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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.204 Lisboa jul. 2012

 

Drogas, economia, tributação e a ética liberal

Drugs, economy, taxation and liberal ethics

 

Luís Fernando Moreira*

*Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Brasil. E-mail: moreiralfm@gmail.com

 

Resumo

A guerra contra as drogas está longe de ser efetiva na redução da procura e da oferta neste mercado. Como o custo para fazer cumprir a atual legislação sobre drogas é muito elevado, a sociedade mundial deve avaliar a capacidade estatal para fazer cumprir a proibição, e o resultado real que um combate truculento ao ­tráfico tem produzido. Ao apresentar evidências de que a guerra contra as drogas tem apresentado resultados pouco satisfatórios, uma política mais racional – baseada na ética liberal – é apresentada para lidar com a questão.

Palavras-chave: guerra contra as drogas; liberalismo; políticas públicas; legalização.

 

Abstract

The ongoing war on drugs is far from being effective in reducing either the demand or supply side of the market. As the costs of enforcing the drug laws are very high, the global community should consider the feasibility of prohibition and the real results that have been achieved so far. Presenting evidence that the results of the war on drugs are largely unsatisfactory, a simpler model based on liberal ethics is proposed to deal with this matter.

Keywords: war on drugs; liberalism; public politics; legalization.

 

INTRODUÇÃO

Ao discutir as três atitudes – reacionária, revolucionária e liberal – face ao processo da modernidade, Santos (1991) defende que cada atitude contempla uma ótica que pressupõe uma ética. Nos diversos posicionamentos envolvidos no problema das drogas temos também uma ótica e uma ética associadas.

Não há muito de novo a dizer sobre os posicionamentos sobre as drogas e, de acordo com Coyle (2003), não existem muitas formas de encarar a questão. Um primeiro olhar sobre o problema leva-nos a adotar o conceito de que as drogas são sempre nocivas e de que o seu uso é, portanto, sempre errado. Logo, podemos desejar uma sociedade totalmente livre das drogas. Tal ótica, que exclui qualquer dinâmica evolutiva, implica uma ética reacionária, a qual leva a um posicionamento favorável a uma política proibicionista. No outro extremo, temos a possibilidade de considerar a questão do uso de drogas como algo do foro íntimo e, portanto, qualquer proibição neste sentido seria inaceitável. Esta ótica implica uma ética liberal.

Evidentemente, neste contínuo que vai da criminalização à descriminalização muita coisa pode ser pensada. Morais (2005) aponta pelo menos sete modelos alternativos à criminalização com propostas que contemplam a não interferência estatal no fenómeno, ou seja, a “descriminalização” (nullification); a “legalização” com controlo estatal apenas para garantir a qualidade e pureza, a exemplo do que ocorre com o tabaco e o álcool; o “modelo de serviço comercial”, em que os locais e as condições para o fornecimento seriam regulamentados; o “modelo do vício”, que não puniria os consumidores; o “modelo médico”, em que as drogas seriam vendidas mediante prescrição médica; o “licenciamento”, modelo semelhante ao serviço comercial, mas menos restritivo; e a “redução de danos”. Estes modelos não são exaustivos, nem tão-pouco estanques.

Destas opções, a única que requer atenção secundária no que concerne à legislação é a redução de danos, a qual enfatiza o tratamento e a reabilitação dos dependentes. Esta abordagem não foca a dependência como doença crónica, não entende o tratamento do uso como sinónimo de abstinência e opõe-se às políticas proibicionistas. A abordagem contempla uma visão ampliada da saúde, na qual a liberdade e a autonomia do indivíduo é respeitada e serve de referência para o tratamento (Lima et al., 2011; Morais, 2005).

De acordo com Santos (1991), a ética liberal expressa-se melhor através da teoria tridimensional – facto, valor, norma – de Miguel Reale. Para Reale os valores interagem com os factos sociais e daí decorre a formulação da norma; as normas evoluem no tempo e expressam os valores correntes da sociedade. Ao tratarmos de expressar ou formular valores estamos a falar, em última análise, de epistemologia ou de ótica. A ótica liberal não reivindica um conhecimento absoluto da essência da natureza humana, pois é despida de dogmas; a ótica e a ética liberal aceitam a característica evolutiva da sociedade e dos seus valores, estando plenamente de acordo com a multiplicidade cultural. Trata-se de uma ética aberta e que, paradoxalmente, vem gerando uma razoável estabilidade e progresso.

É importante ter em mente que a questão das drogas não pode ser encarada de forma maniqueísta, como algo certo ou errado – o que seria difícil de demonstrar – ou vista apenas sob o ponto de vista de o Estado autorizar o uso de uma substância salutar ou não – algo difícil de sustentar. Há muito que a sociedade convive com comportamentos errados e substâncias nocivas à saúde que são consideradas lícitas. O problema envolve filosofia política, pois como aponta Berlin (1981), centra-se numa questão central dessa área de estudo, o problema da obediência e da coerção. Mas as questões financeiras, económicas e sociais também estão presentes (Coyle, 2003; Zaluar, 2000; Kennally, 2001; Dawson, 2002; van der Veen, 2003; Becker, Murphy & Grossman, 2006).

Em última análise, as drogas geram um profundo dilema ético sobre o qual nos devemos debruçar. De seguida abordaremos a questão da liberdade e do limite coercivo do Estado; alguns dos custos sociais das drogas, e resultados ilustrativos da guerra que contra elas se trava. Na última secção do artigo são discutidos os impactos e apresentadas argumentações a respeito da descriminalização e da legalização.

 

DROGAS, LIBERDADE E DEMOCRACIA LIBERAL

Há pelo menos dois tipos de liberdade que devemos considerar. A definição clássica ou liberal (Santos, 1989), também chamada de “liberdade negativa” por Berlin (1981), a qual implica liberdade de fruição ou ausência de ­coação. Ou seja, a liberdade dos modernos é a liberdade de não ser impedido de fazer o que se deseja fazer, naquilo que se é capaz de fazer (Hobbes, 2002); é importante ter em mente que tal conceito não implica a ausência de qualquer frustração. Neste contexto, qualquer limitação imposta pela legislação implica uma subtração de parte da liberdade individual. Ainda de acordo com Berlin (1981), a conceção dos direitos individuais e liberdades civis tem origem nessa visão do homem; nas palavras do autor concepção individualista e bastante questionada (Berlin, 1981, p. 140).

O segundo tipo de liberdade, chamada “positiva” por Berlin (1981), também conhecida como liberdade democrática, de determinação, participativa e dos antigos (Santos, 1989), tem origem no desejo de cada pessoa ser instrumento da sua própria vontade, de conceber metas e diretrizes e de as atingir.

Os dois conceitos, quando confrontados, parecem indicar a mesma coisa, porém, como demonstra Berlin (1981), estes conceitos desenvolvem-se em sentidos opostos. “Não sou escravo de ninguém”, “Sou dono de mim mesmo”, mas não poderia ser eu escravo de meus desejos? A partir desta ideia é possível conceber os desejos que nos atormentam como, nada mais que, outro tipo de escravidão. A partir deste raciocínio, o ego poderia ser separado em dois extratos: um de natureza superior, e outro de natureza inferior. Deveria então ser buscada uma forma de liberdade superior, nesse caso a liberdade positiva, em que o ego estivesse liberto de qualquer laivo de desejo ou paixão de natureza inferior. Tal dicotomia do ego pode ser ampliada para comportar algo mais amplo que o indivíduo, um modelo em que o ego racional e superior é parte de um todo coletivo, uma religião, um Estado. Esse todo coletivo, esse Estado, representa o ego verdadeiro que, impondo a sua vontade, conquista a sua liberdade superior e, por extensão, a das suas partes componentes. Essa conceção dá azo, evidentemente, a uma série de interpretações e a sua plausibilidade está justamente no facto de admitirmos que certos objetivos justificam o uso da coerção (Berlin, 1981).

Tomando por base a metáfora anterior no campo de uma política antidrogas, o reformador apresenta como função manifesta o controlo da saúde pública e dos desvios sociais. Estes indivíduos direcionados para o controlo social argumentam que o maior beneficiário da repressão às drogas seria a sociedade e centram o seu discurso em apelos morais e na preservação da saúde pública. Nesta ótica, os consumidores de drogas não teriam autocontrolo e poderiam ser facilmente escravizados por elas. Entretanto, há mais do que saúde e segurança pública envolvidas: ao condenar as drogas, estes empreendedores morais levam a reboque a condenação de possíveis comportamentos não tradicionais restritos a certas minorias étnicas, geracionais e culturais (Morais, 2005). Ainda nas palavras de Morais (2005, p. 87), “a proibição em si mesma não é um ato altruísta; é autoritário”.

Apesar dos evidentes desvios de finalidade aos quais está exposto o conceito de liberdade democrática, o poder moderno é por definição o poder democrático, embora, eventualmente, a democracia possa reduzir a liberdade de fruição dos indivíduos, é importante mencionar que no regime democrático há, de facto, uma preocupação com a liberdade individual que não existe nos regimes totalitários, ainda que, em teoria, possa haver um regime totalitário com grande liberdade de fruição (Santos, 1989; Berlin, 1981).

Os dois tipos de liberdade, entretanto, convergem no que diz respeito à manutenção de um espaço mínimo de liberdade individual, onde o Estado jamais poderia estender os seus tentáculos e exercer o seu poder coercivo sobre o indivíduo; na ótica liberal, o Estado somente poderia exercer o seu poder de coerção de modo legítimo sobre qualquer de seus membros com o objetivo de evitar dano a terceiros. O bem-estar do próprio indivíduo não é legitimador de uma ação coercitiva do Estado, pois entende-se que o indivíduo é soberano sobre o seu corpo e a sua mente (Mill, 2000).

 

O CUSTO SOCIAL

Esta secção visa demonstrar alguns custos sociais normalmente imputados às drogas ilícitas, e confrontar estes números com aqueles que podem ser facilmente apontados como decorrentes da política proibicionista. O exercício mostra que vários dos custos associados às drogas são antes de tudo oriundos da política proibicionista adotada para lidar com a questão.

É necessário ter em mente que o uso de drogas, lícitas ou não, pode ser considerado uma necessidade humana; o seu uso é milenar e está associado a eventos ritualísticos, aplicações médicas e recreação (Lima et al., 2011; ­Carneiro, 2002). De acordo com Lima et al. (2011) as drogas também são usadas para estabelecer diferenças sociais. Seja qual for a finalidade do uso, o facto de um indivíduo consumir drogas não faz dele necessariamente um criminoso que, por conta disso, deva ser preso.

O custo social mais facilmente identificável com as drogas é o gasto com a saúde pública; há um sem-número de doenças causadas ou associadas ao uso de drogas, lícitas ou não. Os custos envolvidos não são em absoluto desprezíveis. Porém, há outros aspetos interessantes e dignos de atenção no que concerne a custos que são igualmente suportados pelo conjunto da sociedade. Por exemplo, há os custos diretamente associados ao aparato bélico necessário para travar uma guerra contra as drogas; mas há outros relacionados com fatores indiretos como: 1) manutenção de uma população prisional crescente; 2) corrupção do judiciário e de outras instituições; 3) lavagem de dinheiro; 4) escalada da violência e 5) tráfico de armas ligado ao tráfico de drogas.

Inicialmente, vamos colocar alguns factos em perspetiva; nos Estados Unidos – o maior mercado consumidor de drogas ilícitas – as mortes associadas ao uso dessas drogas responderam a cerca de 1% do total em 1990 e em 2000. Conforme pode ser verificado na tabela 1, o tabaco e o álcool responderam a 520 000 mortes em 2000, o que representa mais de 20% de todas as mortes daquele ano, e a dieta inadequada e a inatividade física foram responsáveis por quase 17% das mortes no ano 2000. Os comportamentos sexuais de risco, as armas de fogo e os acidentes de trânsito superam as drogas ilícitas no que concerne à mortalidade (Mokdad et al., 2004).

 

Tabela 1 - Causas de mortes nos Estados Unidos em 1999 e 2000

 

No Brasil este quadro não é muito diferente. A tabela 2 mostra alguns dados do país, embora as duas tabelas não permitam comparação direta. Os homicídios e os acidentes de transporte parecem categorias bem mais ­relevantes, e certamente no Brasil o álcool e o tabaco são causas importantes de morte, ainda que não estejam contabilizadas na tabela 2.

 

Tabela 2 - Mortalidade por causas externas no Brasil em 1991 e em 2001, taxa por 100 000 hab.

 

Em 2003, no Brasil, o SUS1 estimava um gasto de no mínimo US$ 35 milhões por ano em casos relacionados com drogas. O álcool representava cerca de 84,5% dos internamentos hospitalares decorrentes do uso de drogas; no mesmo ano o SENAD2 tinha orçamento US$ 2 milhões para a redução da procura de drogas (ONU, 2005). O que chama a atenção é que as drogas ilícitas parecem um problema menor, ou pelo menos, que deveriam figurar em segundo plano no que diz respeito ao tamanho do orçamento público para combatê-las.

Quando Nixon declarou guerra às drogas, em 1972, o orçamento ­federal americano para esta finalidade era de aproximadamente US$ 101 milhões; em 1999 esse valor era de US$ 17,8 biliões e o gasto combinado nas esferas federal, estadual e municipal ultrapassou os US$ 30 biliões (Mcnamara, 1999; Mcvay, 2004). Conforme observa McNamara (1999), é difícil aquilatar a magnitude desses valores. Em 1972 o salário médio nos Estados Unidos era de US$ 114 por semana; se o salário tivesse crescido na taxa do orçamento federal da guerra contra as drogas em 1999, o salário semanal deveria ser de US$ 19 608. A figura 1 representa graficamente o argumento de McNamara. Saber o que pensa o americano médio ao ser confrontado com estes números seria uma pesquisa das mais interessantes. Em julho de 2001, o gasto total no combate às drogas nos Estados Unidos estava estimado entre US$ 35 e US$ 40 biliões por ano (Tavares, 2006).

 

Figura 1 - Projeção de crescimento do salário americano semanal na proporção do orçamento contra o narcotráfico

 

Período de 1986 a 2003 adaptado de The National Drug Control Strategy 1998, 2000, 2002 e 2003 Budget Summary http://www.whitehousedrugpolicy.gov/policy/budget.html. A partir de 2004 estimado por regressão linear, de 1973 a 1985 estimados a partir de dado de 1972 a taxa de crescimento de 25% a.a.Valor de 1972 obtido em McNamara (1999).

 

A chamada política de “tolerância zero” tornou-se famosa nos anos 90 com a sua adoção pelo então prefeito de Nova Iorque Rudolph Giuliani, o qual tinha o objetivo de “devolver a cidade aos nova-iorquinos” (Ferreira, 2010). A tolerância zero é decorrente da “teoria das janelas partidas” de Kelling e Wilson (1982). Juntamente com o chamado “Movimento da lei e ordem” podem ser consideradas vias de maximização da intervenção punitiva do Estado, conducentes à emergência de um Estado penal em oposição ao Estado de bem-estar (Shecaira, 2009; Boldt e Krohling, 2011).

A teoria das janelas partidas advoga que as pequenas desordens e os desvios sociais devem ser fortemente reprimidos se o objetivo for evitar os crimes mais graves. A sua lógica é simples: imagine um edifício num certo bairro que tem uma das suas janelas partidas, caso a janela estilhaçada não seja logo consertada os delinquentes perceberão a situação e logo todas as janelas estarão em pedaços. Em teoria, com o crime grave funcionaria do mesmo modo, e se os pequenos delitos fossem tratados com lenidade pelo poder público, logo os crimes graves ocorreriam em decorrência do ambiente de impunidade (Kelling e Wilson, 1982).

A política de tolerância zero, entretanto, carece de evidências empíricas que corroborem os seus resultados no que concerne a efetiva redução dos índices de criminalidade. Embora a população eventualmente tenha a perceção de se sentir mais segura quando o poder público adota tal política, as estatísticas contam uma história diferente (Ferreira, 2010). A adoção dessa política tem, de facto, levado a violações dos direitos civis e produzido um aumento sem precedentes da população carcerária no Brasil e Estados Unidos (Shecaira, 2009). De acordo com Mauer (2005), o fator mais significativo nos últimos anos neste cenário de expansão do encarceramento é a guerra contra as drogas. O número de pessoas aguardando julgamento ou cumprindo alguma sentença relacionada com drogas passou de 40 000 pessoas em 1980 para 450 000 em 2004 nos Estados Unidos.

No Brasil, em 2004, havia aproximadamente 170 reclusos para cada grupo de 100 000 pessoas, em 2011 já eram 269,38 (BRASIL, 2011). Nos Estados Unidos, por volta de 2001, havia 701 detidos por grupo de 100 000 habitantes (Mcvay, 2004; ONU, 2005). Em novembro de 2000, a população prisional brasileira era de 232 755 presos; em dezembro de 2005 dados do Ministério da Justiça apontavam para números na ordem dos 361 402 detidos no Brasil, ascendendo aos 440 013 em 2008 e aos 513 165 em junho de 2011, sendo 117 152 destes presos responsáveis por tráfico de estupefacientes (Brasil, 2005; Walmsley, 2009; Brasil, 2011).

Dados do Estado de São Paulo para o ano 2000 apontavam que 25,4% dos presos em regime fechado eram condenados por tráfico ou uso de estupefacientes (SAP, 2002). Cerca de 25% das prisões no Brasil ocorrem por tráfico ou uso de drogas; um preso no sistema estadual custa aproximadamente R$ 1 700,00 por mês e no sistema federal não menos de R$ 7 000,00 por mês, conforme dados fornecidos pelo presidente do Conselho Nacional de Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Administração Penitenciária (CONSEJ) ao jornal O Globo em notícia publicada em 20-11-2011 (Duarte e Benevides, 2012). Supondo que 25% dos presos estivessem no sistema federal, uma eventual legalização implicaria uma poupança média da ordem de R$ 4,7 biliões por ano só no sistema prisional.

Ao contrário do que se poderia supor, boa parte das prisões relacionadas com drogas nos Estados Unidos diz respeito a consumidores de marijuana e derivados, conforme apresentado na tabela 3. O estudo de King e Mauer (2005) aponta que apenas 6% das prisões por consumo de marijuana em 2002 foram por delitos considerados graves; o mesmo estudo identifica que os afro-americanos, embora representem apenas 14% dos consumidores, representam 30% dos reclusos. Os autores defendem que a “guerra contra as drogas” é na verdade uma “guerra contra a marijuana”.

 

Tabela 3 - Prisões relacionadas com marijuana e total de prisões relacionadas com drogas nos Estados Unidos

 

No Brasil, a polícia federal tem colocado o foco da sua ação no traficante. A evolução do número de indiciamentos entre 2000 e 2004 pode ser apreciada na tabela 4.

 

Tabela 4

- Evolução dos indiciamentos da polícia federal

 

Entretanto, os dados separando as categorias “traficante” e “consumidor” não foram encontrados para as polícias civis. A tabela 5 apresenta as ocorrências registadas pelas polícias civis de acordo com o delito.

 

Tabela 5 - Ocorrências registadas pelas polícias civis em 2003

 

O tráfico de armas movimenta US$ 290 biliões por ano, o tráfico de drogas outros US$ 400 biliões. Estima-se que cerca de US$ 500 biliões em “dinheiro sujo” circulem pela economia mundial todos os anos (Tavares, 2006; COAF, 2000; Maierovitch, 2003). É interessante reparar que o dinheiro sujo é lavado, ou como comenta van der Veen (2003, p. 375) “[…] a mais bela ironia, é que uma vez lavado, isto é, provido com a aparência de ter origem legal, alguém pagou impostos sobre esse dinheiro a algum governo. Isto é, dinheiro limpo é dinheiro sobre o qual foram pagos impostos”.

A questão da lavagem de dinheiro é delicada e pode trazer impactos importantes sobre a sociedade. A estimativa é de que cerca de 15 e 25% da economia mundial seja gerada através dos chamados segmentos informais, e com base nisso podemos imaginar quantas pessoas seriam capazes de provar que seus ativos proveem de fontes “legítimas” (van der Veen, 2003).

 

O MODELO PROIBICIONISTA E ALGUNS RESULTADOS

Quando o bom senso e a economia entram em conflito, o bom senso está errado (Coyle, 2003). Esse raciocínio de Coyle pode ser estendido: pode-se dizer que quando o bom senso e as evidências empíricas são discordantes, o bom senso está errado. É importante ter claro que os períodos de maior violência coincidem justamente com aqueles de maior repressão. A figura 2 destaca o período da guerra contra as drogas e o período da Lei Seca nos Estados Unidos, períodos esses com os maiores índices de assassinatos.

 

Figura 2 - Taxa de homicídios por 100 000 habitantes nos Estados Unidos entre 1900 e 1997

 

Embora careça de evidências empíricas, de um modo geral a maioria dos autores defende que a descriminalização ou a legalização das drogas ilícitas provavelmente levaria a um aumento do consumo dessas drogas (MacCoun e Reuter, 2002 e Morais 2005). Curiosamente, a experiência portuguesa de descriminalização do consumo, que já conta com dez anos, não sustenta os argumentos destes autores. De acordo com Greenwald (2009), a política levada a efeito em Portugal desde meados de 2001 não teve efeitos adversos sobre o consumo de drogas ilícitas que, inclusive, apresentaram leve declínio; entretanto, no que concerne às patologias relacionadas com as drogas – como as doenças sexualmente transmissíveis – e às mortes por uso de drogas as estatísticas apresentaram decréscimo supreendente.

Por outro lado, numa eventual legalização, a violência diretamente associada ao tráfico ilegal tenderia a desaparecer, uma vez que deixariam de existir disputas entre traficantes, traficantes e consumidores, bem como traficantes e polícia; embora, como assevera Morais (2005), os indivíduos normalmente violentos e já envolvidos com drogas provavelmente não alterassem o seu comportamento. Além disso, a violência relacionada com pessoas não envolvidas no tráfico, que em função do clima violento que as rodeia geralmente estão preparadas para reagir e se defender, poderia diminuir (Jensen, 2000).

Wood et al. (2004), ao avaliarem o resultado de uma emboscada ­policial na região leste do centro de Vancouver, Columbia Britânica, concluíram que essas ações não afetaram o consumo ou o preço das drogas na região. Ao ­contrário do esperado, o mercado adaptou-se à situação de modo a contornar o problema causado pela ação policial. Segundo os autores, tal processo de adaptação explica o aumento no número de relatos de consumo de drogas injetáveis, crimes relacionados com drogas e outros casos de perturbação da ordem pública que emergiram ou se intensificaram em torno da área em que a batida ocorreu. O processo, como um todo, trouxe profundas implicações sobre a saúde pública, uma vez que expôs populações jovens, que antes não estavam sob risco das drogas injetáveis, e promoveu a prática de partilha de seringas. Finalmente, observam que é muito pouco provável que tais resultados decorram do pouco aparato policial, uma vez que emboscadas de proporções maiores que ocorreram nos Estados Unidos foram associadas a sérios problemas sociais e de saúde pública e também não surtiram o efeito desejado.

Para Zaluar (2000), as políticas e técnicas adotadas pelo governo brasileiro resultam em escassez, o que eleva o preço das drogas e afeta adversamente a qualidade; isso faz com que mais pessoas desejem suportar o risco da atividade ilegal, em todos os níveis, por conta da possibilidade de lucros crescentes organizando assim as suas atividades de modo a minimizar os riscos e maximizar os lucros. O potencial de lucros do mercado das drogas também elevaria o nível de corrupção das instituições estatais; uma vez que o crime organizado perpassa todas as camadas sociais e tem ramificações com negócios legais e formais, ele não poderia existir sem o suporte institucional das agências ­estatais.

Infelizmente, a despeito da aparente clareza de seu raciocínio, Zaluar (2000) não é de todo apoiada pelos factos. As políticas adotadas no Brasil são semelhantes às de outros países ocidentais, principalmente Estados Unidos, e nem por isso o preço da droga tem aumentado, ou seja, na maioria dos países, o preço vem-se reduzindo ao longo do tempo. Para se ter uma ideia do processo, o valor médio ponderado ajustado para inflação do grama da cocaína na Europa era de US$ 175 em 1990 e passou para US$ 87 em 2005; no mesmo ­período o grama nos Estados Unidos caiu de US$ 275 para US$ 104 (ONU, 2005).

A figura 3 apresenta o comportamento do logaritmo da variação nos valores do orçamento federal norte-americano para combate ao narcotráfico de 1990 a 2006, e do logaritmo da variação do preço da cocaína no mercado de retalho nos Estados Unidos para o mesmo período. Os dados do orçamento federal estado-unidense para o período de 1990 a 2003 foram retirados do The National Drug Control Strategy Budget Summary dos anos de 1998, 2000, 2002 e 2003 elaborados pelo The Office of National Drug Control Policy (ONDCP) – este relatório é enviado pelo presidente daquele país para avaliação do Congresso – de 2004 em diante os valores foram estimados por regressão linear.

 

Figura 3 - Variação no valor do orçamento e do preço da cocaína a retalho nos USA

 

O preço da cocaína a retalho foi obtido no World Drug Report 2008 da United Nations Office on Drugs and Crime. O coeficiente de correlação entre as duas séries é de -0,95. É difícil acreditar, mas é como se para cada variação positiva no orçamento para combate ao narcotráfico o preço da cocaína se reduzisse quase na mesma proporção. Os dados que serviram de base para o gráfico são apresentados na tabela 6. Os preços da cocaína a retalho estão ajustados para a inflação em dólar constante de 2006.

 

Tabela 6 - Dados do orçamento federal e do preço da cocaína no varejo USA

 

Se, como preconiza Coyle (2003), a oferta e a procura realmente funcionam, e funcionam melhor ainda em mercados não regulamentados como o das drogas, então só pode ter havido expansão da oferta de drogas nos últimos anos. Isso equivale a dizer que a política de guerra contra as drogas é um total fracasso. Seria melhor se o efeito fosse observado apenas nos Estados Unidos, mas dados do relatório de 2008 da UNODC dão conta de que na Europa o preço do retalho ajustado para a inflação em dólar constante de 2006 caiu de USD 181 para USD 86 uma redução de 52,49% no período, enquanto por grosso a queda foi ligeiramente maior, da ordem de 55,24%. Nos Estados Unidos, o maior mercado consumidor, a queda no preço do retalho foi de 66,90%.

Se a política proibicionista é tão negativa, por que motivo persiste a despeito de todas as evidências empíricas no sentido de que outra política deveria ser adotada? As burocracias jamais pretendem a sua própria destruição, é pouco factível que trabalhem visando o seu próprio desaparecimento. É mais provável que criem um nicho de mercado que lhes assegurem o fluxo de verbas governamentais e o prestígio da instituição. Ao menos esta é a visão de van der Veen (2003) em relação ao sistema de justiça criminal dos Estados Unidos. Naquele país, as agências federais estão autorizadas a reter e utilizar o numerário proveniente dos ativos confiscados. A literatura está repleta de abusos referentes a leis que preveem confisco no que se refere à atividade policial. Neste cenário não é de causar estranheza que a guerra contra as drogas se autoalimente (van der Veen, 2003).

 

LEGALIZAR OU DESCRIMINALIZAR?

De acordo com a maioria dos autores, a descriminalização ou a legalização das drogas levaria à exacerbação do consumo. Se considerarmos esta proposição sob uma condição ceteris paribus, temos obviamente de concordar. Porém há mecanismos que podem ser utilizados no sentido de evitar um movimento dessa natureza, e alguns deles serão apresentados nas subseções seguintes. Além disso, há evidências contraditórias como o já citado exemplo português e o consumo de drogas e os níveis de prevalência na Holanda – país que adota uma política de descriminalização há mais de trinta anos – que não são maiores do que em outros países europeus e são menores que os dos Estados ­Unidos (The Netherlands Ministry of Foreign Affairs, 2003).

Uma faceta interessante da descriminalização no Brasil é que estamos a sul do Equador, e neste hemisfério nem sempre o que vem do norte funciona. Descriminalizar significa adotar o modelo holandês e isso significa manter a legislação sem indiciar os portadores de pequenas quantidades e ao mesmo tempo perseguir os traficantes; ou legalizar o uso, mas manter o comércio ilegal (Kennally, 2001). Provavelmente o temor de Kennally (2001) concretizar-se-ia no Brasil, ou seja, se optássemos pela primeira hipótese, leis que poderiam ou não ser utilizadas de acordo com o poder discricionário da polícia provavelmente levariam à redução nas liberdades civis e ao aumento na corrupção. A descriminalização não é, ao que tudo indica, a solução mais coerente para o problema das drogas no Brasil nem na maioria dos países (Becker, Murphy e Grossman, 2006; Kennally, 2001).

Advoga-se um modelo alternativo para o Brasil que combine a redução de danos, a tributação, o controlo da venda e publicidade desses produtos, a exemplo do que tem sido feito com o tabaco. O documento do Banco ­Mundial produzido por especialistas a respeito do controlo do tabagismo no Brasil reporta que “o controle do tabagismo foi efetivo” (Iglesias et al. 2007, p. xiii).

 

A TRIBUTAÇÃO (EXCISE TAX) ÓTIMA GERA MENOR DEMANDA

Se por um lado a liberalização das drogas pode elevar o consumo, por outro o Estado pode legitimamente tributar esses produtos. A tributação deve ser tal que minimize o consumo e o mercado negro; excesso de tributação pode gerar incentivo ao contrabando.

O poder de tributar é o poder de regular. As finanças públicas são a preo­cupação central de qualquer governo e a manutenção do Estado depende da capacidade de este extrair recursos da população (van der Veen, 2003). A repressão e tributação não são mutuamente exclusivas, conforme van der Veen (2003): a guerra contra as drogas tem criado novas oportunidades para o Estado extrair recursos da sociedade. Entretanto, é mais oneroso extrair recursos da atividade ilegal. Esse aspeto é demonstrado por Becker, Murphy e Grossman (2006) que argumentam que não valeria a pena reduzir o consumo de drogas ilegais abaixo dos níveis que um mercado livre poderia gerar, simplesmente porque os custos excederiam os ganhos.

Estes mesmos autores advogam que a tributação do produto legal pode ser muito mais efetiva como meio de reduzir o consumo, seja qual for a elasticidade da oferta e da procura. Nesse contexto, o efetivo policial e fiscalizador do Estado deveria concentrar-se em impedir a evasão fiscal dos agentes económicos produtores evitando a produção informal; noutros termos, o aparato estatal deveria ser utilizado de modo a tornar a produção ilegal muito cara.

Obviamente, existe um nível de preço ao consumidor para cada droga que minimiza o consumo e maximiza a arrecadação tributária. O nível de imposto ideal é uma questão empírica que depende, entre outras coisas, da elasticidade da procura (Coyle, 2003). O mais fascinante é que a legalização e a tributação das drogas poderiam permitir reduzir, por exemplo, o imposto sobre a renda das pessoas físicas sem impacto sobre a arrecadação.

 

A QUALIDADE PODE SER GARANTIDA

Num mercado como o das drogas ilícitas não existe controlo de qualidade. Boa parte dos problemas de saúde pública associados às drogas podem ter origem nesse aspeto. As drogas, pelas suas propriedades intrínsecas, talvez causassem menos mortes se não estivessem na ilegalidade e as empresas atuantes nesse mercado fossem obrigadas a garantir a qualidade de seus produtos.

É importante ter em mente que a disponibilidade das drogas é elevada. Em todo o período da guerra contra as drogas nem a oferta, nem a procura declinaram e o preço das drogas tem vindo a reduzir-se ao longo do tempo, o que indica ampliação da oferta (King e Mauer, 2005). Isso implica, basicamente, que a proibição em si não vai evitar que o indivíduo experimente a droga, nem que se torne dependente, mas, se isso acontecer, a probabilidade de se tornar um dependente morto é maior sob a política atual de combate ao narcotráfico (Dawson, 2002).

 

A PUBLICIDADE PODE SER CONTROLADA

O álcool e o tabaco são, de longe, as duas drogas de maior impacto sobre a saúde pública. Causa estranheza a facilidade com que é possível obtê-las e a liberdade que se tem de consumi-las, onde quer que se esteja no Brasil. Igualmente estranho é verificar que a publicidade a esses produtos é praticamente livre no país. O facto de um produto ter a sua produção e consumo legalizados não implica que estes ocorram de forma desregulada. Embora o Brasil seja tradicionalmente um país onde certas leis funcionam e outras ficam apenas no papel, a venda de bebidas alcoólicas a menores de 18 anos é proibida, assim como a venda de tabaco. Essas leis são o que os brasileiros chamam de “coisa para inglês ver”, uma vez que existem, mas não são cumpridas pela população nem reforçadas adequadamente por mecanismos coercivos do Estado.

A regulamentação poderia ser ainda maior, e certamente deveria ser reforçada pela capacidade coerciva do Estado. Por exemplo, poderia não ser permitida a propaganda desses produtos ou de quaisquer outras drogas por qualquer meio, o seu consumo poderia estar restrito a certos locais como bares, cafés, boates, shows e, obviamente, à residência de quem desejasse fazer uso delas, o consumo na rua ou em qualquer local não permitido poderia ser punido com multas pesadas e trabalhos comunitários. Conforme observam Becker, Murphy e Grossman (2006), a literatura sobre crime e punição aponta que as multas são mais eficientes para punir atividades ilegais que a prisão. E, finalmente, o indivíduo que o sob o efeito de qualquer droga causasse acidentes ou cometesse qualquer crime, poderia ter a sua pena aumentada.

 

HÁ GERAÇÃO DE MAIS EMPREGOS FORMAIS

Com a legalização da produção e comercialização das drogas haveria um efeito multiplicador sobre a economia: toda a receita do setor atualmente na informalidade seria redirecionada para setores formais. Novas indústrias instalar-se-iam para processar e distribuir gerando empregos diretos e indiretos. O dinheiro desse setor circularia legalmente através da economia, oxigenando toda uma cadeia de atividades.

 

A POPULAÇÃO PRISIONAL É REDUZIDA E O JUDICIÁRIO MELHORA

Está em curso no Brasil um programa de expansão do sistema prisional, em que investimentos relevantes deverão ser feitos em infraestrutura e pessoal ao longo dos próximos anos para colmatar as necessidades de uma população ­prisional crescente. Além disso, os novos modelos de presídios propostos, ditos de segurança máxima, incorporam tecnologias de custo não desprezível. Esses presídios destinam-se, hipoteticamente, a abrigar presos de alta periculosidade ligados ao narcotráfico.

Se considerarmos que a população carcerária do Estado de São Paulo é uma boa proxy para o perfil do resto do país, uma eventual legalização das drogas teria o potencial de reduzir a população prisional em algo como 25% (SAP, 2002). Este opúsculo não tem por objetivo medir a economia em investimentos, pessoal e manutenção por conta disso, mas com certeza é outro aspeto do problema que muito deve interessar aos contribuintes.

Do mesmo modo que se reduz a população prisional, também o número de processos que chegam aos tribunais decresce, implicando assim a ­possibilidade de reduzir a morosidade – que caracteriza a justiça brasileira – e juntamente com outros fatores prejudica o crescimento do país, o qual, devido um sistema judiciário ineficiente, cresce 20% mais devagar do que poderia se tivesse um sistema judiciário de primeiro mundo (Pinheiro, 2001).

 

A VIOLÊNCIA URBANA É REDUZIDA

A violência é um fenómeno extremamente complexo e multifatorial, e a presença das drogas é apenas um dos fatores. Há aspetos biográficos, psicológicos, neurocomportamentais, culturais, económicos e sociais intervenientes no fenómeno (Morais, 2005). Porém, o narcotráfico certamente eleva o potencial para ações violentas entre os envolvidos no processo, dado o seu caráter ilegal (Minayo e Deslandes, 1998).

Nos países em que há violência associada ao tráfico, a exemplo do que ocorre no Brasil, é importante ter claro que boa parte dessa violência tem origem nas disputas de mercado. Enquanto os negócios legais dependem de campanhas de marketing para defender ou ampliar a sua fatia de mercado, o tráfico, pela sua natureza, tem práticas como o assassinato de rivais ou de consumidores e pequenos traficantes que não pagam pelas drogas (Morais, 2005). Santos e Kassouf (2007) apresentam evidências de que o mercado de drogas, a desigualdade de renda e a taxa de urbanização têm uma associação positiva com a criminalidade.

É provável que o tráfico de armas se reduzisse, já que a procura de armas ilegais tenderia a declinar se fosse adotado um mercado formal para as drogas. A redução da violência associada ao tráfico de drogas seria de longe o maior benefício oriundo de uma eventual legalização no Brasil; dados da ONU (2005) dão conta que entre 1993 e 2003 morreram em média 32 555 pessoas por ano vítimas de armas de fogo no Brasil. Para se ter uma ideia da dimensão deste número, a Guerra do Golfo produziu em média apenas 10 000 mortes por ano.

 

COMENTÁRIOS FINAIS

A ação coerciva estatal, que no afã de regular e coagir os indivíduos na sua esfera de liberdade individual – no âmbito do uso do seu corpo e mente – acaba por gerar enormes danos ao conjunto da sociedade, só pode estar a errar totalmente o alvo. Tais danos assumem a forma de uma escalada da violência e da corrupção, falência das instituições públicas e abuso do poder estatal; aspetos esses que contribuem tão somente para gerar um clima de insegurança generalizada. De acordo com a ética liberal, a única maneira de legitimar a intervenção estatal no âmbito do uso das drogas seria demonstrar que há um custo incidente sobre o conjunto da sociedade que supera o benefício que os fornecedores e os consumidores eventualmente extrairiam de seu comércio e uso (Coyle, 2003).

Os factos mencionados parecem indicar que a maioria dos países avalia a questão de modo parcial e de acordo com uma ética reacionária, carregada de forte viés emocional e moral, manifestado no incentivo ao consumo de certas substâncias – no Ocidente principalmente álcool e tabaco – que, em conformidade com as evidências disponíveis, são muito provavelmente mais danosas ao consumidor e ao conjunto da sociedade que muitas das chamadas drogas proscritas. O discurso proibicionista deve ser cuidadosamente analisado, uma vez que as burocracias tendem a autoperpetuar-se e a lutar pela manutenção de seu status. A ordem das coisas leva a pensar que, a rigor, os órgãos responsáveis pelo combate ao narcotráfico não teriam interesse em eliminar o problema, nem em minimizá-lo a um nível que implicasse redução nos recursos que lhes são destinados.

O caso do tráfico é completamente diferente, por exemplo, do crime contra o património e do crime contra a vida; estas modalidades de delito, que certamente não podem ser extintas por meio de simples alteração na legislação, decorrem da vida em sociedade e, em que pese o grau de desenvolvimento da espécie humana, parece impossível que a sociedade funcione sem o permanente apoio do aparato estatal para combatê-los.

Não faz sentido construir uma teoria da conspiração, mas muito do que foi apresentado parece colocar entre os atores sociais mais interessados em manter as drogas na ilegalidade os defensores do seu combate truculento e os traficantes. Os primeiros beneficiam do status que o grande volume de recursos públicos que lhes é destinado produz e dos inúmeros mecanismos de corrupção criados através dessa abordagem; outros, que produzem ou comercializam armamentos legal e ilegalmente, beneficiam com o clima de insegurança ­generalizada produzida pela guerra contra as drogas. Os traficantes, por seu turno, obtêm retornos extremamente elevados em função do prémio de risco característico de uma atividade ilegal. Esses grupos teriam, em teoria, incentivos para manter a discussão a respeito de políticas alternativas para lidar com as drogas bem afastada da agenda política.

Finalizando, a questão das drogas não é uma questão nacional, mas global e deve implicar políticas globais. A sociedade mundial arca há muito com os custos sociais de uma política cujos resultados provam ser totalmente obliterados. Enquanto os estabelecimentos prisionais pelo mundo afora transbordam de viciados pobres e pequenos traficantes, o preço das drogas declina, a oferta e o consumo aumentam e o orçamento para combater o tráfico de modo truculento multiplica-se a expensas do contribuinte. Procurar alternativas com menor custo para os cidadãos deveria ser um objetivo de qualquer governo.

 

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Recebido a 29-03-2011. Aceite para publicação a 28-02-2012.

 

Notas

1 SUS – Sistema Único de Saúde.

2 SENAD – Secretaria Nacional Anti-Drogas.

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