidade entre o número de medidas emitidas ao longo dos anos 90 e a partir do ano 2000.

 

Gráfico 1 - Número de documentos recenseados (publicados em Diário da República 1990-2008)

 

Com efeito, verifica-se uma tendência clara para o aumento do número de medidas emitidas no âmbito dos vários governos a partir do ano de 1998. O total de medidas recenseadas para a década de 90 (67) fica, como poderá ser verificado, muito aquém do total recenseado para os últimos 8 anos do período em análise (207).

Para esta disparidade terão contribuído os ajustes às reformulações derivadas das reformas da segurança social de 2000 e 2002, e ainda o contexto de crise política e socioeconómica que emergiu nos finais do “Governo Guterres”, em abril de 2002, e do “Governo Durão Barroso”, em julho de 2004. Todavia, este aumento do volume de medidas recenseadas para os anos 2000 indica também que a gestão da velhice tem vindo a assumir uma crescente importância ao nível das ações governamentais, consubstanciando-se como um problema cada vez mais transversal a toda a sociedade. Algo que também transparece através da distribuição da informação recolhida por organismos emissores.

 

Organismos emissores

Através do quadro 1 pode verificar-se que, na década de 90, coube ao ministério que tutelava a administração da segurança social o principal protagonismo na emissão de medidas relacionadas com a velhice.

 

Quadro 1 - Frequência dos documentos por anos e organismos emissores8 (1990-1999)

 

Na década subsequente (v. quadro 2), apesar de esse protagonismo se manter, encontrava-se menos concentrado, dispersando-se com um peso não negligenciável por outros organismos emissores, ou pela presença de uma maior variabilidade de intervenientes. Tal indica uma maior transversalidade na gestão pública da velhice, envolvendo mais áreas governativas e, por esta via, dimensões e objetivos sociais que não se cingiam às questões relativas às pensões e seus complementos. De qualquer modo, é o ministério a que cabe a competência de administrar a segurança social que mantém o principal protagonismo ao longo de todo o período aqui em estudo. Um ministério cuja denominação vai sofrendo algumas alterações, elas próprias indicativas das reestruturações do sistema da Segurança Social e, nessa medida, das diversas tendências que a gestão da velhice foi assumindo.

 

Quadro 2 - Frequência dos documentos por anos e organismos emissores9 (2000-2008)

 

Por conseguinte, o cerne da mudança é a introdução, em 1995, do termo “solidariedade”, que é retomado em 2005, no âmbito do XVII Governo Constitucional, com a denominação de Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social.

O termo solidariedade, ao nível da denominação de um ministério, foi adotado pela primeira vez em França, nos princípios dos anos 80, e segundo Leal (1998, p. 215), o termo exprimiria apenas a ausência de ideias em termos de mudanças no âmbito da segurança social francesa. Segundo o mesmo autor, é em nome da solidariedade (nacional) que se definem todas as políticas sociais e se exige a um país que assuma, através das receitas gerais do Estado, a responsabilidade da sua execução. Tratando-se aqui de um princípio político e, sobretudo, financeiro que deve servir de suporte a todas as políticas sociais e não apenas a algumas.

Ora, a adoção destas sucessivas denominações é pelo menos representativa de um enorme desejo de mudança ao nível do sistema da segurança social em Portugal, transversal a todo o período aqui em estudo. Todavia, e independentemente do alcance das alterações na denominação assumida pelo ministério em causa, convém reter a ideia de que o Estado se propõe acentuar o seu papel interventor no âmbito da segurança social, mais ao nível da administração do trabalho e da administração das iniciativas que envolvem a ação social.

Uma proposta que, nos anos 90, se concretiza através da emissão de regulamentações em torno de regimes de antecipação da idade de direito à pensão de velhice, envolvendo várias atividades profissionais e situações de desemprego involuntário. Mas também, e sobretudo, pela medida que em 1991 regulamentou o regime de pré-reforma, e por aquela que em 1999 flexibilizou a idade de acesso à pensão de velhice, abrangendo todos os beneficiários do regime geral da segurança social com 55 e mais anos de idade.

À medida que nos aproximamos do final da década de 90, a emergência crescente de estabelecimentos, serviços, programas, ações a regulamentar e a apoiar financeiramente, envolvendo instituições particulares ou privadas, com ou sem fins lucrativos, deixa entrever uma redução do papel do Estado como entidade fiscalizadora e financiadora, o que cada vez mais exige da sociedade civil uma ação social.

 

Quadro 3 - Denominações do Ministério a que cabe a competência de administrar a Segurança Social (1990-2008)

 

Nos anos 2000, se a emissão de regulamentações em torno de regimes de antecipação da idade de direito à pensão de velhice envolvendo várias atividades profissionais e situações de desemprego involuntário se mantém forte é, contudo, a noção de envelhecimento em atividade ou envelhecimento ativo que emerge, mas com um novo sentido. Este concretiza-se mesmo como tendência dominante a partir de 200510 com a suspensão do regime de flexibilização da idade de acesso à pensão de reforma por antecipação e com a revogação do regime de antecipação da idade da reforma para os trabalhadores desempregados. Logo, a partir daquele momento, e em nome da sustentabilidade financeira do sistema, passa-se a legislar ao longo de 2006 e 2007 no sentido de penalizar quem antecipa a reforma e de bonificar quem adia o acesso à pensão por velhice. Da parte do Estado estamos, pois, perante uma política aberta de incentivo à permanência dos trabalhadores mais velhos no mercado de trabalho.

Paralelamente, o discurso da política social vai-se escudando na questão do número crescente de idosos e no conceito de envelhecimento demográfico para operacionalizar alterações ao nível do sistema de segurança social, que têm acentuado uma vocação redutora não só quanto ao valor das pensões, como também no acesso àquelas. Nesta tendência inscrevem-se as alterações introduzidas por via da reforma de 2007.

Para além das novas exigências no âmbito das carreiras contributivas, assume aqui particular destaque a introdução do fator sustentabilidade, ­relacionado com a evolução da esperança média de vida, nas alterações das regras de cálculo das pensões, o mesmo sucedendo com a definição da idade “normal” de acesso à pensão por velhice aos 65 anos de idade, tanto para os homens como para as mulheres. No mesmo sentido, pode-se considerar a relevância que é colocada no apoio e na criação de mecanismos de poupança complementares que apelam à responsabilização individual.

No que se refere à tendência para uma intervenção ao nível da regulamentação e do apoio a estabelecimentos, serviços, programas e ações visando colmatar necessidades específicas da população mais velha, ao longo dos anos 2000 ela vai-se concretizando mais em torno de iniciativas em que se pretende implicar cada vez mais a sociedade civil (instituições particulares ou privadas de solidariedade social, mesmo que tenham fins lucrativos, e as famílias), à medida que recua como entidade financiadora.

 

População-alvo

No que se refere à população-alvo das medidas por nós recenseadas, a maior parte tem como âmbito os pensionistas dos vários regimes da segurança social, assumindo especial peso as que visam os pensionistas do regime geral. Todavia, a segmentação dos direitos às pensões é patente no facto de haver uma parte não negligenciável de documentos que apresentam como âmbito os ­pensionistas e beneficiários ativos de regimes especiais de proteção social. A partir de 200511, esta segmentação inscreve-se também no âmbito da imposição de um quadro de convergência entre os diversos regimes de proteção social, que se traduz em várias medidas que visam alterações nos vários regimes considerados.

 

Problemas a resolver

É em torno dos direitos sociais dos cidadãos às pensões nas eventualidades de invalidez, velhice e sobrevivência, e respetivos complementos, que evoluem os problemas apresentados pela grande parte dos documentos em análise. Direitos que podem ser apreendidos com base em alguns critérios analíticos como os aumentos/atualizações, condições de acesso e cálculos.

Nos anos 90, os problemas em torno das pensões são apresentados nos conteúdos dos vários documentos em estudo, sobretudo em estreita relação com a referência a expressões como “montantes mais baixos” e “degradado”, “poder de compra” e “nível de vida”. Nos anos 2000, a par das “pensões mínimas” ou “pensões mais baixas”, são introduzidas expressões como “desigualdades”, “injustiça relativa”, “valores diferenciais”, “assimetrias de rendimentos”. Estas expressões remetem para uma segmentação da população a pensionar, em função de critérios que não se prendem só com a articulação da carreira contributiva, com a idade, mas também com a diferenciação ao nível dos rendimentos auferidos e das necessidades específicas que apresentam, diferenciação esta que indica a existência de diferentes condições de velhice na sociedade portuguesa (Mauritti, 2004).

Nos anos 90, as necessidades específicas da população mais velha eram apreendidas, de uma forma geral, através de expressões como “qualidade de vida”, “autonomia”, “integração social”, “realização pessoal” – necessidades que remetiam, sobretudo, para a regulamentação, administração e financiamento de instituições, serviços, programas ou ações de apoio social –, nos anos 2000, elas começam a assumir uma tendência para acentuar uma natureza ainda mais específica, em função, sobretudo, das necessidades associadas às idades mais avançadas, como as questões ligadas especificamente aos cuidados de saúde e ao envelhecimento com dependência. Tal vai a par da tendência para articular necessidades de níveis diferenciados, com a segmentação dos pensionistas em três patamares etários: menos de 65 anos de idade, mais de 65 anos de idade e mais de 70 anos de idade.

 

Objetivos-solução

Finalmente, e para os problemas apresentados nas várias medidas por nós recenseadas, as soluções políticas adiantadas pelo Estado centraram-se, entre 1990 e 2008, em torno de 4 eixos de atuação12

 

—  Quantitativos das pensões: aperfeiçoamento dos quantitativos das pensões, através de atualizações periódicas e extraordinárias dos montantes, de revalorizações periódicas e extraordinárias das remunerações de base (tudo aplicado também aos respetivos complementos), da criação de novos complementos e de alterações à fórmula de cálculo;

—  Organização do final de vida ativa: organização do final de vida ativa ou do lugar dos trabalhadores de idades mais avançadas na produção, através da instituição e regulamentação de regimes que determinam as condições de acesso à pensão de velhice, tendo como especial referência a idade e a carreira contributiva;

—  Modo de vida: modo de vida da população idosa como grupo de cidadãos e utentes de serviços e equipamentos sociais específicos. Uma intenção política que parece evoluir, através da coordenação e apoio dos acordos de entreajuda entre entidades oficiais e particulares, no âmbito da instalação e funcionamento de programas, ações, serviços e estabelecimentos de apoio social;

—  Orgânica do sistema: uma intenção política que se propõe reforçar a coerência estrutural do sistema da segurança social, através da introdução de alterações ao nível da sua orgânica.

 

Em síntese, neste início do século XXI, a abordagem que o Estado faz da velhice remete para a sua construção como problema social ou como uma fase na vida dos indivíduos marcada por necessidades materiais e sociais que se impõem como objeto de políticas sociais específicas. Essas políticas visam, sobretudo, a regulação do acesso à pensão de velhice, as alterações dos quantitativos das pensões e os apoios específicos em equipamentos e serviços.

Por conseguinte, na passagem para o século XXI, a preocupação do Estado em legislar, no âmbito da gestão pública da velhice, sofre um acréscimo significativo em torno dos vários eixos de atuação. Algo que se prende, sobretudo, com as reformas e reestruturações de que foi alvo o sistema de segurança social português neste início de século, e que acompanha o crescendo de medidas emitidas no âmbito da organização do final de vida ativa, de 2001 a 2005. Este crescendo reflete também um aumento de medidas ao nível da orgânica do sistema.

 

Gráfico 2 - Eixos de atuação do Estado (1990-2008)

 

Quanto às medidas que envolvem as questões relativas ao modo de vida, elas apresentam uma maior instabilidade no volume da sua emissão, o que significa que não estão tão diretamente associadas à sustentabilidade do sistema de segurança social, mas sim aos objetivos de cada governo em termos de ação social.

 

O grupo Idosos

Ao longo do período em estudo (1990-2008), o discurso governamental veicula critérios diferenciados de definição dos idosos como grupo específico da população, em função dos diferentes âmbitos dos seus eixos de atuação: organização do final de vida ativa (OFVA); quantitativos de pensões (QP) e modo de vida (MV), critérios de que damos conta no quadro 4.

 

Quadro 4 - A definição dos idosos como grupo específico da população por eixos de atuação do Estado

 

O critério da idade no acesso à pensão de velhice surge como ­determinante na gestão pública da mesma. Não só por referência a uma idade “normal” de acesso à pensão de velhice (ainda os 65 anos de idade), mas também por referência a uma idade que é construída fundamentalmente no trabalho (os trabalhadores mais velhos ou de “idades mais avançadas”) e em que se consubstancia a ideia de se “ser demasiado velho para”(aprender ou executar novas técnicas), remetendo assim para uma estreita relação entre o critério da idade e o critério da incapacidade (físico-biológica ou intelectual).

Esta perspetiva herdada dos anos 90 mantém-se nos anos 2000, contraditoriamente acompanhada pela introdução do conceito de envelhecimento ativo ou de envelhecimento em atividade. Aqui, a importância da articulação entre o critério da idade e o critério contributivo acentua-se, pretendendo-se que mesmo com as carreiras contributivas plenas os trabalhadores mais velhos se mantenham em atividade, pelo menos até atingirem a idade da reforma.

Esta tendência para a segmentação nas idades de acesso à pensão de velhice (porque se antecipa ou porque se adia) vai libertando esta categoria da estreita relação que tinha com a idade da reforma, acentuando-se, ao nível do discurso político, a definição dos contornos de uma velhice mais assistida. Isto por referência à segmentação da população com 65 e mais anos em torno de grupos definidos em articulação com a identificação de diferentes patamares etários.

Apesar de a articulação entre o critério etário e o contributivo continuar a ser a principal base de referência nas regras de cálculo dos quantitativos das pensões, definem-se também novos critérios13 associados, sobretudo, a diferentes níveis de dependência e de rendimentos, e que remetem para necessidades específicas e diferenciadas, sobretudo ao nível do apoio médico-social.

Deste modo, na imagem de velhice veiculada em Portugal pelo discurso da política social, até ao ano de 2008, coexistem contornos positivos, como a “integração social”, a “autonomia e realização pessoal”, com contornos negativos como a “pobreza”, as “carências várias”, a “exclusão social”, a “desvalorização social” e a “dependência”.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A matriz da gestão pública da velhice é complexa e dominada por fortes contradições, na medida em que a necessidade de prolongar a vida ativa para equilibrar o sistema, coexiste com um final da carreira ativa marcado cada vez mais pela precariedade. Uma precariedade que, ao nível individual,já se articula aliás com a presença constante dos períodos de não trabalho ao longo do percurso de vida de cada um.

Por outro lado, não basta decretar no sentido de incentivar os trabalhadores a prolongarem a sua permanência no mercado de trabalho e as entidades empregadoras a quererem mantê-los empregados mais tempo para que a idade de cessação de atividade aumente. Uma tal mudança implica uma alteração importante na perceção que uns e outros têm da idade e da relação desta com o trabalho, e finalmente acerca do próprio trabalho (Guillemard, 2003).

Do mesmo modo, mudar a idade da reforma para mais tarde também não soluciona por si só um problema que é bem mais profundo e geral. Um problema que tem a ver, sobretudo, com a distribuição das riquezas (emprego, tempos livres, formação, salários e rendimentos sociais…) ao longo das várias fases do ciclo de vida (Fernandes, 2008, p. 80).

Os próprios esquemas complementares de poupança (encarados nos últimos anos com grande interesse pelo governo e pelos teóricos da segurança social, e apontados quase como uma solução milagrosa para as dificuldades sentidas pelos sistemas públicos de proteção social, perante a conjuntura demográfica e económica que atravessa as sociedades ocidentais) deverão ser considerados com reserva. De facto, como já referia Paula Guimarães (1995, p. 72), o financiamento voluntário destes esquemas de prestações complementares não vem do exterior do sistema económico, dependendo pois, tanto ou mais, do comportamento da economia, e sendo largamente tributário da sua capacidade de fazer apelo a um sentido de solidariedade mais vivo e mais ­atuante do que nunca.

Uma das soluções para esta situação parece estar na criação da possibilidade de uma pluriatividade transversal ao conjunto do ciclo de vida. Algo que implica uma aceitação de que as condições do nosso envelhecimento devem ser criadas ao longo de todo o nosso percurso de vida. Como refere Ana ­Fernandes (2008, p. 159), este será o sentido que as políticas deverão seguir, orientadas por princípios de promoção de bem-estar ao longo da vida, enquanto trajetória contínua.

A velhice não poderá pois permanecer definida, tal como é tratada pelo discurso político até 2008, dos 55 – como os “trabalhadores mais velhos” – aos 90 anos – como os “dependentes mais velhos”. Os ganhos em anos vividos não devem ficar acantonados num terceiro ciclo de vida que já se encontra segmentado não só em função de critérios biológicos, mas também em função de critérios de qualificação e trabalho. Uma segmentação que remete para a existência de padrões diferenciados ao nível das condições de velhice e, por aí, de formas diferenciadas de vivenciar a fase mais “idosa” da vida (Mauritti, 2004).

 

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Recebido a 15-11-2010. Aceite para publicação a 09-02-2012.

 

Notas

1 O Estado-providência afirma-se no pós-guerra e resulta de um compromisso (pacto económico e social) entre o Estado, o Capital e o Trabalho, em que os capitalistas renunciam a parte da sua autonomia e dos seus lucros e os trabalhadores a parte das suas reivindicações socioeconómicas. Esta dupla renúncia passa a ser gerida pelo Estado, que transforma o excedente libertado, ou seja, os recursos financeiros que lhe advêm da tributação privada e dos rendimentos salariais, em capital social (Santos, 1987, p. 14).

2 In Programa de Acção dos Ministério dos Assuntos Sociais, outubro de 1974, Centro de Documentação e Informação do Ministério do Emprego e Segurança Social.

3  O Relatório Laroque (1962) constituiu em França o modelo ou o parâmetro de uma política global de velhice, em que não se pretendeu apenas definir uma política de proteção à velhice ou uma política para as pessoas idosas, mas, sobretudo, uma política que dizia respeito à totalidade da população. De forma a promover a integração da velhice nos quadros sociais, e a excluir as múltiplas formas de segregação das pessoas idosas, o que envolvia a participação de todos os homens e mulheres, como seres sujeitos ao processo de envelhecimento (Leal, 1998, p.168).

4  Programa do IX Governo (1983), p. 24.

5  A técnica predominante para o financiamento das pensões de reforma, a repartição­alargada (no caso português), baseia-se no facto de que em cada momento do tempo as ­contribuições dos indivíduos ativos (e/ou entidades empregadoras) são automaticamente convertidas em pensões. Esta técnica resulta, pois, numa solidariedade geracional de tipo transversal e supõe a existência de um equilíbrio anual entre quotizações (obtidas sobre os rendimentos de trabalho) e prestações (dirigidas aos reformados). Ora, no caso de se verificar uma deterioração da relação idade pós-ativa (beneficiário)/idade ativa (contribuinte), efeito, em parte, do processo de envelhecimento demográfico, o equilíbrio fica afetado. Não esquecendo o efeito da maturação do sistema: aumento do número de beneficiários que quotizaram ao longo de toda a sua vida profissional e que por isso têm direito a pensões de velhice mais elevadas (Rosa, 1993, pp. 687-689).

6 A análise tem início no penúltimo ano do XI Governo Constitucional liderado por Aníbal Cavaco Silva e termina no penúltimo ano do XVII Governo Constitucional liderado por José Sócrates.

7 V. Anexo, em que é feita a apresentação e a justificação analítica das dimensões da grelha.

8 MESS (Ministério do Emprego e da Segurança Social); MSSS (Ministério da Solidariedade e da Segurança Social); MTS (Ministério da Trabalho e da Solidariedade); MF (Ministério das Finanças); ME (Ministério da Educação); MS (Ministério da Saúde); PCM (Presidência do Conselho de Ministros); AR (Assembleia da República); PR (Presidência da República); ALRM (Assembleia Legislativa Regional da Madeira).

9  MTS (Ministério do Trabalho e da Solidariedade); MSST (Ministério da Segurança Social e do Trabalho); MSSFC (Ministério da Segurança Social, da Família e da Criança); MTSS (Ministério do Trabalho e da Segurança Social); MTSS (Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social); MF (Ministério das Finanças); MS (Ministério da Saúde); MDN (Ministério da Defesa Nacional); MADRP (Ministério da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas); O (Outros organismos); PCM (Presidência do Conselho de Ministros); AR (Assembleia da República); ALRA (Assembleia Legislativa Regional dos Açores); ALRM (Assembleia Legislativa ­Regional da Madeira).

10 Decreto-Lei n.º 125/2005 de 3 de agosto.

11 Lei n.º 60/2005 de 29 de dezembro e Decreto-Lei 55/2006 de 15 de março.

12 Na construção destas dimensões tivemos por referência a tipologia efetuada por Anne-Marie Guillemard (1984) para o caso francês.

13 Para além da introdução do fator de sustentabilidade relacionado com a evolução da esperança média de vida.

 

ANEXO

GRELHA DE ANÁLISE

A grelha de análise assenta em dimensões construídas a partir dos conteúdos dos documentos analisados. Assim, foram consideradas seis dimensões:

Ano/documento - Com o objetivo de situar no tempo e identificar o organismo emissor de cada uma das medidas legislativas, tentou-se apreender as mudanças ou as constâncias em matéria de políticas sociais de velhice, remetendo não só para os tipos de gestão política, como também para os protagonistas institucionais em causa.

Âmbito - Pretendeu-se abranger a informação contida nos documentos analisados, em função da sua “população-alvo” ou do seu campo de aplicação, que podia envolver tanto pessoas (pensionistas, beneficiários ativos/inativos, população em geral e população idosa), como instituições (públicas e privadas), programas, ações ou serviços. E como o âmbito geral dos documentos em análise incide sobre a segurança social, sempre que possível tentou-se identificar também os regimes de proteção social em causa (geral, especiais e não contributivos).

Problemas - E porque todas as medidas que implicam objetivos sociais supõem a intenção de resolver um problema social que lhes é subjacente, nesta dimensão tentou-se considerar toda a informação que era adiantada pelos conteúdos dos documentos em estudo, como questões a resolver ou a ter em atenção.

Soluções - E como os problemas implicam soluções, que no âmbito deste estudo constituem o principal dos documentos em análise, nesta dimensão pretendeu-se englobar toda a informação que definia, em síntese, os objetivos-solução propostos nos vários documentos.

Medidas - As soluções precisam de ser operacionalizadas ou regulamentadas. Por conseguinte, nesta dimensão foram sistematizadas todas as informações sobre as medidas que orientam as soluções adiantadas.

Grupo-idosos - Na medida em que o objetivo primeiro do nosso trabalho é a apreensão da imagem da velhice, veiculada pelas medidas que visam a velhice, nesta dimensão procurou-se abranger todos os termos ou expressões encontrados nos documentos em estudo que surgem como suscetíveis de isolar ou caracterizar os idosos como grupo específico da população.

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