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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.208 Lisboa jul. 2013

 

O charme discreto dos concursos de beleza e o luso-tropicalismo na década de 1970

The discreet charm of beauty pageants in the 1970s

 

Marcos Cardão*

*Centro de Estudos de História Contemporânea, ISCTE-IUL. e-mail: marcos.cardao@gmail.com

 

RESUMO

Baseado numa série de pressupostos históricos e lugares comuns sobre o caráter dos portugueses, o luso-tropicalismo foi indispensável para a sobrevivência da “comunidade lusíada” nas últimas décadas do regime autoritário. Mesmo quando os “ventos de mudança” pareciam anunciar o fim do império colonial português, subsistia na cultura de massas um conjunto de espetáculos mediáticos que continuavam a reproduzir o luso-tropicalismo. Um desses espetáculos foi o concurso Miss Portugal, que entre 1971 e 1974 incluiu concorrentes provenientes de todo o império português, proporcionando uma das suas derradeiras encenações da “comunidade lusíada”.

Palavras-chave: nacionalismo; ideologia colonial; luso-tropicalismo; cultura de massas.

 

ABSTRACT

Based on historical assumptions and commonplaces about the character of the Portuguese, “luso-tropicalism” was a way to imagine the Portuguese community that tended to highlight the natural disposition of the Portuguese for a settlement without prejudice of “color or race”. Even when the “winds of change” seemed to announce the end of the Portuguese empire, a series of media spectacles continued to reproduce luso-tropicalism in mass culture. One of those spectacles was the Miss Portugal contest, which included competitors from all over Portuguese overseas provinces between 1971 and 1974, thus recreating the imaginary map of the Portuguese community.

Keywords: nationalism; colonial ideology; mass culture; luso-tropicalism.

 

INTRODUÇÃO

 

Apoiado num conjunto de pressupostos históricos e lugares comuns sobre o caráter dos portugueses, o luso-tropicalismo adaptou-se à história portuguesa e serviu de suporte científico à chamada “mística luso-cristã de integração” (Freyre, 1961). Convertido em teoria explicativa da colonização portuguesa, ou prova abonatória da “particular maneira portuguesa de estar no mundo”1, o luso-tropicalismo permeou vários campos da vida social e deixou um lastro material da sua existência em vários lugares (Alexandre, 1993; Castelo, 1999; Léonard, 1999; Almeida, 2000; Arenas, 2006).

Mesmo quando os “ventos de mudança” pareciam anunciar o fim do império colonial português e das ideologias que o sustentavam, subsistia na cultura de massas um conjunto de espetáculos mediáticos que continuavam a reproduzir o luso-tropicalismo (Cardão, 2012). Um desses espetáculos foi o concurso Miss Portugal, que entre 1971 e 1974 incluiu concorrentes provenientes de todo o império português. O concurso recriou, assim, o mapa imaginário do império português e proporcionou uma das derradeiras encenações do denominado “mundo português”.

Embora fosse visto como um “mero entretenimento”, anódino e inconsequente sob o ponto vista político, o concurso Miss Portugal contribuiu para disseminar a ideia de um “Portugal maior”, unido na aparente dispersão do seu território. Não só porque envolveu concorrentes provenientes das colónias, mas também porque suscitou uma série de comentários e discursos que aludiam ao excecionalismo português. São precisamente esses discursos que pretendo escrutinar neste artigo, evidenciando o modo como no início da década de 1970 eles converteram a nação num dado adquirido, com fronteiras aparentemente inquestionáveis e evidentes. Deixando de lado a história propriamente dita dos concursos de beleza em Portugal, um evento que importa investigar com maior profundidade, nas próximas páginas vou assinalar como o concurso proporcionou discursos apologéticos, convocou paixões e acenou o “nacionalismo banal” (Billig, 1991). O objetivo é lançar um novo olhar sobre o luso-tropicalismo, discutindo a sua disseminação a partir de eventos triviais, como os concursos de beleza, que foram porventura mais eficazes para a sua propagação do que muitas campanhas realizadas pelos organismos de propaganda oficiais. Através deste artigo procurar-se-á ainda dar conta da historicidade equívoca do luso-tropicalismo, mostrando como é que o concurso também refletiu as vulnerabilidades e incertezas de um modo de imaginar a “comunidade lusíada”.

 

AS MISSES E OS TRÓPICOS

 

Os concursos de beleza costumam ser o parente pobre da cultura de massas. Apesar de serem considerados espetáculos frívolos e pueris, os concursos de beleza intersetam questões de género, nacionalismo e ideologia, além de criarem uma poderosa imagem da feminilidade, que influencia valores, crenças e atitudes (Weiser, 1999). Os concursos são por isso um evento historicamente singular e merecem uma análise crítica mais aprofundada.

A expansão internacional dos concursos de beleza, e a adoção generalizada da palavra miss, confirmou a hegemonia norte-americana na cultura de massas (Jameson, 1992). Esta supremacia não impediu uma reterritorialização deste tipo de eventos, que se adaptaram às circunstâncias locais e proporcionaram um conjunto de discursos sobre aquilo que seria peculiar e único em cada país, designadamente generalizações sobre tipos de beleza feminina, que evidenciavam a importância mediadora da nação na imaginação da diferença através dos corpos femininos. Ao inventarem signos palpáveis de uma suposta beleza nacional, os concursos de beleza convertiam o género num dispositivo central para imaginar uma comunidade.

No início da década de 1970 os concursos de beleza articularam as ansiedades do tempo e deram origem a uma série de fantasias políticas que reforçaram algumas representações do nacionalismo português. A inclusão de concorrentes provenientes de Angola e Moçambique no concurso Miss Portugal de 1971 permitiu encenar a geografia do país e banalizar a sua pluricontinentalidade. A presença das concorrentes ultramarinas não passou despercebida na imprensa escrita, sobretudo nas revistas ilustradas. Por exemplo, a revista Rádio & Televisão noticiou: “Este ano, a nossa Miss, vai ter dimensão verdadeiramente nacional. As duas mais populosas províncias portuguesas do Ultramar estarão representadas maciçamente […]. É, portanto, um congresso de beleza o que se realizará na noite do próximo dia 27 de Abril, no Casino do Estoril”.2 A revista Plateia também referiu que o concurso seria uma espécie de reencontro de uma família espalhada pelas várias parcelas do território português, afirmando que ele era “um elo mais a reforçar a união Metrópole-Ultramar”.3

A presença das concorrentes ultramarinas comprovava a homogeneidade territorial do país, e confirmava a sua extensão pluricontinental, que aliás saía fortalecida com os concursos provinciais que se disputaram previamente em Angola e Moçambique. Por exemplo, no Diário Popular dizia-se que em Moçambique se ultimavam os “preparativos da viagem à Metrópole da representação da província do Índico, ao mesmo tempo que reinam o maior interesse e expectativa em toda a província pela eleição da mais bela de Portugal”.4

A dimensão extracontinental do evento estava igualmente presente nos patrocinadores da iniciativa, que resultava de uma junção de vontades de várias publicações periódicas, entre outros patrocinadores. Além de patrocinarem o evento, a revista Notícia, de Angola; o jornal Notícias da Beira, de ­Moçambique; o jornal Diário Popular e a revista Rádio & Televisão, entre outras publicações, encarregaram-se de o reverberar, permitindo que ele transpusesse as fronteiras continentais e ligasse as diversas partes do país. Segundo Benedict Anderson (1991 [1983], p. 188), a imprensa produz um tempo simultâneo que alimenta a noção de comunidade, dando a sensação de que vários acontecimentos se desenrolam ao mesmo tempo num espaço comum. Assumindo o papel de aglutinador e nacionalizador, a imprensa garantia que milhares de pessoas pudessem consumir o evento em paralelo.

O concurso Miss Portugal incluía uma série de iniciativas paralelas que ajudavam a promover o acontecimento. Uma dessas iniciativas foi a festa organizada pelo jornal Notícias da Beira em Lisboa para a apresentação das concorrente provenientes de Moçambique. O evento foi apresentado pelo cantor João Maria Tudela e teve na assistência várias personalidades ligadas às colónias, nomeadamente o almirante Sarmento Rodrigues, entre vários deputados à Assembleia Nacional de Angola e Moçambique. O Diário Popular5 fez um relato pormenorizado do acontecimento:

 

O palco do Hotel Ritz estava dominado por uma monumental fotografia representando uma sanzala moçambicana. E foi através da porta dessa sanzala, que as jovens começaram a aparecer: Maria do Carmo Almeida, com o trajo de feiticeira Ronga; Ana Flora ­Menezes, vestida de bailarina Ngoni; Maria Palmira Barral, com o trajo típico das Donas da ­Zambézia; e Nelly Pinheiro, a jovem estrela do prometedor cinema de Moçambique que exibiu a estilização das Capulanas, esses vestidos longos em pano típicos das mulheres indígenas.

 

O desfile teatralizava a diversidade do território português, salientando os atributos civilizacionais dos portugueses, que se distinguiam dos demais colonizadores por respeitarem, integrarem e celebrarem as tradições africanas.6 Envolto em exotismo, que passava por decorar a sala do Hotel Ritz com flores vindas expressamente do Chimoio7, o desfile empreendia uma domesticação da diferença, étnica e cultural, reduzindo-a à sua capacidade de gerar espanto e admiração. As fantasias coloniais, que funcionavam como mecanismos de tradução cultural, marcavam presença num desfile que coreografa a diferença africana através de artefactos facilmente identificáveis, como a “sanzala moçambicana” de onde brotavam várias jovens vestindo trajes tipicamente moçambicanos.

O concurso Miss Portugal realizou-se a 27 de abril de 1971 no Casino do Estoril. Na assistência encontravam-se alguns membros do Governo ­marcelista, como o ministro das Corporações e Saúde, Baltasar Rebelo de Sousa; o secretário de Estado da Informação e Turismo, César Moreira Baptista; e o representante da Agência Geral do Ultramar, Cunha Leão. A presença ministerial indiciava uma cumplicidade entre os ministros e as misses, suscitando títulos ousados na imprensa, como “As misses e os ministros”, dizendo que as misses tinham sido “acarinhadas” em Lisboa, “mormente por parte dos meios ultramarinos e entidades oficiais mais de perto ligadas ao Ultramar”8. O Diário Popular também destacou a receção oficial das concorrentes das colónias pelos ministros marcelistas9, o que indiciava uma relativização das etiquetas morais, mas também uma procura de soluções políticas mais pragmáticas.

A ampla mediatização do concurso Miss Portugal de 1971 reforçou o impacto do evento. Porém, a transmissão televisiva acabou por revelar os receios que o concurso ainda provocava, especialmente no desfile das ­concorrentes em fato de banho.10 Consta que o realizador da RTP foi inclusivamente proibido de efetuar planos panorâmicos das pernas das concorrentes. Contudo, as tentativas de dissimular a carga erótica do concurso soçobraram com o desfile em trajes regionais, que deu azo a descrições ousadas sobre a sensualidade feminina. As concorrentes das colónias foram especialmente visadas por essas descrições, sobretudo devido à escolha de trajes “tipicamente africanos” para o desfile. Próxima de uma geopolítica dos corpos, na reportagem publicada no Século Ilustrado11 dissertava-se sobre o exotismo das concorrentes ultramarinas:

 

As metropolitanas, vestidas à moda do Minho: trajes de várias circunstâncias, cedidos pelo museu de Viana do Castelo. As angolanas vestem-se à mucubal, muíla e rapariga da ilha. As moçambicanas escolhem traje chope, macua ou jovem Kani-a-Kuno. Trajes indígenas para meninas brancas que vieram à Metrópole dizer nós somos o Ultramar. A desvantagem para as metropolitanas começa aqui: enquanto os fatos africanos descobrem as formas às raparigas ultramarinas, as de cá passam despercebidas sob os pesados fatos minhotos […]. O Ultramar, de resto levou a palma. É outra gente, habituada a estas andanças, treinada a exibir o corpo, com um à-vontade e um jeito de se mover de quem vive em pleno Verão. Elas andam, as africanas, e é como se bailassem. Queimadas, morenas, a sua pele é já um espectáculo para os olhos.

 

A avaliar pela descrição, o desfile em trajes típicos conjugava o desregramento folclórico com a invenção de uma sensualidade exclusivamente tropical, conquistada pelo “jeito de se mover” das concorrentes africanas (Watson e Martin, 2004). Apesar de excessiva, esta caracterização tornar-se-ia uma das imagens de marca do concurso Miss Portugal, que se ocupou em distinguir os corpos femininos por regiões, para depois tecer considerações sobre a diversidade de belezas existentes no espaço português. O concurso proporcionava assim discursos inauditos sobre a sexualidade, insinuando novas formas de encará-la, com as ultramarinas, por causa dos seus corpos descobertos, a sugerirem uma sexualidade mais explícita e licenciosa, que as associava mais rapidamente a objetos de desejo.

As metropolitanas, por seu turno, talvez desfavorecidas pelos trajes minhotos que as cobriam, indiciavam uma disciplinarização mais rígida do corpo, que as excluía dos prazeres marginais. Cobrindo-as com o traje minhoto, o concurso parecia exaltar a mulher submissa, abnegada, fiel, carinhosa e ­virtuosa, que era capaz de fazer qualquer sacrifício para agradar ao seu marido. Todavia esta função decorativa da mulher portuguesa estava longe de ser uniforme, por muito que a representação da minhota procurasse fazer crer.

Mesmo que a profanação do eterno feminino português ameaçasse implodir os interditos da moral conservadora, derrubando parte dos seus tabus, o concurso reconfigurava também as considerações sobre a mulher ideal portuguesa, tornando plausível a imaginação da tropicalidade no nacionalismo português. A relativização da austeridade, ou a liberalização de costumes, permitia encenar estilos de vida mais ousados e transgressores, atualizando a imagem de Portugal através de um espetáculo mundano, que também coreografava a sua diversidade. Não se encaixando na imagem estática e ruralista que o regime autoritário reproduzia do país, o concurso era um signo de modernidade que, com os seus paradoxos e contradições, contribuía para reformular valores e atitudes, ainda que o fizesse através da edificação de um novo objeto de desejo.

 

RIQUITA, DE MOÇÂMEDES COM AMOR

 

Os prémios mais importantes do concurso Miss Portugal 1971 foram atribuídos às representantes provenientes de Angola e Moçambique, com a concorrente de Angola, Maria Celmira Bauleth, mais conhecida por Riquita, a ser eleita Miss Portugal. Além de renovar as noções sobre aquilo que constituía a mulher “tipicamente portuguesa, a vitória das concorrentes ultramarinas significou também o triunfo da integridade territorial do espaço português. A propaganda oficial não desperdiçou o ensejo para celebrar este triunfo da unidade, com a Permanência. Revista de Actualidades Ultramarinas12 editada pela Agência Geral do Ultramar, a referir:

 

As representantes de Angola e Moçambique conquistaram, de forma indiscutível, as posições cimeiras. E conquistaram também: a admiração sincera, o apoio espontâneo, a eleição pré-eleição, o aplauso vibrante, dos compatriotas metropolitanos. Foi uma jornada de triunfo para a juventude portuguesa de Além-mar […]. As moças do nosso Ultramar compareceram e venceram.

 

Para a propaganda oficial a vitória das concorrentes ultramarinas era uma demonstração inequívoca que o império português permanecia coeso, uno e indivisível. Mesmo que a exibição de corpos femininos ameaçasse dissolver os laços da moral conservadora, a ousadia do concurso ia sendo ­progressivamente domesticada, como indiciava a leitura nacionalista publicada pela revista ­Permanência. Fazendo jus à circularidade entre o universo do entretenimento e a propaganda oficial, a tentativa de colher dividendos políticos do concurso comprovava que este era mais do que um mero divertimento, anódino e inconsequente sob o ponto vista político.

Riquita decidiu utilizar o traje tradicional dos mucubais, oriundos do sul de Angola (perto de Moçâmedes), no desfile em trajes típicos. Os trajes teriam sido emprestados pelos próprios mucubais, o que sugeria uma relação estreita entre representante e representados. Para ser fiel a uma ideia de autenticidade, os adereços de Riquita foram previamente untados com sebo, leite azedo e excrementos de boi. Secundando a predisposição portuguesa para o encontro com outros povos e culturas, Riquita contou à Revista de Angola13 como os mucubais a elegeram sua representante em Lisboa:

 

Foi um batuque inesquecível. Os príncipes e os sobas mucubais dançaram, cantaram, beberam, assaram febras, comeram e, por fim, um homem fez um discurso para dizer que os mucubais me tinham eleito ‘Menina Mucubal’ pedindo-me que os representasse em Lisboa e que dissesse isso mesmo às pessoas importantes com quem falasse.

 

A homenagem de Riquita aos mucubais deixava transparecer que a nova Miss Portugal era solidária, tolerante, respeitadora da diferença e, sobretudo, confiante no futuro africanista de Portugal. Mesmo denotando um entendimento distorcido da diversidade, a apropriação das “coisas dos outros”, e a sua posterior folclorização, caucionava as principais premissas da nacionalidade, recobrindo-a com fantasias exóticas. Paralelamente a esta folclorização da alteridade, o concurso também proporcionou discursos exacerbados que afirmavam a indestrutibilidade do império português, nomeadamente na Revista de Angola14:

 

A Miss é nossa. […] É nossa porque é de Angola. E Angola, quer queiram quer não queiram uns quantos mal avisados pedintes da mendicidade internacional, é terra portuguesa. Continuará a sê-lo enquanto tiver uma Riquita Bauleth para mostrar ao Mundo. E muitas Riquitas. De todas as cores, de todos os sangues, de todas as condições. Negras, brancas e morenas – destas de a gente fazer fiui… fiuu… uuu… Quando passam na rua!

 

Além de nacionalizar a vitória de Riquita, a alusão a “Riquitas de todas as cores” servia-se de exemplos desgarrados de corpos femininos para ilustrar o multirracialismo português. Este comentário integrava-se numa “discursificação do sexo”15, que passava por uma intensificação do erotismo na vida diária e se desdobrava numa espécie de sensualização do poder. Aquém do triunfo da hipótese repressiva, a “discursificação do sexo” evidenciava também que o complexo cultural construído em torno da honra, vergonha, pudor, virtude e pureza feminina tinha sido substituído pelo olhar, desejo, prazer, comentário e fantasia.

Próximo da noção de “conhecimento carnal” proposta por Ann Laura Stoler (1995 e 2002) que empreende uma genealogia do íntimo, explorando como o sentimental e o afetivo fizeram parte de uma história menos visível do colonialismo, o concurso originava discursos que articulavam as questões de género, “raça” e sexualidade, reproduzindo-os sem censuras nem denegações. Como, aliás, confirmavam os comentários realizados a propósito das concorrentes vindas das colónias, dizendo-se que “elas andam, as africanas, e é como se bailassem. Queimadas, morenas, a sua pele é já um espectáculo para os olhos”16.

A celebração da vitória de Riquita ganhou contornos de epopeia com a receção da nova Miss Portugal em Angola. Previamente preparada pelo Centro de Informação e Turismo de Angola, a receção incluiu um cortejo automóvel pelas principais artérias de Luanda e uma audiência com o governador-geral da província de Angola, Rebocho Vaz, entre outras atividades. Segundo a revista Cartaz, a vitória da “nova Rainha foi alvo de expressiva e entusiástica homenagem por parte dos seus conterrâneos. A Rainha é de Portugal. Nasceu e mora em Angola. Todos nós, em todas as latitudes, estamos de parabéns”17. Confirmando o poder da imaginação nos discursos nacionalistas, a referência à geografia imperial era essencial para reiterar a pluricontinentalidade do país.

Após um longo desfile pelas principais artérias da cidade, que foi acompanhado por uma música do conjunto Negoleiros do Ritmo, intitulada “Riquita tu és bonita”, escrita propositadamente para celebrar a sua vitória18, a nova Miss Portugal rumou à sua terra natal, Moçâmedes, onde foi novamente homenageada, desta feita pelos mucubais. Teatralizada em diferentes situações, a nação luso-tropical mostrava ser um dado adquirido na vida diária.

 

NOS BASTIDORES DOS CONCURSOS DE BELEZA

 

O concurso Miss Portugal foi uma iniciativa privada que reuniu interesses comerciais e políticos. O empresário Jorge Jardim congregou os dois, desenvolvendo inclusivamente ações nos bastidores dos concursos de beleza para convertê-los em espetáculos cúmplices do situacionismo colonial. Enquanto presidente do Conselho de Administração do Notícias da Beira, Jorge Jardim foi responsável pela participação das concorrentes moçambicanas no concurso Miss Portugal, tornando-se também conhecido pela sua “missifilia”19.

Na década de 1970, Jorge Jardim participou numa campanha publicitária de “conquista da compreensão”20, que procurava promover a província de Moçambique em Lisboa, publicitando o seu clima, estilo de vida e cosmopolitismo. Para colher a simpatia do público realizaram-se algumas atividades recreativas, como os concursos de beleza, que foram um dos baluartes do nacionalismo apostolado pela simpatia.21 A propósito dos concursos de beleza, Jorge Jardim referiu nas suas memórias:

 

Quando as nossas jovens, de todas as raças, arrebatavam títulos sucessivos, poucos haviam entendido os propósitos que nos conduziam. Começaram a tornar-se, porém, mais patentes quando verificaram como estavam preparadas para enfrentarem, afoitamente, os entrevistadores, falando sobre geografia, os costumes, as riquezas e, até, sobre política moçambicana. Impressionou ainda a disciplina que mantinham e o nacionalismo intransigente das raparigas que sabiam representar o “seu país” [Jardim, 1976, p. 150].

 

Jorge Jardim tinha uma agenda política para os concursos de beleza que passava por os converter em mensageiros do ideário nacionalista. Seguindo os preceitos de Jorge Jardim, que na época estava associado a projetos de declaração unilateral de independência de Moçambique, as concorrentes moçambicanas estariam incumbidas de expressar o seu “nacionalismo intransigente”. Jorge Jardim comentou no Século Ilustrado22 o sucesso das concorrentes de Moçambique no concurso Miss Portugal 1971:

 

Provámos ter gente descontraída e com capacidade de organização. Não será pequena surpresa mostrar que o Ultramar atingiu já uma fase da sua evolução que à Metrópole passou despercebida. Particularmente, gostei muito que as raparigas de Moçambique tivessem vindo a Lisboa. Mostramos que temos gente… e não apenas no futebol. É altura que se repare: o Ultramar existe, está crescidinho, está preparado.

 

Apesar da vitória da concorrente angolana no certame, Jorge Jardim afirmou que o importante era “presença afirmada pelo ultramar. Moçambique, Angola é praticamente o mesmo”23. Jardim reafirmava que as duas províncias estavam unidas sob o mesmo ideal, e que as suas fronteiras eram invioláveis. Para garantir boa visibilidade mediática às concorrentes moçambicanas, Jorge Jardim recorreu aos préstimos do cantor João Maria Tudella, que foi um dos seus colaboradores mais próximos. Movendo-se nos bastidores dos concursos de beleza, os dois conseguiram que a concorrente de Moçambique, Ana Paula Almeida, conquistasse o 3.º lugar no concurso Miss Mundo 19724. Segundo o historiador José Freire Antunes (1996), João Maria Tudella realizou previamente uma campanha junto dos intermediários do júri para promover Ana Paula Almeida:

 

Tudela pediu 500 contos para a operação e também filigranas e outros presentes que queria oferecer às concorrentes de Ana Paula, J.J. fez-lhe chegar o dinheiro e os produtos através da mala diplomática do MNE. O cantor assinou então 75 cartões em nome da Miss Portugal e enviou as lembranças, com o efeito óbvio de que, no dia seguinte, havia uma simpatia geral em torno de Ana Paula. Seguiu-se o chá de caridade, no Hotel Brittania, a favor das crianças pobres, e Tudela mandou lá Ana Paula distribuir brinquedos, o que lhe valeu tratamento favorável na imprensa londrina [Freire, 1996, pp. 436-437].

 

A operação promocional da concorrente moçambicana prosseguiu com o jantar de honra oferecido a todas as concorrentes do concurso. Nessa ocasião, Ana Paula Almeida apareceu vestida com uma saia curta e enfeitada com missangas, numa ousadia tropical que não passou despercebida aos tabloides britânicos. As manobras de bastidores acabaram por surtir efeito, com a concorrente moçambicana a alcançar o 3.º lugar no concurso e a proporcionar vários momentos de euforia nacional, como exemplificam as palavras de Ana Paula ao entrevistador da TV britânica, destacadas na imprensa pela sua importância nacionalista:

 

O ponto mais curioso da eleição foi quando entrevistada (Ana Paula) para a televisão, lhe perguntaram se morava em Lisboa, e ela respondeu que era em Lourenço Marques. Então o entrevistador disse que já tinha estado no Algarve, mas não tinha visto Lourenço Marques. Ela então, alto e bom som, explicou que era em Moçambique e se tratava de uma província portuguesa.25

 

Embora o concurso Miss Mundo 1971 tenha ficado igualmente marcado pelos protestos das feministas que se manifestavam contra aquilo que denominavam ser um “mercado de carne humana”, a imprensa portuguesa referiu sobretudo o êxito da concorrente de Moçambique, salientado o significado das suas palavras patrióticas. Jorge Jardim enalteceu uma vez mais o resultado final, comparando-o ao terceiro lugar da seleção portuguesa no Campeonato Mundial de Futebol de 1966.

 

O SEGUNDO CAPÍTULO DE UMA SAGA TROPICAL

 

Reincidindo na originalidade e na ousadia, o concurso Miss Portugal de 1972 voltou a apresentar de forma banal e rotineira os principais predicados do ­luso-tropicalismo. Poucos espetáculos mediáticos terão produzido uma encenação tão envolvente da pluricontinentalidade, sobretudo a edição de 1972, que pôde contar com representantes oriundas de todas as colónias portuguesas: Cabo Verde, Timor, Macau, Guiné, Moçambique, Angola, São Tomé e Príncipe. As publicações periódicas que apoiavam a iniciativa voltaram a dedicar várias páginas à cobertura do acontecimento, tendo o jornal Notícias da Beira26 ­aproveitado para lamentar a ausência da representação goesa no concurso de 1972:

 

Sabemos que o domínio do jugo estrangeiro, nas martirizadas terras de Goa, não consente que ali se possa escolher a representação que os nossos sentimentos desejariam ver presente em Lisboa. Mas não nos parece que tal razão possa ser impeditiva da participação goesa na competição juvenil que reunirá representantes de todos os demais territórios da nossa Comunidade. Sobretudo em Moçambique e na Metrópole existe apreciável número de famílias goesas em cujo âmbito se poderia seleccionar aquela representação, por forma a que não se aparentasse esquecimento ou inaceitável conformismo com a situação imposta pela força ao Estado da Índia Portuguesa […]. Goa nunca estará a mais. A menos é que não pode ser.

 

Mesmo sem poder contar com uma concorrente goesa, os concursos ­provinciais encarregaram-se de exibir os aspetos mais pitorescos de cada ­província portuguesa, com dezenas de jovens a exibirem os trajes típicos de cada distrito. Os concursos regionais encenavam as principais fantasias da nacionalidade, mostrando a natureza exótica, convivial e patriótica do evento. Um patriotismo trivializado em vários momentos, como na visita efetuada pelas representantes de Moçambique aos militares das Forças Armadas ­feridos na guerra colonial, que, segundo o jornal Notícias da Beira, teria sido a ­primeira iniciativa realizada pelas misses moçambicanas quando chegaram a ­Lisboa.

Fazendo jus a uma imagem idílica e pacífica do país, realizou-se uma festa em homenagem às concorrentes do concurso Miss Portugal 1972, um momento que foi aproveitado para consensualizar pertenças e generalizar compromissos. Comparada ao clima de amizade que reinava entre todas as concorrentes, a festa carnavalizava as especificidades de cada província portuguesa. Segundo relatou a imprensa, a Miss Guiné aproveitou essa festa para dançar a “tabanca” e oferecer colares típicos da sua província natal à assistência; já a Miss Cabo Verde entusiasmou a assistência com as suas “coladeras”; a Miss Madeira dançou o “bailinho” da Madeira; a delegação de Angola apresentou o “merengue”; a delegação de Moçambique dançou várias “marrabentas”; e, por fim, “até as metropolitanas, numa atitude que a assistência premiou com grandes ovações, apresentaram danças típicas e populares como o vira Minhoto e o vira da Nazaré”.27

A festa celebrava a proveniência pluricontinental das misses, bem como as expressões musicais de índole portuguesa, com as “marrabentas”, “coladeras”, “merengues”, ou os “viras” metropolitanos a traduzirem a diversidade cultural do império. A coreografia de danças típicas encenava de forma prosaica aquilo que era supostamente autêntico e original em cada província portuguesa, operando uma teatralização constitutiva da nacionalidade que era consentânea com a alegada predisposição dos portugueses para o encontro de outros povos e culturas. A ratificação dos aspetos mais pitorescos da diversidade permitia encontrar naquilo que era culturalmente diferente algo de familiar e reconhecível, com o qual se podia facilmente identificar.

Tal como tinha acontecido no concurso de Miss Portugal de 1971, alguns ministros voltaram a receber as misses nos seus gabinetes. Em prol do consenso e dos interesses comuns, o institucional aliava-se ao mundano, possibilitando que o subsecretário de Estado da Administração Ultramarina, Sarmento Monteiro, acompanhado por Cunha Leão, afiançasse que o concurso era um “pretexto para mais uma grande confraternização entre jovens de todas as parcelas do mundo português”.28

O concurso Miss Portugal de 1972 teve novamente uma enorme repercussão mediática, tendo a imprensa escrita contribuído para o fenómeno através do recurso a uma adjetivação engrandecedora. Por exemplo, no Diário Popular29 dizia-se:

 

Quem de boa fé, pode negar que o Casino voltou a ser o cenário de uma deslumbrante manifestação de beleza, de cor e de juventude? Quem pode esquecer a majestade de Gabriela, com o seu trajo de princesa do Suai, a região mais do interior da sua ilha de timorense? A riqueza da cor do trajo típico de Mucubal, o mais antigo povo do Norte de Moçâmedes? E quem pode esquecer outro trajo típico de Angola, o que trazia Maria Lídia Ferreira – o trajo típico de Vacuroca, povo já quase completamente extinto, que habita a região do Sul de Moçâmedes nas margens do rio Curoca até ao rio Cunene? E aquela alegre ceifeira alentejana que era Maria Lurdes Tomé Valente? E o fato típico sanguê que fica tão bem na beleza morena da Miss S. Tomé? E o trajo típico Bijagós, que caía como uma luva nas linhas harmoniosas de Miss Guiné?

A avaliar pela descrição, o concurso Miss Portugal 1972 foi uma das coreografias mais verosímeis do “mundo português” e proporcionou uma das ramificações mais ousadas do luso-tropicalismo na cultura de massas. Este mosaico da nacionalidade dispunha de uma galeria de retratos típicos, que representava de forma abreviada cada província portuguesa. A par de encenar a diversidade e a plasticidade do país, o desfile em trajes típicos parecia excluir o racismo do espaço público, ao mesmo tempo que engendrava um ethos português da generosidade. A celebração da vocação transeuropeia, plástica e tolerante de Portugal e dos portugueses também chegou à revista de propaganda oficial Permanência30, que vislumbrou nas concorrentes de além-mar casos de “flagrante luso-tropicalismo”:

 

Aquelas mocinhas que representaram as províncias de Além-Mar encantaram os olhos e ganharam os corações! Lusitaníssimas no seu todo, embora neste ou naquele caso demonstrando flagrante “luso-tropicalismo” – como diria Mestre Gilberto Freyre – deram testemunho vivo de que, no Além-Mar, a gente jovem portuguesa conquista semblante desanuviado, se torna mais afoita, dir-se-ia encontrar, ali, a sua atmosfera mais propícia.

 

O repórter da revista Permanência contrariava o tom mais melodramático da ideologia oficial, que dispunha de infinitas variações em torno da ideia de “pátria ameaçada”, para estabelecer um vínculo inédito entre um evento mundano e o luso-tropicalismo. Comprovando a circularidade entre o universo do entretenimento e a propaganda oficial, a revista Permanência mostrava como um evento de massas, supostamente anódino e banal, também podia ilustrar o excecionalismo português. Um punhado de jovens provenientes de várias parcelas do território português, ditas “lusitaníssimas no seu todo”, oferecia uma gratificação imaginária da nacionalidade e servia de pretexto para acenar o luso-tropicalismo banal.

De um modo rotineiro, persistente e comum, o concurso Miss ­Portugal 1972 encenava a integridade geográfica e a diversidade cultural da nação, proporcionando uma das narrativas mais envolventes da nacionalidade. Os prémios principais do concurso desse ano voltaram a ser atribuídos às concorrentes ultramarinas, entre as quais se contava uma concorrente da Guiné, outra da Madeira, Macau, Angola e três concorrentes provenientes de ­Moçambique. A concorrente Íris Maria, proveniente de Porto Amélia, Moçambique, foi eleita Miss Portugal. A revista Rádio & Televisão celebrou a sua vitória publicando um poster da nova Miss usando trajes africanos, com o título “belamente exótica”.

O quadro harmonioso que habitualmente caracterizava o concurso foi todavia perturbado em 1972 por uma manifestação feminista, com cerca de meia dúzia de manifestantes a empunhar cartazes que diziam: “não queremos este tipo de promoção”, ou “as raparigas não são mercadoria turística”, ou ainda “não à coisificação da mulher”.31 A pequena manifestação feminista não pôs em causa, nem impediu a reafirmação da geografia imperial, com o segundo grande sucesso das concorrentes ultramarinas a propiciar uma das encenações mais verosímeis da “comunidade lusíada”.

Para que o resultado corresse de feição às concorrentes de Moçambique, a dupla Jardim/Tudella voltou a operar nos bastidores do concurso.32 Estas manobras evidenciavam a importância geopolítica do concurso de beleza, com a comitiva moçambicana a obter um tempo de antena precioso no programa Movimento, de Fialho Gouveia, transmitido em horário nobre na RTP. Nesse programa, as misses moçambicanas juntaram-se a João Maria Tudella para cantar a cantiga “Moçambique”, uma canção que reafirmava a matriz lusa daquela província do Índico, afirmando: “Moçambique é com certeza uma expressão nacional. A palavra é portuguesa. E quer dizer Portugal”.33

No regresso à sua terra natal, as misses moçambicanas foram recebidas por milhares de pessoas que transportavam dísticos dizendo: “A Beira escolheu. Portugal elegeu e Moçambique venceu”. Posteriormente, as misses seguiram em cortejo automóvel até ao Hotel Moçambique, onde entoaram novamente o refrão da canção “Moçambique”. Já a nova Miss Portugal, Íris Maria, foi novamente homenageada na sua terra natal, Porto Amélia, sendo referido no ­Diário Popular34 que:

 

Em avião particular, pilotado pelo Eng.º Jorge Jardim, chegou ontem, Íris Maria ­Rosário dos Santos […]. Flores e papelinhos de cores garridas eram lançados sobre Íris Maria e cartazes com mais variados dísticos sobressaíam no mar imenso de gente de todas as raças, credos, e condições sociais, que não se cansavam de aclamar a Miss Portugal 1972. No monumento a Jerónimo Romero, e acompanhada pelo mais velho habitante de Ibo e Porto Amélia, Íris Maria depôs um ramo de flores.

 

Os últimos cerimoniais associados ao concurso eram aproveitados para realizar mais um ritual patriótico, que assegurava pretensamente os laços culturais e a união entre todos os portugueses. O vigor com que se insistia nas coisas moçambicanas – o uso de trajes típicos, as provas de afeto aos anciãos locais, o respeito pelas danças tradicionais, etc. – dava autenticidade ao multirracialismo português, que através destes rituais parecia ser genuíno e inquestionável (Edensor, 2000).

 

NOVAS ALEGORIAS DA NACIONALIDADE

 

Após o êxito dos concursos Miss Portugal 1971 e 1972, os concursos de beleza realizados em 1973 e 1974 revelaram as incertezas e vulnerabilidades de um modo de imaginar a “comunidade lusíada”. O concurso Miss Portugal de 1973 contou pela primeira vez com concorrentes vindas das comunidades portuguesas espalhadas pelo mundo. Designadamente da comunidade emigrante do Brasil, da França, mas também do Canadá, Inglaterra e Bermudas. O concurso incluiu também três concorrentes de Cabo Verde, uma da Madeira, e outra de Timor.

Apesar do alargamento às comunidades emigrantes, o concurso não conseguiu colmatar a ausência das concorrentes de Angola, Moçambique, Guiné e São Tomé e Príncipe. A falta de patrocínios e a incúria na organização dos concursos provinciais ditou a sua ausência. A ausência das concorrentes ultramarinas significou uma diminuição substancial das extrapolações sobre a natureza pluricontinental e multirracial do concurso, bem como uma perda significativa da sua importância económica e mediática, uma vez que as publicações ultramarinas não apoiavam a iniciativa. Para colmatar a ausência das representantes provenientes das colónias, o concurso inventou uma nova forma de encenar a portugalidade, desta feita caucionada pela presença de concorrentes que tinham ancestralidade portuguesa. A par das concorrentes que tinham nascido no território português, “de aquém e de além-mar”, eram também consideradas portuguesas as concorrentes cuja genealogia era portuguesa. As concorrentes luso-descendentes garantiram assim uma nova figuração da nacionalidade, proporcionando uma celebração da nação além-fronteiras.

O concurso Miss Portugal realizou-se a 1 de maio de 1973 e voltou a estabelecer uma relação entre representação, desejo e fantasia, reinventando o espaço político da nação através do desfile em trajes regionais. Nesse desfile, os apresentadores do concurso leram um texto alusivo às especificidades de cada província portuguesa, que foi acompanhado por trechos musicais representativos de todas as províncias, indo do malhão ao corridinho.

Apesar da ausência das concorrentes ultramarinas ter impedido algumas coreografias da nacionalidade, a atribuição dos melhores prémios a várias concorrentes luso-descendentes mostrou que concurso era pródigo em produzir novas alegorias da nacionalidade. A concorrente metropolitana, Carla Luísa Barros, foi eleita Miss Portugal, e os restantes prémios foram entregues à Miss Comunidade Portuguesa no Estrangeiro, Miss Portugal-Canadá, Miss Comunidade Luso-Brasileira, Miss Cabo Verde. Dispondo de um pódio proveniente dos quatro cantos do mundo, o concurso engendrou novos modos de imaginar a nacionalidade, aludindo desta feita à grandeza espiritual de Portugal além-fronteiras.

 

DEPOIS DO ADEUS

 

O concurso Miss Portugal foi provavelmente o último espetáculo mediático a abandonar as ficções que caucionavam a “comunidade lusíada”. Mesmo envolto num mar de contrariedades, o último concurso Miss Portugal realizou-se a 16 de maio de 1974. Condicionado pelo tempo e pelas circunstâncias, o concurso efetuou-se à porta fechada num hotel de Lisboa, não teve repercussão mediática, com a nova direção da RTP a cancelar a sua transmissão televisiva, nem o apoio de patrocinadores, visto que o seu patrocinador oficial, o jornal A ­Capital,         [ Links ] se dissociou do evento após o 25 de abril de 1974.

Uma vez que era preparado com meses de antecedência, e os seus organizadores não podiam adivinhar o futuro, o concurso preparava-se para encenar de novo a integridade territorial da “comunidade lusíada”, contando para o efeito com concorrentes oriundas de três continentes: oito da metrópole, quatro do ultramar (Angola, Moçambique) e seis das comunidades portuguesas espalhadas pelo mundo (África do Sul, Estados Unidos da América, Canadá, Bermudas e França). Num tempo de incertezas, o concurso Miss Portugal de 1974 foi ganho por uma concorrente de Angola, e os restantes prémios foram atribuídos às concorrentes da África do Sul, dos Estados Unidos da América, da França e a outra concorrente de Angola. Embora o país tivesse adotado outro léxico político, o concurso voltava a premiar concorrentes oriundas de várias localidades, elegendo inclusivamente uma concorrente de Angola, pouco tempo antes da sua independência.

Resumindo: os rituais associados ao concurso Miss Portugal contribuíram para banalizar o luso-tropicalismo, sobretudo com a presença massiva das concorrentes ultramarinas nos certames de 1971 e 1972. Articulando as ansiedades e fantasias do nacionalismo português no início da década de 1970, o concurso Miss Portugal expôs a força, mas também as vulnerabilidades e incertezas, de um modo de imaginar a “comunidade lusíada”. Nesse sentido, o concurso apresentou-se como um meio especialmente produtivo para captar “na exposição decorativa do que se dá como evidente o abuso ideológico que nele se esconde” (Barthes, 1997 [1957], p. 5), oferecendo um olhar historicamente singular sobre os últimos anos de uma ideologia colonial.

 

BIBLIOGRAFIA

 

PUBLICAÇÕES PERIÓDICAS RELATIVAS AO PERÍODO 1970-1974

 

A Capital

Cartaz. Mensário da Vida Portuguesa        [ Links ]

Diário Popular        [ Links ]

Flama. Revista Semanal de Actividades        [ Links ]

Notícia        [ Links ]

Notícias da Beira        [ Links ]

O Século Ilustrado        [ Links ]

Permanência. Revista Mensal de Actualidades Ultramarinas        [ Links ]

Plateia        [ Links ]

Rádio & Televisão        [ Links ]

Revista de Angola        [ Links ]

 

 

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Recebido a 31-01-2013. Aceite para publicação a 20-07-2013.

 

NOTAS

1 A expressão a “particular maneira portuguesa de estar no mundo” foi cunhada por Adriano Moreira (1962, p. 154), que referiu: “dispersa a Nação por todos os continentes, entrando em contacto com as mais variadas gentes e culturas, acolhendo a todos com igual fraternidade, foi necessário estabelecer um conjunto de preceitos que traduzissem a ética missionária que nos conduziu em toda a parte com fidelidade à particular maneira portuguesa de estar no Mundo”.

2 “Miss Portugal um título a concurso”. Rádio & Televisão, 748, abril de 1971, pp. 34-35.

3 “As misses um elo mais a reforçar a união Metrópole-Ultramar”. Plateia, 11-05-1971, p. 17.

4 “A eleição de Miss Portugal”. Diário Popular, 08-04-1971, p. 24.

5 “No Ritz: Moçambique em parada”. Diário Popular, 24-04-1971, p. 9.

6 Sobre a encenação nacional de uma diversidade cultural folclorizada ver Wilk (1995).

7  A propósito das flores que vinham do Chimoio, Jorge Jardim (1976, p. 150) referiu nas suas memórias: “a moda das capulanas fora lançada, na memorável apresentação no ‘Ritz’, em que até as flores vinham do Chimoio. Exibindo as setas moçambicanas (símbolo da tradição lusíada, da unidade das gentes, do progresso e da paz) as nossas moças tinham sido inexcedíveis”.

8 “As misses e os ministros”. Revista de Angola, 30-04-1971, s.p.

9 “Recebidas pelos ministros do Ultramar e das Corporações e Saúde as representantes de Moçambique”. Diário Popular, 15-04-1971, p. 1.

10 Ver o capítulo “Anatomy of a beauty pageant: The swimsuit competition”, na obra de Weiser (1999, pp. 58-86).

11 “O ultramar existe… está crescidinho”. Século Ilustrado, 01-05-1971, pp. 61 e 64.

12 “Jornada de triunfo para a juventude portuguesa de Além-mar”. Permanência. Revista de Actualidades Ultramarinas, n.º 11/12, maio de 1971, p. 20.

13 “Meu bisavô: Zé Boca de Choupa”. Revista de Angola, 31-05-1971, s.p.

14 “Miss Portugal é nossa”. Revista de Angola, 30-04-1971, s.p.

15 Michel Foucault realça os limites da hipótese repressiva no campo da sexualidade, mostrando que a difusão de discursos sobre o sexo o transformaram num “facto discursivo global”. Para Foucault “essas produções discursivas e esses efeitos de poder levam à formulação da verdade do sexo ou de mentiras destinadas, pelo contrário, a ocultá-lo, mas em libertar a ‘vontade de saber’ que ao mesmo tempo lhes serve de suporte e de instrumento”. Foucault (1995 [1974], p. 17).

16 “O ultramar existe… está crescidinho”. Século Ilustrado, 01-05-1971, pp. 61, 64.

17 “Triunfo ultramarino para a eleição no concurso Miss Portugal”. Cartaz. Mensário da Vida Portuguesa, 37, abril, 1971, p. 31.

18 A canção dos Negoleiros do Ritmo foi transmitida por um megafone instalado numa carrinha que acompanhava o cortejo de Riquita. Na letra dizia-se: “Riquita já és rainha/ de Angola que acredita/ mostrou como é natural/ Riquita foste a melhor/ desta festa nacional/ Angola rima contigo/ mais linda de Portugal […]. Angola não é só Namibe/ tem muita Riquita podem vir escolher”.

19 Essa caracterização foi-lhe atribuída por José Freire Antunes (1996, p. 436), que referiu: “A missifilia de J.J. ganhou balanço quando, no início de 1971, a revista Donas de Casa seleccionou Ana Paula Almeida, uma jovem radicada em Moçambique, entre as sete mais bonitas”.

20 De acordo com Jorge Jardim: “Por essa altura desencadeávamos, na Metrópole, uma intensa campanha publicitária destinada a chamar a atenção sobre Moçambique. Nada foi deixado ao acaso e a invasão dos ‘poster’ fez-se, metodicamente, com notável impacto sobre a opinião pública. […] Tivemos de enfrentar reacções, mas o objectivo foi plenamente alcançado: a presença de Moçambique, na sua promessa no futuro, estendeu-se, durante três meses, a todos os recantos de Portugal” (Jardim, 1976, p. 150).

21 Segundo José Freire Antunes (1996, p. 435), “O transversal J. J. parecia investir tão vibrantemente nos aspectos lúdicos da vida como na resolução dos dramas fronteiriços com Banda, na ligação à Rodésia e à África do Sul ou na gestão de empresas […]. O seu estímulo a actividades recreativas, como forma de promover Moçambique, e também de disfarce seguro para operações de risco e de espionagem internacional, passou pelo empenho nos certames anuais de Miss Portugal”.

22 “O Ultramar existe… Está crescidinho!”. Século Ilustrado, 01-05-1971, pp. 64-65.

23 Ibid., p. 65.

24 Uma reportagem publicada no Diário Lisboa mencionava as movimentações que existiam nos bastidores do concurso: “Se Vera Lagoa é uma veterana dos concursos de beleza. Tudela é um desbravador de bastidores. E estes concursos funcionam nos bastidores. Claro que Tudela sabe funcionar e Vera sabe orientar […]. O Notícias da Beira esteve também empenhado no desfecho. O Eng.º Jardim, presidente do conselho de administração desse jornal, seguiu diariamente por telefone o desenrolar dos acontecimentos”. Joaquim Letria, “A eleição de Miss Mundo”. Diário de Lisboa, 11-11-1971, p. 3.

25 Vera Lagoa, Diário Popular, 11-11-1971, p. 9.

26 Conselho de administração, “A propósito das Misses. E Goa onde está?”. Notícias da Beira, 08-03-1972, p. 1.

27 S/a, “Zaida (da Guiné) foi a rainha de uma fascinante tabanca”. Diário Popular, 09-03-1972, p. 17.

28 S/a, “As vinte e cinco beldade enfrentaram os repórteres no Casino do Estoril”. Diário Popular, 08-03-1972, p. 9.

29 S/a, “Deslumbrante manifestação de beleza e juventude”. Diário Popular, 15-03-1972, p. 6.

30 S/a, “Desenvoltura e alegria vieram a Lisboa de todo o ultramar”. Permanência. Revista Mensal de Actualidades Ultramarinas, 23-04-1972, p. 13.

31 S/a, “Manifestação Anti Misses”. Flama, 18-03-1972, p. 5.

32 José Freire Antunes (1996, p. 439) refere que “Íris tinha uma beleza fora do vulgar, mas Tudela suou as estopinhas para impor o seu favoritismo. O quadro era de extrema politização do concurso Miss Portugal: governadores e generais de cada um dos territórios africanos queriam impor as respectivas beldades à nação e moviam influências nos bastidores”.

33 Segundo o testemunho de João Maria Tudella: “Moçambique tinha a sua segunda Miss Portugal consecutiva e o feito mereceu honras no horário nobre da RTP: Fialho Gouveia ladeado por Ana Paula e Íris disse aos telespectadores: Miss Moçambique 1971, Miss Moçambique 1972, Miss Portugal 1971, Miss Portugal 1972 […] Entrei e cantei o refrão da canção Moçambique e na repetição as duas cantaram comigo”. Antunes (1996, p. 441).

34 S/a, “Miss Portugal recebida entusiasticamente em Porto Amélia”. Diário Popular, 18-03-1972, p. 9.

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