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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.204 Lisboa jul. 2012

 

O intelectual de retaguarda

Entrevista a Boaventura Sousa Santos por Helena Mateus Jerónimo* e José Neves**

*CES, Universidade de Coimbra. E-mail: bsantos@ces.uc.pt

**ISEG, Universidade Técnica de Lisboa. E-mail: jeronimo@iseg.utl.pt

***FCSH, Universidade Nova de Lisboa. E-mail: jneves@fcsh.unl.pt

 

Boaventura Sousa Santos (1940, Coimbra) é uma figura destacada das ciências sociais, e a sua obra tem sido publicada e discutida em diferentes países. Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Distinguished Legal Scholar da Faculdade de Direito da Universidade de Wisconsin-Madison e Global Legal Scholar da Universidade de Warwick, foi o fundador do Centro de Estudos Sociais (CES), do qual é diretor, e dos estudos de sociologia na Universidade de Coimbra. O seu trabalho e pensamento incidem sobre alguns dos principais tópicos e problemas do mundo contemporâneo, da justiça e do direito às desigualdades, da epistemologia à teoria pós-colonial, da globalização aos movimentos sociais. Na sua pesquisa, tem atendido a diferentes realidades geográficas, da Bolívia à Índia, passando pelo Brasil, Moçambique e Portugal. Nesta entrevista, assume-se como “um facilitador e não propriamente um guia”, recusando o estatuto de “teórico de vanguarda”, até porque, nas suas palavras, o que “precisamos é de uma teoria geral sobre a impossibilidade de uma teoria geral”. Apresenta-se, então, como “um intelectual de retaguarda”, com uma “narratividade mestiça”, não abdicando do projeto de uma sociologia crítica, de que fazem parte os conceitos de epistemologias do sul, ecologia dos saberes, conceitos estes que tem vindo a inscrever no mapa da teoria sociológica. 

Eis a conversa que tivemos em abril de 2012, numa breve passagem por Lisboa, onde também falámos sobre o estado das ciências sociais e da sociologia em Portugal.

 

HELENA JERÓNIMO Pensámos começar de forma um pouco provocatória, recorrendo precisamente a uma expressão sua… Recentemente autocaracterizou-se como um otimista trágico, que procura ser um rebelde competente. Seria possível interpretar essa sua caracterização como reveladora de que é um otimista trágico como sociólogo e um rebelde competente como político?

BOAVENTURA SOUSA SANTOS Não penso que haja uma disjunção total entre as duas caracterizações. Entre a razão e a vontade há mais pontes do que as que podemos imaginar. A minha identidade como cientista social, como ­sociólogo, assenta em dois pilares. Por um lado, a consciência informada dos problemas que afligem as sociedades contemporâneas (e a nossa em particular) e da dificuldade em pensá-los e resolvê-los para além dos limites impostos pelo pensamento único, cuja hegemonia é hoje mais asfixiante do que nunca. O caráter informado desta consciência reside no exercício de uma sociologia crítica, analiticamente consistente. Por outro lado, a crença igualmente informada de que há, pelo menos potencialmente, alternativas, já que as sociedades não podem prescindir da capacidade de pensar em alternativas. Isto é particularmente válido nas sociedades capitalistas onde a desigualdade social, a injustiça e a discriminação colidem com os valores da igualdade, liberdade e fraternidade que informam a modernidade ocidental, e não podem, por isso, deixar de suscitar resistências. O caráter informado desta crença decorre da leitura da história e do meu trabalho de investigação-ação com os movimentos sociais. Mas não nego que é uma crença. O grande filósofo espanhol Ortega y Gasset dizia que na ciência há algo de crença e que era mais prudente reconhecê-lo do que desconhecê-lo. O meu otimismo trágico resulta pois desta dupla ideia de que são enormes as dificuldades em imaginar e mais ainda em construir uma sociedade mais justa e equilibrada, não só nas relações entre humanos, mas também nas relações entre estes e a natureza, e de que, por outro lado, essas dificuldades não são tão inelutáveis que eliminem de todo a possibilidade das alternativas.

Quanto à rebeldia competente, acho que tem igualmente duas dimensões. A primeira é que, com a crescente mercantilização da educação ­universitária e a consequente obsessão com a eficiência e as necessidades do mercado, as nossas universidades, estão hoje, mais do que nunca, a formar conformistas. E conformistas incompetentes, pois que os estudantes, quando formados, encontram uma sociedade que em vez de os acolher, os rejeita, porque afinal o mercado já lá não está ou nunca lá esteve. Os indignados e a geração à rasca são a prova disto mesmo. A segunda ideia é que a alternativa é a formação de rebeldes competentes. Rebeldes, porque a sociedade tal qual está exige inconformismo e vontade de lutar por uma sociedade melhor. Mas rebeldes competentes, porque ao longo do século XX ficou claro que os rebeldes foram ainda mais incompetentes que os conformistas. E aqui há obviamente uma crítica às tradições eurocêntricas, tanto da teoria crítica, como da esquerda. Daí também o falar de rebeldia em vez de revolução. As lições do século XX, não sendo inequívocas, são bastante preocupantes. Por um lado, a revolução revelou um impulso incontrolável para se institucionalizar. Nas revoluções modernas, as primeiras medidas dos revolucionários visaram quase sempre impedir que houvesse mais revoluções. Foi tão fácil transformar antigos inimigos em ­amigos quanto antigos amigos em inimigos. Com isso fecharam-se muitas portas de ­transformação social progressista. A rebeldia preocupa-se em ­manter as portas abertas. Por outro lado, a revolução visou construir uma sociedade totalmente distinta daquela em que nós vivemos, os amanhãs que cantam, e os resultados são conhecidos. O rebelde dos nossos dias sabe que a esmagadora maioria da população do mundo tem carências que não lhe permite esperar por futuros longínquos. Muitos deles e delas estão vivos hoje mas não sabem se estarão amanhã, têm comida hoje mas não sabem se terão amanhã, estão sãos hoje mas podem morrer amanhã de uma doença curável, estão hoje nas suas terras mas podem amanhã ser expulsos por uma empresa mineira. Nestas condições, as mudanças urgentes não parecem menos importantes que as mudanças civilizacionais. Daí a necessidade de abandonar a ideia de uma sociedade totalmente distinta e lutar aqui e agora por uma sociedade com mais dignidade, com mais justiça, com mais solidariedade, não só com os outros, como com a própria natureza. Não Alternativa, mas sim alternativas. As possibilidades não serão radicais, mas há que radicalizar as que realmente existem. O rebelde competente é um rebelde autorreflexivo que procura aprender com os erros do passado, submetendo-os a um escrutínio rigoroso sem as fachadas autoritárias da autocrítica nem o masoquismo rendido da má consciência.

 

HJ Continuando nesta linha provocatória… Entre o cientista e o político, se lembrássemos Max Weber, não faltam vozes nas ciências sociais em Portugal que pensam que o Boaventura sociólogo é frequentemente subsumido pelo ­Boaventura político. Quer comentar?

BSS Salvo o devido respeito, esses comentários provêm, no melhor dos casos, de uma crença serôdia no positivismo, quase sempre disfarçando uma viragem nas convicções política da esquerda para a direita, o que tem sido frequente entre os cientistas sociais em Portugal. E revela também uma grande ignorância dos debates epistemológicos contemporâneos, sobretudo das epistemologias feministas e pós-coloniais. A questão central que neste domínio se coloca, tanto hoje como ao tempo de Weber, como aliás desde o seculo XVII, é a questão da relação entre objetividade e neutralidade. Esta relação atormentou Weber como atormenta quem quer que não pense que a sociedade é um espetáculo feito sem a nossa participação e que nós, cientistas sociais, somos apenas um espetador, quando muito, um espetador curioso. A objetividade nas ciências sociais significa o controlo da subjetividade, como aliás Weber salientou, dado o ponto de partida do valor e do sentido em cada objeto de estudos nas nossas áreas. Alguém pode defender de boa-fé que o conceito de “desencantamento”, que é central em Weber, não tem um componente de normatividade? O controlo da subjetividade dá-se pela observância competente e de boa-fé das metodologias que as ciências sociais têm vindo a construir. Isto sem nunca prescindir de contribuir para a criação de novas metodologias que não só aproveitem ao máximo os recursos tecnológicos de que hoje dispomos mas também se adeqúem às novas exigências que a sociedade nos põe e que na minha opinião vão no sentido de criar mais aproximação consciente do que distância inconsciente dos seus limites. É por esta razão que tenho vindo a insistir em metodologias mais participativas.

A questão da neutralidade é outra. É a questão de saber de que lado estamos. A objetividade não nos dispensa de responder a esta questão. Pelo contrário, exige que lhe demos particular atenção, dado o valor social do conhecimento de que dispomos. As sociedades estão atravessadas pelo sofrimento injusto causado por desigualdades, discriminações, exclusões que decorrem da distribuição muito desigual do poder económico, social e político. Quer queiramos ou não, ao realizar os nossos trabalhos não nos podemos furtar a responder à questão de que lado estamos, do lado dos opressores ou do lado dos oprimidos. Se nos recusarmos a enfrentar esta questão ou se negarmos admitir que ela existe, corremos o risco de optar ingenuamente pelo lado dos opressores, dado o domínio que eles têm sobre a opinião pública e o senso comum. A objetividade é assim muito distinta da neutralidade. A objetividade visa atingir o que Kierkegaard exigia de todos os seres humanos: sermos mais objetivos para connosco próprios e mais subjetivos para com os outros. É precisamente por isto que a objetividade se distingue da neutralidade. Os cientistas sociais devem ser objetivos mas não podem ser neutros, e os menos neutros são aqueles que de boa ou má fé se consideram ou dizem neutros. Estou muito consciente de que é mais fácil afirmar esta distinção do que praticá-la. É preciso ter muita vigilância epistemológica e eu nem sempre estou seguro de a exercer plenamente. Reconhecer isto é mais honesto do que pretender que ela não é necessária porque as nossas metodologias nos põem a salvo de qualquer interferência de valores.

A ilusão da neutralidade decorre da especificidade do conhecimento científico em relação ao saber prático que emerge de todas as práticas sociais. Só o nosso conhecimento se assume como uma prática à parte, separada de outras práticas em que todos intervimos. As universidades foram as instituições que na modernidade selaram essa separação. Isto permitiu um extraordinário avanço no conhecimento mas, simultaneamente, criou a ilusão da autonomia, e dela foi um passo até à suposta neutralidade. Uma das características da modernidade ocidental que mais me intriga e fascina é o ter permitido, até agora pelo menos, que ideias revolucionárias sejam desenvolvidas e até defendidas dentro de instituições reacionárias. O outro lado da moeda é a perda do poder radical das ideias.

 

HJ O que é que vai diferindo na sua escrita de acordo com as várias condições que vai assumindo? Ou seja, a escrita como ensaísta no livro Portugal: Ensaio Contra a Auto-flagelação; ou a escrita como sociólogo que produz saberes para o Estado, ou até saberes de Estado em relatórios como os do Observatório da Justiça e outros do género; a escrita como sociólogo que produz saberes militantes com a coleção das “Utopias Possíveis” da Gulbenkian, por exemplo, ou o livro do Fórum Social Mundial; ou ainda a escrita do sociólogo que produz saberes para e de Estados militantes, com os seus trabalhos na Bolívia e no Equador… Acha que existem diferenças e continuidades no trabalho sociológico nestas várias condições que vai assumindo?

BSS Há continuidades e diferenças. As continuidades decorrem do facto de eu, como disse, querer ser objetivo sem pretender ser neutro. Para me referir ao trabalho do Observatório da Justiça o respeito que as nossa análises granjea­ram em setores da sociedade muito distintos decorre da objetividade que procuramos ter; mas não somos de modo nenhum neutros. Estamos do lado daqueles que querem construir uma justiça mais democrática, mais eficiente, mais acessível, em suma, mais justa.

As diferenças estão mais relacionadas com estilos e públicos. Eu acho que uma das características mais interessantes da escrita e da narratividade das ciências sociais no princípio do século XXI é ela ser em grande parte o resultado da crise dos dois grandes paradigmas de narratividade, que eram também teóricos e analíticos, que coexistiram nas ciências sociais durante o seculo XX. Refiro-me ao estrutural-funcionalismo e ao marxismo. Cada um destes grandes corpus teóricos criou um estilo e um cânone narrativo próprios. Nos anos 1960 e 1970, quando tive o meu treino inicial, costumávamos dizer que para sabermos de que paradigma ou corrente partia qualquer artigo de sociologia bastava ler a primeira página, porque isso se tonava claro através dos conceitos que usava. Se partia do paradigma estrutural-funcionalista falava de desenvolvimento, modernização e grupos sociais. Se partia do marxismo falava de capitalismo, dependência e classes sociais. Hoje não é assim porque entretanto houve a fragmentação celebrada por um certo tipo de pós-modernismo, a viragem cultural dos anos 1980, os estudos feministas e os estudos pós-coloniais, etc. Tudo isto criou uma enorme diversidade nos cânones narrativos que se abriram mais e, com isto, a escrita sociológica tornou-se mais diversa e, no meu entender, mais interessante.

Por outro lado, os públicos foram-se diversificando e contribuíram para emergência de novos estilos de escrita. Para dar um exemplo de casa, a minha escrita era considerada uma escrita bastante esotérica e difícil, dizem-me. Mas também me dizem que, a partir de Pela Mão de Alice, eu passei a abrir um pouco mais a minha escrita. Para além disso, nem todos os textos têm o mesmo caráter e visam atingir o mesmo público. Por exemplo, em Toward a New Common Sense, Gramática do Tempo ou Crítica da Razão Indolente eu dirijo-me fundamentalmente a um público académico. Enquanto no Ensaio Contra a Auto-flagelação ou no Fórum Social Mundial me dirijo ao público em geral, ou, pelo menos, aos cidadãos inconformados com o pensamento único e interessados em alternativas. Sem sacrificar os conceitos, é possível, no entanto, formulá-los de diferentes maneiras e com intencionalidades mais ou menos veementes.

No meu caso, todavia, as coisas são ainda um pouco mais complexas porque na última década tenho vindo a elaborar uma proposta epistemológica que designo por “epistemologias do sul”. As epistemologias do sul são uma tentativa de confrontar o conhecimento hegemónico, científico, com conhecimentos não científicos, produzidos nas práticas e nas lutas sociais, conhecimentos que têm em si um potencial contra-hegemónico, produzidos em grande parte no sul global e a partir de premissas culturais distintas das que subjazem à modernidade ocidental. Dessa proposta faz parte o conceito de “ecologia de saberes” através do qual mostro que, se os conhecimentos práticos, muitos deles construídos nas lutas sociais, e o conhecimento criado pelas ciências sociais entrarem em diálogo, é possível que ambos os tipos de conhecimentos se enriqueçam e, assim, robusteçam os projetos de transformação social. A ecologia dos saberes em si mesma obriga a uma narratividade mestiça. Obriga a algum hibridismo nas formas de narrar o próprio trabalho científico.

 

HJ Ainda nesse cruzamento entre ciência, narrativas de ciência e da política, como é que vê os casos clássicos do intelectual marxista, da figura sartriana ou, depois, os posicionamentos como os de Foucault, Said, Habermas… Ou, por último, Bourdieu, por exemplo…

JOSÉ NEVES E como é que se vê em relação, também, a estes autores?

BSS Todos aqueles que acabou de referir me influenciaram e foram as leituras assíduas na parte mais formativa da minha vida. Nos anos 1980 cheguei a lecionar todo um curso sobre Foucault na Universidade de Wisconsin-Madison. Mas a qualquer dos que mencionou fiz quase desde o início duas críticas. A primeira é que, como referi acima, as universidades, ao terem o monopólio do conhecimento válido, conferiram aos intelectuais universitários uma autoridade extraordinária. Daqui foi um passo para que os intelectuais críticos se transformassem em intelectuais-guia, intelectuais de vanguarda. E realmente os intelectuais estiveram muitas vezes nas vanguardas dos movimentos sociais. São eles que julgam saber mais, os que têm uma consciência mais lúcida, e os que dão lições aos movimentos. Eles são aqueles que guiam e, portanto, aprovam ou reprovam, são extremamente normativos. Eu nunca me senti bem nessa posição. Mesmo em Portugal, onde algumas das minhas análises podem parecer mais normativas, eu procuro sempre criar condições para pedagogias recíprocas. Portanto, a primeira crítica decorre de que me considero um intelectual de retaguarda, não sou um teórico de vanguarda. Tenho escrito muitas vezes que o papel do intelectual não é ir na vanguarda, é ir na retaguarda: é acompanhar os movimentos, ver onde é que estão as fragilidades; dar-lhes mais informação acerca daquilo que aconteceu noutros lugares com resultados bons ou com resultados maus; aquilo que os pode fortalecer; aquilo que os pode perverter. Caminhar com aqueles que caminham mais devagar, como diz o subcomandante Marcos. E, portanto, é um papel de retaguarda, de facilitador, e não propriamente de guia.

A segunda crítica que faço em relação aos autores que mencionou surgiu mais tarde quando comecei a elaborar as epistemologias do sul. Fui-me dando conta de que todos eles eram bons porque tinham elevado até ao máximo a cons­ciência possível da modernidade ocidental e das epistemologias do norte, mas não iam além dela e com isso desperdiçavam muita riqueza social, teórica e analítica vigente no mundo. As epistemologias do norte não sabem comunicar ao mundo as suas ideias a não ser de uma maneira universalizante. Ora estas ideias da teoria crítica eurocêntrica foram todas construídas em cinco países da Europa: Alemanha, Itália, França, Reino Unido e depois um pouco nos Estados Unidos, no final do século XIX, princípio do século XX. Hoje, as inovações sociais e políticas mais interessantes estão a ocorrer no sul global, em contextos muito distintos daqueles em que foram elaboradas as teorias críticas. Não admira que essas teorias não se lhes adeqúem e não dêem respostas às questões que levantam. No entanto, no norte global continua a ser mais fácil ignorar este facto. Fui-me convencendo de que todos esses autores foram extremamente provincianos na sua reivindicação de universalismo. Habermas, que eu respeito muito, é quem atinge o máximo de consciência possível da modernidade ocidental, mas não desiste de a transformar em receita universal. Quando ele diz que “não estou certo de que as minhas teorias sejam relevantes para os países do sul, noutros contextos”, está a dizer que “a minha teoria é universal, mas não vale para quatro quintos da humanidade”! E isto foi o que nós, europeus, fizemos, sobretudo desde o século XVI. Só que não nos demos conta disso. Sempre aceitámos que a nossa universalidade coincide com muito pouca gente no mundo (uma aceitação dramática em Adorno e Horkheimer) e obviamente a culpa não é nossa de que assim seja. Eu não aceito isso, e aí reside a vertente pós-colonial da minha teoria. As epistemologias do sul tentam criar procedimentos de conhecimento e de validação do conhecimento a partir das perspetivas daqueles que sofreram sistematicamente as injustiças do capitalismo, do colonialismo e do patriarcado. Portanto, é a partir deles que eu vou buscar, hoje, energias para reformular, revitalizar, as ciências sociais. Porque, trabalhando parte do ano nos Estados Unidos, posso dizer-vos que na área das ciências sociais são cada vez mais raras as ideias novas. As ideias novas que vão surgindo nos departamentos de sociologia vêm muitas vezes das experiências dos estudantes oriundos da América Latina, da África, e da Ásia, ideias que depois são aproveitadas e elaboradas até ao paroxismo da complexidade ou do detalhe. E todo o meu trabalho é procurar, utilizando esta situação semiperiférica e ambígua de Portugal, ser sociólogo da minha circunstância, abrir um pouco o cânone da sociologia. Com muitas incompreensões, naturalmente, dos colegas que pensam que estão no Primeiro Mundo, e que tudo aquilo que fazem é do Primeiro Mundo, mesmo que ninguém saiba deles, da sua existência, no Primeiro Mundo.

 

JN Pegando talvez nessa definição, que me parece muito sugestiva, do intelectual não já de vanguarda mas de retaguarda… Poder-se-ia dizer que na sua obra, até ao pela Pela Mão de Alice, há um percurso que o leva à crítica da centralidade do movimento operário, e depois há uma espécie de um segundo momento, já pós-queda da União Soviética, de abertura, também de projeção internacional, digamos assim, do seu trabalho, em que aí se trata cada vez mais de pensar a pluralidade dos sujeitos políticos, também já na sua escala global. Mais do que identificar um sujeito histórico, pensar as formas de subjetivação política… Não sei se esta leitura faz sentido… Parece-me, por exemplo, que no Pela Mão de Alice há ainda uma espécie de ajustar de contas com o percurso político do país desde o 25 de Abril; e que a partir daí, na fase global do seu trabalho, há já uma utilização desse legado do 25 de Abril como mais uma experiência que vai muito para além do cânone tradicional de revolução europeia, tal como o marxismo a havia pensado, no sentido em que não é estritamente obra de um movimento operário. Mas faz sentido esta reflexão da sua obra como uma obra sobretudo da subjetividade política?

BSS Faz todo o sentido. Acho que é uma excelente caracterização. Caracterizou muito bem tudo aquilo que eu tenho vindo a fazer, talvez a outra característica que me distingue de outros colegas que procuraram fazer essa ponte entre o trabalho científico e o trabalho político, assumindo essa diferença de uma maneira um pouco acrítica. Normalmente para o fazerem tiveram sempre necessidade de escolher um ator político e de se porem ao lado dele, e de, aliás, assumirem atitudes em relação a esse ator político que contrariava toda a sua subjetividade enquanto cientistas. Obediência partidária. Tem exemplos extraordinários, em Sartre, por exemplo; há o chocante exemplo de Merleau-Ponty a respeito dos julgamentos de Moscovo no tempo de Estaline; o próprio Foucault, num certo período. Quer dizer, situações em que as pessoas renunciam a tudo aquilo que são para poderem entrar numa outra subjetividade superior. É isto que eu não posso aceitar. Porque eu não poderia nunca estar em qualquer atividade de recorte político em que eu tivesse de abdicar do meu caráter de sociólogo crítico que procura realmente ir para além daquilo a que Bourdieu chamava as fachadas do senso comum. E, portanto, terei de manter sempre essa dimensão crítica, essa independência. A questão é sempre a de saber como se cria a agência política, a partir de que contradições na sociedade, uma questão dramática na sociedade portuguesa de hoje. Nós vínhamos de uma leitura, na teoria crítica eurocêntrica, para a qual a agência privilegiada era a classe operária. Entretanto, em 2001, surge o processo do Fórum Social Mundial que vem demonstrar a riqueza e diversidade extraordinárias dos movimentos sociais, algo que já conhecíamos desde os anos 1980 e 1990, mas que internacionalmente era pouco conhecido. No Fórum, o movimento operário nunca foi, obviamente, renegado – pelo contrário, teve o seu lugar – mas teve que conviver com muitos outros movimentos: movimento indígena, de camponeses, de mulheres, de gays, LGBT, de ecologistas, direitos humanos, etc. A maioria destas lutas não entrava dentro do cânone das lutas sociais importantes. Como sempre, tinham-se produzido teorias supostamente universais a partir da experiência europeia e nem sequer de toda a Europa. Por exemplo, teorizou-se muito a respeito da distinção entre novos e velhos movimentos sociais. Mas em Portugal os velhos e os novos movimentos surgiram praticamente ao mesmo tempo. E o mesmo se passou com as três gerações dos direitos de T.H. Marshall. Corresponde muito bem à Inglaterra, mas em Portugal as três gerações – direitos cívicos, políticos e económicos –, vieram todas no mesmo dia com a Revolução de abril. Os nossos estudantes doutorandos que, no caso do CES, são em vários programas maioritariamente brasileiros ou de outros países da América Latina, ajudam-nos a questionar toda a tradição teórica a partir das experiências que vivem nos seus países. Do movimento estudantil do final dos anos 1960 até ao Fórum Social Mundial, torna-se evidente que a subjetividade revolucionária, se existe, não é um património da classe operária. Com angústia isto tinha sido visto nos anos 1930 pela Escola de Frankfurt. Os revolucionários, ou como prefiro, os rebeldes, são potencialmente todos os inconformados. Mas, por outro lado, também não são a multitude espinosiana à la Toni Negri. São o resultado da articulação política entre diferentes movimentos e organizações sociais e políticas que à partida pouco mais comungam que a ideia de que vale a pena lutar por uma sociedade melhor. A grande arma das sociedades capitalistas foi dividir efetivamente o movimento operário e todos os movimentos sociais que foram surgindo. Quem se uniu globalmente foi o capital. Dividiram-se os trabalhadores de país para país e dentro do mesmo país; depois dividiram-se os diferentes movimentos: trabalhadores, dos ecologistas; os ecologistas, dos gays; os gays, das mulheres; as mulheres, dos povos indígenas, etc. Essa divisão tem sido realmente o grande desarme das forças críticas. Portanto, a minha busca tem sido, não só teorizando, mas também atuando na prática com os atores sociais no sentido de aprofundar o interconhecimento entre movimentos que torne possível a articulação política, e, a partir dele, novos agentes políticos. Por exemplo, no Fórum Social Mundial de 2003 propus a criação da Universidade Popular dos Movimentos Sociais. Desde então temos realizado muitas oficinas, como lhe chamamos, em que durante dois dias intelectuais-ativistas e dirigentes de diferentes movimentos sociais se juntam para discutir os preconceitos que têm uns a respeito dos outros e o valor relativo das sua lutas. Serão os povos indígenas mais machistas que outros grupos sociais, como pensam muitas feministas? Será a luta operária mais importante que a luta LGBT como pensam muitos sindicatos? Etc. Este esforço de discussão não visa a compreensão pela compreensão. Visa aumentar a eficácia política das lutas sociais. Para que amanhã, se houver uma marcha ou um protesto, seja mais fácil juntar diferentes movimentos ou mesmo partidos. Como não há um comando central, só o interconhecimento pode facilitar a articulação. Naturalmente, não é um trabalho fácil, como pode imaginar.

 

JN Poderíamos fazer um paralelismo, até por coincidência no tempo, com o percurso dos estudos do subalterno, os subaltern studies, no sentido em que aí também parece existir uma crítica dos processos de identificação, a partir de uma tradição de crítica ao colonialismo, mas que depois também se transforma numa crítica aos próprios processos de identificação dos Estados independentistas. Estas críticas, porém, chegaram por vezes a um ponto que pergunto se subscreveria; e que é, de algum modo, o ponto em que se coloca a própria questão da impossibilidade de falarmos em nome do subalterno, para utilizar a forma canónica de uma das autoras…

BSS Os subaltern studies foram fundamentais na minha construção teórica e isso vê-se na passagem de Pela Mão de Alice para Toward a New Common Sense, que é o livro, em meu entender, fundador de muito daquilo que depois vai surgir. E é aí que eu começo com as epistemologias do sul, embora só as venha a teorizar dez anos mais tarde. Aprender que há o sul, ir para o sul e aprender com o sul, ocupa todo o último capítulo do livro. Os subaltern studies foram importantes precisamente por serem a perspetiva que vinha deslegitimar a historiografia colonial e colonizada e construir toda uma outra a partir das experiências dos povos colonizados. A sua pergunta levanta dois problemas. O primeiro é o da eventual incomensurabilidade das experiências sociais ou históricas e dos saberes que as constituem. É um problema sério; foi ­tendo-o em vista que eu elaborei o conceito de ecologia de saberes. Sem tradução intercultural entre conhecimentos não será possível ultrapassar a ­incomensurabilidade. Por ­exemplo, que relação existe entre uma política de esquerda, que ­continua a apontar para o socialismo, e a ideia de “Sumak kawsay” defendida pelos povos indígenas latino-americanos, (Sumak kawsay é a palavra quéchua para bem viver, “buen vivir”, em espanhol)? Se as diferenças forem incomensuráveis caímos facilmente no relativismo, o que, em meu entender, é impensável do ponto de vista de uma sociologia crítica. Sem um critério de transformação social e de emancipação, de luta por uma sociedade melhor, não há teoria crítica. Portanto, nós temos que ser abertos a essa multiplicidade sem entrar no relativismo. Isto leva à segunda questão. Se há incomensurabilidade, não é possível falar em nome do subalterno. Mas falar em nome do subalterno só faz sentido se for para o ouvir e para a partir daí ampliar a conversa do mundo. Para dar exemplos da minha experiência: se participo num seminário de capacitação para dirigentes de diferentes movimentos sociais (indígenas, camponeses, mulheres) e me convidam a falar sobre a globalização ou o neoliberalismo, eu tenho de estar consciente de duas condições: primeiro, o meu conhecimento não tem o monopólio da verdade e, portanto, os presentes procurarão educar-me tanto quanto eu os educo a eles, e por isso as aprendizagens serão recíprocas; segundo, tenho de usar uma linguagem que eles entendam. Qualquer destas condições exige enorme vigilância. Eu lembro-me de uma discussão em El Alto, a 4000 metros de altura, por cima de La Paz, em que estamos numa reunião de mulheres, todas elas líderes indígenas; ao fim de uma hora praticamente elas estão todas a criticar-se umas às outras: “porque tu és neoliberal”, “porque tu participaste no governo local”, “porque tu fizeste isto”, “tu recebeste dinheiro, és uma neoliberal…”. Até que uma líder indígena, uma mulher aliás notável da organização de mulheres, as Bartolinas Sisas, vira-se para mim e diz: “Oh professor Boaventura, o que é o neoliberalismo?” ­Estavam há uma hora a discutir. Procurei explicar, e era claro que as práticas das mulheres em disputa tinham pouco ou nada a ver com o neoliberalismo. “Tu és neoliberal” era uma forma de se insultarem, qualquer coisa semelhante ao insulto, entre nós, “tu és comunista”, antes do 25 de Abril, ou “tu és fascista” depois do 25 de Abril. Era a mesma coisa, não tinha nenhum outro conteúdo semântico. Levantou-se um debate e eu ouvi mais do que falei. Não falei em nome do subalterno, participei solidariamente de um processo que ajudou a ampliar as falas dos subalternos entre si. O subalterno fala, só que nós não os ouvimos porque não os entendemos nem partilhamos os lugares onde eles se sentem à vontade para falar. Talvez hoje o subalterno fale de forma cada vez mais audível. A gente observa o movimento dos Indignados, da primavera Árabe, dos camponeses e indígenas, da Índia, de vários países africanos e latino-americanos. A África do Sul foi o país com mais movimentos sociais, com mais protestos sociais o ano passado (2011). Agora, sabemos disso? A nossa televisão e os nossos jornais dão notícias?  […]

 

JN Continuando ainda nestas questões relativas à subjetividade política… Também tenho a impressão de que passou a haver na sua obra uma maior sensibilidade à questão nacional. Não é que antes não existisse, mas antes existiria, talvez, uma crítica da questão nacional enquanto fator de clivagem entre os movimentos sociais e, portanto, uma certa fidelidade, em última instância, a uma certa ideia de internacionalismo… Nos últimos anos parece haver uma maior sensibilidade às questões nacionais, que se traduz, por exemplo, na atenção à questão das diversidades nacionais subjacentes aos diferentes sítios onde tem trabalhado.

E isto tem levado, por exemplo, a que o termo “povo” ou “popular” pareça regressar um pouco mais aos seus trabalhos do que, se calhar, acontecia no Pela Mão de Alice.

BSS A sua pergunta obriga-me a rever o meu trajeto. Portugal foi sempre, para mim, um laboratório interessante e uma experiência de trabalho como sociólogo e como cidadão. Posso distinguir três impulsos ou momentos nessa experiência. O primeiro foi reconstruir o conceito de semiperiferia, que fora proposto pela teoria do sistema mundial de Immanuel Wallerstein, de modo a adequá-lo às realidades da semiperiferia europeia. Isso obrigou a um trabalho teórico e analítico que não estava de maneira nenhuma presente na teoria de Wallerstein. O resultado desse trabalho foi Portugal: Um Retrato Singular, em que apresentámos as antinomias decorrentes e uma teoria geral que não se aplicava bem a Portugal. A partir da minha formação nos EUA tornou-se claro para mim que Portugal estava no contrapé de todas as teorias. As teorias sociológicas tinha em mente ou as realidades do primeiro mundo, ou as realidades do terceiro mundo. Adequavam-se bem tanto ao Brasil, onde fiz o trabalho de campo para o meu doutoramento (nas favelas do Rio), como aos EUA. Mas não a ­Portugal. O segundo momento desse trabalho de compreensão da intrigante sociedade portuguesa resultou da necessidade de, já num registo mais cultural e de arquétipos culturais da nossa sociedade, tentar fazer uma intervenção sobre as conceções, mais psicanalíticas, que estavam a dominar sobre a identidade portuguesa, e de que o meu querido amigo Eduardo Lourenço é o mais brilhante representante. Nas teses sobre a sociedade portuguesa, em Pela Mão de Alice, procuro iniciar a crítica a essa leitura, tentando mostrar que, no fundo, foram as condições sociológicas e a longa duração do império colonial que tinham criado a especificidade da cultura portuguesa. Uma delas era cultura de vai-e-vem, como eu dizia, uma cultura em que domina a forma sobre o ­conteúdo, e que por isso tem muitas dificuldades em se auto-identificar. Um terceiro momento surge com os estudos pós-coloniais. Tinha trabalhado em contextos pós-coloniais nos anos 1970 no Brasil, nos anos 1980 em Cabo Verde e na Colômbia, e nos anos 1990 em Moçambique e finalmente na década passada em Angola. Mas foi nos anos 1990 que os estudos propriamente pós-coloniais explodiram. Mais uma vez, passando parte do tempo nos EUA, dei-me conta de que, tal e qual como a teoria da semiperiferia, as teorias pós-coloniais aí vigentes não se adequavam às condições histórica e sociológicas de Portugal. Por duas razões principais: primeiro, as teorias eram produzidas por intelectuais diaspóricos que partiam, fundamentalmente, do colonialismo britânico; segundo, esses teóricos vinham dos estudos culturais, enquanto eu vinha da sociologia, ainda por cima de uma tradição marxista. Como é que eu poderia introduzir a economia política nos estudos do pós-colonialismo? Desta dupla referência, sai o meu primeiro texto, “Entre Próspero e Caliban”, que é, segundo me dizem, o mais citado desde sempre da Luso-Brazilian Review. Nesse texto procuro captar a complexidade dos processos identitários em ­Portugal, e afinal também nos países que resultaram do colonialismo português. Visava mostrar que o pós-colonialismo de raiz inglesa, do colonialismo inglês, não se aplicava de maneira nenhuma ao colonialismo ibérico, sem no entanto cair na leitura açucarada de Gilberto Freyre, cuja crítica fiz e faço. Mas há uma especificidade e ela deve ser analisada em termos que a não desfigurem. Publiquei depois outros textos, alguns não disponíveis em português, por exemplo, em Portuguese Literary and Cultural Studies, da Universidade de Massachusetts em Dartmouth, Tales of Being and not Being, que é realmente uma nova elaboração de todo esse paradigma. Este artigo será incluído na nona edição da Pela Mão de Alice, atualmente esgotado. Um outro momento surge com a profunda crise social, económica financeira e política que atravessamos. Aí aparece a inserção insidiosa, como diz, das palavras “povo” e “popular”. Se vir bem, eu não falo do povo, eu falo de classes populares. Foi sempre o meu modo de falar das classes menos capazes de promoção e mais vulneráveis à despromoção nas sociedades capitalistas. Não abdico, pois, do conceito de classe. Mas é verdade que os debates sobre o populismo e o neopopulismo (tanto na Europa e EUA como na América Latina) trazem de novo o conceito de povo e também o de nacionalismo. O populismo é uma forma política que decorre da perda das ideologias e da fragilidade da institucionalidade política em contextos de grande crise. Historicamente, envolveu o desmembramento da classe política através de uma relação direta entre os cidadãos e um líder carismático. À luz destes critérios não há condições para o populismo em Portugal. Entre ­muitas outras coisas que faltam aos nossos políticos, falta-lhes carisma. Mesmo assim, o uso da palavra povo é problemático. Se o povo é toda a gente, qual é o seu valor analítico? No sentido mais inerte do conceito, todos os cidadãos (e talvez muitos estrangeiros que já vivem aqui há muito tempo) são o “povo português”. Mas se não é toda a gente, quem é e quem não é? O povo é hoje usado sobretudo para designar o que chamo de classes populares ou o que no Brasil em jargão urbano se designa por povão. Tem também a conotação da identificação com a cultura do país e do valor da lealdade e da soberania. À luz deste conceito, não são parte do “povo” pessoas que têm passaporte português mas nada mais os vincula a Portugal senão aquilo que lhes é ditado pelos seus patrões internacionais. O ministro das Finanças, Vítor Gaspar, tem o passaporte português, mas não tem mais do que isso. Realmente, ele está ao serviço do capital financeiro alemão em cujos bancos se educou. Não se trata de se lhe chamar traidor. Trata-se apenas de pensar que se ele estivesse na Bielorrússia executaria as mesmas políticas como se o país fosse apenas paisagem. E o mesmo se pode dizer de António Borges, que se tiver oportunidade e poder causará graves danos ao país. Entre ele, Mario Draghi, Mario Monti ou Lucas Papademus não há grandes diferenças. Têm passaportes diferentes mas a sua lealdade última, o seu verdadeiro país, é a companhia majestática-colonial Goldman Sachs a que todos pertenceram ou pertencem.

 

JN Mas acha que já não é assim tão importante continuar a fazer esse esforço que, por exemplo, no Portugal: Retrato Singular, é feito de algum modo?… De facto, tem esse diálogo implícito e explícito com o impacto que a obra do Eduardo ­Lourenço havia tido antes. Pergunto isto porque às vezes pode criar-se a sensação, enquanto leitor, de que há uma espécie de clube de pensadores sobre a portugalidade, digamos assim, entre os quais se destacariam evidentemente Eduardo Lourenço, Boaventura Sousa Santos, José Gil, isto apesar das diferenças entre o seu tipo de contributo e o contributo de Eduardo Lourenço, e o contributo de José Gil, também eles diferentes entre si, parece-me. Há uma frase sua no Pela Mão de Alice que eu me lembro de ter lido, e de que não me esqueci, quando diz que o problema das interrogações que visam uma falta de identidade é que, às vezes, o défice da pergunta se converte em excesso de resposta identitária. Há muitas questões que se continuam a colocar sobre a portugalidade, no atual contexto de crise, por exemplo, que parecem acusar esse excesso de resposta….

BSS Há, acho que tem razão. Veja, o sub-título do meu recente texto sobre ­Portugal é Ensaio contra a Autoflagelação. É um título contra quem? Contra o pessimismo mortificante que por vezes encontramos em Eduardo Lourenço e José Gil, apesar das diferenças entre eles. Todas estas leituras, sendo leituras de base psicanalítica, têm também um fundo, em meu entender, religioso porque há qualquer coisa de pecado original na origem da nacionalidade portuguesa que nunca foi resolvida. Eu, como sociólogo, sou completamente insensível a esse tipo de análise. Portanto, o que eu quero analisar são processos como estes: um país tão pequeno descobre, ou melhor, acha três continentes; constrói o império mais caótico que podemos imaginar, feito de vários impérios ao longo de uma larga duração histórica; em certo momento, a capital do império tem de ser transferida para a capital da colónia para o centro imperial não ­perder a independência; Goa, e não Lisboa, é quem governa todas as colónias de Oriente; Goa é a colónia de ocupação com a mais larga duração da história (1510-1961) e a única (junto com Macau) que não se tornou país independente depois de terminar o colonialismo português. E tudo isto, com exceção de Goa, dura até 1975. Em meu entender, há razões políticas, sociais, económicas e geoestratégicas que nos ajudam a entender este instigante puzzle, que aliás condiciona muito o nosso presente e é, por isso, matéria para sociólogos e outros cientistas sociais. Não há lugar à autoflagelação, de que um outro mestre brilhante é Vasco Pulido Valente, que muito admiro apesar de nunca concordar com ele. A narrativa auto-flageladora vem da Geração de 1870, em que tão profundamente bebeu Eduardo Lourenço. A Geração de 70, geração do declínio, “não se vê nenhuma saída e tudo está mal”. Em muito do Oliveira Martins isso é muito claro, e também no Antero de Quental. Na parte final do ensaio contra a autoflagelação procuro refutar José Gil quando ele diz que os portugueses não marcam, não deixam marca. Ora, por todo o lado onde vou, vejo marcas portuguesas nos mais remotos lugares e nos domínios mais familiares, da comida à língua. A palavra ­Portugal, e Lusitânia, em pequenas aldeias perdidas nas lonjuras de Potumayo, sul da ­Colômbia, termos portugueses em línguas tão distintas como o swahili ou os dialetos escondidos nas florestas das Guianas. E os exemplos são imensos. Agora, o fundamental para mim é procurar identificar os fatores sociais, políticos, culturais e geoeconómicos que tornam esta portugalidade tão enigmática. Isto também se reflete no facto de, depois da Revolução do 25 de Abril, e das independências das colónias, termos querido virar costas a todo o passado colonial. E esse foi o grande mal. Muitas vezes escrevi nessa altura “vamos fazer das fraquezas força, vamos fazer de Portugal um vai-e-vem entre a Europa e o resto do mundo, dados os muitos séculos de contactos que temos com mais partes do mundo que qualquer outro país europeu”. Mas a política dominante foi a da vergonha do colonialismo (que também foi, mas não foi só isso). Somos europeus e devemos cortar as nossas ligações com esse passado. Agora, perante a crise financeira, tornam-se mais claros os efeitos negativos dessa política. Mas são irreversíveis e por isso agora me parece descabida uma solução isolacionista ou soberanista. Pelo contrário, advogo uma solução federalista, de forte conteúdo democrático como alternativa à catástrofe que está a ser administrada em doses homeopáticas. O que está a passar-se em Portugal já o vimos na Grécia, país a que a Alemanha nunca pagou a indemnização pela ocupação nazi. Uma solução europeia, federalista, democrática que abra espaço para a auto-estima nacional pós-Vestefália. Vindo de mim, este apelo à auto-estima não deve ser interpretado como orgulho salazarista e isolacionista, porque é o contrário. Portugal é um dos países mais antigos da Europa e o facto de estar endividado não o torna menos digno, até porque parte dessa dívida é indigna. Outras alianças são possíveis na Europa para além do eixo Paris Berlim. Contra estas possibilidades estão os atuais detentores do poder apostado em aproveitar a crise e a boleia da Troika, para conseguir o que pelo voto nunca conseguiram: que Portugal volte ao 24 de abril.

 

JN Neste contexto da crise, e aproveitando também o facto de conhecer vários meios universitários, académicos, em diferentes contextos nacionais, sente alguma ­particularidade no caso português do ponto de vista da intervenção ou não intervenção dos académicos, dos universitários, dos investigadores, dos mais jovens, dos movimentos, na situação da crise? Ou que há um maior recolhimento… Sente que, desse ponto de vista, a universidade portuguesa, se quisermos ficarmo-nos pelas ciências sociais, tem uma maior timidez em tomar a palavra pública? Ou mantém-se mais, enfim, para utilizar uma expressão mais antiga, na sua “torre de marfim” do que noutros contextos políticos, do que noutros contextos nacionais?

HJ Há pouco dizia que formávamos conformistas…

BSS Eu acho que sim e, portanto, quem forma conformistas é conformista, não é?

 

JN Mas isso seria mais verdade num contexto como o português do que noutros?

BSS Eu penso que sim. É uma coisa muito estranha, muito interessante de analisar. Eu e outros colegas do ICS e de outras instituições estivemos na origem da institucionalização plena das ciências sociais em Portugal, inclusive da criação da Associação Portuguesa de Sociologia, de que sou o sócio número três. O que nos animava era a vontade de contribuir para a transformação da sociedade portuguesa, para a construção de uma sociedade democrática. De algum modo sentíamo-nos todos sociólogos públicos, como hoje diríamos. Considerávamos isto muito importante num país que passou 48 anos em ditadura, em que a sociologia era virtualmente proibida porque o ­ditador a considerava igual ao socialismo. Enquanto a sociologia florescia noutros países, nós tínhamos de rumar para o estrangeiro, enquanto no Gabinete de Investigações Sociais o doutor Sedas Nunes e os seus colaboradores faziam um trabalho notável e arriscado para garantir a dignidade, o respeito, a ­relevância dos estudos na nossa disciplina. Por isso, o nosso impulso era o de criar uma sociologia interventiva, porque a sociedade tinha muitas carências, estava num processo de acelerada e caótica transformação. Estranhamente, foi um período muito curto. Rapidamente assistimos a uma reversão completa desse impulso. Para isso contribuíram alguns “excessos revolucionários”. A tentativa de controlo partidário da universidade, nomeadamente por parte do PCP, criou alguns mecanismos de defesa. Vivi isso intensamente porque estive 12 anos à frente da direção e depois do Conselho Científico da Faculdade de Economia. Durante o breve período inicial era, em Coimbra, o único diretor de faculdade não comunista. O facto é que a defesa da independência universitária e da autonomia do trabalho deslizou rapidamente da reivindicação da objetividade para a reivindicação da neutralidade, quase sem que se notasse nas nossas interações. De alguma maneira, o caldo de cultura favorecia este deslize. Porquê? Porque era uma sociedade que, tendo estado sujeita ao imaginário salazarista durante tanto tempo, não tinha criado as condições para uma sociedade civil ativa; e os cientistas sociais não são heróis. Aliás a fraqueza da sociedade civil foi um dos temas iniciais da nossa investigação. Mas aqui fazíamos uma distinção muito importante, entre, por um lado, uma sociedade civil formalmente organizada, donde poderia surgir uma esfera pública habermasiana forte e uma sociedade política gramsciana e, por outro lado, a sociedade civil informal, da ajuda interfamiliar e intergeracional, da ajuda aos doentes e aos mais velhos, etc. Esta última sociedade civil era forte e ainda hoje tem algum força, como estamos a ver na gestão familiar da crise atual. Estava vinculada ao familismo rural analisado por João Ferreira de Almeida, José Madureira Pinto e depois Pedro Hespanha e Firmino da Costa, entre outros. Foi nessa base que desenvolvemos a ideia que, em meu entender, continua válida (e até talvez cada vez mais válida) de que tínhamos uma sociedade civil informal forte que colmatava as fraquezas do Estado providência português.

Mas a ideia sempre foi que o importante era construir um Estado providência forte apoiado por uma sociedade civil forte. E era igualmente importante fortalecer a sociedade civil habermasiana. Penso que nem um nem outro objetivo se realizou e a universidade é o espelho disso mesmo. Os nossos ­intelectuais participam pouco na vida coletiva, e menos ainda na colaboração ­solidária com os movimentos e organizações que lutam contra a injustiça social. O país cria separações estranhas. Para dar um exemplo pessoal e me confinar à Europa, neste momento recebo muitas solicitações para reuniões de trabalho da parte de alguns setores dos Indignados em Espanha, o 15M de Madrid, porque querem discutir temas concretos de alguns textos meus. Por exemplo, tinham lido um texto onde eu falava da rua como nova esfera pública, o único espaço público que ainda não foi colonizado pelo capital financeiro. As ­questões a discutir são como passar da rua para outros espaços onde se possa fazer formulação política, como criar formas não centralistas de organização, como definir os objetivos de luta. Muitas opções emergem: reivindicar uma assembleia constituinte? criar um novo partido? Criar um movimento de outro tipo? Preferir a intervenção a nível municipal? Entrar no jogo eleitoral? Os jovens estão perdidos e no seu seio há posições muito divergentes. A minha intervenção é a do intelectual de retaguarda, intervenho como facilitador: olhem, isto deu este resultado neste lugar ali; aquele resultado foi assim. Há outras opções? Será possível dedicar mais atenção à comunicação com outros movimentos noutros países fora e dentro da Europa? É um processo de educação recíproca que é mais difícil fazer em Portugal. Em Portugal tudo ocorre com atraso, com aquele com que chegou até nós o affair Sokal. Lembra-se? O Discurso sobre as Ciências foi publicado em 1987, está talvez na vigésima ou trigésima edição, em Portugal e no Brasil. Vinte anos mais tarde é que os positivistas o descobrem e o transformam num ataque à ciência no seu conjunto. Portugal é um bocadinho isso, é muito provinciano ainda e tem uma cultura pública democrática muito pequena – o insulto é sempre mais fácil.

 

JN Continuando nessa questão de como é que o meio académico, as ciências sociais em Portugal, se relacionam com o espaço do debate público, do debate político, da intervenção dos movimentos, da intervenção cidadã em geral. Às vezes também há a sensação de que isso se repercute no próprio trabalho que essa ciência social faz. Nós, quando preparávamos a entrevista, falávamos um pouco disso: sobre uma certa hostilidade que no meio das ciências sociais em Portugal existiria, não em relação ao seu trabalho, mas ao trabalho teórico em geral…

BSS Essa hostilidade é evidente a vai ao ponto de no ISCTE alguns professores militarem para que os meus livros estejam ausentes, segundo me dizem alguns estudantes dessa importante instituição, uma instituição para que tanto contribuí logo depois do 25 de Abril. É um misto de fatores desde a inveja, à doença infantil do positivismo, e à ignorância arrogante. Felizmente, o mundo é mais amplo que Portugal. O que eu tenho defendido é que, para quem realmente se mantém ativo no trabalho de investigação, quer a nível empírico, quer a nível teórico, é hoje mais que nunca claro que as grandes inovações vêm do trabalho empírico e da intervenção social. Para isso, é necessário que cada um deles, ainda que de modos diferentes, parta da distinção entre objetividade e neutralidade, e tomando em relação a cada uma a posição que defendi em resposta a uma sua pergunta anterior. E o trabalho empírico deve ser conduzido segundo hipóteses de trabalho abertas e inovadoras que permitam que a investigação nos surpreenda. Algumas das hipóteses de trabalho que eu levava comigo quando fui viver para as favelas do Rio da Janeiro mais do que serem confirmadas ou infirmadas, explodiram, ou seja, partiam de parâmetros que invisibilizavam o mais importante. Talvez o meu conhecimento do estado da arte fosse deficiente. Talvez o estado da arte, por mais bem conhecido por mim, fosse igualmente deficiente. Afinal, a esmagadora maioria da bibliografia era de autores que nunca tinham vivido numa favela, que nunca tinham imaginado que escrever “sobre” os favelados é algo muito distinto de escrever “com” eles. Claro que eu, apesar de ter vivido na favela, também escrevi a minha tese de doutoramento “sobre” e não “com”. Ao longo dos anos fui-me treinando e aos meus estudantes para escrever mais “com”. Vamo-nos dando conta de que as nossa técnicas de recolha de dados são, muitas vezes, um ato de expropriação que praticamos de boa consciência com base numa distinção acrítica entre conhecimento e informação. O que os nossos entrevistados nos dizem é muitas vezes um conhecimento próprio que devia ser tratado como tal no âmbito da ecologia dos saberes. Em vez disso é reduzido (desmembrado, descontextua­lizado) a matéria-prima para alimentar o nosso conhecimento voraz. Dessa ecologia de saberes sai também enriquecido o conhecimento científico. É por isso que a diversificação do trabalho empírico é fundamental para a diversificação do trabalho teórico. Este é algo muito mais criativo de que o suposto procedimento hipotético-dedutivo. Aliás, Chomsky tem mostrado que a relação entre a teoria e a prática é fractal. É evidente que para os positivistas, para quem a objetividade é igual à neutralidade, nada disto faz sentido. Apesar de muitos deles se reivindicarem de Bourdieu, certamente nunca leram bem Le métier du sociologue, onde se mostra que o trabalho empírico é teórico, porque a construção analítica é toda ela construída teoricamente. Ou seja, o empírico é uma coisa, o empiricismo é outra. Mas como são ignorantes, e pensam que a sociedade em si mesma é ignorante, passam esses grandes triunfalismos empiricistas como se fossem, digamos, o máximo da ciência. Qualquer dia, uma pequena análise do Eurobarómetro e dos estudos que andam por aí passam por ser o grande marco da sociologia. Quando isso ocorrer, não teremos necessidade de sociologia. Vamos ter uma outra coisa, que aliás está a surgir nos EUA e é motivo de preocupação para os sociólogos. Trata-se de um tipo novo de behavioural social sciences que pretende não ter nada que ver com sociologia e reivindica maior cientificidade por as suas explicações serem mais coladas aos processos cognitivos. Sem pôr em causa a seriedade de muitos investigadores que se dedicam a estes estudos, esta perspetiva tem sido utilizada para reduzir a complexidade analítica própria das melhores ciências sociais. A ideia subjacente é que as ciências sociais complicam a vida aos policy makers em vez de a facilitar. Usam-se muitos dos instrumentos da recolha de dados das ciências socias, mas recusa-se o conteúdo teórico-analítico que as ciências sociais constroem a partir dos dados. Sondagens, inquéritos em permanente processo de upgrade ao serviço de quem pagar os inquéritos e as sondagens, obviamente bastante dispendiosos. Aparentemente tudo é mais empírico, mais correto e mais exato. É esta a armadilha! Não interessa que estas análises close range estejam falsificadas seis meses depois. O importante é sua eficácia política e mediática no momento em que são apropriadas pelos meios de comunicação e pelos comentadores políticos.

 

HJ E o que é que acha da afirmação de que a sociologia é uma disciplina científica e moral? Ou para si seria preferível dizer-se que é científica e crítica?

BSS Acima de tudo, é científica e crítica. Ciências morais foi uma designação muito em voga no seculo XIX. O ser “crítica” significa que tem um elemento de normatividade, outra maneira de discutir a questão da neutralidade. Weber e todos os grandes autores analisaram esta questão com uma angústia extraordinária. No caso de Weber, ser sociólogo e fazer intervenção política foi um tema de toda a sua vida. Não há talvez outra maneira de corresponder à contemporaneidade do nosso tempo. Nos nossos dias é necessário contudo fazer algumas precisões. É crucial mostrar que a sociologia crítica não é mera crítica da ideologia; tem um forte conteúdo analítico-empírico. O que a distingue da sociologia convencional é não reduzir a realidade ao que existe. É partir do pressuposto de que, naquilo que existe, está contida a potencialidade do diferente, a possibilidade daquilo a que Ernst Bloch chama o “ainda não”: as tendências, as latências, as emergências. São elas, normalmente, os veículos a partir dos quais são legitimados grupos sociais que sofrem discriminações, injustiças, exclusões e lutam contra elas, em nome dessa esperança no ainda não. Há aqui uma normatividade, mas não existirá ela também naqueles que reduzem a realidade ao que está dado e consolidado num dado momento? Estamos no domínio de pressupostos meta-teóricos, por assim dizer ­ontológicos (perguntava Leibniz: porque é que existe o ser em vez do nada?). A sociologia crítica parte de um conceito mais amplo de realidade que escapa à sociologia positivista e só é captável por aquilo que no meu trabalho designo por sociologia das ausências. Veja como agora, em Portugal, parece não haver alternativa ao modo como é conduzida a vida política e económica. Quando se reduz a realidade ao que está dado, o poder político não precisa do consenso dos cidadãos, basta-lhe a resignação destes. Não se trata, pois, de uma normatividade de tipo moral. A moral implica a ideia de código e de sistema. A normatividade de que falo é a abertura da sociedade às potencialidades para ser diferente do que é e lutar pelas diferenças que a tornem melhor como forma de convivência. É, naturalmente, necessário distinguir entre as boas possibilidades e as más. Quando se luta por uma sociedade pós-capitalista, nunca se sabe efetivamente o que é que vem com o pós-capitalismo. Lutar para que seja uma coisa melhor, mas, se não lutarmos, provavelmente, pode ser uma coisa pior. Já Rosa Luxemburgo falava de “socialismo ou barbárie”. Hoje nem sequer estamos certos de que o futuro seja o socialismo. Estamos talvez mais certos de que pode ser a barbárie. Vamos construindo o caminho a caminhar, como diz o poeta.

 

HJ E qual é a sua opinião sobre o pluralismo paradigmático dentro das ciências sociais e da sociologia em particular? Diria que já não existe uma teoria ­unificadora da sociologia como, na senda dos americanos, foi a de Parsons, e que as últimas tentativas de construção de uma teoria unificadora teriam sido, por exemplo, a de Gurvitch ou mesmo a de Habermas ou de Bourdieu…

BSS Quando eu fui estudar sociologia nos Estados Unidos, em Yale, estávamos na ponta final da legitimidade de Parsons. Parsons estava a ser sujeito a uma crítica radical em todos os departamentos de sociologia. Estávamos no inicio da década de 1970, era a luta contra a guerra no Vietnam, a radicalização do movimento negro e do movimento estudantil. O estrutural-funcionalismo norte-americano começava a ser questionado, inclusivamente nos seus fundamentos e até na originalidade dos seus textos. Foi nessa altura que começou a problematizar-se a tradução que Parsons tinha feito de Max Weber, por exemplo, na tradução dos conceito de Macht e de Herrschaft. Falava-se de uma tradução muito americanizada dos diferentes conceitos de poder em Weber. Parsons estava a ser completamente posto de parte. Quanto às outras correntes que menciona, só Habermas apresenta uma teoria geral com duas fases (pré e pós a teoria da ação comunicativa). Habermas é o exemplar mais brilhante, sem dúvida, daquilo a que eu chamo uma “epistemologia do norte”. É aquele que leva mais longe as antinomias, as contradições, do pensamento do norte. É realmente uma tentativa de criar uma teoria geral. Muito mais importante e inclusiva do que a de Niklas Luhmann, que foi seu rival durante muito tempo, e esse sim ainda muito mais obcecado com a ideia da teoria única, neste caso a Teoria dos Sistemas. Habermas não, tem uma teoria bastante mais aberta, que ele vai aliás reconstruindo ao longo do tempo e revendo. Agora, é evidente que é uma teoria que assenta em todos os pressupostos que são válidos dentro do norte global, e que não são válidos fora daí. Por exemplo: não há nenhuma capacidade de Habermas para entender a interculturalidade. O argumento da ação comunicativa não é apenas que os cidadãos estejam desinteressadamente a discutir, é que eles falem uma linguagem em que se entendam. Ora hoje nem mesmo dentro da Europa todos os cidadãos falam a mesma língua ou entendem as outras línguas, ou usam os mesmos ritmos e códigos de fala e de silêncio. Esta limitação é válida para todas as conceções de universalismo, que é, afinal, um particularismo europeu. Aliás, a Escola de Frankfurt, donde vem Habermas, fala especificamente de universalismo europeu, o que é um oximoro. Quando Adorno e Horkheimer dizem que o universalismo é europeu, entram em contradição e, no entanto, nós nunca notámos essa contradição. Porque se é universal pode surgir em qualquer parte do mundo: não pode, não tem, de ser europeu. Gurvitch é um autor muito interessante porque, de diferentes perspetivas, procura criar uma teoria geral. Só que as perspetivas são tão diversas – desde os tempos, as escalas, as regiões, os climas etc. – que torna impossível imaginar como seria essa teoria geral. Ele é, digamos assim, um Fourier do nosso tempo, completamente fragmentado. Mas a sua sociologia tem um encanto extraordinário e para mim foi muito formativa. O caso de Bourdieu, é realmente uma tentativa séria de criar uma teoria sociológica forte, digamos assim, com uma strong objectivity, como diria depois Donna Haraway. Absorve muitos dos inputs críticos que tinham sido feitos à teoria sociológica (sobretudo nos EUA) e procura centralizá-los e organizá-los de modo a criar uma teoria geral. Paga, no entanto, um preço alto por isso, porque a teoria afinal é parcial e não lhe permite fundamentar adequadamente a intervenção política que no final da sua vida vai ter, para desgosto dos bourdieuianos. Lembro-me de alguns discípulos afirmarem que o Bourdieu político nada tinha a ver com o Bourdieu científico. O seu pessimismo teórico, tal como o de Foucault, tinha-o desarmado para o ativismo político. Libertou-se, o que revela o grande sociólogo que ele era. É de toda esta tradição que eu parto para defender o que designa por pluralismo pragmático. Entendo que hoje não temos nem precisamos de uma teoria geral. Do que nós precisamos, vindos da tradição de onde vimos, é de uma teoria geral sobre a impossibilidade de uma teoria geral. É disso que nós precisamos. Abrem-se, assim, muitas mais possibilidades teóricas e analíticas, o que é sobretudo importante para as gerações mais jovens de cientistas sociais. A minha proposta da ecologia dos saberes e da tradução intercultural visa ampliar ao máximo essas possibilidades. Mas visa também criar humildade analítica, pois torna-se-nos claro que a compreensão do mundo é bastante mais vasta que a compreensão ocidental do mundo. A um nível muito concreto tente, por exemplo, comparar os conteú­dos semânticos do conceito de povo indígena na América Latina na África e na Ásia. Esta complexidade é fascinante e faz com que hoje a teoria sociológica seja muito mais pluralista, mais democrática. A minha pena é que nós não usemos essa democracia para mais diálogo entre sociólogos, entre cientistas sociais. Pelo contrário, cada um se fecha na sua escola, cada um de nós no seu centro de investigação. Assim não é possível contribuir com o nosso pluralismo interno para o pluralismo geral da sociedade. Sem diálogo é fácil a ignorância e o preconceito e daí vai um passo até ao insulto como única alternativa ao silêncio.

 

HJ Continuando nessa diversidade, quer académica quer prática, mas focalizando um bocadinho mais o discurso: como é que vê a trajetória do marxismo e como é que vê os debates intermarxistas na sua relação com a sociologia? Pensa que se pode falar de uma crise da influência do marxismo nas ciências sociais?

BSS Bem, a presença do marxismo dentro da sociologia é um dado hoje adquirido, praticamente em todos os departamentos que eu conheço, com exceção daqueles que são ou confessionais ou muito conservadores. Marx aparece como um dos fundadores e inspirador de uma das correntes da sociologia. Também se faz uma distinção muito grande entre o marxismo como teoria e tudo o que dele foi feito enquanto doutrina política ao serviço dos Estados. Sobre a crise do marxismo, ou a crise do seu papel dentro da sociologia: primeiro, ela existiu desde o início, está implícita logo na Escola de Frankfurt. Depois temos de ter em mente que todas as correntes que foram apresentadas como totalmente distintas do marxismo foram, de facto, construídas em diálogo com o marxismo. Max Weber é todo ele diálogo com Marx; Durkheim é um diálogo com Marx. Em Parsons já não temos essa tensão com o adversário, é a afirmação triunfalista de uma outra conceção, que deixou a outra por ser irrelevante, não tem aquela angústia da diferença que está presente, obviamente, quer em Max Weber, quer no próprio Durkheim. Portanto Marx é mais constitutivo das ciências socias do século XX do que usualmente se imagina. O marxismo entra em crise em diferentes momentos por diferentes razões: a primeira crise é logo depois de Lukács. Lukács é o único, o último autor, digamos, que tem uma confiança extraordinária (teórica, política, epistemológica) no marxismo como ciência da transformação social. Com Adorno e com Horkheimer, a utopia já é um desespero, pois estão a assistir à “traição” da classe operária. A segunda crise do marxismo dá-se quando estamos a chegar aos anos 1980, anuncia-se a débâcle do sistema soviético, a crise do marxismo ocidental, o declínio da social-democracia, tudo isso contribui para que a certa altura, no espaço de poucos anos (entre 1978 e 1981) se publiquem três importantes ajustes de contas com o marxismo, por Habermas, Anthony Giddens e Stanley Aronowitz. Analiso essas críticas em detalhe em Pela Mão de Alice. Aliás o capítulo em que trato deste tema (“Tudo o que é sólido se desfaz no ar”) é também uma análise dos limites do marxismo. Fundamentalmente, a ideia que defendo é que o marxismo continua a ser muito útil para analisar as sociedades capitalistas, mas deixou de ser muito útil para definir a sociedade futura. A terceira crise do marxismo, e talvez a mais profunda até agora, ocorre com o Fórum Social Mundial. Torna-se então evidente a diversidade dos movimentos sociais que lutam por uma sociedade melhor. Muitos deles não têm nenhuma referência do marxismo, não usam os seus conceitos, até lhe serão hostis quando os conhecem. Este processo tem duas virtudes notáveis: a primeira é aprofundar a crítica ecológica do marxismo. O’Connor tinha feito uma crítica importante na revista Socialismo e Ecologia a partir da ideia de duas contradições do capital, capital-trabalho e capital-natureza, mas tinha-se ficado por uma visão sobretudo intelectual. Agora são estes movimentos sociais, indígenas e camponeses que vêm questionar: “O que é isso do desenvolvimento infinito das forças produtivas? Isso significa extrativismo, destruição das nossas comunidades, destruição das nossas águas, das nossas florestas, da nossa biodiversidade”. E, portanto, de repente, Marx é um eurocêntrico. E, portanto, o ativismo que vem de outras cosmovisões (indígenas, camponesas, não-ocidentais) vêem-no com uma grande suspeita. A outra virtude foi dar a conhecer a um público muito mais vasto intelectuais marxistas de grande nível que nunca foram conhecidos porque não falavam, não escreviam nem em francês nem em inglês, e que viveram ou vivem da Índia à América Latina. Dos que conheço melhor, José Maria Mariátegui e Álvaro Garcia Liñera.

 

JN Estava a lembrar-me também de um determinado texto seu em que, a certa altura, refere que justamente um dos contributos, a nível da produção do pensamento político, que poderíamos encontrar nas transformações mais recentes, por exemplo no contexto latino-americano, seria a própria transformação da forma de pensar a ideia de poder. Há pouco quando referia essa passagem do pensamento da revolução para um pensamento da rebeldia ou da revolta recordei-me desse texto, em que referenciava, por exemplo, a ideia de John Holloway de mudar o mundo sem tomar o poder. Por vezes parece que a crise do marxismo a que nós assistimos na Europa se traduziu numa espécie de viragem anarquista, que poderíamos pensar como contemporânea – com todos os riscos deste paralelismo – à viragem que leva à crítica ao eurocentrismo marxista… Faz sentido este paralelismo?

BSS Faz, faz. Eu acho realmente – até já o escrevi – que, de facto, quando analisamos as formas de luta e de organização, as narrativas e repertórios destes movimentos, verificamos que, de todas as tradições críticas ocidentais, a única que sobrevive é a anarquista. Algumas referências são explicitamente anarquistas. Um jovem colega, um grande sociólogo, professor em ­Goldsmiths College, David Graeber, um anarquista que escreveu um livro importante chamado Direct Action, narra a sua intervenção no movimento occupy nos EUA e conta como foi ele que inventou a expressão de 99% (contra o 1% dos ricos). Torna-se evidente o colapso das formas organizativas institucionais dos partidos, e não só dos partidos do modelo soviético. Criou-se um vazio dentro do pensamento crítico e da política que ele sustentava, incluindo o conceito de revolução. Só que o anarquismo tinha um conceito de revolução muito mais aberto, que era até próximo do de revolta e de rebeldia que defendo. Mas eu não tiro disso todas as ilações anarquistas. Por exemplo, no que respeita ao Estado.

 

HJ Permita-nos que faça ainda uma outra pergunta um pouquinho diferente… É que participou nos Encontros de Cuernavaca, no México, com Ivan Illich, e nós lemos recentemente numa rubrica diarística, numa espécie de diário que tem no Jornal de Letras, salvo erro em janeiro passado, em que alude a ­afinidades e diferenças com Ivan Illich. Nós gostaríamos que falasse um pouco dessas ­afinidades, mas também dessas diferenças, e de saber se estas últimas têm a ver com o marxismo, e qual a sua opinião quanto ao ceticismo de elites face à tecnologia.

BSS São questões importantes. Eu fui muito amigo de Ivan Illich. Acho que realmente ele me considerava um dos seus discípulos mais diletos, passávamos horas a conversar. Lembro-me de quando ele fez 45 anos e das longas conversas durante a noite inteira. Por essa altura, também o André Gorz frequentava o CIDOC – e até lecionámos juntos um seminário sobre “direito e revolução” (talvez em 1971). Tudo isto ocorreu entre 1970 e 1974. O que me separou de Ivan foi a Revolução do 25 de Abril. Em fim de 1973 vim para Portugal, depois foi a revolução e obviamente havia tarefas mais importantes para mim do que seguir os diálogos internacionais. Continuámos em contacto, mas perdemos o fio. Havia várias convergências com ele. Não é por acaso que a minha tese de doutoramento foi primeiro publicada pelo CIDOC que ele dirigia. O tema da minha tese era o direito informal e paralelo e a resolução de litígios no interior e uma favela do Rio de Janeiro. Ivan considerava muito importante a autonomia em relação ao Estado e ao oficialmente consagrado, fosse na educação, na medicina ou no direito. Portanto, tínhamos muita convergência na valorização das energias sociais que emergiam daqueles grupos sociais que, no meio de tanta exclusão e marginalidade, lutavam pela dignidade, pela sua sobrevivência, tinham sabedoria e mereciam respeito. No fundo, foi aí também que nasceu a ecologia dos saberes. Quais eram as nossas divergências? Bem, eu não vinha da Áustria como ele. Eu vinha de um país muito pouco equipado com infraestruturas, um país que nessa altura era extremamente medíocre em termos de Estado social, ainda no salazarismo, um país muito pobre e em que estas ideias do Estado social como afronta e da tecnologia como ameaça ao serviço do Estado eram pouco convincentes. Por outro lado, e quanto à crítica radical da educação formal, eu o que via em Portugal era acima de tudo o analfabetismo. Tínhamos uma taxa de analfabetos enorme e eu discutia com o Ivan: “Ivan, no meu país, não temos essa literacia de que tu falas, temos é muito analfabeto”. E, portanto, uma crítica total à escola, em meu entender, era contra-produtiva e até conservadora nesse momento. Claro que o Ivan dizia que havia outras formas de educação popular, com a pedagogia de Paulo Freire. Não altura isso não me parecia muito convincente. Eu preferia a escola crítica à crítica da escola. Como depois escrevi em alguns textos sobre a universidade, tratava-se de ocupar a universidade, como hoje se diria, para a transformar por dentro. Fazer um discurso contra-hegemónico sobre a universidade mas não destruí-la, nem pô-la de parte. Bem pelo contrário, como tenho mostrado ao longo da minha vida. A sua crítica ao Estado social e às instituições do Estado parecia-me demasiado radical. No que respeita à tecnologia, as nossas divergências eram também significativas. Era toda uma corrente onde estava ele, onde estavam também Jean Robert, Gustavo Esteva, e Wolfgang Sachs. Defendiam a rejeição da tecnologia industrial e tecnocrática e a sua substituição por tecnologias próprias e locais. Mas nessa altura já começavam a desenvolver-se os computadores pessoais e outras técnicas de informação e de comunicação. Eu dizia-lhe, “Ivan, vamos utilizar essas tecnologias e vamos tentar dar-lhe um conteúdo próprio para as nossas lutas. Não me parece que a gente possa ficar sem essa alternativa”. Mas aqui havia uma nuance: uma coisa eram as técnicas, e outra essa ideia de que todos os problemas da sociedade podem ser resolvidos pela tecnologia. Era o grande, era o grande…

 

HJ O technological fix, não é?

BSS Exatamente. E isso é que era o grande fantasma dele, e aí eu estava de acordo com ele. No fundo, tratava-se de criticar a ideia que vinha de Marx e, antes dele, de Fourier, de que um dia a tecnologia tornaria a política desnecessária. Ora, eu achava e acho que a própria tecnologia é política, porque há várias soluções técnicas para os mesmos problemas e a escolha nunca é só técnica. Portanto a política não vai desaparecer. Neste domínio, estava absolutamente com ele. Onde divergíamos era sobre se não devíamos usar apenas as tecnologias tradicionais. Eu talvez fosse menos negativo e estava muito mais interessado em saber como é que vai ser usada essa tecnologia. Claro, o Ivan tinha um argumento poderoso: toda a tecnologia que nós usamos tem origem militar. Mesmo a internet. E, portanto, com a tecnologia está-se sempre nas mãos dos militares. É um argumento poderoso até hoje. Illich era um homem absolutamente extraordinário, foi uma das minhas grandes convivências.

 

HJ Uma última questão muito genérica: como é que vê o futuro das ciências sociais em Portugal? E também da universidade portuguesa, tendo em conta a conjuntura atual de retração do financiamento para a ciência.

BSS Quanto à universidade, estou absolutamente preocupado, obviamente. Nós tivemos um avanço extraordinário nas ciências sociais. Nos últimos quinze ou vinte anos o papel da Fundação para a Ciência e Tecnologia e do Ministério da Ciência e Tecnologia sob a liderança de José Mariano Gago foi extraordinário na promoção da ciência em geral, e portanto também das ciências sociais. Em 2009, Portugal era o país europeu que produzia mais doutoramentos per capita. Estava, portanto, a preparar-se a mudança na especialização da nossa economia. Mariano Gago teve a visão e o bom senso de considerar que, se as ciências sociais são ciências, devem ser adequadamente apoiadas. Foi assim que entre os laboratórios associados criados no início da década estiveram dois grandes centros de investigação na área das ciência sociais, o ICS e o CES. Objetivamente, uma política extraordinária cujos frutos estão à vista. Se eu não estivesse num LA nunca teria tido condições para concorrer e ver aprovado um projeto europeu tão vasto como o ALICE que permite trabalhar com um excelente grupo de investigadores portugueses e estrangeiros. A preocupação atual decorre de que tudo isto levou muito tempo (sobretudo, criar infraestruturas e equipas) a construir mas pode ser rapidamente destruído. Basta um orçamento cortado de um momento para o outro e os investigadores desestabilizam e alguns vão-se embora para o estrangeiro. E isto é que me preocupa: o estancamento, depois de um grande esforço em que estamos a criar ciências sociais de alta qualidade que podem competir a nível mundial. Preocupa-me sobretudo a mensagem que está a ser transmitidas aos investigadores mais jovens.

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