SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número204O intelectual de retaguardaA antropologia numa Europa em crise: desafios e oportunidades índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.204 Lisboa jul. 2012

 

Polícia, ordem pública e “novas” formas de vigilância: as dinâmicas e os dilemas da segurança

 

Gonçalo Rocha Gonçalves*

*The Open University (UK) e CIES/IUL. E-mail: g.goncalves@open.ac.uk

 

Discutidos neste ensaio:

 

CEREZALES, Diego Palacios, Portugal à Coronhada: Protesto Popular e Ordem Pública nos Séculos XIX e XX, Lisboa, Tinta-da-china, 2011. ISBN: 978-9-8967-1086-6.

 

DURÃO, Susana, Patrulha e Proximidade: Uma Etnografia da Polícia em Lisboa, Coimbra, Almedina, 2008. ISBN: 978-9-7240-3497-3.

 

FROIS, Catarina (org.), A Sociedade Vigilante: Ensaios sobre Identificação, Vigilância e Privacidade, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2008. ISBN: 978-9-7267-1228-2.

 

A existência de diferentes instituições, mecanismos e técnicas de controlo e vigilância da sociedade, bem como de uma variação nas relações de poder e autoridade têm, desde há muito, despertado o interesse das ciências sociais. Diferentes disciplinas com abordagens metodológicas diversificadas têm proporcionado recortes variados destes objetos de tão difícil delimitação e análise. Até há bem pouco tempo, Portugal parecia passar ao largo destas preocupações. A situação está agora a mudar. Três livros recentemente publicados – Portugal à Coronhada, de Diego Palacios ­Cerezales, Patrulha e Proximidade, de Susana Durão, e o volume organizado por Catarina Frois, Sociedade Vigilante – revelam uma crescente preocupação dos cientistas sociais que trabalham a realidade portuguesa, em relação a estas problemáticas.

Diego Palacios Cerezales constrói uma história da ordem pública e dos custos políticos decorrentes do seu controlo por parte do Estado, ao longo do século XIX e XX. Para isso, recorre ao que designa por dilema da ordem pública. Esta expressão traduz a tensão existente, no quadro da decisão política, quanto à repressão ou não dos protestos públicos e à forma que deve assumir essa escolha. Com os crescentes custos políticos de uma repressão violenta, os governos tiveram a necessidade de encontrar soluções que permitissem uma redução dos custos políticos envolvidos na manutenção da ordem pública. A adoção de técnicas não letais, e a institucionalização de protestos (greves, manifestações) foram soluções encontradas para os minorar. Não se tratou, porém, de um processo linear, mas sim de uma dinâmica complexa cujas soluções e resultados servem para caracterizar regimes políticos, forças policiais e protestos sociais. Somos, assim, conduzidos a uma análise histórica das consequências políticas da emergência de movimentos sociais e das estratégias governamentais de manutenção da ordem pública, expressas através das transformações introduzidas no sistema policial.

A construção do sistema policial moderno e a evolução das técnicas de controlo de distúrbios públicos são temas fulcrais neste trabalho. Aliás, um dos seus principais contributos é a identificação da excecionalidade do caso português no contexto europeu de oitocentos, pela inexistência de um corpo especial militar nacional incumbido do policiamento rural. A consequência mais imediata desta característica foi a permanente reafirmação da função policial do exército regular, o que condicionou as práticas de policiamento até às primeiras décadas do século XX. A criação de forças policiais urbanas, Guardas Municipais, em 1834, Polícias Civis, em 1867, e da Guarda Nacional Republicana (GNR), em 1911, corresponde a momentos-chave da institucionalização do aparelho policial português. Ainda que se trate de uma prática inconstante na evolução das técnicas policiais de controlo da ordem pública em Portugal, a procura, por parte das forças policiais, de técnicas não letais assume natural destaque neste livro. A coronhada, o uso da cavalaria, a efémera utilização de canhões de água na greve operária no Porto, em 1903, ou a constituição de uma unidade especializada de polícia antimotim em 1960, a Companhia Móvel, rebatizada, depois de 1974, de Corpo de Intervenção, foram gestos e recomposições organizacionais que testemunham uma procura de redução de custos políticos.

Num outro plano, o do quotidiano urbano, e num outro tempo, a atualidade, Susana Durão apresenta-nos um estudo etnográfico sobre uma esquadra da Polícia de Segurança Pública em Lisboa. A metáfora da “descida” ao quotidiano é particularmente elucidativa do percurso da autora numa instituição/organização conhecida pela sua opacidade. Iniciando o seu trabalho no topo da organização (Direção Nacional) e da hierarquia (entre os oficiais), a autora “desce”, primeiro à esquadra, unidade base da organização do trabalho policial, e depois à rua. As esquadras de polícia são hoje, em Lisboa, marcadas por um efetivo “juvenil” e “temporário”, recrutado noutros pontos do país, para os quais regressa depois da experiência na capital. Trata-se, por isso mesmo, de “esquadras de passagem”. Neste estudo, estruturado com base nas “diligências da etnografia”, Susana Durão traça as dinâmicas quotidianas do policiamento, não só na sua dimensão organizacional, mas também na das relações estabelecidas com a população de um bairro da cidade. Desta forma, demonstra como através de uma análise micro se pode partir para a compreensão de dinâmicas macro de estruturação da instituição policial e das políticas de segurança pública. A rua revela-se, então, enquanto espaço dos agentes, um lugar onde o resto da hierarquia não entra, ou melhor, para onde não sai, no qual as dinâmicas de interação polícia-cidadãos são tecidas situacionalmente. Importante é também perceber os “léxicos da ação policial” ou, segundo a definição da autora as “classificações do mundo em volta”. Conceitos que, apesar da sua pouca ou nenhuma formalidade, se concebem como verdadeiros orientadores da ação dos polícias. Nos dois capítulos finais, Susana Durão analisa as subjetividades presentes na estruturação das carreiras policiais e a forma como estas se refletem na existência de diversos estilos de polícias. Estas carreiras são fortemente condicionadas por quadros de vida marcados pela mobilidade geográfica. São vidas estruturadas num “xadrez em dois tabuleiros” (Costa, 1985) – trabalho na grande cidade, família na região de origem – que implicam constantes deslocações. É assim, entre a desejada, mas instável, unidade organizacional e uma pluralidade no percurso social dos seus membros, que a polícia portuguesa interage com os cidadãos negociando a segurança pública.

O volume organizado por Catarina Frois reúne textos de investigadores europeus e norte-americanos, sendo de louvar o aparecimento em língua portuguesa de contributos de figuras centrais dos “estudos da vigilância” (surveillance studies), como acontece com os artigos de David Lyon e Gary T. Marx. Mas, destaca-se, também, a participação de investigadores portugueses que se têm afirmado no tratamento da temática aqui enunciada. O livro encontra-se dividido em três partes: identificação, vigilância e privacidade, cobrindo assuntos tão diversos como o aparecimento das impressões digitais enquanto prática de identificação, das bases de dados de ADN, das câmaras de videovigilância, e das políticas de privacidade em sites juvenis na internet. Apesar de incluir trabalhos de antropólogos, a maioria dos capítulos desta obra é de cariz sociológico (seis de dez capítulos), e revela-nos alguns dos debates teóricos e objetos empíricos que têm, nacional e internacionalmente, constituído um campo científico em ascensão nas ciências sociais ao longo das duas últimas décadas. Não obstante o caráter difuso e fragmentado que por vezes apresenta, sobressai um enfoque na ampla panóplia de possibilidades que a inovação tecnológica trouxe às práticas de vigilância.

Os três trabalhos aqui recenseados não representam um campo disciplinar ou sequer um campo de indagação comum. Na verdade, provêm de áreas disciplinares distintas, como a história, a antropologia e a sociologia, sustentando-se em problemáticas e metodologias bastante diferentes. Em termos práticos seria impossível fazer aqui um “estado da questão”, o que implicaria, no caso de Palacios Cerezales, discutir a ampla historiografia político-social disponível sobre o período, para Durão apreender os debates etnográficos quanto a estas questões, e para o livro de Catarina Frois os estudos de ciência e tecnologia. Assim, organizámos este ensaio bibliográfico em torno de quatro temáticas que, de um modo mais ou menos central, se encontram presentes nos três estudos, e tentámos avaliar as conclusões dos trabalhos em causa perspetivando possíveis diálogos. Em primeiro lugar, trata-se da necessidade de problematizar a temporalidade das mudanças associadas à vigilância e ao controlo. Serão os “novos medos” e as “novas vigilâncias” assim tão novos? Que caminho têm percorrido, e como poderemos compreendê-las melhor recorrendo a uma perspetiva histórica mais complexa? Em segundo lugar, discute-se o papel do Estado na prática da vigilância e na garantia da preservação da ordem: um ator ativo, um regulador, ou um mero espetador de fenómenos que transcendem as suas fronteiras de soberania? Em terceiro lugar, defende-se a adoção de uma abordagem centrada na avaliação dos recursos disponíveis e na capacidade material para implementar mudanças, em detrimento de uma simples análise das regras e representações do poder. Por fim, tece-se um conjunto de considerações a partir de uma perspetiva mais geral que compreende a centralidade das dinâmicas de legitimação nas relações de poder.

 

A TEMPORALIDADE

Em 2006, a criminóloga Lucia Zedner (2006) chamou a atenção para a inexatidão de muitos debates sobre as mais recentes estratégias de controlo do crime no contexto inglês. Segundo a autora, o que muitos identificam como as características das novas formas de controlo do crime: responsabilização individual, a procura de cooperação ao nível da comunidade local (communal self-help), e a privatização das formas de combate ao crime, surgidas por contraposição à posição dominante do Estado nesta área, não constitui propriamente uma novidade mas um regresso às estratégias existentes durante o século XVIII, predecessoras de um sistema dominado pela ação do Estado. Nesta perspetiva, os sistemas públicos, estatais de policiamento que emergiram a partir de meados do século XIX, e cuja hegemonia entrou em declínio nas décadas seguintes ao fim da segunda guerra mundial, constituem mais um intermezzo histórico do que a forma de policiamento dominante que surgia naturalizada pela sociedade e por muitos cientistas políticos no final do século XX. Esta problematização em torno da temporalidade das formas de controlo e vigilância é um bom ponto de partida para perspetivar o caso português.

Na verdade, se relacionarmos alguns dos textos compilados no livro editado por Catarina Frois, o estudo de Susana Durão e o trabalho de Palácios Cerezales, bem como outra produção historiográfica sobre os temas em causa, constata-se que há certas divergências que condicionam a perceção da complexidade de algumas das transformações recentes. Ou seja, há argumentos semelhantes que poderiam ser integrados, e divergências que mereceriam ser esclarecidas. Dois exemplos. No capítulo escrito por Catarina Frois, na coletânea de textos que publica, trabalham-se as recentes mudanças nas técnicas de identificação através de bases de dados biométricas cuja adoção tem na origem uma vontade política de “ser moderno”, desenvolvida a partir de uma suposta necessidade de integrar o país num “novo paradigma” internacional de segurança (Frois, 2008, p. 113). Porém, como é que se pode perceber o caráter inovador deste tipo de argumentação política quando formulações em tudo semelhantes (Cerezales, 2011, pp. 91-94) foram usadas para justificar as transformações operadas há mais de um século atrás, aquando da criação de novas instituições policiais? Ou como entender uma “obsessão pública com o crime” que, segundo Helena Machado e Susana Silva, se teria “iniciado nos anos 80 do século XX” (Frois, 2008, p. 155), se o mesmo é afirmado em relação às décadas de 1890 e 1900 (Vaz, 1998; Madureira, 2003)? Ou ainda, partindo de uma perspetiva mais geral, quando Charles Raab refere a necessidade de uma “abordagem de antecipação” nas opções de regulação da “nova vigilância” (Frois, 2008, p. 284) não estaremos perante o ressoar da lógica de prevenção que surgiu em meados do século XIX e impulsionou a transformação e crescimento dos sistemas policiais públicos?

Não se trata aqui de saber de que lado está a razão, mas sim de um apurar do sentido das expressões/discursos e práticas a partir da sua contextualização no tempo, evitando possíveis anacronismos. Quando os historiadores falam na ascensão da criminalidade enquanto questão pública, no final do século XIX em Portugal, referem-se, na maioria dos casos, à situação vivida em Lisboa. Se presentemente os criminólogos fazem tábua rasa das mudanças ocorridas antes de 1974 isso não significa que as ignorem mas, ­provavelmente, que as suas preocupações estão mais orientadas para o processo de elaboração de políticas públicas. Acrescente-se que esta não é sequer uma situação particular de Portugal, a distância entre historiadores do crime e criminólogos tem sido, noutros contextos de maior produção académica, bem vincada (Lawrence, 2012). Nessa medida, talvez fosse útil clamar por uma maior proximidade entre áreas disciplinares que, apesar de distintas, têm objetos de estudo semelhantes. Mais do que um chamar de atenção para uma identificação exata da origem de um determinado fenómeno ou desvalorizar a “novidade” de transformações mais atuais, o que está em causa é a necessidade de inscrever as problemáticas traçadas em torno da análise da polícia e do policiamento, da vigilância e da segurança – enfim, do poder – numa noção de temporalidade social mais complexa. Uma temporalidade que, ao contrariar visões teleológicas de história, insiste em perspetivar a mudança social como o encadear de processos sociais que não são nem unívocos nem lineares (Sewell, 2005).

Outro problema que estes livros também denunciam, diz respeito às lacunas da produção historiográfica (e não só) existente sobre os temas em causa. De forma esparsa mas regular, Susana Durão observa a questão da (difícil) superação do legado do Estado Novo ao nível da organização e das práticas policiais na transição desse regime autoritário para a democracia, firmada após o 25 de Abril de 1974. De facto, embora esse não fosse o objetivo da autora, a sua dificuldade em identificar as etapas do processo da transição da ditadura para a democracia e o legado (presente ou não) do autoritarismo na instituição policial revela bem que ainda há um grande caminho a percorrer no conhecimento da polícia portuguesa, no período posterior a 1945 e, especialmente, após 1974. O trabalho de Palácios Cerezales faz também sobressair este vazio historiográfico. A relativa brevidade com que são tratados os anos que se sucedem à Segunda Guerra Mundial por comparação com o período da Primeira República e, sobretudo, com os tempos da Monarquia Constitucional, traduz uma clara opção de centralizar a análise nos momentos em que a transformação das instituições foi mais vincada e visível. Todavia, é também sinal da dificuldade, ainda existente, em mobilizar fontes e tratar um período para o qual a história da organização policial está ainda quase completamente por fazer.

 

O LUGAR DO ESTADO

Colocado no centro da análise, ou olhado tendo em conta o que escapa à sua ação, o Estado é um referencial incontornável para quem trabalha sobre formas de controlo e vigilância. Mesmo quando parece ocupar um lugar ­incómodo, ou a sua atuação é menos evidente. Os três trabalhos aqui recenseados não fogem à regra, e quando postos em diálogo permitem-nos questionar o lugar, o papel e as limitações da intervenção do Estado nestes domínios.

Em Palácios Cerezales assistimos à construção dos sistemas de ordem e segurança pública “tradicionais”. A criação de instituições policiais estatais, a centralização do poder e enfraquecimento de poderes periféricos foram processos fulcrais durante todo o período analisado no seu livro. O livro de Susana Durão evidência, na contemporaneidade, como um elemento – a esquadra de polícia – criado ao longo desse processo, persiste num contexto social, cultural e político completamente diferente. Por outro lado, em muitos dos contributos presentes no livro organizado por Catarina Frois emergem as limitações de Estados que, circunscritos à sua soberania nacional, se sentem impotentes perante as dinâmicas globais do mundo atual. Assim acontece, sobretudo, nos capítulos de David Lyon sobre bases de dados de identificação, de Ian Kerr e Valerie Steeves sobre políticas de privacidade em sites juvenis. Contudo, e para além desta imagem de fraqueza, há ainda uma outra, a da capacidade de certos Estados em adotarem novos dispositivos tecnológicos, e consequentemente transformarem profundamente a sua relação com os cidadãos (veja-se, por exemplo, o capítulo de Chiaria Fonio sobre videovigilância em Milão). O imbricado de processos de transformação social, entre construção, “sobrevivência”, debilidade e emergência de novas formas de poder apresentado nos estudos recenseados pode, em geral, traduzir-se em novas e profícuas linhas de questionamento.

Em síntese, nos três estudos em questão problematiza-se a natureza do Estado e da sua ação na sociedade. O “Estado” deixou hoje de ser encarado como algo estático, definido por fronteiras fixas. A polícia, por exemplo, constituiu um elemento que, estando no âmago do Estado, tem fronteiras organizacionais muito pouco precisas (veja-se o caso evidenciado no estudo de Durão dos serviços gratificados por privados). A tradição dos estudos do policiamento com base em pesquisas etnográficas, como nota Susana Durão, constitui uma forma privilegiada de perceber o Estado a partir das suas margens, bem como as características difusas das mesmas. Deslindar a multiplicidade de dinâmicas que se geram nas margens do Estado e os seus significados, especialmente quando se trata da sua interação com os cidadãos, corresponde a um plano de análise inovador para compreender o fenómeno mais amplo do papel social do Estado. O uso da coronhada pelos agentes policiais na manutenção da ordem, descrito por Palacios Cerezales, é exemplar de como a partir de um gesto micro se podem apreender os fundamentos e significados do dilema político da ordem pública. No outro extremo – o do nível macro – atenta-se ao caráter global das mais recentes mudanças sociais e à desadequação de ­estruturas formais de vigilâncias estatais baseadas no Estado-Nação. Perspetiva adotada, em geral, no livro de Catarina Frois.

 

A MATERIALIDADE EM PERSPETIVA

É notória, no campo das ciências sociais em geral, a crescente atenção dada à dimensão material das relações sociais, e os estudos sobre vigilância e controlo não “escapam” a esta leitura. Nos últimos tempos, a referência aos vigilantes ou aos vigiados gerou uma ampla panóplia de interrogações, a que importa respon­der. Considerando o lado dos vigilantes, estão em causa os seguintes aspetos: 1) quais os recursos que se encontram, de facto, à disposição da polícia? 2) Que objetos e tecnologias são utilizados nas práticas de vigilância? Ainda que com alguns limites, é a partir desta ótica que se depreende como o uso de coronhas, jatos de água, cassetetes ou balas de borracha no controlo da ordem pública; a farda, o carro patrulha ou a caderneta de turnos no policiamento quotidiano; a câmara de videovigilância ou o cartão de identificação nas novas tecnologias de vigilância, entram nas rotinas de policiamento e vigilância. Já do lado dos vigiados, o protagonismo do corpo enquanto matéria passível de identificar os indivíduos (recorrendo a diferentes métodos, desde as impressões digitais à saliva) é transversal a todas as discussões presentes nestes trabalhos. Mais do que simplesmente povoarem as relações sociais, estas são matérias que ativamente as moldam.

Abordagens que focam a dimensão material dos fenómenos de vigilância e controlo, transportam naturalmente consigo um maior enfoque em questões relacionadas com a agência dos atores envolvidos. Como se estruturam, de facto, as relações de poder e quem é que as protagoniza? Que condições e contextos as tornam possíveis, mas também as constrangem? Que dinâmicas, formais e informais, se fazem e refazem nestas relações de poder e autoridade? Estas são algumas das questões que fazendo sobressair as condições materiais das práticas de policiamento e vigilância e transmitem uma imagem mais razoável das mesmas. A enorme distância entre representações e práticas neste campo é notada por diversos autores, nos estudos aqui comentados e não só. Ao demonstrar uma preocupação com os limites precisos destas práticas, tendo em consideração uma dimensão material das técnicas e tecnologias em causa, torna-se mais fácil perceber os perigos de uma suposta “híper-vigilância” e, ao mesmo tempo, situar realisticamente as suas limitações. O campo da vigilância é atualmente muito mais complexo do que há um século atrás – compare-se a parte do trabalho de Palacios Cerezales dedicada ao século XIX com os contributos de Catarina Frois e Helena Machado e Susana Silva para a atualidade. Esta constatação obriga a um maior cuidado na análise precisa das práticas de vigilância e recursos aí envolvidos. A colocação de uma câmara de videovigilância num espaço público, por exemplo, pode ter efeitos nos comportamentos sociais, mas não é indiferente se essa câmara está ligada ou desligada, quem a monitoriza, e se as imagens capturadas são ou não arquivadas e utilizadas posteriormente. Mais do que presumir a vigilância, é necessário perceber os seus percursos e práticas concretas. E o mesmo se aplica ao policiamento.

A esquadra de polícia é um exemplo particularmente relevante neste contexto. Como demonstra Susana Durão, a importância da materialidade da esquadra, isto é, a sua dimensão de lugar físico, é fulcral na estruturação das relações de trabalho e das interações com os citadinos. A organização da esquadra, com a sua área pública, embora de acesso mediado pelo polícia à porta, e a sua parte privada, composta de corredores, salas e camaratas nos quais os polícias socializam, e onde o acesso dos cidadãos está vedado (atente-se ao facto de as revistas dos suspeitos numa minúscula casa de banho) é simultaneamente criadora e resultado das relações sociais e dos significados atribuídos aos espaços físicos. A importância dada à perceção da materialidade das relações de poder traduz uma maior preocupação com a capacidade efetiva da autoridade para impor regras e condutas.

 

DINÂMICAS DE LEGITIMAÇÃO

A imposição de uma vontade ou norma por uma parte a outra é o fundamento de todas as relações de poder. Se em análises de teor mais formalista esta questão surge normalmente enformada em discussões teóricas acerca da fundamentação do poder, noutras, como as que estão em causa aqui, a leitura desta dimensão centra-se na apreciação das práticas do poder, pois parte-se do princípio de que estas são transformadas através das interações com os cidadãos. Neste contexto, mais do que questionar a legitimidade do policiamento e da vigilância estamos perante estudos que se focam nas dinâmicas de legitimação. Em sociedades complexas – e por complexas entende-se o alargamento do estatuto de cidadania e o processo de democratização – o problema da legitimação da autoridade estatal é um elemento da organização política da sociedade. Num outro lugar, Domício Proença Júnior e Jacqueline Muniz (2006) propuseram os conceitos de “ideia de polícia” e de “credibilidade policial” para compreender a forma como as relações entre a autoridade pública e os cidadãos são vistas como legítimas por parte da população. O primeiro remete para a perceção que os cidadãos têm, de que a polícia estará presente quando necessário, o segundo sustenta que a intervenção policial será percebida como credível. As ideias de expetativa de intervenção e credibilidade são essenciais para compreender tanto a atividade policial em situações de desordem pública, como uma simples chamada da emergência médica, passando pelos processos de adoção de novas técnicas de vigilância. De facto, permite-nos assim pensar em conjunto as obras aqui em análise.

Ainda que sob diversos prismas, os três livros abordam esta temática da legitimidade e expetativa de uma certa prática policial. Para Palácios ­Cerezales este é um elemento central no dilema da ordem pública, que se manifesta, entre outros, na adoção de técnicas não letais de manutenção da ordem pública (embora no caso português, sobretudo no contexto de ditadura, essa seja uma questão complexa). Susana Durão revela-nos uma legitimidade policial que se constrói e permanentemente reconstrói a um nível situacional nas interações do quotidiano. Ainda na polícia, esta dinâmica é visível na enfatização que a instituição faz da dimensão de serviço público presente na sua missão. Os “programas de proximidade” são neste aspeto exemplares, pois encontra-se difundida a ideia de que a legitimidade policial advém do facto de a sua ação ser requisitada pela própria população. Em vários capítulos do livro A Sociedade Vigilante: Ensaios sobre Identificação, Vigilância e Privacidade, este é ­também um tema central: seja nas emergentes técnicas de “vigilância soft” (Gary T. Marx) que remetem a questão da legitimação para o plano do subentendido, ou nas técnicas de “vigilância online” (Ian Kerr e Valerie Steeves), por meio das quais as empresas privadas “fabricam” uma política de legitimação sob a forma de “políticas de privacidade”, ou envolvendo os pais no uso dos sites. No essencial, o que estes contributos nos indicam é a necessidade – na linha do que a perspetiva material enunciada atrás indicava – de perceber as relações de vigilância a partir das dinâmicas estabelecidas entre vigilantes e vigiados.

Para concluir, se no início foi referido que não estávamos perante um campo disciplinar, os quatro eixos em torno dos quais construímos este texto mostram, no entanto, que para lá das distâncias e mesmo clivagens, há um terreno comum de debate. O caráter inovador, no contexto português e não só, destes três trabalhos revela a multiplicidade de temas e terrenos passíveis de exploração. Entre eles, a necessidade de encarar a complexidade da mudança social e um maior enfoque nas práticas de policiamento e vigilância.

 

BIBLIOGRAFIA

COSTA, A.F. da (1985), “Espaços urbanos e espaços rurais: um xadrez em dois tabuleiros”. Análise Social, 87-88-89, XXI (3.º, 4.º, 5.º), pp. 735-756.         [ Links ]

JÚNIOR, D. P. e Muniz, J. (2006), “‘Stop or I’ll call the Police!’The Idea of police, or the effects of police encounters over time”. British Journal of Criminology, 46, pp. 234-257.         [ Links ]

LAWRENCE, P. (2012), “History, criminology and the ‘use of the past’”. Theoretical Criminology, 16 (3), pp. 313-328.         [ Links ]

MADUREIRA, N. (2003), “A estatística do corpo: Antropologia física e antropometria na alvorada do século XX”. Etnográfica, VII (2), pp. 283-303.         [ Links ]

SEWELL, W. (2005), Logics of History: Social Theory and Social Transformation, Chigaco, Chicago University Press.         [ Links ]

VAZ, M.J. (1998), Crime e Sociedade: Portugal na Segunda metade do Século XIX, Oeiras, Celta.         [ Links ]

ZEDNER, L. (2006), “Policing before and after the police: the historical antecedents of contemporary crime control”. British Journal of Criminology, 46, pp. 78-96.         [ Links ]

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons