SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número210Questionando o social: A propósito do Homo Academicus de P. BourdieuQuestionando o social: A propósito do Homo Academicus de P. Bourdieu índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.210 Lisboa mar. 2014

 

Questionando o social - A propósito do Homo Academicus de P. Bourdieu

Joana Cunha Leal*

*FCSH, UNL, Avenida de Berna, 26-C — 1069-061 Lisboa, Portugal. E-mail: j.cunhaleal@fcsh.unl.pt

 

Em Homo Academicus, Pierre Bourdieu apresenta uma análise das condições históricas de produção do conhecimento científico entre 1968 e 1988 na França. Desde então, grandes mudanças ocorreram no sistema universitário a nível global e, em especial, no sistema de investigação científica. Por relação a Portugal hoje, quais seriam para si as grandes questões a levantar para a realização de um esforço semelhante?

 

O Homo Academicus de Pierre Bourdieu diz-nos tanto acerca das condições históricas de produção do conhecimento científico em França após o Maio de 1968, quanto sobre o projeto sociológico do seu autor. Este duplo interesse bastaria para impedir a sua obsolescência. No entanto, creio que Homo Academicus mantém a sua pertinência considerando também a atualidade de alguns dos problemas que Bourdieu analisa, pelo menos no que respeita ao sistema universitário português das últimas décadas.

Houve grandes mudanças na universidade portuguesa nos últimos anos, as maiores e mais importantes das quais parecem ser: (1) a abertura democrática do acesso ao ensino superior e a concomitante expansão das instituições universitárias; (2) o peso crescente das mulheres no sistema universitário quer ao nível da docência e da investigação, quer ao nível da população estudantil; (3) o enfraquecimento do paradigma académico em que o poder se encontra fundado na hierarquia de posições académicas e é aferido em termos nacionais ou mesmo locais, a favor do fortalecimento do paradigma de investigação científica emanado do universo das ciências, em que o poder se desloca para o prestígio alcançado pela produção científica, e é aferido em termos que atendem também ao panorama internacional. A priorização da investigação científica decorreu em Portugal ao abrigo da política de investimento assegurada pela FCT, que foi responsável também, em muitas áreas, pela generalização da exigência de internacionalização da ciência.

Estas mudanças representaram conquistas importantes, e parece-me mais ou menos óbvio que qualquer inquérito sobre o sistema universitário em ­Portugal deverá tê-las em conta, considerando, à imagem do trabalho de ­Bourdieu (e mesmo na sua direta sequência, pelo menos no que respeita à potência crítica da oposição entre paradigma académico e científico), a interligação e resistente opacidade das questões e dos jogos de força que tais mudanças implicam e sustentam, observando questões como por exemplo:

 

a)   A subida significativa da presença das mulheres na vida universitária, percetível em diversas áreas, tem correspondência ao nível da sua chegada a posições de decisão? Ou, pelo contrário, perpetua-se a desigualdade de género entrincheirada na estrutura social? Em que termos essa desigualdade se repercute? Quais as áreas em que a participação das mulheres é mais, ou é menos, acentuada? Que relação pode estabelecer-se entre estes dados e o processo de abertura do acesso e expansão do ensino superior? Ou ainda, que relação pode estabelecer-se entre esses dados e a afirmação ou esbatimento de disciplinas e áreas de investigação no quadro universitário?

 

b)   A abertura e expansão do acesso ao ensino terá contribuído para o reforço do paradigma científico nas universidades? Ou, pelo contrário, a política científica nacional das últimas décadas, particularmente o papel catalizador da FCT, veio sobrepor-se às lógicas académicas instaladas, forçando a transição para esse paradigma científico? Nesse sentido, poder-se-á considerar que a valorização da investigação científica resultou sobretudo de uma coação política sobre o sistema? Que papel coube às Unidades de Investigação nesse processo? Em que medida contribuíram para o reforço do paradigma científico na universidade? E ainda, em que termos foi sobrevivendo a base mais conservadora de resistência a esse paradigma?

 

Na sequência destas interrogações outras não cessam de surgir, por conta quer das novas antinomias geradas no interior da própria produção científica – por exemplo, as que opõem padrões qualitativos à produtividade orientada para a obtenção de resultados quantitativos, ou as que opõem exigências de internacionalização à descredibilização das publicações indexadas em bases de referência –, quer da contração-reação que ditou recentemente o fim do quadro expansionista e inclusivo vigente nas últimas décadas. Na bagagem chegam igualmente a valorização do trabalho científico (serão já áreas científicas?) com impacto imediato na economia em detrimento das áreas de investigação pura ou crítica, e a convicção despudorada de que a universidade deve ser um privilégio das elites. Temo que a valorização da hierarquia das titulações académicas que voltou a emergir em leituras correntes do ECDU complete o sentido recessivo do paradigma científico pela retoma de lógicas de privilégios académicos.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons