SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número204Polícia, ordem pública e “novas” formas de vigilância: as dinâmicas e os dilemas da segurança índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.204 Lisboa jul. 2012

 

A antropologia numa Europa em crise: desafios e oportunidades1

 

Susana Narotzky*

*Universidade de Barcelona. E-mail: narotzky@ub.edu

 

Nos últimos tempos, as minhas funções como presidente da Associação Europeia de Antropólogos Sociais (EASA) permitiram-me complementar com uma nova experiência, como representante de uma organização profissional pan-europeia, a experiência que já tinha do Espaço Europeu de Educação Superior e da investigação em antropologia social como professora da Universidade de Barcelona. Esta nova perspetiva abriu-me, além do mais, valiosas possibilidades de intervenção coletiva. A partir desta dupla experiência, quero apresentar aqui uma reflexão crítica que organizarei em torno de três eixos fundamentais: (i) a “crise económica” e o défice democrático que ela implica, muito em particular nas nações do sul da Europa que estão perdendo a sua soberania; (ii) a marginalização das ciências sociais e humanas no âmbito das políticas do conhecimento; e (iii) um duplo fenómeno, que consiste tanto na validade e atualidade dos temas estudados pela antropologia, como na ausência de reconhecimento da capacidade deste campo científico para os abordar.

Para concluir, sublinharei qual será, do meu ponto de vista, a estratégia a seguir: precisamos de definir a nossa especificidade enquanto antropólogos; precisamos de melhorar a nossa comunicação; precisamos de defender a continuidade da antropologia para as próximas gerações.

Terei sempre presente ambos os domínios da universidade e da investigação na discussão da chamada “transferência de conhecimento”, enfatizando sobretudo o modo como a interpretação atual deste termo exclui o ensino universitário como domínio preferencial dessa transferência. No senso comum jornalístico, a transferência de conhecimentos é hoje em dia, em primeiro lugar, o que pode ser rentabilizado economicamente e de forma direta por empresas e, em segundo lugar, o que pode ser rentabilizado pela administração. No entanto, a transmissão em si mesma dos resultados da investigação no domínio do ensino não é considerada “transmissão de conhecimento”. Quererá isto dizer que a transmissão propriamente dita não é produtiva? Que a ciência, em si mesma, não é valiosa para a comunidade? E que só é válida se for capitalizável – como “capital humano” ou seja, inserida no hipotético “sistema produtivo”?

Em Espanha temos constatado a forma como os chamados consejos sociales2 das universidades têm vindo a ser monopolizados por empresários, relegando o resto “da sociedade” a uma minoria, que é geralmente representada pelas elites políticas. Esta metáfora, segundo a qual a “sociedade” é a “economia”, foi-nos imposta nos últimos anos de forma muito vincada com a implementação da chamada “eficiência” no sistema universitário: projetos e objetivos ligados com a procura por parte do público de licenciaturas, procura essa associada a interesses empresariais (a tal “economia”) e à “competitividade” no âmbito do ensino superior e da investigação.

 

A CRISE ECONÓMICA E O DÉFICE DEMOCRÁTICO

Uma das consequências da “crise” foram as políticas de “ajuste estrutural” que se centraram na redução do défice público e que atacaram selvaticamente as áreas da saúde e da educação aos mais diversos níveis. Ocorreu uma precarização dos empregos do Estado – redução de funcionários, contratos temporários, despedimentos, política de não contratação de novos funcionários para substituir os reformados, etc. – e, em paralelo, um significativo aumento da carga laboral. Também no âmbito da investigação foram feitos cortes, afetando de forma especial as bolsas de formação e as verbas para a investigação na área das ciências sociais e humanas (ainda que também noutros campos de investigação).

Mas o mesmo não aconteceu de forma homogénea em toda a Europa. Os recursos destinados à educação e à investigação diminuíram proporcio­nalmente muito mais nos países do sul da Europa (que já antes dispunham de uma verba proporcionalmente menor em termos relativos) e que estão a ser castigados por terem “desperdiçado” recursos que pelos vistos não possuíam, impedindo uma convergência com o norte da Europa em termos de Estado-providência. A crise e os seus ajustes, colocá-los-á “no seu lugar”: a periferia da Europa. E, no que se refere à ciência, serão decisivamente subsumidos à hegemonia da produção de conhecimento pelos países do norte. A diferenciação entre o norte e o sul no que respeita aos recursos que se podem alocar à educação e à investigação volta a aumentar, depois de algumas décadas em que tinha havido aproximação. O que isto significa é que, nos “lobbies” que têm vindo a surgir na Europa para defender as ciências sociais e humanas, os países que “mandam” – porque têm mais presença ativa, mais contactos em Bruxelas, mais projetos europeus – são os países do norte da Europa: Holanda, Reino Unido, Alemanha, Áustria, Dinamarca, Suécia. Os seus porta-vozes são os que “sabem” e que ensinam de forma pedagógica aos restantes o que há a fazer e como deve ser feito, ainda que o seu contexto seja tão diferente do que se vive atualmente no sul da Europa.

No entanto, o problema é anterior à crise. Está relacionado com a extensão do modelo empresarial ao setor público, um modelo que se postula como mais eficiente e competitivo porque reduz os encargos financeiros do Estado com os serviços públicos. No que diz respeito à universidade em Espanha, essa tendência tem vindo a estar associada ao famoso processo de Bolonha, que impôs a institucionalização da desconfiança e o aumento do trabalho de gestão e de auditoria, a implementação de contratos articulados com objetivos de financiamento, objetivos por sua vez ligados à competitividade (número de alunos, de ingressos, de financiamento externo obtido, de publicações, etc.). Está também associado ao divórcio crescente entre a investigação e o ensino, ainda que em ambos os setores se privilegie a precariedade dos trabalhadores. A universidade como empresa impulsiona a competitividade entre universidades: competir por mais estudantes, por mais patrocinadores, por mais projetos financiados. Mas, por outro lado, torna-se necessário ter uma massa crítica já que a “relevância” é frequentemente medida em termos quantitativos, o que obriga à colaboração na formação de grandes consórcios interuniversitários e à coordenação de gigantescos projetos europeus.

As políticas são impostas de cima, seguindo moldes de organização empresarial. Para este modelo, e perante a resistência dos sujeitos afetados (estudantes, docentes, investigadores, pessoal administrativo), estão a tentar transformar as estruturas de gestão da universidade para bloquear o poder do claustro universitário,3 democraticamente eleito4 e representante da verdadeira autonomia universitária. Na universidade de Barcelona, o projeto tem vindo a diminuir a capacidade de decisão do claustro universitário, sobretudo dos estudantes, e a aumentar o poder do consejo social nomeado pelos decisores políticos. O projeto atual é que o reitor venha a ser nomeado por este órgão, deixando assim de ser um cargo eleito.5 Com uma exemplar manobra discursiva, a “autonomia” universitária é agora, em última análise, a que se refere principalmente ao aspeto financeiro: a ideia de que as universidades tenham autonomia financeira, significa simplesmente que não dependam do Estado.

O atual projeto universitário dominante é agora essencialmente empresarial, ainda que se escude no discurso da demanda social. São cada vez mais as empresas que determinam quais as licenciaturas que devem ser oferecidas e quais as que devem desaparecer de acordo com o que eles acham serem os seus interesses de formação de mão-de-obra ou “capital humano”. A principal mudança que, como professores universitários, temos de combater é a que transforma um serviço público – o ensino universitário como um direito inalienável do cidadão – num produto de consumo que dá resposta a critérios de oferta e de procura e de eficiência empresarial. A mudança é importante não só em termos do enquadramento prático, mas também no que respeita à maneira de entender e tratar os conhecimentos como “ativos” ou “capital” em termos da sua capacidade de contribuir para o crescimento económico através da sua incorporação no valor de mercado.

 

A MARGINALIZAÇÃO DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Este argumento da utilidade do conhecimento para efeitos de mercado afetou de forma muito direta as ciências sociais e humanas, tanto na esfera da universidade como na da investigação.

No âmbito da universidade, os cursos que não tenham procura suficiente para serem rentáveis – socialmente? economicamente? – são eliminados. As novas normas exigem um mínimo na ordem dos 40 ou 50 novos alunos ­matriculados para que se considere viável uma licenciatura ou grau. Mas esta deriva empresarial também produz contradições nas diretrizes: quando se iniciou em Espanha o movimento do Espaço Europeu do Ensino Superior, promoveu-se a partir dos governos a ideia de que apesar das licenciaturas serem generalistas, os mestrados deviam ser especializados e, portanto, deviam multiplicar-se para dar conta da infinitude de interesses especializados e da procura específica nas várias áreas de conhecimento. Para além disso, os mestrados permitiam desenvolver a especificidade através da interdisciplinaridade e da colaboração interuniversitária necessária para abordar questões muito concretas. Como resultado, proliferaram em poucos anos centenas de mestrados especializados a par de outros mais generalistas (considerados um resquício de práticas antigas). Mas isto revelou-se muito dispendioso, sobretudo para os países periféricos do sul da Europa.

Na Catalunha, depois de se ter apoiado este tipo de mestrados, afirma-se agora que não é um modelo viável (pelos custos com o pessoal devido à redução de professores provocada pelo ajuste estrutural) e recomenda-se a extinção da maioria dos mestrados, para se limitarem a alguns que concentrem toda a procura: um regresso aos mestrados mais generalistas ou aos que estão mais “na moda”.

Para as ciências sociais e humanas o problema é que o tipo de conhecimentos que produzimos é normalmente considerado de “pouco valor acrescentado.” A reflexão crítica sobre a sociedade em que vivemos e a análise dos seus conflitos não são vistas como produtivas – quando não são mesmo consideradas um obstáculo ao crescimento económico. Tal acontece apesar de haver um discurso crescente sobre a “economia do conhecimento” em que se privilegia a importância da criatividade como fonte de mais-valia. Em geral, porém, esta criatividade fica reservada à esfera das ciências físicas e biológicas, das finanças e dos estudos financeiros, das tecnologias de comunicação, do marketing e do design, não contemplando a necessidade de compreender o mundo em que vivemos senão para poder fazer dinheiro com ele.

Segundo estes critérios, na universidade, o cliente (estudante) procura os cursos que acredita que lhe vão ser mais úteis para encontrar emprego. Tal noção deveria estar acoplada à realidade da procura dos postos de trabalho no mercado (os tipos de conhecimentos que as empresas requerem). Mas, para que este ajuste ocorra, os interlocutores sociais (empresários, políticos) deverão comunicar claramente quais são as necessidades da “sociedade” (leia-se “mercado”): a ideia é que sejam os consejos sociales das universidades e as políticas universitárias dos governos a determinar a partir de cima (top-down) quais os conhecimentos que são úteis e necessários para a sociedade e quais os que não merecem ser transmitidos. Tal é também uma perda de soberania, desta vez soberania universitária, mas é sobretudo um processo ineficiente, visto que é impossível prever a evolução dos “mercados”.

Segundo este critério, muitas licenciaturas (tal como as filologias clássicas) deveriam simplesmente desaparecer. Perante a perseguição de que são alvo estas licenciaturas minoritárias (e todos podemos vir a cair nesta categoria a qualquer momento), a metáfora da biodiversidade está a ser usada para defender a necessidade de proteger inclusivamente as espécies menos numerosas, uma vez que a segurança está nos ecossistemas diversificados e não nos excessivamente especializados. A LERU (League of European Research Universities, associação que reúne algumas prestigiadas universidades europeias), num position paper em defesa da importância das ciências sociais humanas,6 chama a atenção para a necessidade de defender estes cursos ou os correspondentes conhecimentos minoritários. De facto, parece ser um conselho sábio, já que o futuro, neste momento, se apresenta totalmente imprevisível e não temos forma de saber o que poderá vir a ser útil no futuro à sociedade (e não já só ao negócio).

Em relação à investigação, o exemplo mais recente é o debate que suscitou o novo projeto europeu de investigação Horizon 2020. Este projeto propõe estruturar a investigação em torno de seis “grandes desafios”:

 

1. Saúde, mudança demográfica e bem-estar.

2. Segurança alimentar, agricultura sustentável, investigação marina e marítima e bio-economia.

3. Energia segura, limpa e eficiente.

4. Transportes integrados, verdes e inteligentes.

5. Ação climática, eficiência de recursos e matérias-primas.

6. Sociedades inclusivas, inovadoras e seguras.

 

De todos estes, apenas o último é especificamente dirigido para as ciências sociais e humanas, ainda que se admita que estas possam contribuir para os ­restantes enquanto contexto ou apêndice de projeto. Além disso, como fica claro, a ideia é que estes “desafios” sejam definidos pelas instâncias do poder político que, por sua vez, dão basicamente resposta às exigências económicas de “crescimento e competitividade” do programa Europa 2020. Estes grandes desafios “sociais” são, de novo, essencialmente “económicos” e, além disso, são definidos a partir de cima. A intervenção ou iniciativa dos investigadores está reduzida a um mínimo. No entanto, a consulta às instituições e aos investigadores que foi feita ao nível do Green Paper produziu uma reação muito importante da parte do coletivo de ciências sociais e humanas (publicámos na Newsletter 54 da EASA a nossa contribuição sobre este inquérito) que foi descurada.

As observações que se fizeram estavam em grande medida orientadas para (i) manter programas que permitam aos investigadores definir livremente os objetivos da sua investigação [curiosity-driven], (ii) fortalecer os programas de investigação/formação, em especial o programa Marie Curie, que ­permitam a incorporação de pós-doutorados num momento em que o panorama laboral está muito condicionado,7 (iii) manter a possibilidade de financiar “pequenos desafios” (projetos financeiramente mais pequenos), que permitem desenvolver investigações menos ambiciosas, mas amiúde muito necessárias e pertinentes (small is beautiful). O argumento de que os recursos em termos europeus são reservados para os “grandes desafios” e que os pequenos desafios devem competir ao nível do financiamento de cada país, volta a acentuar a diferenciação dos recursos disponíveis entre o norte e o sul da Europa, já que em países como a Alemanha as verbas nacionais para a investigação têm vindo a aumentar, enquanto diminuem nos países do Sul, sujeitos a ajustes estruturais.

Por outro lado, o que criou desde o primeiro momento muita resistência nos diferentes movimentos de defesa das ciências sociais e humanas, foi que o “desafio” reservado a estas disciplinas não só representaria uma ínfima parte do pressuposto geral, como, para além disso, fora colocado no pacote da “segurança” – termo ambíguo que pode entender-se como “segurança social” ou como “segurança militar”. Associações como a EASH (European Alliance for the Social Sciences and Humanities) propuseram, por um lado, desvincular a “segurança” do “desafio” para “sociedades inovadoras e inclusivas” e, para além disso, criar um outro “desafio” distinto, mais adaptado à filosofia das ciências sociais humanas, cujo título poderia ser “Entender a Europa no Contexto Global”.8 Pretendia-se, assim, sublinhar a ideia de que a diversidade de vozes e o pensamento reflexivo e crítico típico das ciências sociais e humanas era uma mais-valia para o conhecimento e não um empecilho. Assinalou-se também que estas disciplinas eram transversais a todos os outros “desafios”, que não eram meros apêndices, mas deviam estar presentes desde o início na definição dos objetivos de cada um dos “desafios”, em cada programa.

Outra questão que diz respeito à atual intenção de separar docência e investigação nos estudos superiores tem a ver com a definição do que se entende por “transferência de conhecimento”. Como já assinalámos, o objetivo fundamental das políticas de investigação é o fomento do “crescimento económico”. Quer dizer, considera-se “transferência” o conhecimento cuja aplicação é suscetível de exploração comercial. Neste sentido, é significativo que a docência universitária esteja expressamente excluída do conceito de “transferência”, o que realça a separação entre investigação e docência no âmbito da educação superior.

Por último, existem acusações reiteradas sobre a escassa relevância da investigação das ciências sociais e humanas para a “sociedade” (sobretudo comparando com outras ciências experimentais – engenharias técnicas, biotecnológicas, física, etc.), apontando a aparente incapacidade de transmitir as nossas conclusões. Contudo, em vez de assumirmos a responsabilidade pela falta de “relevância” dos nossos resultados (o que é patentemente falso), deveríamos imputar uma parte importante da responsabilidade deste “fracasso” ao pouco interesse que os poderes públicos têm pela utilização desses conhecimentos.

Um exemplo: um relatório sobre os resultados de alguns projetos em ciências sociais e humanas financiados pelo 6.º Programa-Quadro (2010 Research Report “Why socio-economic inequalities increase? Facts and policy responses in Europe”9) mostra uma desconexão surpreendente entre a investigação e a transferência dos resultados para as políticas públicas. De facto, quase todas as recomendações sobre o problema do aumento da desigualdade socioeconómica resultantes dos mais variados projetos foram não só totalmente ignoradas pela União Europeia, como parece até que os políticos responsáveis se dedicaram a fazer sistematicamente o oposto, nomeadamente incentivando a supressão dos serviços públicos fundamentais. Em suma, há que concluir que a questão da transferência de conhecimentos na área das ciências sociais e humanas é uma questão eminentemente política.

 

DESAFIOS E OPORTUNIDADES PARA A ANTROPOLOGIA

Neste contexto, o que devem fazer os antropólogos? Como defender a nossa especificidade e o valor do nosso trabalho? Como reforçar a nossa empregabilidade no mundo universitário e fora dele?

Parece existir um duplo movimento que, por um lado, desvaloriza a antropologia (dentro da lógica geral da pouca “utilidade” das ciências sociais e humanas) mas, por outro lado, e paradoxalmente, acaba por reconhecer a importância de alguns dos temas que a antropologia mais tem estudado. Entre eles, a “nova questão social” das mobilizações dos grupos marginalizados, muito para além da classe trabalhadora; da desestruturação social e da “falta de confiança” generalizada dos cidadãos em relação à “economia”; da inoperância dos sistemas de representação política; do ressurgimento da extrema-direita e dos nacionalismos xenófobos; do crescimento impiedoso da desigualdade e da pobreza; do aumento da polarização social; da chamada “perda de valores”; do aumento da fome; da “nova questão agrária”; das relações desiguais entre regiões, e por aí fora.

Os temas principais das ciências sociais e humanas são, regra geral, todos os que se definem como “momentos críticos” e que estão na ordem do dia: a crise económica, a crise da democracia, a crise de valores, a crise do cuidado, a crise da família, a crise do bem-estar, etc. Por outro lado, a ênfase nas “economias do conhecimento” acaba por empolar o potencial económico da “cultura” como objeto de consumo, obviando à sua relevância como processo de crescimento pessoal ou de melhoria coletiva. Também aqui, o potencial dos antropólogos para contribuir para este processo de valorização foi expresso pelas oportunidades relacionadas com o domínio da museologia, da medicina, do turismo, e tantos outros domínios em geral relacionados com as instituições públicas.

Em suma, as possibilidades de os antropólogos contribuírem com os seus conhecimentos para a atualidade são de facto muito numerosas, porque somos necessários para compreender as transformações e as mudanças sociais que estão em curso. Somos úteis, inclusivamente, para valorizar os recursos económicos e o seu impacto global. No entanto, na prática, nada disto parece ser reconhecido.

De facto, como ocorre sempre em momentos de escassez de recursos, às vezes até parece que as diversas disciplinas das ciências sociais e humanas estão em competição umas com as outras para desqualificar o vizinho e ­ocupar o lugar de “perito” em cada um destes campos. Por outro lado, paradoxalmente, reconhecemos a necessidade de colaborar com disciplinas próximas, ou não tão próximas, para abordar a complexidade de determinadas ­questões. A esta contradição, característica da economia política atual das ciências sociais e humanas, os antropólogos acrescentam duas tendências contraditórias: ou acreditamos poder ser peritos em tudo, ou pelo contrário, cremos que qualquer outra disciplina está mais bem preparada do que a nossa. Ambas as tendências são igualmente perigosas e penso que, em parte, foi isso que nos conduziu a este estranho limbo em que querem posicionar as ciências sociais e humanas. Para o superar não basta recorrer à moda da “interdisciplinaridade”, uma vez que nem sempre é útil para a questão a que queremos dar resposta. A interdisciplinaridade oculta, por vezes, o problema fundamental que devemos resolver.

De um ponto de vista interno à disciplina, o nosso problema agora é sermos capazes de definir com clareza qual a especificidade da antropologia social e ­cultural (incluindo essa diversidade e heteroglossia das antropologias do mundo) e como é que podemos contribuir para a amálgama do conhecimento humano – a ciência. A antropologia tem um método? As suas teorias são adequadas, diferenciadas e suficientemente plurais? Como é que temos contribuído até agora de forma diferenciada para o conhecimento? Qual é a nossa identidade, se é que temos uma? E se não temos, então onde reside a nossa força?

Embora dediquemos muitas horas a debater estas questões já desde há algum tempo, não parece que tenhamos chegado a uma fórmula que permita transmitir aos cidadãos tanto quanto aos nossos colegas o núcleo original e incontestável da nossa ciência. Às vezes, tendemos para o empirismo e a nossa definição cola-se ao método etnográfico (mas este não é exclusivamente nosso), outras vezes apontamos para a abstração que afirma que estudamos a alteridade, ou as relações sociais, ou os processos de transformação cultural, ou os modelos de comportamento, ou os aspetos da comunicação simbólica, etc. São demasiadas questões e, como diz um ditado espanhol, quien mucho abarca poco aprieta.10 Somos dispersos, o que talvez seja, afinal, a nossa principal força como disciplina. Mas essa não é uma boa estratégia de comunicação. Temos que ser capazes de consolidar um objetivo de base simples e partilhada, que mostre de forma clara a nossa especificidade. Esta especificidade permitir-nos-á ser criativos, alcançar distintividade, ir mais longe dos saberes já instalados. Esta é a base de uma profissionalização coerente. A partir daí devemos esforçar-nos por dar a conhecer o que fazemos no âmbito académico – às outras disciplinas – mas sobretudo fora dele, às instituições e aos cidadãos.

Mais ainda, precisamos de lutar por manter e ampliar os lugares específicos de transmissão dos nossos conhecimentos na universidade. Continuar a colaborar com outros lugares de conhecimento numa posição de orgulho disciplinar: avançar com os outros como iguais, conscientes de quais são as nossas forças e as nossas limitações.

Para tal, temos de unir-nos, como antropólogos e antropólogas, em associações que expliquem o nosso valor e defendam o que fazemos (como a APA em Portugal, ou na Europa o que está a tentar fazer a EASA). Mas devemos também unir-nos a outras disciplinas das ciências sociais e humanas, como por exemplo a EASH (European Alliance for the Social Sciences and Humanities), para atuarmos como grupo de pressão perante os organismos nacionais e europeus. Também é possível que se a pressão sobre as ciências sociais e humanas continuar a aumentar no atual contexto da crise (cortes orçamentais e desmantelamento das universidades), tenhamos de recorrer a técnicas de resistência mais informais: voltar a criar grupos de estudo e seminários fora do âmbito da universidade, marcados pela clandestinidade económica, e quem sabe se política – como os que, durante os regimes autoritários que dominaram o sul da Europa no século XX, deram origem a algumas das nossas instituições atualmente mais prestigiadas. Em todo o caso, avizinham-se tempos difíceis.

Para terminar como comecei, sublinho que, do meu ponto de vista, a estratégia a seguir é definir a nossa especificidade, melhorar a nossa comunicação, defender a continuidade da antropologia para as próximas gerações.

 

Notas

1 Palestra de encerramento na conferência “Ensino e práticas da antropologia em Portugal”, organizada pela Associação Portuguesa de Antropologia, a 2 de junho 2012.

2  Os chamados consejos sociales das universidades estão a ganhar cada vez mais importância no sistema de governo universitário. Este conselho é completamente distinto do “claustro” da universidade, que é eleito democraticamente, e que tem tido o peso determinante no governo das universidades.

3 Em Espanha, o claustro é a assembleia da universidade para a qual são eleitos representantes dos estudantes, dos professores e do pessoal administrativo. É o órgão mais destacado de representação da universidade e tem como função controlar a gestão dos cargos de governo e orientar a política universitária. Corresponderia, no caso português, aos agora manietados conselhos científicos.

4 O claustro é eleito democraticamente, ao contrário do consejo social, que é imposto pelos poderes públicos. Este último define-se como “o orgão de participação da sociedade na universidade” e compete-lhe supervisionar as atividades económicas, os rendimentos dos serviços universitários e “promover a colaboração da sociedade” no financiamento da universidade.

5 Neste momento trata-se apenas de um projeto. O reitor continua a ser eleito e não nomeado pelo consejo social, como se pretende instituir.

6 Que, todavia, não foi publicado – “Social Sciences and Humanities: Essential fields for European research. LERU advice paper on the Social Sciences and Humanities in Horizon 2020.”

7 Também aqui, no entanto, o tema da diferenciação norte-sul cria uma desigualdade nas oportunidades, que seguem na direção oposta às necessidades decorrentes dos “ajustes estruturais”.

8 http://www.eash.eu/openletter2011/docs/SSH_GrandChallenge_Draft_140411_olweb.pdf, consultado em 04-06-2012.

9 http://ec.europa.eu/research/social-sciences/pdf/policy-review-inequalities_en.pdf, ­consultado em 04-06-2012.

10  NT: em português o equivalente seria “Quem tudo quer, tudo perde”.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons