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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.210 Lisboa mar. 2014

 

Ensaio sobre o dom na televisão

Essay on the gift in television

 

Eduardo Cintra Torres*

*Faculdade de Ciências Humanas, Universidade Católica Portuguesa, Palma de Cima, 1649-023 Lisboa, Portugal. E-mail: eduardocintratorres@gmail.com

 

RESUMO

O dom tem sido estudado nas mais variadas áreas das relações sociais, mas não na sua concretização televisiva, constante e variada. Partindo da perspetiva da televisão, não só como reprodutora, mas também como produtora de sociedade, tentamos uma abordagem sociológica geral do dom na televisão. Tal como nas restantes relações sociais, ele manifesta-se de diferentes formas, desde os grandes tele-eventos caritativos até aos talk shows quotidianos. Apesar de inseridas na esfera mercantil do negócio televisivo, estas emissões mantêm o caráter primordial do dom, reforçando a autoridade da televisão e os laços com a sua audiência.

Palavras-chave: dom; televisão; sociologia; Marcel Mauss.

 

ABSTRACT

The gift has been studied in a variety of social relations, but not in its daily and wide ranged presence in television. Considering television not only as a reproducer but also as a producer of society, we try a general sociologic approach to the gift in television. Just as in the other social relations, it manifests in several ways, from the great charity media events to the daily talk shows. Although inscribed in the commercial sphere of the television business, these programmes keep the main character of the gift, reinforcing the authority of television and its ties with audiences.

Keywords: gift; television; sociology; Marcel Mauss.

 

A TELEVISÃO COMO PRODUTORA E REPRODUTORA DE RELAÇÕES SOCIAIS

 

Partimos da influência mútua entre televisão e sociedade: os media tanto “moldam como espelham a sociedade e as mudanças sociais”, “interagindo e influenciando-se continuamente” (McQuail, 2010, p. 81). Eles “filtram e modelam as realidades quotidianas através das suas representações singulares e múltiplas e proporcionam marcos, referências, para a condução da vida diária e a produção e a manutenção do senso comum”, sendo “centrais” para a reflexão da sociedade, mais nos seus programas habituais do que nos grandes eventos: através deles, o mundo “desdobra-se e representa-se, reiterada e interminavelmente” (Silverstone, 2004, p. 22). Neste ensaio, vemos a televisão pelo prisma de “longo braço da sociedade” (Gripsrud, 2002, p. 5). Televisão e sociedade agem como num “sistema homeostático”, no qual “mudanças e estímulos são absorvidos pelo conjunto do sistema, de forma a manter sempre o equilíbrio” (França, 2009, p. 31), tendendo a televisão tanto a reproduzir a vida da sociedade, como a transformar as relações sociais em formas culturais concretas e influir por ricochete na vida coletiva pelo tratamento ideológico, cultural e estético. É, também, pois, produtora de sociedade.

A importância do media nessa função amiúde escapa-nos pela in/formalidade e realismo dos seus conteúdos, que mais ocultam do que revelam a sua inserção nas abstrações dos estudos sociais. Ora, determina-se melhor uma época “a partir duma análise das suas despercebidas expressões superficiais do que a partir dos juízos da época sobre si mesma”. Dada a sua “natureza inconsciente”, essas expressões “fornecem acesso direto à substância fundamental” (Kracauer, 1995, p. 75). Kracauer, em 1927, analisava as superfícies do efémero cultural e domínios marginais, não para chegar à hipotética transcendência dos “ornamentos de massas”, mas para os transcender: “o acesso à verdade faz-se hoje por via do profano” (Kracauer, 1995, pp. 20, 201). Anos mais tarde, em 1947, o sociólogo alemão insistia que as emissões broadcast e outros “­produtos sedimentares da vida cultural de um povo também fornecem informação valiosa sobre atitudes predominantes e tendências ocultas disseminadas”. Escrevendo sobre os filmes, acrescentava que eles “parecem preencher uma missão inata para se desvendar minúcias” nos seus “impercetíveis dados de superfície” a que também chama, citando Horace M. Kallen (Art and Freedom, 1942), “hieróglifos visíveis da dinâmica oculta das relações humanas” (Kracauer, 1971 [1947], pp. 6-7). Élie Faure (1922), por sua vez, escreveu sobre os “ornamentos espirituais” no cinema e Mauss sobre o “instante fugitivo” em que se vê a sociedade em ação, permitindo o “estudo do concreto” social (Mauss, 1950, pp. 275-6). Em 1964, Eco propunha “um estudo concreto” e “caso a caso” dos produtos de massas, com recurso a ferramentas sofisticadas de análise para “falar de coisas de importância mínima”, por constituírem o “fenómeno cultural mais notável” da contemporaneidade (Eco, 1997, pp. 37, 46). Para Macé (2001), a televisão produz “representações simbólicas do mundo” e “restos congelados de ação coletiva”.

Assim, o aparato dialógico e a enunciação superficial de temas sociais na televisão permitem descobrir no que é dito e não dito as profundezas e a constância dos fenómenos sociais. Se concebida a realidade social como “intrinsecamente simbólica” (Caillé, 2007, p. 21), a televisão é um momento de apoteose, pela sua existência na esfera comunicacional, da apresentação e representação do mundo real e quotidiano. O seu aparato ideológico-económico (re)produz, sem pôr em causa, as estruturas sociais e de classe, o sistema elites-massas, os modelos político-ideológicos do capitalismo em democracia ou − retomando uma crítica do modelo privado de broadcast nos EUA no século XX − da “democracia comercial” (apud Hilmes, 2003, p. 7), de que é, aliás, um dos principais suportes.

 

O LUGAR DO DOM NAS SOCIEDADES CONTEMPORÂNEAS

 

Em Ensaio sobre o Dom, de 1923-1924, Mauss (1950) reclamou o tema do dom à antropologia dos povos arcaicos, generalizando-o a todas as sociedades. Para ele, a trilogia dar-receber-retribuir é elemento constituinte das relações sociais; no dom coexiste a liberdade e a obrigação da reciprocidade. A importância do dom nas relações sociais levou Caillé (2007, p. 13) a considerá-lo como “terceiro paradigma” explicativo da sociedade, depois dos paradigmas utilitarista e holista. Correções ao ensaio de Mauss não diminuem a sua importância como contributo teórico seminal para a sociologia e a antropologia. Em definitivo, colocou o dom na agenda das ciências sociais como “fenómeno social total” que “movimenta em alguns casos a totalidade da sociedade e das suas instituições”, sendo “ao mesmo tempo jurídico, económico, religioso, e ­também estético, morfológico, etc.”. Nos dons, Mauss via a “possibilidade de serem mais universais do que as diversas instituições ou os seus diversos temas”, permitindo “ver as próprias coisas sociais, no concreto, como elas são” (1950, pp. 274, 276).

Eventuais erros analíticos e tipológicos do dom em Mauss não impedem a sua correta avaliação do dom como cimento das relações sociais. A transposição do fenómeno das sociedades arcaicas para as contemporâneas é das suas propostas mais válidas: a moral e a economia do dom “funcionam ainda nas nossas sociedades de modo constante e por assim dizer subjacente”, sendo “um dos rochedos humanos” sobre os quais são construídas (Mauss, 1950, p. 148).

O Ensaio acentua o caráter público de grande parte dos dons, sendo ele que o justifica e que serve para (re)confirmar a hierarquia social. Na “alegria de dar em público” e em festa “é a hierarquia que se estabelece. Dar é manifestar a sua superioridade, […] aceitar sem retribuir ou sem retribuir mais é subordinar-se” (Mauss, 1950, pp. 263, 269). O ato da doação implica o de “dar-se” ao doador (idem, pp. 227, 248), o que não só reforça o laço social criado pela materialidade do dom como reafirma a diferença dos estatutos de doador e donatário, nomeadamente no tempo longo se não houver retribuição, como no caso do dom generoso. A “alma da coisa” doada (idem, p. 160) será em Mauss uma extrapolação subjetiva sem prova sociológica, mas sublinhará que o dom cria “um laço espiritual” (idem, p. 163) na materialização da relação. Mauss poderia ter esclarecido que a “força das coisas” (idem, p. 214) é a da transferência do laço social pelo bem, da moralidade e da associação materializadas. No dom, o laço social “conta mais do que o bem” (Caillé, 2007, p. 124). Mauss sublinhava, justamente, que o dom se exprime “de modo mítico, imaginário ou, se se preferir, simbólico e coletivo” (1950, p. 194), o que só nos pode interessar numa fábrica pública de significados e de morfologia social e estética como a televisão.

A principal dificuldade de Mauss residiu na distinção entre troca comercial e dom (Testart, 2007), mas referiu-se à irrelevância da relação social na primeira, à qual a sociedade atual reage na sobrevivência do segundo (Mauss, 1950, pp. 229; 260). Sublinhando o fim moral do dom, fala do seu caráter livre, embora acentue erradamente a obrigatoriedade da retribuição. Todavia, na sua insistência em fazer da retribuição um elemento essencial do dom, vemos que, enquanto “fenómeno social total”, Mauss incorporou elementos não sociológicos, como a intenção da retribuição, o laço psicológico, ou arrisquemos, a confirmação silenciosa da hierarquia ou da ordem social por parte do pedinte que recebe a esmola. Mauss, como referem seguidores (Godelier, 1996; Godbout e Caillé, 2000; Hénaff, 2002; Caillé, 2007), estabeleceu a coexistência de dois “sistemas”, o do dom e o da troca comercial. Todavia, não conhecemos nem seguidores nem críticos que saiam da oposição dom como troca ou dom como sistema alternativo.

A crítica utilitarista valoriza o dom como troca e fruto da escolha racional, enquanto os seguidores de Mauss sublinham a importância do dom na “produção e reprodução do laço social” (Godelier, 1996, p. 7) e o seu caráter simbólico, social, voluntário e desigual, incluindo a modalidade em que não existe retribuição em bens, como na caridade ou no dom a estranhos. Distinguem-no radicalmente das transferências e das trocas ao nível da esfera estatal e mercantil.

Godbout e Caillé (2000) sublinham o recuo do dom para a esfera privada com o avanço da troca mercantil e da política distributiva do Estado. Hoje, a economia do dom tenderia “a não ser mais que uma ilhota no oceano da economia da troca por troca” (Bourdieu, 1998, p. 174) e a generosidade pública tornou-se “suspeita” (Cardon et al., 1999, p. 97).

Falta-nos definir dom. Dado que um ponto de partida de Mauss − a obrigação de dar, receber e retribuir − não se confirma nem nas sociedades arcaicas, usamos a definição de Testart (2007, p. 22): o dom “é uma cedência de bem” que “implica a renúncia a qualquer direito sobre esse bem assim como a qualquer direito que poderia emanar dessa cedência, em particular a de exigir o que quer que seja em contrapartida” e que “não é ela mesma exigível”.1

 

O DOM NA TELEVISÃO

 

A dimensão económica, capitalista, da televisão estabelece a estrutura primária da atividade, mas, enquanto produtora de significados, submete o discurso à necessidade de estabelecer laços sociais com a audiência. O dom, como produtor e mantenedor de laços sociais, serve a adequação do discurso e da prática ao objetivo central da atividade. Por exemplo, o conceito de televisão “de companhia” corresponde à necessidade do vínculo social, devendo ser visto como biunívoco: só existe na reciprocidade do laço social à distância, pela televisão na oferta dos conteúdos, pela audiência por assistir e, eventualmente, interagir. Televisão e espetador dão-se mutuamente. À ontologia televisiva convém a materialidade do mundo, concretizando conceitos e ideias, em geral no modo vernáculo. Ora, também o dom concretiza os laços sociais, “constitui o motor e o performador por excelência das alianças” e realiza o que é “moralmente desejável” (Caillé, 2007, pp. 19, 38) em transferências de bens: “a força dos objetos é a de materializar o invisível, de representar o irrepresentável” (­Godelier, 1996, p. 152). Assim, o dom na televisão é um casamento de conveniência.

Considerando que o dom “existe em toda a parte, apesar de não ser igual em toda a parte” (Godelier, 1996, p. 7), não seria difícil, apenas árduo, fazer um levantamento sistemático do dom na televisão. O assunto merece esse levantamento, mas o objeto deste ensaio é uma primeira abordagem ao tema. Nesse levantamento, poderíamos começar pela própria conceção da televisão em aberto, generalista, como algo que é dado à audiência sem exigir nada em troca: o espetador é livre de ver ou não ver, incluindo a publicidade, normalmente considerada como contrapartida (ou um contra-dom) do que lhe é dado. Em Portugal, esta conceção é partilhada na linguagem comum de operadores e espetadores. As autopromoções dos programas anunciam que o canal “oferece-lhe hoje…”; do lado dos espetadores, usa-se comummente o verbo “dar” para indicar transmissões: a “RTP1 deu”, a “SIC está a dar”, etc.

A perceção da televisão em aberto como um dom é vulgar na população e poderá explicar parcialmente, em estudos de receção, a ligação afetiva mais forte com os conteúdos da televisão generalista do que com os da televisão paga. Esse dom da televisão em aberto e do seu abraço emotivo com os espetadores pode originar um sentimento de “dívida” moral (nem social nem económica) implicando uma retribuição, o que, de alguma forma, dá razão a Mauss. Tomamos como exemplo a declaração de uma mulher ouvida numa parada de aniversário da SIC no centro de Lisboa (07-10-06), quando interrogada se “sentiu o apelo” de se juntar à multidão: “Estava deitada na minha cama, bastante doente, […] e, pelo apelo da SIC, vim a correr.” Isto é, fez o sacrifício para dar de volta a sua presença como contra-dom ao canal.

A televisão tem também uma dimensão institucional em doações diretas que, apesar de publicitadas, não surgem na esfera dos conteúdos, antes no atual papel de “responsabilidade social das empresas”, também ele inscrito na dimensão do dom. É o caso da SIC Esperança, Instituição Particular de Solidariedade Social, de utilidade pública, criada em 2003. Em oito anos, associou-se a mais de 500 campanhas humanitárias, angariou 3,47 milhões de euros, desenvolveu parcerias com 81 empresas, trabalhou com 146 instituições e beneficiou mais de 22 500 pessoas.2 Esta atividade quase não teve visibilidade na antena da SIC. Também a Media Capital, proprietária da TVI, apoia causas sociais.3

Estas dimensões do dom servem para indicar a sua ubiquidade na atividade televisiva a montante (institucionalidade) ou a jusante (audiência) dos conteúdos. Quanto a estes, se a investigação permite encontrar formas de dom nos mais variados géneros televisivos, concentrar-nos-emos no dom espetacular e no dom quotidiano por serem formas indiscutíveis. Todavia, anotamos a possível existência de formas dúbias de dom, nomeadamente em concursos e jogos de sorte e azar. Os concursos e sorteios não se inscrevem no sistema do dom, apesar dos prémios atribuídos. Isso não exclui que eles sejam cobertos com a linguagem própria do dom, dando-lhes as emoções e a personalização próprias do laço social do dom. Nos talk shows matinais da SIC e da TVI os sorteios do tipo “roda da sorte” resultam da quantidade de telefonemas de espetadores que concorrem ao prémio nos dias anteriores. São os espetadores, pagando 74 cêntimos, quem possibilita os prémios, mas os apresentadores usam o conceito de “dar”: “Começamos por dar prémio garantido de 2000 euros”, diz a apresentadora da TVI (07-01-13); na SIC, a apresentadora vai mais longe definindo o mesmo jogo como “uma entidade muito justa: quando faz falta a alguém, sai” (08-01-13).

 

O DOM EM EVENTOS ESPETACULARES

 

A generosidade em público através de emissões especiais de televisão tem uma história com mais de meio século. O norte-americano Milton Berle terá sido o primeiro a apresentar, em 1949, um programa destinado à recolha de fundos para uma causa solidária. O neologismo “telethon” reunindo “televisão” (television) e “maratona” (marathon), surgiu na imprensa logo após essa emissão de 16 horas. O “telethon” tornou-se depois uma marca distintiva de televisões nacionais e regionais em aberto e, em vários casos, uma realização anual, associando-se a causas de saúde ou auxílio a vítimas de catástrofe. Iniciativa da instituição televisiva, de organizações de caridade ou solidariedade, ou de ambas as instâncias, o “telethon” tem um dispositivo próprio da espetacularidade que pretende romper com o quotidiano da programação e dos espetadores: alguns ultrapassam as 24 horas de emissão, quase sempre em direto, com constantes apelos ao dom, de cinco em cinco minutos no “telethon” francês (Cardon et al., 1999, p. 31). Há ainda concertos ou provas desportivas organizadas com o fim específico da solidariedade caritativa, a que a televisão se associa. O “telethon” tornou-se um subgénero em todo o mundo, com versões de menor dimensão, como especiais de duas ou três horas, geralmente em salas de espetáculo.4 O dispositivo impõe a mistura de música e entretenimento com os repetidos apelos ao dom e indicação da verba já recolhida. O discurso do dom torna-se autoconsciente em dimensão pública espetacular, sem sombra de “suspeita”.

O “telethon” originou estudos, nomeadamente em França, a propósito do programa chamado precisamente Téléthon, organizado anualmente desde 1987 pela associação francesa de luta contra as miopatias (AFM) em conjunto com o canal público em aberto France 2, centrando-se menos na reflexão sobre o dom do que na emotividade e na receção (Cardon et al., 1999; Heurtin, 2009). Investigadores belgas analisaram o papel das celebridades nos “telethons” ou “media events de caridade” (­Driessen, Stijn, Biltereyst, 2012).

O “telethon” reproduz mediaticamente tipos de doação a desconhecidos ou estranhos já existentes na sociedade, mas a TV amplia a dimensão do evento, tornando-o ubíquo e nacional e anula parcialmente o anonimato dos donatários, concretizando os recipientes em pessoas mostradas, doentes no hospital ou vítimas de catástrofe.

Por definição, os grandes eventos mediáticos, os media events de Dayan e Katz (1996), apresentam-se como rituais ou cerimoniais de rompimento da norma social, pelo que o “telethon” não representa a incrustação do dom no quotidiano do media e das audiências. Ele constitui “bem menos um género televisual do que uma tecnologia de mobilização, mais próxima do repertório da ação coletiva do que das técnicas de produção televisual”, transtornando “as hierarquias e os papéis sociais normais” e dotando o presente de uma “densidade de que a vida quotidiana comum é desprovida”. A sua “única intriga” é a da mobilização (Cardon et al., 1999, pp. 29, 30, 34). Todavia, o “telethon” reintroduz o dom caritativo da livre iniciativa de cada indivíduo − coletivamente mobilizado − como política e socialmente aceitável, alternativo à esfera distributiva anónima, impessoal e burocrática do Estado, o responsável, aliás, pelo recuo da solidariedade privada na sociedade contemporânea a partir do final do século XIX e início do século XX (Blais, 2007).5

Os media events caritativos juntam as características do dom público às da televisão, concretizando-o, tal como nas sociedades arcaicas ou nem tanto, como festa, à qual chamamos entretenimento quando nos referimos à televisão: “mistura de espetáculo e de partilha solidária, o “telethon” manifesta o poderoso laço social que a televisão cria nas sociedades contemporâneas” (Duccini, 2011, p. 121). Na dúplice iniciativa das instituições televisivas e da sociedade civil, o “telethon” estabelece que, não sendo o dom atributo exclusivo da televisão, esta apresenta-se como sua mediadora instrumental.

 

O DOM ESPETACULAR HABITUAL NA TELEVISÃO

 

Há conteúdos televisivos, agora na ordem do quotidiano, em que o dom é a razão de ser, quer como programas autónomos, quer como rubricas de talk shows. Resgatam-no do âmbito do extraordinário para a normalidade quotidiana. Comecemos por dois casos em que o dom, transportado para o fluxo televisivo, mantém ainda, pela dimensão, um caráter espetacular.

Em 2004, quando o seu talk show completou 19 anos, a apresentadora Oprah Winfrey entregou um automóvel Pontiac a cada um dos 276 espetadores presentes na audiência de estúdio, num total de oito milhões de dólares.6 Em 2010, Winfrey repetiu o dom espetacular e inesperado, entregando 275 Volkswagen Beetle aos presentes. Entregou ainda outros presentes, como iPads, televisores e viagens de cruzeiro.

A dimensão dos dons resultou do êxito do programa. Com milhões de espetadores nos EUA em 212 estações e em 109 outros países, foi o primeiro programa de conversa e entretenimento de alcance global. A Pontiac e a Volkswagen ofereceram os carros, mas as notícias de imprensa indicavam o dom como oferta de Winfrey, numa confusão necessária entre o verdadeiro dador (a marca) e a mediadora televisiva, sem a qual ele não teria lugar. A esfera comercial da transferência dos bens é tornada irrelevante pela esfera do dom, que toma a dianteira. Em 2004, Winfrey disse que os 276 espetadores foram “especialmente escolhidos, porque famílias e amigos tinham dito aos produtores do show que precisavam de novas rodas”. Em 2010, disse: “A questão não são estes presentes todos. Apesar de isto ser realmente divertido, a questão é realmente a esperança.” É, pois, o capital simbólico do dom que conta, ou que é referido, mais do que o bem material.

Nestas, como noutras ofertas realizadas por Winfrey, o dom estabelece o poder do doador. Só alguém poderoso pode fazer um dom de tal dimensão. Constata-se a posição de servidão do donatário perante o doador. Embora este se personalizasse em Winfrey, podemos dizer que o dom se concretizou pela televisão enquanto instituição de poder. Na verdade, a perda de audiência de Winfrey depois de interromper o talk show, substituído por outro no seu próprio canal, fez também desaparecer os dons espetaculares. O facto demonstra a complexidade do dom na televisão: ele é, materialmente, a obra do fabricante ou prestador de serviços; um programa executa-o no espaço público; esse programa é obra não só de quem o apresenta, mas da agency em que se inscreve.

Os dons espetaculares de Winfrey abriram uma brecha no rame-rame quotidiano do programa, uma zona de liminaridade que confirmava a ­própria ordem no resto do ano. Contudo, a criatividade do media televisivo não tem limites. O dom de dimensão espetacular é possível na própria ordem do quotidiano. Um exemplo é o programa Extreme Makeover: The Home Edition (a partir daqui EMHE), da rede norte-americana ABC. Neste caso, o dom é a única intriga de um conteúdo autónomo, criado só para a televisão. Desde 2003, EMHE escolhe uma “família necessitada” e oferece em cada emissão uma casa nova e também o recheio, bolsas de estudo, vales de farmácia, etc.7 A casa original da família é destruída perante as câmaras, o que justifica o nome de “transformação extrema”. No processo de construção, escolha dos materiais e da decoração, fala-se das dificuldades e tragédias da família e das características pessoais de cada um dos membros. O êxito do programa permitiu alargar o dom à criação ou impulso de uma atividade económica familiar, bem como proporcionar dons à comunidade local da família (bombeiros, escola, etc.). Os dons alargados à Gemeinschaft permitem ao programa dizer-se “extremamente orientado para a comunidade”. Produz-se individualidade e comunidade, como no dom em geral (Caillé, 2007, p. 59).

A família surge como única hipótese de donatário, e no seu modelo conjugal ou nuclear: casal e seus filhos, naturais ou adotados; viúvo ou viúva e filhos. O conceito de home é sinónimo de família de duas gerações. Porquê esta opção pela família como única hipótese de donatário? Ela corresponde à unidade “ideal” da audiência da televisão generalista, desenvolvida do ponto de vista ideológico, cultural e comercial como um media “para toda a família”; trata-se de deificar um valor da sociedade, neste caso a norte-americana; incluindo sempre as famílias escolhidas crianças ou adolescentes, valoriza-se a emoção, a ligação entre gerações; e a criança inocente, sem possibilidade de autossustento, como principal valor social contemporâneo, possibilita uma infantilização do conteúdo que serve a ideologia da televisão generalista e de atração de audiência.

Como se processa o dom em EMHE? As famílias candidatam-se ou são candidatas por quem as conhece. Tal como em Winfrey e noutros conteúdos analisados, introduz-se um elemento adicional na cadeia do dom, o requerente, que acrescenta o caráter familiar ou comunitário e a generosidade latente no ser humano. Escolhida a família, a produção visita-a, fala-se das dificuldades, mostra-se a casa. Testemunhos recolhidos na comunidade abonam a favor da bondade da família, do esforço de todos para se manterem unidos. A família é apresentada como exemplo do bem, quer em si mesma, quer no quadro comunitário: “Acho que toda a gente deve fazer o que puder pela comunidade”, diz a protagonista da família Zdroj, do Texas. Por oferta do programa, a família parte para um local de férias, mantendo-se em contacto até ao fim da construção da nova casa. Esta é construída, mobilada e decorada tendo em conta a memória familiar e as características pessoais dos seus membros. A entrega da casa e dos restantes dons ocorre numa cerimónia pública e espetacular: o camião do programa esconde a casa nova da vista da família quando ela chega. Estão presentes os doadores de bens e serviços, a equipa do programa e a comunidade local (o programa decorre normalmente em zonas rurais). O ritual completa-se com a posse dos bens pela família maravilhada e agradecida. O discurso ideológico de apresentadores e doadores sublinha que o dom é merecido, quase um dever perante o heroísmo da luta da família pela sua união contra a decadência económica e de saúde. Mantém-se o modelo do anterior Extreme Makeover, da mesma produtora: os sujeitos têm de ser “antes de mais merecedores da transformação” (Weber, 2009, p. 63). Como acontece amiúde com o dom caritativo, os doadores, caso do construtor da casa no episódio da família Gibbs, do Ohio, dizem “nós beneficiamos mais do que vocês [donatários]”. No episódio da família Zdroj, o dom é apresentado como um contra-dom feito pelo programa e pela comunidade devido à sua conformação aos valores consensuais da sociedade: “Isto vai mostrar aos miúdos que, apesar de tudo o que possamos passar, se tivermos fé e trabalharmos muito e se praticarmos o bem, ele ser-nos-á devolvido”. O programa vai apresentando as empresas doadoras à medida que intervêm nas obras ou fazem as ofertas. Assim, as referências comerciais inscrevem-se no conteúdo enquanto prática de dom. No final, o programa refere de novo as empresas doadoras e remete informação comercial para o site da ABC. Tal como nos dons do programa de Winfrey, a espetacularidade das doações só é possível dado o êxito de audiências e, portanto, da difusão da vertente comercial da mensagem. Nem sempre é assim. Programas com menor audiência adaptam o valor do dom à menor potencialidade comercial que ela gera.

 

O DOM NO QUOTIDIANO DA TELEVISÃO

 

Em Dr. White: O Caminho para a Felicidade (SIC) a firma-clínica com o mesmo nome oferece operações de correção ou de alteração estética do corpo. O canal de televisão é o mediador desta mensagem com uma única empresa doadora. Cada programa de meia hora resolve um caso concreto. Quer o médico e apresentador, quer os donatários sublinham o momento como um ritual de passagem, o que sucede amiúde nos programas de dom, neste caso da infelicidade para a felicidade e para a autoestima recuperada, tema sempre presente nestes programas, com produção em inúmeros países (Filho, 2010). A televisão, intervindo no concreto e escolhendo arbitrariamente os donatários, coloca-se na posição de substituir o Estado onde ele não pode ou não quer atuar. Num episódio de Dr. White, o médico apresentador refere que a donatária “fez nova cirurgia num hospital público, mas, por mais que o médico dela tente ajudar, não tem nem orçamento nem dinheiro, nem materiais e equipamentos”. A iniciativa privada apresenta-se como alternativa ao Estado, usando o dom na televisão como veículo de publicitação e de proximidade.

Se nestes programas semanais o dom é o tema essencial do conteúdo, já nos talk shows diários ele é parte de uma trama composta por diversas rubricas. Ele subjaz a grande parte dos programas (dar conselhos de saúde, beleza, etc., apresentar casos de altruísmo), mas detemo-nos nas rubricas de dom explícito. Nos casos estudados, são recorrentes mas não diárias, dada a impossibilidade económica de as garantir. Os talk shows matutinos e vespertinos na televisão quotidiana são um exemplo acabado da “TV de companhia” e de “proximidade”. No caso português, destinam-se à principal audiência disponível nesses horários: maioritariamente feminina e idosa. O brand ou product placement (Pino e Olivares, 2006) tem uma presença esmagadora nestes programas, verificando-se uma mercantilização do discurso normal. As rubricas de dom participam nessa normalização da mercantilização do quotidiano, que existe em paralelo com a dimensão independente do dom.

Analisámos emissões de 2012-2013 do talk show Você na TV!, transmitido de segunda a sexta no canal TVI. Incluíram três rubricas de dom. Em “Pedir Não Custa” num espaço público em localidade de pequena ou média dimensão, algumas pessoas sobem a um degrau com o nome da rubrica, olham a câmara dizendo o dom que gostariam de receber: “Como pedir não custa, eu venho ao Você na TV! pedir um frigorífico porque o meu já está avariado. Eu neste momento estou desempregada e não posso comprar nenhum.” Na maioria dos casos, os pedidos destinam-se a familiares: “Como pedir não custa, gostava de pedir um aparelho auditivo para a minha mãe, visto que tem uma reforma mínima e os filhos também não a podem ajudar. Muito obrigada”. Reencontramos o novo elo na cadeia do dom: o agente do pedido pede para outrem. Dias depois, o programa tanto dá diretamente como recorre a entidade exterior, que doa a troco da exibição da marca ou produto.

Nos programas observados verificámos o limite do dom devido à incapacidade da produção em encontrar doadores. Só atendeu parte dos pedidos: “Nós concretizamos alguns pedidos feitos na Praça da República, nas Caldas da ­Rainha”, anuncia o apresentador. O dom mais valioso foi mostrado com a marca visível. Os outros dons eram de valor baixo e a marca impercetível ou não revelada: uma cadeira de bebé para sentar à mesa de jantar e uma mochila com material escolar. Em ambos os casos, os dons destinaram-se a outro familiar, sendo oferecidos um no espaço público, os outros na casa dos donatários, os quais entregam a sua intimidade ao dispositivo televisual. Tão pequenos dons ocupam meia hora, compensando a economia da produção do programa.

As outras rubricas de dons em Você na TV! existem por causa dos patrocinadores. Na rubrica “Portugal a Sorrir”, a empresa-clínica Malo Clinic ofereceu 24 reconstruções maxilofaciais, duas por mês, através do programa. Segundo o apresentador, “são milhares os pedidos”, feitos diretamente à clínica, que os avalia e escolhe dentre “os casos mais difíceis”. Num primeiro momento, o candidato escolhido é visitado em sua casa, de surpresa, pelo apresentador, originando cenas emotivas, com habituais choros de alegria. Depois, o caso passa para o estúdio; é reapresentado, acrescentando-se uma “reportagem” na clínica; no programa, o médico fala do caso; o ritual termina com a entrada em estúdio do já ex-paciente com sorriso novo e autoestima recuperada. O programa apresenta-se com mediador indispensável do dom: “Por iniciativa da Malo Clinic, nós vamos continuar a dar sorrisos até ao final do ano”.

Os candidatos aos dons não são obrigados a declarações concretas. Pudemos ver um exemplo em que a donatária não agradeceu (o que não quer dizer que não estivesse agradecida), contrastando com agradecimentos efusivos dos restantes. Segundo um elemento de produção de talk show semelhante da SIC, consultado para esta investigação, os donatários assinam uma declaração de cedência de imagens, procedimento comum com todo o tipo de participantes em programas.8 Acrescentou que nos bastidores é pedido aos donatários para agradecerem à empresa doadora.9

A terceira rubrica de dom tem dispositivo semelhante: a clínica Villa ­Ramadas dá alguns tratamentos contra a depressão ou outra alteração psíquica. Um doente candidato é entrevistado em estúdio; meses depois regressa curado, sendo entrevistado, bem como o médico empresário da clínica, depois de uma reportagem no local, que familiariza o espetador com a entidade doadora. A necessária intervenção de familiares, igualmente presentes e entrevistados nas duas ocasiões, fornece a habitual atmosfera do dom familiar que encontrámos noutras modalidades. Nestas duas rubricas, o apresentador agradece por norma ao doador e ao donatário. Na mesma linha do que encontrámos em EMHE, há um benefício para quem requere, dá, recebe e medeia.

 

REFLEXÃO CRÍTICA

 

Como se processam estes dons na televisão? Onde está o dom e onde está a troca? Quem dá e quem recebe o quê? Os agentes envolvidos no dom na televisão são os seguintes:

 

A   Doador: empresa exterior de bens ou serviços; canal de televisão.

B   Donatário (indivíduo ou família; organização não governamental; serviços públicos, como hospitais, etc.).

C   Mediador: programa/canal, motor do dom, instrumental na sua existência pública.

D   Requerente, que pede para alguém da família ou da comunidade (opcional).

E   Audiência televisiva (passiva ou ativa; presente em estúdio e/ou à distância).

 

Como no dom em geral, na televisão todos os agentes intervêm livremente. Não há obrigação de requerer, dar, receber e intermediar nem, aparentemente, uma obrigação de retribuir; não há obrigação de assistir. Na televisão, o dom apresenta-se como dom sem contrapartida dita mas com contrapartidas obrigatórias não-ditas, como o “dar-se” de B a C (e a A). A emulação dos negócios de A é uma das principais razões do dom, a par da generosidade visível (mas eventualmente não genuína na intenção, o que é irrelevante mediaticamente e não diminui a sua relevância sociológica).

Apesar de impregnar o ato de generosidade e reforço do laço social inerente ao dom, a presença de D na cadeia do dom não é obrigatória. Já sem a intervenção da TV, o dom de A a B não existiria, mesmo no caso de alguns media events. Vimos casos em que C acumula o papel de A, mas C aparece no discurso de outros dons não só como intermediário mas também como doador, partilhando o dom com A. “Nós hoje damos tudo!”, disse o apresentador num programa carregado de dons. O “nós” usado incluía o programa e o doador efetivo.

No dom televisivo, contudo, intervém amiúde uma troca comercial cujos eventuais contornos contratuais não averiguámos, mas que, na prática, se apresentam deste modo: o doador A troca a doação a B por tempo comercial disponibilizado por C, beneficiando A com a publicitação como brand placement e C com o enriquecimento do conteúdo através de um fenómeno social da máxima importância, o dom. Nas relações entre A e C, convivem a troca comercial (que julgamos ser não monetária) e a intenção do dom a B. A transferência de bens ou serviços implica ao mesmo tempo um dom e uma troca comercial.

Quanto a B, dá ele algo em troca do dom a A e C? Pensamos que existe um contra-dom, mas, como ocorre no dom (Godbout, 2000, p. 11), faz parte do não-dito. B dá-se a A: dá o seu corpo e a sua voz para que o dom seja possível, para que A possa estar presente como doador em C. Há uma certa referência ao sacrifício, que donatários confirmam pela negativa (dizendo, por exemplo, que a cirurgia decorre sem dor mas que estariam prontos a sofrê-la).10 O donatário torna possível as vantagens de A em doar, pois não há dom sem quem o receba. Por sua vez, B também executa um contra-dom com C: dá a sua intimidade, as suas emoções, o seu corpo, o seu tempo, o seu caso, possibilita o dom de A. Para C, este contra-dom é, de facto, um dom: ocupa tempo de antena e visa a obtenção de audiência, com as vantagens económicas inerentes; inscreve-se nos conteúdos de companhia, primordialmente femininos; cria ou desenvolve laços sociais com os donatários (irrelevantes, mas não esquecidos11); cria ou desenvolve laços sociais com a audiência.

Este último aspeto é essencial no dom na televisão, sendo o dom um fenómeno social vital para a manutenção dos laços sociais, função que está vedada às trocas comerciais e ao assistencialismo estatal. A televisão, pelo dom, humaniza a esfera do mercado e aparenta substituir a insuficiência da assistência estatal.12 Como meio de comunicação, estimula e concretiza o caráter público do dom ao mesmo tempo que confirma o mercado, estabelecendo a ligação por bens e serviços em product placement que o espetador pode comprar. Fá-lo assemelhando-se a uma organização não governamental: ao contrário do Estado e do mercado, “os organismos fundados sobre o dom fazem a união entre doadores e donatários” (Godbout, 2000, p. 89). Assim, o dom é veículo de eleição para a televisão reforçar a relação afetiva e de proximidade com a audiência, criando uma ideologia de Gemeinschaft na Gesellschaft fria e impessoal. Em simultâneo, o dom alimenta o prestígio e a superioridade moral do doador e do mediador televisivo e confirma o lugar hierárquico superior de ambos em relação ao donatário e ao espetador, confirmando que a prática do dom “não podia ser mais favorável à classe dominante” (Testart, 2007, p. 169).

Quanto à convivência nestes conteúdos entre a troca comercial (entre A e C) e o dom (de A para B por intermédio de C), acrescentemos as seguintes conclusões: a troca comercial não se confunde com o dom, embora partilhem os agentes; o espírito mercantil participa no ato da doação, é-lhe concomitante ou mesmo prévio, mas este último, efetivado como dom, resiste não só na ordem material (B é efetivamente donatário) mas também na ordem simbólica, porventura mais importante. Em resumo, a televisão desenvolveu um sistema de dom em que a coexistência da esfera mercantil e da esfera do dom beneficia todos os agentes envolvidos. Incorporando no processo do dom a “fria razão do comerciante, do banqueiro e do capitalista” (Mauss, 1950, p. 270), a televisão sintetiza o capitalismo e o dom, o homem económico e o homem associativo.

Resta referir o quinto agente do dom na televisão: o espetador, a audiência. Para esta, o dom concreto na televisão pode adquirir um caráter geral. O dom concreto representa, por sinédoque, o dom geral e o caráter positivo da televisão de proximidade. Nesse sentido, confirma-se que no dom ninguém perde, todos ganham. O dom dado a um qualquer donatário transmite-se como dom simbólico ao próprio espetador. Este devolve, como contra-dom livre ao dom, “um equivalente que o substitui” (idem, p. 161): o próprio ato de assistir.

 

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Recebido a 02-04-2013. Aceite para publicação a 29-10-2013.

 

NOTAS

1 Tipologia do dom de Testart (2007, pp. 159-170): Dons em que a consideração da contrapartida é central; dons sem que a consideração da contrapartida seja central, ou dons de sociabilidade; dons sem contrapartida.

2 Comunicado SIC Esperança, 12-06-12.

3 http://www.mediacapital.pt/p/490/o-nosso-compromisso/, consultado a 09-02-13.

4 Através de pesquisas na internet, é possível encontrar inúmeras informações sobre “telethons” em diversos países, encontrando-se diversas das fontes elencadas no site http://en.wikipedia.org/wiki/Telethon. Consultado em 10-02-13.

5 Sobre o dom, Bourdieu (1998, p. 178) recordava a linguagem comum na “regra ‘o Estado não dá presentes’ (a pessoas privadas)”.

6 http://money.cnn.com/2004/09/13/news/newsmakers/oprah/#. Consultado em 02-01-13.

7http://abc.go.com/shows/extreme-makeover-home-edition/about-the-show. Consultado em 10-02-13. História do programa em http://en.wikipedia.org/wiki/Extreme_Makeover:_Home_Edition, consultado em 10-02-13. O programa sucedeu a Extreme Makeover, em que a transformação corporal já era “representada como dom ou recompensa” (Weber, 2009, p. 184).

8 A expressão “cedência de imagens” esconde um dom, ou contra-dom.

9 Emails, 06-02-13. Segundo Testart (2007, p. 30), “o dom só pode ser sem condição. […] A contrapartida pode ser esperada, mas não deverá ser nem pedida nem exigida. Se o doador a pedisse, já não faria um dom, faria uma troca”.

10 V. a dimensão do sacrifício “como amplificação do dom” em Caillé (2007, cap. VI).

11 EMHE regressou às novas casas de famílias donatárias um ano depois.

12 Abordámos o tema em crítica jornalística em 1997: “A caixa que mudou a previdência” (Torres, 1998, pp. 118-119).

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