SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número210Questionando o social: A propósito do Homo Academicus de P. BourdieuQuestionando o social: A propósito do Homo Academicus de P. Bourdieu índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.210 Lisboa mar. 2014

 

Questionando o social - A propósito do Homo Academicus de P. Bourdieu

Luís Trindade*

*Department of Iberian and Latin American Studies, University of London, 43, Gordon Square, London, WC1H0PD, United Kingdom. E-mail: ubll089@mail.bbk.ac.uk

 

Em Homo Academicus, Pierre Bourdieu apresenta uma análise das condições históricas de produção do conhecimento científico entre 1968 e 1988 na França. Desde então, grandes mudanças ocorreram no sistema universitário a nível global e, em especial, no sistema de investigação científica. Por relação a Portugal hoje, quais seriam para si as grandes questões a levantar para a realização de um esforço semelhante?

 

Por estranho que possa parecer, a desvalorização do estatuto do académico na sociedade portuguesa não teria necessariamente de ser uma coisa má. Em ­Portugal, o professor universitário foi tradicionalmente uma figura privilegiada, sobretudo em termos simbólicos. Ainda hoje, os resquícios desse privilégio são visíveis nalguns espécimes da classe. O exemplo talvez mais sintomático é o do desfasamento entre o reconhecimento da qualidade e impacto da pesquisa no interior da academia, por um lado, e a visibilidade mediática, por outro. No campo das ciências sociais e humanidades, sobretudo, onde a investigação se aproxima mais da opinião política e social, não são poucos os casos de detentores de lugares cativos em espaços jornalísticos e televisivos cujo trabalho propriamente científico é, no mínimo, despiciendo. O mesmo nas carreiras académicas: frequentemente, a capacidade de chegar ao topo é ainda inversamente proporcional à qualidade do trabalho científico. A figura do catedrático é hoje frequentemente desprezada – muitas vezes com boas razões – por colegas, sobretudo aqueles para quem o reconhecimento e a legitimação académicas é, ou deve ser, antes de mais intelectual.

É nesse sentido que digo que em certas circunstâncias a perda desse estatuto distante e privilegiado talvez pudesse significar uma maior aproximação entre a universidade e o seu exterior e, sobretudo, um encurtamento das distâncias (em boa parte simbólicas, mais uma vez ) entre os vários tipos de trabalho intelectual e manual. O que está a acontecer, porém, nada tem que ver com isso. O velho “doutor” na sua torre não está a dar lugar ao cientista que descobre e estuda para a sociedade e com ela. Pelo contrário, a renovação e a massificação do campo da investigação em Portugal aproxima os novos académicos do resto dos portugueses da pior maneira, pela precarização e pela proletarização. Em vez de uma nova densidade crítica, feita de trabalho colectivo e numeroso, teremos tendencialmente uma investigação dependente de agendas de interesses estranhos às disciplinas e às suas lógicas autónomas. Em vez de uma nova intervenção social, capaz de questionar radicalmente os fundamentos do sistema, não fazemos já mais do que reproduzir de forma muito visível a linguagem – e é com a linguagem que trabalhamos – da ideologia do poder político e do mercado que o domina.

Com a incapacidade de todos os governos nas últimas décadas em conseguir uma nova articulação entre a docência e a investigação, vai-se rapidamente cavando um fosso entre os “afortunados” que entram na carreira e aqueles que vão sobrevivendo precariamente de bolsa em bolsa. A ironia, aqui, é que enquanto estes vão publicando, fazendo obra e, frequentemente, ganhando densidade teórica, mas sem segurança profissional nem possibilidade de transmitir conhecimento a alunos, os primeiros descobrem rapidamente que deles o que as Faculdades esperam é o cumprimento de rotinas e ritmos de trabalho verdadeiramente proletarizados. Nestas condições, dificilmente conseguirão evitar a estagnação. Prepara-se assim um panorama desolador, em que os investigadores com ideias mais excitantes e inovadoras correm o risco de, a qualquer momento, deixarem de poder investigar, enquanto as universidades se deixam a marcar passo com corpos docentes envelhecidos e desmotivados.

As forças políticas e económicas que nos trouxeram aqui são poderosas e é difícil ver como as universidades podem resolver o problema sozinhas. Mas é também preciso dizer que todas estas são também coisas que andamos a fazer uns aos outros: quando aceitamos importar as lógicas do impacto das outras ciências para os conhecimentos social e humano; quando decidimos seguir linhas de investigação sem autonomia nem espírito crítico em relação ao poder e ao sistema; quando mimetizamos a linguagem das próprias forças que nos estão a destruir (as palavras produtividade e excelência são os ­exemplos mais acabados desta capitulação); quando incorporamos o medo e reproduzimos nos vários níveis das nossas relações institucionais – da Faculdade ao departamento, do orientador ao aluno de doutoramento – as mesmas prepotências usadas pelo poder político.

Apesar de tudo, talvez ainda haja alguma margem de resistência. Nas atuais circunstâncias, vejo-a sobretudo na capacidade de escandalizar: em dizer e praticar a ideia de que as ciências sociais e humanas são críticas não porque não gostem do mercado e do governo, mas na medida em que são teóricas, especulativas, cheias de dúvidas e incertezas, não patenteáveis ou passíveis de serem postas a uso. E que é assim mesmo que devem ser.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons