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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.208 Lisboa jul. 2013

 

Resgates sociológicos do corpo: Esboço de um percurso conceptual

Sociological rescues of the body: Outline of a conceptual path

 

Vítor Sérgio Ferreira*

*ICS-UL. E-mail: vitor.ferreira@ics.ul.pt

 

RESUMO

Este artigo pretende traçar o percurso conceptual que conduziu à desnaturalização do corpo de um ponto de vista sociológico e à sua autonomização enquanto objeto de estudo e área disciplinar específica no âmbito da sociologia. O resgate do corpo enquanto mero organismo biológico, caro às ciências biomédicas, por parte desta ciência social começou pela elaboração do conceito de “corporeidade”, posicionando o corpo enquanto construção sociocultural situada no tempo e no espaço; os conceitos de “incorporação” e de “excorporação” dão conta dos paradigmas que resgataram o corpo enquanto lugar de exercício de poder e que o posicionaram no debate entre estrutura e ação social; o conceito de “encarnação” resgata o corpo à mera condição de “objeto” ou “acessório” inerte a que os paradigmas construtivistas mais radicais o haviam remetido.

Palavras-chave: corpo; sociologia; corporeidade; incorporação; excorporação; reflexividade; encarnação.

 

ABSTRACT

This article will outline the conceptual route that resulted in the denaturalization of the body by sociology and the struggle for the body autonomy as an object of study and specific disciplinary area within this social science. The rescue of the body as mere biological organism dear to life sciences by sociology started with the elaboration of the concept of “corporeality”, positioning the body as a cultural construction located in time and space. The concepts of “incorporation” and “outcorporation” regard the paradigms that rescued the body as a place of exercise of power and that positioned it in the debate between structure and social action. The concept of “embodiment” rescues the body from the mere condition of inert “object” or “accessory” to which the more radical constructivists paradigms had confined it.

Keywords: body; sociology; incorporation; outcorporation; corporality; reflexivity; embodiment.

 

INTRODUÇÃO

 

O lugar relevante que o corpo tomou na sociedade contemporânea (Ferreira, 2008) tem-no transformado num objeto analítico fértil nas ciências sociais, no âmbito de diferentes tradições disciplinares e teóricas. A sua emergência na pesquisa e reflexão social tem sido de tal forma arrebatadora que há quem tenha diagnosticado uma espécie de histeria:

 

Em vários lugares, por vários nomes, e por muitas imagens, o “corpo” tomou recentemente uma presença quase obsessiva na cultura contemporânea, nomeadamente nos seus debates intelectuais. […] Espetacularizado de todas as maneiras pela cultura dominante dos media ao longo das últimas décadas, o corpo subiu pois aos palcos mais recentes da cultura erudita [Cruz, 2000, p. 363].

 

Resgatado como potencial objeto de estudo da antropologia, psicologia, filosofia, história, estética, linguística, semiótica, economia, ciência política, etc., o corpo viu-se simultaneamente livre das suas supostas determinações biológicas, e desfigurado nas suas múltiplas e profusas figurações teóricas. Aquilo que à partida parecia constituir um conjunto estável de atributos, relativamente familiares e evidentes, torna-se uma realidade parcelar onde, como apontou Merleau-Ponty, nenhuma das suas representações corresponde exatamente ao objeto representado (1993 [1962], pp. 230-231). Ou, como coloca Paulo Cunha e Silva, uma realidade fractal sobre a qual “só se pode falar fractalmente, isto é, através de um processo que celebre a sua diversidade, mantendo a unidade. Falar do corpo é falar dos seus fragmentos, sem receio de se ser insuficiente ou incompleto” (1999, p. 25).

Neste esforço pluridisciplinar1 que se faz sentir, o corpo tem deixado de ser equacionado enquanto realidade una e homogénea para ser colocado num lugar de interseção de múltiplos discursos (sociais, económicos, políticos, culturais, artísticos, etc.), cada um com uma variedade de pontos de vista, modelos de inteligibilidade ou elaborações conceptuais possíveis. Nesta perspetiva, e apesar de se revestir de uma natureza física muito objetiva, o corpo humano passou a constituir um objeto científico heteróclito na sua multidimensionalidade e polissemia.

Daí o interesse científico da sociologia, a par de outras ciências sociais e humanas, em aprofundar o saber sobre o corpo através do resgate conceptual da sua dimensão social: por um lado, por que as aproximações empíricas a esta realidade até há pouco tempo escasseavam na área das ciências sociais2, sobretudo da sociologia; por outro, por que sempre se tratou de uma realidade historicamente monopolizada pelas ciências da vida – elas próprias, como vários autores chamam a atenção (Le Breton, 1993; Leder, 1992; Turner, 1992; Williams, 2003), em grande medida produtoras de saberes responsáveis por muitos dos a prioris naturalistas e essencialistas que regem as vivências corporais, dado o grau de generalização e de legitimidade social auferido pelo discurso biomédico relativamente a outros discursos sobre o corpo. Não obstante a autoridade que tem enquanto saber “oficial”, o saber biomédico acaba por constituir uma abordagem limitada da realidade corporal, na medida em que ao “reificar o corpo como entidade autónoma, com fronteiras, estrutura interna e comportamentos ‘autopoiéticos’, perde o que de mais fascinante o corpo oferece, a sua incessante comunicabilidade, a sua abertura permanente ao meio” (Cunha e Silva, 1999, p. 24).

Situado na fronteira entre as ciências sociais e naturais, o corpo foi-se então tornando um objeto de estudo apaixonante para as ciências sociais. Na antropologia já o era há muito, desde a sua formação enquanto ­disciplina (Burkitt, 1999; Shilling, 1993, 1997a, Turner, 1995 [1991], 1997). Isto ­porque desde cedo o corpo do Outro funcionou como demarcador principal da ­alteridade, enquanto sustentáculo para a visibilidade da diferença e respetiva confirmação social, tendo as correntes da antropologia cultural ancoradas no darwnismo eleito o corpo humano como objeto fundamental de análise (Asad, 1997; Dias, 1996; Lock, 1993). Mas também porque à antropologia sempre interessou discutir as relações entre natureza/cultura e corpo/mente, tradicionalmente pensadas em termos dicotómicos no Ocidente. A partir de perspetivas etnográficas sobre formas de viver o corpo em contextos não ocidentais, muitas abordagens antropológicas vieram não apenas relativizar e integrar as dualidades historicamente enraizadas nas sociedades ocidentais3, como também desmistificar a representação moderna de um corpo universal, fazendo surgir os corpos particulares na grande diversidade das suas expressões, usos e significados.

A suposta independência entre biologia e cultura foi, durante muito tempo, uma das razões pelas quais a sociologia descuidou o corpo como objeto de estudo. Profundamente influenciadas pelo legado cartesiano do dualismo mente/corpo, traduzido na dicotomia entre a dimensão sociocultural e a dimensão biológica do ser humano, as correntes clássicas e dominantes da sociologia remeteram este segundo pólo para fora da esfera legítima de investigação e produção sociológica. Os sujeitos da sociologia tendiam a surgir desencarnados, e a prioridade era dada ao pensamento de um ator racional, às suas propriedades de consciência e razão, supostamente desconectadas do corpo (Shilling, 1993, 1997b, 2001; Shilling e Mellor, 1996).

Por outro lado, em reação às várias cambiantes teóricas do reducionismo biologicista, e por forma a evitar os riscos epistemológicos de naturalização dos comportamentos sociais que tinham disposições genéticas por fundamento explicativo, a sociologia evitava o corpo humano enquanto objeto de estudo, centrando-se no ator social como criador de signos e significados. É neste sentido, também, que Guibentif atribui o esquecimento do corpo por parte da sociologia clássica ao facto de esta privilegiar tradicionalmente o simbólico em relação ao material:

 

Talvez possa interpretar-se como uma reacção a este esquecimento do “material” o recente surto de interesse, no campo das ciências sociais, pelo que pode valer como material par excellence […]: o corpo. Reacção favorecida pelo aparecimento de novas procuras sociais de discursos sobre o corpo, oriundas do campo de diversas políticas sociais (nomeadamente saúde, prevenção da violência), bem como de outras práticas institucionalizadas ligadas ao corpo (desporto, tempos livres, modas vestimentárias e cosméticas, etc. [­Guibentif, 1991, p. 78].

 

Por último, o haver relegado para segundo plano o indivíduo a favor das estruturas e instituições coletivas, é também um argumento válido para explicar a negligência sociológica com o corpo (Turner, 1996 [1984], 1995 [1991], 1997), uma realidade de difícil abstração coletiva, na medida em que é habitualmente pensada em concreto, isto é, sempre relacionada a alguém (­Guibentif, 1991, p. 19). É neste sentido que Le Breton assevera nunca se ter visto um corpo: “vêem-se homens, mulheres. Não se vêem corpos” (1997 [1992], p. 25). Só como organismo é que o corpo existiria enquanto entidade abstrata relativamente à pessoa, sendo o organismo, porém, produto de uma experiência sábia socialmente salvaguardada às ciências da vida e da saúde.

Neste contexto, percebe-se por que foram poucos os olhares da sociologia, sobretudo entre as suas visões mais estruturalistas, que trouxeram para o centro da análise teórica e pesquisa empírica aquele objeto de estudo. Como afirma João Teixeira Lopes, “salvo raras excepções, o corpo constituía uma espécie de “anexo” das correntes mais poderosas da sociologia e mesmo da antropologia” (2004, p. 122). Só de forma tangencial, implícita, marginal, através de zonas de abertura proporcionadas pela investigação em campos como a saúde, o desporto, a religião, o poder, a tecnologia, o consumo, a moda, o género e a sexualidade, por exemplo, a sociologia reencontrava casualmente o corpo (Featherstone e Turner, 1995). Uma “sociologia em pontilhado”, como lhe chamou Le Breton (1997 [1992], p. 18), que se formava a partir de diversos tópicos analíticos.

Esta negligência sociológica tem vindo, todavia, a ser corrigida nos anos mais recentes. “O corpo já não é o ausente da reflexão social, como há cerca de três décadas denunciavam Bryan Turner ou Jean-Michel Berthelot”, afiança João Teixeira Lopes (2004, p. 122), chamando a atenção para o facto de, desde os anos 80, se ter assistido a uma ampla expansão do interesse sociológico pelo corpo. Esse movimento traduziu-se num crescente manancial de produtos académicos sobre o assunto, de natureza mais teórica ou empírica, sob a forma de livros, artigos, antologias, conferências internacionais, números especiais de revistas consagradas, ou até na criação de novas revistas especificamente focadas no corpo nas suas mais diversas dimensões, práticas e domínios sociais4. Daí para a frente, de objeto marginal, o corpo foi obtendo a sua centralidade no discurso contemporâneo da sociologia, chegando a ser tentada a sua autonomia específica enquanto área especializada desta ciência social. Ora, o objetivo primeiro deste artigo é, justamente, resgatar o desenvolvimento conceptual desse percurso.

 

POR UMA SOCIOLOGIA DA CORPOREIDADE: O RESGATE DA SOCIALIDADE DO CORPO

 

Face à proliferação de discursos sociológicos sobre o corpo, começaram a esboçar-se esforços de autonomização e legitimação de uma sociologia do corpo como área de estudo específica, na tentativa de produzir uma teoria capaz de dar conta da diversidade de abordagens sobre a realidade corporal. ­Elegendo explicitamente o corpo como objeto de estudo, um conjunto de autores preocupou-se em constituir e legitimar uma área com autonomia relativa no campo da sociologia, invocando o paradoxo entre a omnipresença do corpo na vida social com o seu silêncio analítico na vida sociológica. “É possível uma sociologia do corpo?” (Drulhe, 1982); “Uma sociologia do corpo faz sentido?” (Berthelot, 1982). “Por quê uma sociologia do corpo?” (Berthelot, 1983, p. 120), interrogavam-se, discutindo os estatutos epistemológico, teórico e metodológico dessa “nova” disciplina sociológica, os eventuais domínios a investigar, bem como os riscos próprios a essa empresa, considerando a fugacidade, diversidade e ambiguidade do objeto que pretendiam abarcar, não obstante a sua aparente ubiquidade, tangibilidade e objetividade.

Nomearam como seu objeto de estudo não o organismo humano, mas a corporeidade, enquanto conjunto de manifestações simbólicas da existência corporal, devidamente contextualizado no tempo histórico e no espaço social. Diz-nos Berthelot que “se entendermos por corporeidade o conjunto de traços concretos do corpo como ser social, diremos que uma dada sociedade define simultaneamente um certo espaço de corporeidade (ou seja, um número de possíveis corporais, formado por regras de conveniência na apresentação e na gestão do corpo) e uma certa corporeidade modal (ou seja, um conjunto determinado de traços valorizados)” (Berthelot, 1983, p. 128), consubstanciada em figuras e estruturas de corporeidade próprias a determinadas épocas, modeladas pelos contextos sociais e culturais em que emergem (Berthelot, 1998).

No resgate da socialidade do corpo, para empregar uma expressão de ­Maffesoli (1990a, 1990b, 1996), a abordagem sociológica distingue-se assim por uma aproximação que coloca o organismo humano in situ, ou seja, em ato e em contexto, um organismo que age e interage, que apreende e modela o espaço que ocupa, modulado quer na sua configuração estática (morfologia e fisiologia), quer nas suas propriedades dinâmicas (movimentos, gestos, mímica), a partir da sua inserção numa dada realidade histórica, da sua imersão num dado sistema social, político-ideológico, económico e simbólico situado no tempo e no espaço. Michel Certeau resume um dos pressupostos básicos na aproximação histórica e sociológica da corporeidade:

 

O que faz o corpo é uma simbolização socio-histórica característica de cada grupo. […] Numa palavra, cada sociedade tem o “seu” corpo, tal como tem a sua língua, constituída por um sistema mais ou menos sofisticado de escolhas entre um inúmero de possibilidades fonéticas, lexicais e sintáticas. Tal como uma língua, este corpo é submetido a uma gestão social. Ele obedece a regras, a rituais de interação, a teatralizações quotidianas. Tem igualmente os seus excessos, relativos a essas regras [Certeau, 1982, pp. 179-180].5

 

A aproximação ao corpo por via da corporeidade vem, portanto, focali­zá-lo enquanto realidade simbólica socio-historicamente localizada e construída, mutável de época para época, de formação social para formação social, nas imagens que o definem, nos sistemas de conhecimento que procuram elucidar a sua natureza, nos ritos que o colocam socialmente em cena, nos desempenhos que cumpre e que lhe são exigidos, no conjunto de valores e representações, de fantasmas e imaginários, de mitos e tabus, de normas e preconceitos, de tradições e ritualidades, de convenções e disciplinas, de fantasias e desejos, de discursos e utopias que sobre ele recaem e o densificam simbolicamente.

A corporeidade acabou por assumir o estatuto de axioma teórico-epistemológico transversal às várias “sociologias do corpo” que proliferaram no decurso dos anos 80, em resposta à problematização crescente do organismo humano na vida social. Axioma esse que vai fundar o que Shilling (1993) vem a designar como paradigma construtivista na abordagem sociológica do corpo6, por oposição ao paradigma naturalista emanado não só pela sociobiologia, mas também por algumas correntes do feminismo. No paradigma construtivista, o corpo é tomado não como uma identidade biológica natural, universal e pré-social, mas enquanto uma realidade culturalmente construída, um produto social e simbólico poderosamente modelado por forças históricas e processos discursivos.

O corpo nunca está “naturalmente” no mundo, chama a atenção Le Breton (1982, p. 223). Em última instância, o construtivismo mais radical nem sequer admite o valor e a ação de uma natureza do corpo: “o corpo é uma construção simbólica, não uma realidade em si”, na medida em que “as representações do corpo e os saberes que o atingem são tributários de um estado social, de uma visão do mundo, e no interior desta última de uma definição de pessoa. […] O corpo não é uma natureza. Nem sequer existe” (Le Breton, 1997 [1992], pp. 13-14, 25). Trata-se de uma ficção ou um mito (Certeau, 1982, p. 180), um simulacro produto de uma cadeia de signos (Baudrillard, 1972), uma realidade elusiva (Radley, 1995), um corpo fantasmático (Valabrega, 1972).

Nas abordagens informadas pela semiologia e/ou pela semiótica, essa visão desencarnada do corpo foi levada ao extremo. Entre estas, o corpo surge não apenas como uma realidade socializada mas, sobretudo, como uma realidade semantizada, matéria moldável pelo processo de semiosis. Em última análise, uma metáfora produzida, apreendida e reproduzida através de práticas discursivas e convenções linguísticas, enquanto locus de criação de significado. Nesta ótica

 

[…] o discurso semiológico esforça-se por retirar o corpo à sua corporeidade para ver nele o espaço da representação. O corpo desnaturaliza-se, desloca-se para uma postura significante, de um sentido que nele se inscreve […] para fazer dele signo ou sistema de signos [Babo, 1990, pp. 7-8].

 

A corporeidade apresenta-se, nesta perspetiva, na forma de estrutura textual, de sistema que “fala”, a cada instante, na gestualidade que lhe é impressa, nas emoções que expressa, nas técnicas que mobiliza, nas aparências que manifesta:

 

Corpo a corpo, lado a lado ou face a face, alinhados ou afrontados, o mais das vezes somente misturados, tangentes, pouco tendo a ver uns com os outros. Neste sentido, os corpos que não trocam propriamente nada enviam uns aos outros quantidades de sinais, de avisos, de piscadelas de olho ou de gestos sinaléticos [Nancy, 2004, p. 16].

 

Todo o vestígio que emane da superfície do corpo possui o valor semiótico de indício. Esses sinais comunicam mesmo que não haja emissão intencional de mensagens, em situações em que a capacidade de controlo das expressões corporais é limitada ou nula. Ainda que o indivíduo guarde silêncio, cada gesto, emoção, tonalidade, expressão facial, invoca subtilmente uma constelação de signos corporais ou infracorporais que, inevitavelmente, estabelecem laços comunicativos entre quem os envia e os recebe, exigindo aos interlocutores capacidades e gramáticas de produção e receção, de interpretação e decifração, de codificação e descodificação de uma suposta “linguagem corporal”.7

O trabalho de tradução intersemiótica que o “vocabulário corporal” convoca8 sempre se vislumbrou, todavia, tarefa árdua e ingrata, senão mesmo obsoleta. Se na sua dimensão anátomo-fisiológica o corpo se apresenta como evidência que va de soi, já a sua simbolização, ou seja, a linguagem corporal de que é investido é sempre enigmática, controversa, escorregadia, ambivalente. Numa palavra, polissémica: “tantos são os signos, tantos os sinais, as mensagens, os avisos que nenhum sentido definitivo pode saturar” (Nancy, 2004, p. 17). Nas palavras de Valabrega,

 

Se é verdade que a linguagem do corpo coloca problemas irresolúveis, em contrapartida “linguagem” e “corpo” parecem bem originalmente unidos por um laço simbólico indissolúvel. […] Fica em aberto a difícil questão de saber se estes “sistemas de signos” são ou não, em todo o rigor, linguagens ou línguas, e se podem ou não ser assimilados a um “sistema linguístico” [Valabrega, 1972, p. 33].

 

Maria Augusta Babo vai mais longe perante a mesma questão: nas suas palavras, “se pelo corpo perpassam processos de semiosis isso não quer dizer que o discurso semiológico possa reduzi-lo a um signo ou a um sistema de signos.” Na sua polissemia, o corpo “não é linguagem mas espaço da sua inscrição”, estando “ex-posto às múltiplas inscrições dos vários códigos que nele se vêem alojar” (Babo, 1990, p. 8). No mesmo sentido, Le Breton (1982, p. 225) já havia denotado como “o corpo manifesta a sua impregnação de uma simbólica social particular em todas as modalidades [de relação] que regista com o mundo”, enquanto espaço de comunicação suscetível de, segundo a situação, não apenas histórica e cultural, mas também de interação concreta, se inserir em regimes de significação diferentes.

É nesta perspetiva que se pode compreender como, na ausência de codificação tácita e instituída relativamente a alguns sinais corporais, ou consequente descoincidência entre gramáticas de produção e gramáticas de interpretação desses mesmos sinais, podem ocorrer equívocos e transgressões, voluntárias ou involuntárias, em atos tão simples e banais como um olhar, um sorriso, um cumprimento, um adorno ou um gesto que, sendo adequado num contexto ou situação, noutro pode ser tomado por ofensivo, ridículo, estranho. Percebe-se, ainda, como o corpo não é uma realidade permanente e universal: a sua inevitável implicação no movimento da história social – que o encontra sempre aberto, acessível a novas  modalidades semiológicas, a novos regimes de significação – faz com que a cada mudança temporal e/ou espacial, a ­configuração e a valorização simbólica da realidade corporal também se transforme.

Em síntese, tal como sucede com a linguagem verbal, também a “lingua­gem do corpo” se multiplica culturalmente, em diversas línguas corporais. Ainda que existam regularidades que, numa dada formação social, se reificam na forma de códigos sociais – códigos de apresentação, de postura, de ­emoção, de gestualidade, etc. –, o corpo é e será sempre um significante flutuante9 (Babo, 2001, p. 1; Gil, 1980, p. 10, 1988, p. 124), de estrutura sígnica por definição ambígua, ambivalente e indeterminada. “O corpo não é incorporação de uma simbólica petrificada, mas de uma simbólica viva, que se inscreve numa ligação permanente com o futuro desta ordem aproximativa e sempre em mudança que é uma sociedade”, argumenta Le Breton (1982, p. 231). Como decorrência, o autor alega que

 

[…] face a uma mesma realidade, os corpos atravessados por culturas diferentes não descrevem os mesmos stimuli e não provam as mesmas sensações: eles são, cada qual, sensíveis às informações que reconhecem e que reenviam ao seu sistema de referência próprio [Le Breton, 1991 [1985], pp. 67-68].

 

Em cada instante, o corpo interpreta o seu contexto e age sobre ele em função das orientações que recebe da ordem simbólica que incorpora. Todas as suas manifestações se enquadram nos limites da cultura que representa, pelo que, enquanto corporeidade, o corpo não pode ser avaliado fora do contexto sociocultural que o enquadra. Do mesmo modo, é de relevância fundamental na análise de um dado contexto considerar o enquadramento que dá aos seus corpos, conhecer a cultura somática que enforma a experiência corporal, para utilizar um velho conceito de Boltantsky (1975) ainda bastante heurístico de um ponto de vista analítico.10

 

DA INCORPORAÇÃO À EXCORPORAÇÃO: O RESGATE DO PODER SOBRE O CORP

 

POR UMA SOCIOLOGIA DA INCORPORAÇÃO

 

Não deixando de presumir o corpo enquanto universo de significações e de valores sociais, algumas propostas teóricas foram mais longe no sentido de localizar as configurações simbólicas de que é investido e as práticas que reproduz num quadro de relações sociais mediadas por estruturas de poder. O corpo não está, efetivamente, consignado ao estatuto de espaço de ­inscrição de texto, situado num contexto social e ideológico, enquanto pretexto para inumeráveis discursos que visam fechar a sua realidade fugidia. Vislumbra-se também uma textura, uma trama de inscrições da lei, da memória, do poder, das instituições e das pessoas em geral, em interação corpo a corpo. O corpo encontra-se efetivamente inserido num caleidoscópio de relações e de instituições sociais, de forças históricas e políticas, onde está sujeito a formas de controlo e disciplina, constituindo também foco de contestação, resistência e luta social. Daí a importância fundamental de não ficar pela “carga semântica” inscrita no corpo, mas considerar também o “poder energético” dos signos que nele são inscritos, as “forças que eles captam, encerram, e por que mecanismos são susceptíveis de desencadear certos efeitos [práticos]” (Gil, 1988, p. 11).

Desde a sua eleição como objeto das ciências sociais, o corpo tem tido um enfoque privilegiado enquanto lugar de exercício de poder. Já na antropologia, ciência social que iniciou esta abordagem de forma mais sistemática, a constante troca simbólica entre “corpo natural” e “corpo social” era recorrentemente analisada com o propósito de compreender as condições socio­simbólicas em que a experiência física medeia e reforça a experiência social. Na análise de Mary Douglas, o corpo é tido como o mais “natural”(lizado) e privilegiado meio de classificação social, onde as normas associadas ao seu controlo individual emergem como poderoso meio de controlo social (2000 [1970]). A naturalidade e disponibilidade com que o corpo físico atua em sociedade deixa-o vulnerável ao poder simbólico de doutrinas cosmológicas, religiosas, políticas e outras “teorias morais” produtoras de modelos classificatórios. Esse poder é exercido através da incorporação de categorias e regras socialmente construídas em torno das suas características fenotípicas, diacríticas, gestos e processos orgânicos, construções essas, por sua vez, reproduzidas e vividas pelos indivíduos de uma forma naturalizada e universalizada. O corpo acaba, assim, por emergir analiticamente construído como locus privilegiado de expressão, reprodução e reforço dos padrões de relações sociais e das estruturas de poder que lhes são imanentes.

Pense-se, por exemplo, em categorias tão naturalizadas na aplicação à realidade corporal como “pureza”, “repugnância”, “pecado”, “vergonha” ou “pudor”, entre tantas outras. No âmbito desta problemática, Douglas analisou em profundidade a forma como, no quotidiano das sociedades tradicionais, a distância social tende a ser expressa em distância fisiológica e vice-versa. Segundo a autora, a forma mais “natural” de investir na dignidade de uma dada situação social é camuflar os processos orgânicos que lhe estão necessariamente subjacentes (ruídos, fluidos, excreções, estados emocionais mais exacerbados no gesto e na palavra, etc.), assumindo esses mesmos processos como idioma de distância social, símbolos “naturais” que servem para pensar e representar relações sociais como as de género, de amor, de sexualidade, etc. Daí que quanto mais elevada é a pressão social envolvida em determinada situação, mais a conformidade tende a ser expressa através da procura do controlo físico da situação. Ao invés, quanto mais relaxada é a situação social, menor é o controlo social imanente e, consequentemente, maior o abandono pessoal sobre os processos orgânicos (Douglas, 1967).

Também Norbert Elias, no contexto da história das sociedades ocidentais europeias, veio a encontrar no corpo um símbolo de distância social por excelência, enquanto lugar de demonstração de civilidade, habilitado a representar distinção e estatuto. Nas suas palavras, “era na etiqueta que esta distância, enquanto fim em si, encontrava a sua expressão mais perfeita” (Elias, 1989 [1939], p. 75). No âmbito do que designou de processo civilizacional, a ­exibição de um elevado autocontrolo sobre o corpo veio a tornar-se um importante símbolo de refinamento cultural e distinção social, expressão de valores de contenção e discrição aristocrática (Elias, 1989 [1939]; 1990 [1939]). Em termos mais latos, no lento processo histórico de mudança sociogénica e ­psicogénica de que o autor dá conta, o corpo, nas suas várias funções, impulsos, ações e emoções, foi sendo sujeito a mecanismos de regulação interna e externa cada vez mais intensos no sentido da adaptação aos padrões e convenções normativas associados ao que entendia ser um “corpo civilizado”. Nesse processo, a necessidade de auto-regular cuidadosamente o próprio ethos corporal enquanto marca distintiva de uma “personalidade civilizada” passou, em grande medida, pela internalização pessoal e a operacionalização social de categorias como as acima enunciadas.

Embora sujeitos a mecanismos de controlo e regulação social do corpo diferentes dos que estes autores descrevem para sociedades tradicionais ou remotas, os corpos ocidentais contemporâneos continuam igualmente ­sujeitos a fortes mecanismos disciplinares e punitivos de regulação social. O exercício legítimo de tais mecanismos não se encontra apenas nas mãos de instituições e saberes como a medicina, a psiquiatria, a educação, o direito, ou o próprio Estado, mas é implícito a todas as relações sociais, forjando um controlo tanto mais eficaz quanto mais naturalizado. Esta é a posição de ­Foucault (1979), para quem os corpos se disciplinam a eles próprios e uns aos outros, micro-fisicamente, “disseminando-se por todo o tecido social e desmultiplicando-se em instâncias que não as do aparelho de Estado” e, por esta via, transformando as sociedades modernas em somocracias11 (Cascais, 2004, p. 45). Tal sucede, na versão de Foucault (1969), aquando da transição da sociedade moderna ocidental de uma sociedade disciplinar para uma sociedade de controlo12, em que os mecanismos de regulação social sobre o corpo não são apenas exercidos por instituições e saberes disciplinares, exteriores aos indivíduos, mas mediados por imagens e respetivas linguagens individualmente incorporadas e socialmente reproduzidas, a partir das quais se estrutura o simbólico-corporal e as relações com as demais corporeidades, tanto em público como em privado.

Na sociologia, os ensaios de Foucault sobre as formas como as relações de poder penetram e exercem a sua ação sobre os corpos ocidentais – não obstante a natureza predominantemente histórica e filosófica da sua obra – foram de facto paradigmáticos no âmbito desta problemática. Nas suas palavras,

 

É preciso começar por descartar uma tese muito difundida segundo a qual o poder nas nossas sociedades burguesas e capitalistas havia negado a realidade do corpo em proveito da alma, da consciência, da idealidade. Com efeito, nada é mais material, mais físico, mais corporal que o exercício do poder [Foucault, 1979, p. 105].

 

Institucional ou informal, a política do corpo13, tal como Foucault a ­concebe, é sempre de ordem relacional e prática, através da aplicação de fórmulas políticas como a criminologia, o eugenismo ou a segregação, ou tão-somente através de um trabalho insistente, obstinado, meticuloso, diário e praticamente invisível – de agentes representantes de instituições como a religião, a família ou corporações de natureza diversa –, sobre a sexualidade, a imagem do corpo ou os seus usos e desempenhos. A política do corpo diz respeito a ações que remetem diretamente para a questão da materialização do poder e do controlo social sobre os corpos dos indivíduos, na medida em que implicam a ­inibição de determinadas atividades corporais, a sua conformação a determinadas imagens, a sua formatação a determinados gestos, forçando o corpo a realizar certo tipo de tarefas, a participar em certas cerimónias, a incorporar determinados signos socialmente codificados e instituídos.

A análise tecida a partir desta perspetiva tem-se dedicado, em boa parte, à compreensão do corpo como lugar de contenção, inscrevendo-o na teoria sociológica sobretudo como recetáculo passivo de repertórios de competências, códigos e técnicas (Wacquant, 2003a, p. 171) que, ante a força de mecanismos e processos sociais mais amplos, ele aprende e usa, o inscrevem e ele reproduz; como objeto em conformidade submetido quer ao exercício de poderes disciplinares exteriores que o tentam repetidamente reprimir ou docilizar (Foucault, 1999 [1975], 1994a [1976], 1994b [1984], 1994c [1984]), controlar e civilizar (Elias, 1995 [1991]), quer aos dispositivos de autovigilância socialmente disponibilizados para que o indivíduo, ele próprio, seja responsável pelo controlo das respetivas emoções, posturas e dramatizações.

A incorporação surge como conceito-chave nesta tradição analítica, dando conta do processo corporal de

 

[…] interiorização não-verbal, inconsciente, mimética, automática, de certas ­disposições de desigualdade e de poder; mas não só como interiorização – também como reprodutor dessas realidades, seu confirmador constante pelo simples facto de estar lá, de aparecer, de ser. É a este nível micro, quase imperceptível, da incorporação dos esquemas de diferença e de desigualdade, que se joga uma política de baixa intensidade, uma política de difícil intervenção por parte da usual macropolítica. É a política do face a face, do encontro casual de rua, da visibilidade confirmadora do que nos rodeia [Vale de Almeida, 2004, p. 30].

 

Olhando-o pelo lado da incorporação, o corpo é tratado como lugar de inscrição de sentidos aptos a gerar diversas redes metafóricas, todavia lugar sígnico que reflete ele próprio uma determinada posição social na estrutura de relações de poder (que pode ser de classe, mas também de género, de “raça”, de orientação sexual, etc.). O social, por sua vez, visto como incorporado, deixa de ser da ordem da abstração, para corresponder ao “implícito expresso pelo corpo no decorrer interactivo da ação. […] A incorporação aparece como dimensão do processo de socialização através do qual se auto-constrói e se auto-mantém a vida social” (Drulhe, 1987, p. 6). É uma categoria conceptual que concede ao corpo o estatuto de operador social, onde se revela a eficácia do social sobre o indivíduo e, reciprocamente, onde o social se torna possível (Berthelot, 1986, p. 158; Drulhe, 1987, p. 5).

Esta visão estruturalista sobre o corpo tem em Bourdieu o seu expoente máximo, para quem a incorporação é analisada enquanto duplo movimento de interiorização da exterioridade (isto é, das condições objetivas de existência do agente incorporado) e de exteriorização da interioridade (sob a forma de perceções, representações, esquemas de classificação da realidade e práticas por parte do agente incorporado), processo biunívoco supostamente gerado por um mesmo princípio orientador, o habitus, frequentemente ignorado pelo agente social, mas reconstruído pelo sociólogo. O habitus surge, assim, entendido como “corpo biológico socializado, ou como social biologicamente individuado pela incorporação num corpo” (Bourdieu, 1998, p. 138), perspetiva que manifesta uma conceção sobressocializada da ação corporal, “investindo na prática princípios organizadores socialmente construídos e adquiridos no decorrer de uma experiência social situada e datada” (Bourdieu, 1998, p. 120).

Com efeito, embora Bourdieu dê ao corpo um estatuto fundamental na relação que o agente estabelece com o mundo, enquanto operador da sua “presença no mundo, de ser e estar no mundo, no sentido de pertencer ao mundo” (Bourdieu, 1977, p. 51), essa relação é entendida como uma relação de posse do corpo por parte do mundo (social). O corpo funciona como operador através do qual o sujeito apreende o social e o naturaliza, lugar onde é evidenciada a naturalização do arbitrário cultural e social. Acaba, desta feita, por ser tido como um lugar tendencialmente reprodutor da ordem do mundo. A própria exteriorização corporal do habitus é concebida, no esquema conceptual de Bourdieu, de uma forma mecânica, reprodutiva, da ordem do hábito pré-reflexivo ou dotado de uma reflexividade pouco densa, de intenção sobretudo mimética.

Os processos de incorporação operam através da ação pedagógica quotidiana (“põe-te direito”, “segura a faca com a mão direita”), ou através dos ritos de instituição, ação psicossomática exercida através da emoção e do sofrimento, psicológico ou mesmo físico, “nomeadamente o que se inflige inscrevendo signos distintivos, mutilações, escarificações ou tatuagens na própria superfície dos corpos” (Bourdieu, 1998, p. 125). Nesta ótica, o corpo bourdiano, como atenta Teixeira Lopes, “embora fora das grilhetas cartesianas, permanecia aprisionado pela circularidade da incorporação socialmente determinada. Corpo domesticado, de certa forma” (2002, p. 61).

Para sair desta circularidade, a abordagem sociológica do corpo teve de ir além da sua conceção como lugar de atuação disciplinar, olhando-o também como lugar de oposição, resistência e emancipação social. A mobilização social do corpo não está efetivamente reduzida a mecanismos que operam no sentido da sua sujeição e contenção, nomeadamente quando o sujeito investe em usos corporais que têm na sua base a intenção de desafiar a ordem corporal e social existente (Ferreira, 2008). Daí que, em termos conceptuais, o corpo também seja passível de ser socialmente apropriado enquanto instância de contra-poder, na medida em que nele também há lugar para a reação e a enunciação (Hardin, 1999, pp. 84-85).

Torna-se espaço de reação quando, fugindo aos dispositivos de vigilância e disciplina corporal instituídos, é apropriado no sentido de desafiar a legitimidade dos padrões de corporeidade dominantes, bem como a autoridade dos que produzem e reproduzem esses mesmos padrões, insurgindo-se espetacular ou intimamente contra determinadas convenções normativas e prescritivas que regem a integridade corporal. É lugar de enunciação quando essas mesmas ações, muitas vezes de aparência eminentemente estética, são tomadas como recurso expressivo de convicções éticas, sociais e políticas, no sentido amplo do termo.

Ainda que Foucault, ao identificar a emergência de um corpo biopolítico14 como um ato fundador da modernidade, reconheça a hipótese do corpo ser utilizado enquanto recurso crítico na luta pela rearticulação dos termos da sua própria legitimação simbólica, ele tende, simultaneamente, a negar a possibilidade dos corpos operarem com sucesso como lugares de resistência ao poder. Para aquele autor, as habilidades individuais no uso político deste recurso são altamente limitadas pelos dispositivos hegemónicos de poder, na medida em que, quando os corpos tentam subverter e resistir às disciplinas que lhes são impostas, o poder responde com um modo de controlo inteiramente novo no sentido da sua docilização (Foucault, 1979).

Independentemente dos limites da sua eficácia, o facto é que o poder que microfisicamente impregna todos os corpos, também designado de biopoder15, tanto se pode manifestar em ações socialmente constrangidas, como em ações socialmente libertárias, potencialmente produtoras de efeitos sociais e simbólicos mais ou menos calculados. O corpo tem sempre, em potência, essa dupla capacidade de se revelar lugar não apenas de conformação social, mas também de confrontação social, de forças ativas e reativas, de controlo e resistência, de autoridade e subversão, de contenção e excesso, de disciplina e transgressão, de poder e evasão, de alinhamento e oposição, de reprodução e inovação, de dominação e agenciamento, de subordinação e emancipação.16

 

POR UMA SOCIOLOGIA DA EXCORPORAÇÃO

 

Se a análise dos processos de incorporação tem proporcionado um conhecimento profundo sobre a forma como os mecanismos de docilização e a reprodução social atuam através do corpo, recentemente começou-se a olhar com mais atenção para o que eu chamo de dinâmicas de excorporação – ou seja, para as práticas de exibição e ostentação social do corpo, materializadas em manifestações expressivas que decorrem de opções e decisões do sujeito, atos de vontade conscientemente ponderados e projetados relativamente aos usos e investimentos que faz no corpo, com significados, objetivos e efeitos mais ou menos calculados. Em suma, o que designo por excorporação refere-se, em grande medida, às propostas teóricas que ambicionam analisar as práticas reflexivas e voluntárias mobilizadas pelo agente social no sentido de (re)construir, manter e dar a ver o corpo, no seu todo ou partes específicas. Trata-se de um conceito que não deve ser tomado como oposto ao de incorporação, na medida em que a capacidade que o corpo tem em se excorporar se faz sempre, inevitavelmente, sobre e a partir do que foi incorporado, considerando que não existe um corpo realmente natural, vazio de incorporações.

A relevância heurística da abordagem às práticas de excorporação está no facto dela considerar analiticamente a agência do indivíduo sobre o próprio corpo, pressupondo a subordinação dos modos de ação do corpo (atos do corpo) e dos modos de ação sobre o corpo (atos sobre o corpo) a uma intenção reflexiva. Neste pressuposto, o indivíduo passa a ser encarado não apenas como sujeito ao seu corpo (biológico e social), mas também sujeito do seu corpo. Nesta medida, as práticas de excorporação implicam um duplo movimento: desde logo, um movimento de desnaturalização do corpo, que passa pelo afastamento de atitudes que o tomam como um dado adquirido no curso de vida;17 concomitantemente, um movimento de planificação e execução de estratégias de recriação de um outro corpo.

Olhar para o corpo na ótica da excorporação implica, portanto, tomá-lo na sua condição de objeto de reflexividade. Conceitos como o de “reflexividade corporal” (Giddens, 1997 [1991]) ou de “reflexividade carnal” (Crossley, 1995, 2005) dão conta dessa dinâmica de sobre-consciencialização da fisicidade presente em segmentos sociais cada vez mais alargados na sociedade contemporânea ocidental: como refere Balandier, hoje, cada vez mais, “o corpo, desde sempre visto como um aparato mecânico, submete-se à soberania do espírito; a união da matéria e da forma é de início pensada enquanto relação de dominação, apropriação e comando do segundo sobre o primeiro” (Balandier, 1997 [1985], p. 23).

Há inclusive quem acuse estas teorias de prolongar a visão cartesiana que conceptualiza de forma binária a relação entre mente e corpo, submetendo o segundo à prevalência do primeiro. Tais críticas argumentam que as propostas da reflexividade corporal estão essencialmente comprometidas com a mente, ao sobre-enfatizar o pensamento cognitivo como mediador da agência e da estrutura, e ao negligenciar a mediação somática e as bases encarnadas da ação social como modo de implicação primário com o mundo. A ênfase no processo de reflexividade produziria um ator social cuja mente toma o controlo do corpo, uma consciência desencarnada e não um agente possuidor de sentidos, sensualidades e hábitos físicos que foram parcialmente socializados, mas que também formatam a ação e as estruturas sociais (Budgeon, 2003, p. 37; Shilling e Mellor, 1996, p. 4; Turner, 1992, p. 87).

Qualificativos como sociedade somatófila (Pais, 1998), corporeísta (­Maisonneuve, 1976) ou somática (Turner, 1992), são designações para a sociedade contemporânea que, no fundo, salientam uma vivência social onde a consciência do corpo e do valor do capital físico (Shilling, 1991, 1997a; ­Wacquant, 1995) é bastante mais elevada, bem como a possibilidade da sua modificação. E esse facto social, analiticamente reconhecido e tratado por Giddens, não entra inevitavelmente em contradição com uma postura ­analítica que privilegie como objeto o papel das bases ­necessariamente ­encarnadas da ação social. São planos analíticos diferentes, realizados a partir de diferentes recortes da realidade, podendo até complementar-se do ponto de vista da constituição de uma sociologia do corpo. O reconhecimento do aceleramento e difusão do controlo e monitorização reflexiva do corpo, concretizada na decisão do agente perante um conjunto de opções e escolhas cada vez mais alargado sobre esse suporte, não faz da reflexividade corporal uma condição básica para a ação incorporada de todos os agentes, e não anula tão-pouco todas as ações do corpo e sobre o corpo “naturalmente” empreendidas.

Na atual cultura somática, o corpo já não é efetivamente concebido como uma realidade pré-definida, fixa e inviolável, um destino herdado para ser conservado e para se reproduzir “naturalmente”. O corpo é cada vez mais tratado e apropriado como materialidade contingente e volátil, compósita e inacabada, suscetível de ser explorada, projetada e modificada sob diferentes modalidades. Para isso conta com uma cada vez mais diversificada panóplia de meios técnicos oferecidos pela ciência, divulgados pelos media e disponibilizados pelo mercado, sistema que institui uma cada vez mais vasta e poderosa indústria de design e engenharia corporal.

Neste contexto, o conceito de reflexividade adaptado ao corpo pressupõe por parte do sujeito uma perceção distanciada e consciente perante o seu corpo, tratado como um acessório relevante no seu projeto de identidade como se de um alter-ego se tratasse (Le Breton, 2000, 2004), suscetível de ser mobilizado no sentido de realizar uma identidade desejada. A reflexividade carnal corresponde, assim, à capacidade de o indivíduo olhar sobre o corpo como algo de seu mas, simultaneamente, exterior a si, acedendo, simultaneamente, a uma perspetiva fora sobre si próprio. Trata-se de um processo que implica o

 

[…] paradoxo máximo da auto-reflexividade: a exterioridade do sujeito face à imagem; ou, dito de outro modo, a exterioridade máxima da imagem face ao sujeito. […] [A reflexividade] exige pois um dispositivo opaco que lhe devolva a imagem como se o próprio olhar, autonomizando-se e saindo para fora do corpo, se pudesse, só então, apropriar dele [Babo, 2000, p. 336].

 

A reflexividade carnal implica, portanto, um processo de objetificação do corpo na sua carne, um processo de descentramento percetivo do corpo como algo exterior a si, um corpo que se tem. Mas que se tem para ser, nomeadamente para ser quem ainda não se é. Todos temos e somos um corpo. Esta alusão ao trabalho de Merleau-Ponty é uma das mais recorrentes – provavelmente já cliché – na literatura sobre o corpo. Trata-se, no entanto, de uma importante distinção analítica, na medida em que nela é jogada a possibilidade de distanciação entre o corpo enquanto estrutura concreta (carne) e o corpo enquanto matéria simbólica (corporeidade), na qual se funda a capacidade individual de poder manipular e modificar a carne de uma forma criativa e inovadora, no sentido da conformidade ou contestação dos modelos corporais hegemónicos.

O desenvolvimento de uma postura reflexiva perante o corpo permite ao sujeito tornar o corpo um objeto para si próprio e experimentar-se enquanto sujeito da sua carne. Isto é, um sujeito que não se entrega naturalmente ao seu corpo, como se de um destino fatal se tratasse, mas que sente que o pode experimentar e alterar, na sua estrutura (morfológica e fisiológica) e hábitos (imagéticos, cinéticos e sensoriais). Esta dinâmica reflexiva implica por parte do sujeito carnal intencionalidade na ação do corpo ou sobre o corpo, envolvendo a capacidade de produzir discursivamente, para si próprio e/ou para os outros, os seus sentidos, de elucidar as suas justificações, de analisar os riscos (físicos e sociais) que envolve, de prever os efeitos que decorrem da ação do corpo ou sobre o corpo.

A perspetiva sobre as dinâmicas de excorporação não deve, porém, arriscar-se a ficar refém de uma ótica ensimesmada e centrada num homo clausus. Aliás, um dos principais perigos para o cientista social que estuda o corpo humano é, como atenta Pina Cabral, o “pessoalismo”, ou seja, o risco de “exacerbar da importância da pessoa física, tratando-a como se fosse uma unidade elementar da vida sócio-cultural. Quer dizer, no discurso antropológico recente, a ênfase posta sobre o corpo, a consciência e o self tende a empolar a importância do indivíduo, reduzindo o significado teórico de formas de identidade e agencialidade suprapessoais” (Cabral, 1996, p. 201). Em sentido análogo, numa crítica explicitamente dirigida a Giddens e aos seus seguidores, João Teixeira Lopes atenta no facto de “quão indesejável é, do ponto de vista analítico, reduzir a importância do corpo à unidimensionalidade de uma visão reconfortante sobre a contemporaneidade, assente, meramente, na experiência reflexiva e emancipadora” (2004, p. 126).

Analisar a postura reflexiva perante o corpo deverá vir a par de uma perspetiva intersubjetiva da ação do corpo e sobre o corpo. O corpo só é objeto para o sujeito quando este tem consciência de que é também objeto para os outros, de como as suas diferenças corporais são codificadas dentro de determinados esquemas e categorias de representação e classificação. O conceito de imagem corporal traduz esse movimento intersubjetivo da reflexividade carnal: sendo crucial na reconstrução da forma como o sujeito se pensa e se sente fisicamente, como experiencia e expressa corporalmente as suas emoções, é, em simultâneo, um produto reflexivo sensível ao contexto sociocultural e ­histórico em que se insere. A imagem do corpo não corresponde tão-somente a uma realidade anátomo-fisiológica, na medida em que nela está integrada toda uma vida corporal significativa, um corpo vivo e vivido de prazeres, sofrimentos, desejos, angústias, estádios morfológicos, fisiológicos e cinestésicos variados, figuras de referência corporal diferenciadas, etc.

Por outro lado, a imagem corporal é necessariamente tão física como psicológica e social, na medida em que todos os aspetos da imagem corporal (perceções, representações, classificações, avaliações) são desenvolvidos e construídos dentro e através das relações sociais, constrangendo a forma como o sujeito se apropria do seu próprio corpo e se relaciona com o corpo dos outros. Como sugere Agostinho Ribeiro,

 

É natural que, ao representar o seu corpo (na terceira pessoa), o indivíduo o avalie pelo confronto com modelos (por exemplo, de estética) […]. A imagem do corpo tem de facto um determinado valor para o sujeito, e é com base nesta cotação que ele define atitudes e organiza comportamentos no plano social. E a nota que atribui ao corpo conta, com um peso significativo, para a sua auto-estima [Ribeiro, 2003, p. 50].

 

Olhar para o corpo na ótica da excorporação implica, portanto, tomar o corpo não apenas na sua dimensão reflexiva, mas também na sua condição expressiva e comunicativa (Crossley, 1997; Falk, 1995; Polhemus e Benthall, 1975), virado para o exterior enquanto display nos termos de Radley (1998). Daí, inclusive, o prefixo excorporar: o corpo não providencia apenas um território existencial para o self (Csordas, 1990, 1994), mas também um território de representação deste para alter. Ao mesmo tempo que é ressoador, simbólico e sensível, de registos culturais e estruturas sociais, o corpo é também tela que se interpõe em todas as relações, do próprio consigo mesmo e com os outros. Pertencente ao mundo do visível e sensível, o corpo é o “cordão umbilical com o social. Ser social é em primeiro lugar ser intercorporal” (Jung, 1996, p. 5). Sobre o corpo recaem determinados investimentos que estruturam não apenas a relação do self com o seu próprio corpo – intracorporalidade ou subjetividade carnal –, como as interações do corpo próprio com os outros corpos que com ele se cruzam – intercorporalidade ou intersubjetividade carnal.

O corpo, na sua condição expressiva, envolve sempre a co-presença de outros. Apesar de ser o signo de referência e reverência da individualidade, através do qual o self se reconhece enquanto si-próprio, o corpo participa com igual valor simbólico na apresentação de si ao mundo pela visibilidade que o implica em situações de interação social. A apresentação do corpo, ou a sua “fachada”, como lhe chama Goffman (1993 [1959], 1988 [1963]), potencialmente investida de uma variedade de significados, ocupa um lugar privilegiado na troca simbólica intrínseca à vida social. Contextualizado e interpretado num conjunto específico de convenções, representações e valores sociais representativos de uma dada cultura somática, o corpo dá-se a ver, a ser percebido e etiquetado segundo categorias de perceção e sistemas de classificação social, nele também ganhando expressão privilegiada categorias historicamente reificadas como as de género, raça ou idade, por exemplo. O corpo torna-se, assim, num eixo axial de categorização no âmbito das relações sociais quotidianas, nomeadamente das que são vividas face a face, ou melhor, corpo a corpo, no decorrer dos ritos de interação – essa “classe de acontecimentos que têm lugar aquando de uma co-presença e em virtude dessa co-presença” (Goffman, 1974, p. 7).

Neste contexto, qualquer intervenção voluntária na sua superfície (pre)tende a ser olhada, julgada e classificada em função de um conjunto de ­normas e de representações sociais. Sendo que, inevitavelmente, as relações que os indivíduos estabelecem com a sua própria imagem corporal encontram a sua “essência” no reconhecimento por parte de outros das categorias de perceção que lhe são aplicadas. Como afirmam Maisonneuve e Bruchon-­-Schweitzer,

 

[…] em matéria estética não se trata apenas de salvar as aparências mas, mais ambiciosamente, de agradar agradando-se a si próprio”. É que as reações dos outros ao corpo que lhes apresentamos vêm “confirmar ou não a experiência do nosso espelho, fortificando ou amortecendo a nossa imagem do corpo, lugar muito sensível da nossa identidade [­Maisonneuve e Bruchon-Schweitzer, 1999, p. 27].

 

Quer busque a conformidade com o modelo, quer cultive a originalidade e a diferença, quem investe na aparência corporal espera sempre algum tipo de retorno social, de reconhecimento, seja na forma de admiração, estranheza, aversão ou até de indiferença pela discrição (Dostie, 1988, p. 68).

 

POR UMA SOCIOLOGIA DA ENCARNAÇÃO: O RESGATE DO CORPO VIVO, VIVIDO E EM DEVIR

 

As propostas atrás espelhadas puseram em prática um processo de desnatura­li­zação do corpo humano – quer na suposta neutralidade, universalidade e objetividade que o saber biomédico lhe concedia enquanto organismo; quer na aparente naturalidade, unidade e evidência da incorporação quotidiana. As qualidades supostamente “naturais” e “orgânicas” foram desconstruídas ao incluir o corpo na cultura e na história, bem como numa estrutura de relações verticais e de poder, sujeito a processos de dominação, de resistência e de reflexividade.

No entanto, no mesmo movimento analítico em que essas propostas afirmam o enraizamento sociohistórico do corpo, este tende a desaparecer como carne. O corpo pouco mais é que um símbolo sobre o qual se inscrevem um conjunto de ritualidades e códigos culturais. Já no passado, os sociólogos que olhavam de relance para o corpo enquanto meio de produção e reprodução social, como Durkheim, Simmel ou Weber, confinavam o seu tratamento enquanto recurso gerador de símbolos e formas sociais nas suas propriedades naturais, lugar primeiro de inscrição dos símbolos através do qual as formas sociais se produzem e reproduzem, e meio através do qual os indivíduos são posicionados no grupo, na interação ou em outras formas de relação social.

Na “evanescente facticidade” que o caracteriza enquanto representação simbólica (Berthelot, 1987), o corpo tende a perder toda a substancialidade que lhe é própria, em detrimento de uma cadeia infinita de reflexividade e de signos socialmente instituídos ou difusos. O referente deixa de ser, ele próprio, o objeto de conhecimento, para passar a ser a significação (semântica) e a eficácia (social) dos enunciados que, através e a propósito dele, são feitos. Naturalismos e construtivismos pecam, assim, por excessos simétricos: onde o primeiro hipostasia a ordem biológica, os outros fazem paradoxalmente ­desaparecer o somático enquanto fenómeno semiológico e ritual.

A carnalidade do corpo e as respetivas implicações sociais que dela advêm tendem também a desaparecer como objeto empírico, permanecendo obscurecidas no excesso teoricista e discursivo que pretendem legitimá-las enquanto construção simbólica. Para a crescente produção teórica ocorrida desde os anos 70, pouca investigação sobre as vivências sociais das experiências corporais concretas e quotidianas foi levada a cabo. A pouca atenção prestada às performatividades e às vozes que emanam dos corpos sobre si próprios, terminou num silêncio sobre as práticas corporais efetivas, a forma como são vividas as experiências corporais, e os universos sociais nos quais se engendram concretamente as diversas corporeidades em circulação no mundo social.18 A carnalidade que vivifica as práticas corporais no quotidiano desaparece por entre processos abstratos de regulação e categorização social, fazendo-se tábua rasa das qualidades morfológicas, necessidades fisiológicas, estruturas somáticas e capacidades sensoriais vividas pessoal e socialmente, bem como dos seus respetivos desenvolvimentos no tempo da vida. Marginalizado na sua dimensão viva e em devir, o corpo aparecia como entidade inefável, alegórica, elusiva (Radley, 1995, p. 4).

Ainda que elusiva, não será decerto ilusória. Os sentidos podem até iludir no que dão a ver do mundo, mas não são ilusões em si. Em contraste com a radicalidade das propostas em que o corpo material é marginalizado, é importante entender que essa realidade não é simplesmente uma construção simbólica constrangida por relações sociais ou sujeita à reflexividade do seu portador, mas constitui efetivamente uma base viva, vivida e em devir que enforma a construção dessas relações, considerando as bases inevitavelmente encarnadas da ação social. Em última instância, como formula João Teixeira Lopes (2004, p. 122), uma “sociologia da prática [é], sem qualquer dúvida, e antes de mais, uma sociologia do corpo; do mesmo modo que não existe ritual que não tenha o corpo como seu suporte”.

Embora sempre informado por um princípio vital de socialidade e cultura, o corpo é carnal na fisicalidade das imagens que dá a ver, dos movimentos que possibilita fazer, das sensações e emoções que permite sentir, das funções e necessidades que exige cumprir. Nos termos de Jung (1996, p. 4), “a existência humana não é uma ideia na medida em que o corpo é uma realidade concreta”, uma concretude que não se confina a ser inscrita, que não corresponde ­apenas a um sistema de signos ou ao produto de efeitos sociais, mas uma ­realidade encarnada. Já autores clássicos como Durkheim e Simmel, no parecer de Shilling (2001, p. 339), construíam modelos de humanidade em que o corpo era conceptualizado como um lugar socialmente construído mas caracterizado por propriedades e capacidades extra-societais, ainda que implicadas na ação e interação social. Esta divisão entre os aspetos sociais e associais do ser humano pressupõe que a experiência do mundo é irredutível à vida em sociedade. O corpo humano não é, integralmente, uma construção socio-simbólica, na medida em que é dotado de qualidades e providencia experiências que resultam da sua realidade orgânico-sensorial.

Enquanto carne, o corpo humano é caracterizado por propriedades materiais, impulsos vitais, necessidades homeostáticas e capacidades físicas e sensoriais que vão além dos parâmetros estritamente sociais. É certo o corpo ser um dado social situado no tempo e no espaço, mas não deixa de ser igualmente uma estrutura material, carnalidade dotada de características que são particulares a cada corpo (sexo, idade, cor da pele, peso, silhueta, estado de saúde, etc.)19, de fronteiras morfológicas, de órgãos com funções fisiológicas identificáveis, de capacidades sensoriais e sensíveis mensuráveis e otimizáveis, sujeita a mecanismos e necessidades de ordem biológica, química e física, que exige manutenção e reparação perante a doença, o abuso, o acidente ou a deterioração que decorre do seu tempo de vida.

É um corpo que existe enquanto substância, corpo anatómico caro aos anátomo-fisiologistas (Valabrega, 1972). É dotado de uma exterioridade, superfície com as suas formas, os seus orifícios, as suas características fenotípicas (pilosidade, estrutura, cor da pele, do cabelo, dos olhos, etc.), os seus gestos e movimentos cinestésicos. É também dotado de uma interioridade, realidade com os seus órgãos, as suas secreções (dejetos, saliva, suor, sémen…), as suas produções orgânicas (sangue, leite, placenta…), as suas necessidades metabólicas e homeostáticas (alimentação, sono, micção, defeção…). Este corpo material é, portanto, uma estrutura viva e não uma realidade inanimada, um mero objeto ou acessório. Trata-se também de uma estrutura em devir, ­processual, e não estática, volátil e não fixa, uma realidade inescapável à erosão do tempo, componente particularmente perturbadora para os sujeitos modernos. O limite deste corpo objetivo é o cadáver (Baudrillard, 1972, p. 96), esse resto físico que fica depois da morte, realidade exterior à consciência, pura forma, simples volume desenraizado de vivência, sem história nem trajetória, coisa impessoal, mecânica e orgânica, o corpo de referência para o saber biomédico.

Mas a carne, esse conjunto de propriedades, funcionalidades e capacidades físicas é socialmente vivida, mobilizável e capitalizável de forma socialmente muito diversificada. A perspetiva fenomenológica de Merleau-Ponty tornou-se popular entre os que pretenderam explorar a experiência corporalmente vivida do sujeito.20 Isto apesar das críticas que lhe têm sido feitas, interpostas aos que têm trabalhado sob a alçada das suas conceções sobre o corpo, críticas associadas, em grande medida, ao facto da base conceptual da fenomenologia radicar em tradições mais filosóficas que sociológicas. Para Inglis e Howson (2001, 2002), por exemplo, a tentativa de transferência e de equivalência de debates e análises conceptuais com tradições teóricas diferentes (como o problema filosófico da distinção entre sujeito e objeto, e a sua tradução teórica na sociologia para o debate entre ação e estrutura social), não será a mais adequada, acusando a escassez de visão sobre o corpo vivido dentro das “configurações estruturais” e das “relações de poder”.21

Da revisitação sociológica do pensamento de Merleau-Ponty, ficou a premissa que identifica a dimensão invariavelmente encarnada da relação do indivíduo com o mundo, nas suas várias dimensões da vida. Enquanto “território existencial do self” (Csordas, 1990, 1994), forma inescapável de estar e de ser no mundo (being-in-the-world), de experimentar e pertencer ao mundo, o corpo funciona como lugar mediador entre as esferas exterior e interior do indivíduo, interpondo-se em todas as suas experiências mundanas. Para ­Merleau-Ponty (1993 [1962]) a função primeira da perceção, por exemplo, não é meramente contemplativa, mas de envolvimento prático.

A relação com o mundo vê-se assim estruturada com base na encarnação sensório-motora do indivíduo. Enquanto substância sensível e sensorial, o corpo vivido é entendido como realidade com capacidades de sentir e de se fazer sentir, de ser visível e de se dar a ver, de ser tangível e tocar, de ser audível e de ouvir, de se emocionar e de estimular emoções. Daí Csordas, a par de outros autores22, preferir a noção de embodiment – que aqui traduzo como encarnação – à de corpo enquanto objeto de estudo, na medida em que se trata de um conceito que implica mais do que uma entidade material (que se tem): designa um “campo metodológico definido pela experiência percetiva e um modo de presença e de implicação no mundo (que é, está e se faz)” (Csordas, 1994, p. 10).

Nesta perspetiva, como enuncia Vale de Almeida (1996, p. 12), “a incorporação não é experienciada, é a base mesma da experiência. […] O corpo é o terreno da experiência e não objeto dela”. O corpo vivido é presumido, simultaneamente, como um corpo que constrói e é construído pelo mundo da vida do sujeito. Enquanto organismo vivo e sensório-motor, é a partir das respetivas potencialidades percetivas, cinéticas e sensitivas que ele se apropria, age sobre e interage com o mundo material e social. Nas suas imagens, posturas, gestos, emoções e outras iniciativas, o corpo é vivido e construído em reação (que pode ser não apenas conformação) ao contexto tal como o perceciona (material e simbolicamente) nas suas estruturas e organização.

Nesta perspetiva, pode dizer-se que a carnalidade, enquanto estrutura material com propriedades, funcionalidades e capacidades que lhe são próprias, encarna a corporeidade. Nesta perspetiva, poder-se-ia questionar com Marzano-Parisoli que papel joga a encarnação na vida social das pessoas: “entre as condições que fazem com que eu seja a pessoa que eu sou, encontra-se o facto de eu ser constituída por este corpo e não outro”, responde a autora (Marzano-Parisoli, 2002, pp. 3-4). Cada pessoa existe no mundo enquanto ser carnal entre outros seres carnais, na sua espacialidade, volume e materialidade. Por outro lado, é da encarnação que emergem e se manifestam os desejos, sensações e emoções: “não há desejo ou emoção num espírito desencarnado, porque desejos e emoções requerem a expressividade do corpo e a existência de nós mesmos como criaturas carnais” (Marzano-Parisoli, 2002, p. 8).

Da proposta da encarnação tal como é formulada por Selgas (1994), advém a vantagem de sistematizar o duplo movimento de incorporação e de excorporação reciprocamente implicado. Etimologicamente, a encarnação concerne ao movimento de “entrar em carne”, integrando a ideia de que existe uma conexão, uma “retroalimentação entre o espiritual (cultural ou simbólico) e o carnal (corporal ou material)” (Selgas, 1994, p. 63). Assim sendo, enquanto a utilização do conceito de incorporação tende a apenas aludir metaforicamente ao corpo, já o conceito de encarnação implica uma personificação, colocando em perspetiva a relação implicada e vivida do corpo com os processos de construção de identidades sociais e pessoais. Ao mesmo tempo que o corpo físico é constrangido na sua perceção e tratamento pelo corpo social, qualquer que seja a configuração do corpo também é configuração da identidade, condicionando o modo como a vida é vivida e a experiência social é construída.

Olhar para os fenómenos de encarnação não implica, portanto, uma abordagem morfogenética, que vê as interações entre corpo e ambiente como respostas não-sociais a realidades não sociais. Longe disso, trata-se de assumir que o corpo humano, enquanto organismo visível e sensório-motor, exerce também os seus constrangimentos e disponibiliza as suas potencialidades quer no exercício da agência humana, quer na reprodução das estruturas, isto na medida em que o seu design físico, necessidades homeostáticas e capacidades sensoriais impõem “limitações estritas sobre as capacidades de movimento e perceção da agência humana” (Giddens, 1984, p. 111). Por consequência, há que prestar atenção às componentes encarnadas da agência social, aos poderes criativos e dinâmicos devedores da própria carnalidade, capazes de afetar a ação, a reprodução e a transformação das estruturas sociais.

Assumindo o realismo carnal do corpo como estrutura viva e dinâmica em interação com o meio físico e social (Shilling, 2008), o conceito de encarnação efetua um movimento conceptual que facilita a superação entre agência e estrutura:

 

[…] ressaltar o caráter ‘encarnado’ da nossa identidade e da nossa experiência, e centrar a atenção na constituição dos agentes sociais, conduz-nos a ver as duplas naturezas que habitam o nosso corpo: é carne e osso, mas também entidade social; é símbolo primeiro do self, mas também da comunidade; é algo que temos e algo que somos, que nos tem; é individual e único, mas também é comum a toda a humanidade; é ao mesmo tempo objeto e sujeito. Com ela [a encarnação] também se reforça a necessidade de admitir que o nosso vínculo cognitivo mais direto com o exterior, com o mundo, é em si mesmo uma construção social, isto é, que a nossa estruturação sensorial e experiencial varia socio-historicamente e ela afeta necessariamente todo o nosso conhecimento, incluindo o que criamos como sociólogos ou sociólogas do corpo [Selgas, 1994, p. 45].

 

Esta posição sugere a necessidade e a possibilidade de prosseguir o trabalho sociológico sobre o corpo seguindo por uma via que evita quer a dissolução do corpo material em construtivismos extremos, quer o retorno ao essencialismo e naturalismo biológico. Não sendo o corpo apenas uma fundação natural, tão pouco uma mera superfície passiva sobre a qual os sentidos são determinados por sistemas de significação e/ou de relações de poder, trata-se de uma possibilidade de analisar o corpo como interface entre material e simbólico, entre experiência e representação (Budgeon, 2003, p. 36), onde os seus limites propriamente físicos são desafiados e as suas capacidades potencializadas no decorrer da vida social

Deixando para trás anteriores conceções do corpo como mera superfície legível de inscrição biológica, social ou discursiva (conforme os determinismos), a análise direciona-se no sentido da recuperação das experiências vividas por um corpo que existe de facto, vivo e em devir, nas suas propriedades objetivas, potencialidades concretizáveis e limitações concretas em determinadas práticas e usos do mesmo, simbolicamente enquadrados por representações, valores, ideais, tabus, expectativas normativas ou transgressivas socialmente produzidos e contextualizados (Joyce, 2005).

O impacto desta perspetiva na sociologia inaugurou um novo paradigma nos estudos sociais sobre o corpo, o qual, por contraposição aos paradigmas naturalista e construtivista, poderá ser designado de paradigma animista, no sentido em que reúne um conjunto de abordagens sociológicas que tentam dar vida (“anima”) à carne, anteriormente resumida à condição epistemológica de discurso, material ou ideal: uma sociologia carnal (Crossley, 1995; Wacquant, 2003a, 2003b), corpórea (Burkitt, 1999) ou encarnada (Marzano-Parisoli, 2002; Selgas, 1994), aproximações sociológicas que, de formas conceptualmente diversas, traduzem modos de conhecimento da sociedade que passam pelo seu conhecimento erótico (Sirost, 2000), pela sua razão sensível (Maffesoli, 1996), pela sua mediação somática (Lock, 1993), por uma hermenêutica carnal (Jung, 1996), ou por um realismo carnal (Shilling, 2008).

Os conceitos de “corpo vivido” e de “encarnação” explorados neste paradigma trazem para o centro da discussão sociológica o pressuposto da indivisibilidade entre o sujeito e a sua carne, ultrapassando dualidades e dualismos enraizados na história do pensamento sobre o corpo. “O corpo vivido não é apenas uma coisa no mundo, mas a forma através da qual o mundo acaba por ser (comes to be)” (Leder, 1992, p. 25). Não é um objeto inerte entre outros objetos, mas, ele próprio, um sujeito que experimenta e produz o mundo. A perspetiva animista torna assim possível entender as “forças ativas” do corpo no mundo (Lingi, 1994, p. 2), nomeadamente no mundo social.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Ao admitir-se que a referência corporal está na base de toda a experiência social e cultural, enquanto mediadora das relações, das práticas, dos discursos, das apropriações do outro e do mundo, as respetivas consequências sociológicas devem ser consideradas. A primeira é de ordem epistemológica: enquanto unidade constitutiva da existência humana, é a partir do corpo que se opera, simultaneamente, a “nossa” encarnação no mundo e a incorporação do mundo em “nós”. Os indivíduos precisam de adquirir ou incorporar as estruturas ou os esquemas sociais da sociedade que os integra (como a linguagem, por exemplo), para que se tornem nos agentes que são. Mas essas estruturas e esquemas apenas existem na medida em que são encarnados nas ações dos próprios e nas de outros agentes que lhes pré-existem (através da fala, por exemplo), sendo a respetiva encarnação o que dá vida àquelas mesmas estruturas e que facilita a sua reprodução. É nesta perspectiva que os seres humanos, argumenta ­Merleau-Ponty, estão numa “espécie de circuito com o mundo social” (1964, p. 123).

Na interseção da relação e da praxis, da linguagem e do símbolo, da instituição e da contestação, da perceção e da ação, da sensação e da emoção sobre o mundo, o corpo acaba por assumir, em termos sociológicos, não apenas o estatuto epistemológico de objeto de poder, mas também de locus de ação (Crossley, 1996, p. 104; Frank, 1995 [1991], pp. 48-49). Daí a necessidade de trazer não só a carnalidade à sociologia, como de repensá-la de uma forma ativa, entendendo o corpo na sua concretude, não apenas como produto de estruturas sociais e culturais, mas também como agente social, como ator e enjeu (Berthelot, 1987, p. 7), como operador social ativo (Crossley, 1996, p. 99).

Como Crossley argumenta na sua proposta de uma sociologia carnal (1995), uma sociologia que dê conta não apenas da experiência objetiva da incorporação, mas também do que os sujeitos experimentam subjetivamente desse processo, partindo do exame das bases necessariamente encarnadas dos constituintes praxiológicos e simbólicos da ação social. Uma sociologia que dê conta do modo como as pessoas respondem corporalmente às estruturas sociais, e de como estas últimas são formatadas por selves sensórios e sensuais (Shilling e Mellor, 1996, p. 2), compreendendo e explicando como as normas, valores e constrangimentos sociais são subjetivamente experimentados nos terrenos sensual e sensorial. Ainda que a experiência corporal seja formatada pelas estruturas prevalecentes, não é irredutível a essas mesmas estruturas, na medida em que os indivíduos podem experimentar e responder ao contexto social em que emergem, questionando (distanciando-se e criticando como objetos que necessitam de ser transformados) ou naturalizando (através da sua rotinização e reprodução) as respetivas estruturas, no sentido reflexivo ou cognitivo vulgarmente atribuído a esses termos (Shilling e Mellor, 1996, p. 4; Shilling, 2001, p. 336).

Nesta perspetiva, a sociologia do corpo, de estatuto fluído e controverso, de conceitos indecisos e metodologia tateante, acaba por obter um privilegiado interesse heurístico: participar numa sociologia que parta não apenas do seu campo de análise habitual (instituições, classes, grupos, etc.), mas, paralelamente, de formas e manifestações sociais mais anódinas, permitindo devolver dimensões aos fenómenos sociais que, noutras aproximações, seriam difíceis de captar, e por aí dar conta de alguns novos problemas sociológicos.

Por outro lado, enquanto pólo de análise conceptual, o corpo emerge como um lugar privilegiado de reflexão sobre dualismos recorrentes na tradição moderna das ciências sociais: natureza/cultura, material/simbólico, indivíduo/sociedade, corpo/mente, ação/estrutura, resistência/poder, razão/emoção, etc. Deste modo, ao seu estatuto de operador social nas formas que assume e nas ações para que é convocado, junta-se o de operador epistemológico (Berthelot, 1983, p. 121; 1987, p. 7; 1992, p. 15): não apenas um objeto a conhecer, mas um meio de conhecimento, pela possibilidade que confere em, através dele, (re)conhecer as formas de poder que o social imprime na natureza, ou ainda o modo como recursos, capacidades e atributos que lhe são naturais são socializados e/ou explorados socialmente.

 

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Recebido a 20-12-2012. Aceite para publicação a 26-06-2013.

 

NOTAS

1 Mais do que interdisciplinar, considerando que, na realidade, o diálogo e troca entre as várias disciplinas não tem sido propriamente praticado.

2 Dominada, sobretudo, por aproximações teóricas e ensaísticas revestidas de olhares filosóficos e psicológicos. Para uma síntese histórica sobre estes olhares, ver Bernard (1995 [1972]), ou Detrez (2002, pp. 29-42). A propósito das múltiplas abordagens da psicologia, entrecruzadas com olhares da história, da antropologia e da própria sociologia, ver Ribeiro (2003).

3 Sobre a relativização e integração antropológica de dicotomias como mental/material, cultura/biologia, espírito/natureza, emoção/racionalidade em algumas sociedades não ocidentais ver, por exemplo, Csordas (1990); Halliburton (2002); Lingi (1994); Ozawa-de-Silva (2002); Yasuo (1987).

4 Destaque-se, em França, a criação da revista Quel Corps?, em 1975, e da revista Corps et culture, em 1995, e ainda, na Inglaterra, em 1995, da revista Body & Society.

5 Não havendo traduções em língua portuguesa, a tradução das citações de referências estrangeiras incluídas neste artigo são de minha responsabilidade.

6 E onde coloca perspetivas tão diferenciadas como as de Mary Douglas, Michel Foucault, Erving Goffman, Bryan Turner ou Arthur Frank. Sobre as várias perspetivas construtivistas em comparação, ver Barreiro (2004); Detrez (2002); Radley (1995, 1998); Resende (1999); Salinas (1994).

7 Sobre a relação entre corpo e linguagem há todo um manancial de literatura de auto-ajuda que preenche os escaparates, dando dicas variadas sobre essas supostas “linguagens corporais” em situações sociais várias, desde entrevistas de emprego a contextos de sedução, por exemplo.

8 Trabalho que visa transformar um sistema de signos não-verbal num sistema de signos verbal.

9 O que equivale a dizer, para José Gil, que no corpo “há sentido, há significado, mas é impossível atribuir-lhe um sentido referenciável e preciso (que torne a coisa não apenas significante mas conhecida: do mesmo modo, no campo dos signos (particularmente da linguagem) alguns permanecem disponíveis, sem ponto de fixação no significado” (1980, p. 10).

10 O conceito de cultura somática (Boltantsky, 1975, p. 208) corresponde a um conjunto de regras, códigos e condutas de produção, de perceção e de consumo corporal, o qual resulta de um conjunto de condições e relações sociais objetivas, específicas a uma formação social particular, situada no tempo e no espaço. Este conceito pode ainda ser ampliado considerando a sua variação em termos de contextos de classe, de residência, de etnicidade, de género, etc.

11 Ou seja, sociedades que têm como preocupação empenhada o cuidado com o corpo, seu e dos outros, exigindo um elevado grau de vigilância e disciplina intra e intercorporal metaforizado pelo panóptico, meio de (auto)policiamento e (auto)controlo celebrizado na análise de Foucault sobre a realidade prisional (1999 [1975]).

12  Foucault (1969) entende por sociedade disciplinar aquela em que o controlo social é exercido a partir de dispositivos institucionais responsáveis pela regulação dos hábitos ou práticas dos indivíduos, através da respetiva prescrição, limitação e sanção: a prisão, a fábrica, o hospital, a escola, a família, a religião, etc. A sociedade de controlo, por sua vez, seria aquela em que os mecanismos de regulação são transferidos para e aplicados pelo próprio campo social, ou seja, são distribuídos e interiorizados nos corpos e mentes dos próprios sujeitos, tornando-se mais imperceptíveis na vida social. Em contraste com a sociedade disciplinar, os mecanismos de controlo funcionam sobretudo fora das instituições, encontrando-se diluídos nas redes flutuantes, difusas, dispersas, que organizam as práticas sociais quotidianas.

13 Expressão utilizada com a devida ressalva formulada por Vale de Almeida, de que “não existe propriamente uma coisa que se possa chamar “política do corpo”, no sentido ativo de fazer política sobre/para/do corpo. Existem, sim, possibilidades de analisar o político no sentido lato através da definição, manipulação, controlo e revoltas do(s) corpo(s)”, possibilidades essas que atualmente se localizam nessa “zona de entrosamento político que se dá entre corporalidade, identidade pessoal e regulação social” (Vale de Almeida, 2004, pp. 32-33).

14 Ou seja, um corpo cuja diferença o portador sabe reconhecer que, por um efeito de mediação social, está na origem de uma desigualdade perante a vida e a sociedade e que, consciente dos seus constrangimentos exteriores, tenta lutar pela sua emancipação.

15 Ou seja, a capacidade de agir sobre o corpo de outrem e/ou sobre o próprio corpo, com o objetivo de o submeter a uma disciplina de otimização das suas capacidades e de incremento da sua utilidade (Foucault, 1979).

16 Como alguns autores mais recentes têm sublinhado. Ver Fiske (1989); Shildrick (1999); ­Turner (1997); Williams (1998).

17 O que implica uma relação de propriedade ‒ “isto é o meu corpo” ‒ que se funda na criação de uma distância simbólica evidenciada na articulação do pronome demonstrativo “isto” com o pronome possessivo “meu” por relação ao substantivo corpo. Como formula Nancy (2004, p. 18), “para ser próprio, o corpo deve ser estranho e assim tornar-se apropriado”.

18 Falo aqui do silêncio corporal que acontecia na investigação empírica desenvolvida no âmbito das ciências sociais, em especial da sociologia. Já no âmbito da investigação estética produzida a partir do campo artístico, muitas destas questões começaram a ser abordadas, encenadas e discutidas, em diálogo com a crítica e a filosofia.

19 Embora muitas destas características possam hoje em dia ser alteradas com maior ou menor grau de dificuldade.

20 Ver Csordas (1990, 1994); Crossley (1995, 1996, 2001); Falk (1995); Leder (1990, 1992); Lingi (1994); Shilling e Mellor (1996); Shilling (1997b, 2001); Williams e Bendelow (1999); Williams (2001).

21 No âmbito deste debate, veja-se a resposta de Crossley (2001) aos argumentos de Inglis e Howson (2001).

22 Burkitt (1999); Crossley (1995, 2001); Radley (1998); Shilling (1993, 1997b, 2001); Williams e Bendelow (1999).

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