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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.210 Lisboa mar. 2014

 

Uma antropologia do político?

 

Lorenzo Macagno*

*Departamento de Antropologia, UFPR, Rua General Carneiro, 460, 6.º andar — CEP 80060-150, Curitiba, Paraná, Brasil. E-mail: lorenzom@ufpr.br

 

Discutido neste ensaio:

 

MONTERO, Paula, ARRUTI, José Maurício e POMPA, Cristina (2011), “Para uma antropologia do político”. In A.G. Lavalle (org.), O Horizonte da Política: Questões Emergentes e Agenda de Pesquisa, São Paulo, UNESP, pp. 145-184. ISBN: 9788539302567.

 

Este artigo nasce da necessidade de interpelar uma perplexidade de ordem disciplinar – antropológica – e, ao mesmo tempo, política. Sabemos que, pelo menos nos últimos trinta anos, o debate multicultural, os chamados estudos culturais, os estudos pós-coloniais e os subaltern-studies esgrimiram, de diferentes maneiras e em diversas circunstâncias, críticas e estocadas académico-políticas ao monopólio disciplinar da antropologia. Passada a ebulição e o agito produzidos pelo impacto do “giro cultural” (cultural turn) nas ciências sociais da década de 1980, o cerne da questão gravita ainda – mas agora sob bases renovadas – em torno da utilidade ou não da noção de cultura como substantivo plural e, ao mesmo tempo, em volta dos usos políticos que agentes diversos fazem dessa noção.1

Em virtude desse duplo imperativo – disciplinar e político – estas páginas transitam, necessariamente, por um terreno minado. O nosso objetivo é, pois, traçar um mapa provisório desse terreno, já que as armadilhas que a interface antropologia-política(o) nos apresenta são, sempre, mutáveis e movediças. Uma primeira constatação é testemunha da ambiguidade que o “hifen” que liga os dois termos consagra: a noção de cultura, tal como utilizada pelos antropólogos, e a noção de “cultura” (“cultura com aspas”, diria Manuela ­Carneiro da Cunha, 2009), tal como utilizada pelos militantes e ativistas, confundem-se em circunstâncias as mais variadas. Trata-se, em grande medida, de uma das dimensões do que Antony Giddens denominava “hermenêutica dupla” (­Guiddens, 1991, p. 15; 1987, p. 166). Essa condição vai além do facto, quase banal, de que muitos antropólogos se tenham tornado militantes, do mesmo modo que muitos militantes têm buscado subsídios na antropologia para melhor legitimar as suas causas. A duplicidade dessa hermenêutica – a sua circularidade – reside no facto de que a construção do saber antropológico e sociológico utiliza, por assim dizer, matéria-prima que os “leigos” lhe fornecem, ao mesmo tempo que essa materia se constroi, hoje mais do que nunca, com os conceitos e problemas que tal saber proporciona. Manuela Carneiro da Cunha retoma essa circularidade ao anunciar que “Há um trabalho dialético que permeia os diferentes níveis em que a noção de “cultura” emerge, que permite jogar em vários tabuleiros a um só tempo. Um trabalho que lança mão de cada ambiguidade, de cada contradição introduzida pela reflexividade” (Cunha, 2009, p. 371).

Caminhamos, pois, sobre um terreno escorregadio. Os seus itinerários – os mais célebres, talvez – foram analisados sob a rubrica das chamadas políticas de reconhecimento e, na sua dimensão mais Estado-cêntrica, sob o mote, hoje demodé, do “multiculturalismo”. Esses tópicos tão-pouco estão imunes ao drama reflexivista. A maldição – leia-se, o desafio – das ciências humanas consiste em ter de se debruçar sobre um “objeto” que fala: eis a sentença, esgrimida por Pierre Bourdieu (2005, p. 56) e seus colegas, que adquire para a nossa discussão um peso singular. Trata-se de identificar os agentes envolvidos nas disputas concretas em prol da visão legítima do “mundo social”: o desafio do analista consiste, pois, em lidar com um objeto que reflete acerca da sua própria condição (multi)cultural. Essa constatação, que os hermeneutas denominam reflexividade, confronta-nos com uma segunda evidência: o dilema das chamadas políticas de reconhecimento constitui, também, um momento que interpela o saber docto da antropologia, ou seja, aquela ciência que reflete, ao menos na sua tradição “romântica”, sobre as dimensões culturais e simbólicas da experiência humana. Com efeito, pelo menos nos últimos vinte anos, os antropólogos tiveram de apelar a uma nova imaginação teórica para ­dialogar com interlocutores que, mesmo não sendo especialistas, lidam, a partir de diversos âmbitos, com as “coisas” da antropologia. É possível que, para os mais receosos, esse impasse gere uma ameaça virtual ao nosso preciosismo disciplinar e à nossa frágil autossuficiência analítica. Essa suposta ameaça nasce do facto de que a “cultura” – como matéria de reflexão – não é mais um monopólio dos antropólogos. Durante muito tempo, o lugar-comum da crítica antropológica baseou-se no questionamento do chamado culturalismo, o qual muitas vezes funcionou como uma autêntica categoria acusatória. Agora, os próprios antropólogos assistem perplexos à irónica circunstância dos “seus” nativos se terem tornado mais culturalistas do que nunca. Um dos mandatos disciplinares da antropologia – alçado, praticamente, à categoria de verdade revelada – reside no imperativo de que o observador se deve esforçar para apreender o “ponto de vista do nativo”. Mas, como assumir esse ditado sob essa nova circunstância (multi)culturalista e, ao mesmo tempo, atender às exigências críticas que advertem acerca do caráter construído, arbitrário ou imaginado de todo o “construto” cultural? Eis o dilema da reflexividade.

Diante da vastidão do problema – e da infinitude de discrepâncias – adotaremos um olhar distanciado, ou melhor, uma perspetiva. Para tanto, parto das inquietações suscitadas pela leitura de um ensaio, publicado em 2011, intitulado “Para uma antropologia do político”. Esse texto integra o livro O Horizonte da Política, organizado por Adrian Gurza Lavalle. Tal volume reúne uma série de capítulos representativos de temas e “agendas” de pesquisadores do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento/CEBRAP (filósofos, historiadores, cientistas políticos, sociólogos e antropólogos). Trata-se, por assim dizer, de textos programáticos redigidos, cada um deles, por três ou mais autores. O ensaio concernente à antropologia (“… do político”) foi escrito por Paula Montero, José Maurício Arruti e Cristina Pompa. Propomos, à maneira de “pre-texto”, seguir o trilho que esses autores nos indicam. A interrogação provisória e inicial, cuja resposta, por ora, deixaremos em suspense, é se, de facto, o ensaio em questão consegue fornecer-nos instrumentos eficazes para lidarmos com um dos tópicos mais prementes da antropologia “do” político: a questão do reconhecimento.

 

A CULTURA COMO FARDO

 

A primeira parte de “Para uma antropologia do político” apresenta as principais contribuições da antropologia política (na sua versão britânica e francesa) a fim de analisar, em um segundo momento, os impactos vernáculos desses desenvolvimentos. No Brasil, como bem mostra o ensaio, a chamada antropologia do “contacto”, preocupada com as dinâmicas de fricção interétnica e com a relação entre o Estado e as populações indígenas, alimentou-se das ­vertentes interacionistas da antropologia política britânica. Mas, também, procurou subsídio nas abordagens dinamistas da antropologia francesa, sobretudo nos trabalhos de Georges Balandier surgidos entre 1950 e 1960 (época na qual se iniciam os processos de descolonização na África). Na altura, as inquietações da antropologia no Brasil começam a envolver-se com as políticas indigenistas e com o processo de nation-building. Um pouco mais tarde, no início da década de 1970, aparecem as contribuições pioneiras sobre o campesinato, elaboradas notadamente por Otávio Velho. Era um momento em que a antropologia brasileira, não obstante a forte hegemonia estruturalista, começava a dialogar com o marxismo. A primeira parte do ensaio – um panorama dos principais temas e problemas da antropologia política – culmina com uma referência ao Núcleo de Antropologia “da” Política (NUAP) surgido no Rio de Janeiro, no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ, no início de 1990.

As páginas iniciais de “Para uma antropologia do político” são, pois, uma leitura obrigatória para aqueles que desejam ter contacto com uma visão global das contribuições da antropologia política “clássica”, bem como dos seus desdobramentos locais. Na sua segunda parte, Montero, Arruti e Pompa apresentam os postulados teóricos e programáticos do que convieram em chamar “antropologia do político”. Trata-se de uma contraproposta que pretende dialogar criticamente com as contribuições da antropologia política tout court e da antropologia da política desenvolvida no seio do NUAP.

O ensaio inicia-se com uma constatação “antropologicamente correta”: o suposto consenso em torno do esvaziamento analítico do conceito de cultura. O corolário desse postulado é quase previsível: a necessidade de abandonarmos a ideia, vulgarmente consagrada, de que a antropologia está indissoluvelmente associada ao estudo da alteridade cultural. Contudo, isto não significa que os autores descartem esse conceito, já que ele dialoga conflitiva e criativamente com “o” político. Nas palavras dos próprios autores: “Ao buscar compreender os próprios processos de produção e generalização das diferenças, não faz sentido recortar o universo de investigação a partir dos portadores das diferenças ou das culturas, mas sim observar como, onde e para que a diferença é agenciada” (p. 148). Nesse caso, a cultura, mais do que um ponto de partida, tornar-se-ia o resultado de um processo de disputas em torno dos “[…] processos de apropriação, por parte dos atores, das categorias utilizadas tradicionalmente pela antropologia para descrever justamente aqueles ‘outros’ que eram considerados externos a tal campo de disputas ou apenas objeto dele, isto é, grupos étnicos, culturais, religiosos, populações tradicionais” (ibidem). Esse argumento traz consigo uma tautologia mordaz, cuja chave de compreensão pode ser encontrada na noção de hermenêutica dupla referida acima.

Por ora, convém lembrarmos que a escola britânica de antropologia, de onde se origina a antropologia política, sempre desconfiou do conceito de cultura e os nossos autores sabem disso.

É preciso, no entanto, explicitar sem eufemismos o significado “político” dessa desconfiança, sobretudo no que concerne aos antropólogos sul-africanos, que se formaram, tal como Max Gluckman, na tradição britânica. Evoquemos brevemente os primeiros passos da chamada antropologia política, herdeira dessa tradição. O seu ato fundacional é o prefácio redigido por Radcliffe-Brown (1940) ao livro African Political Systems, que foi organizado por Meyer Fortes e E.E. Evans-Pritchard. Atrelados irremediavelmente às inquietações empíricas e etnográficas da época, os seus promotores buscavam uma resposta às especulações da filosofia política. O cerne da questão era a existência de sociedades com Estado e sociedades sem Estado. Não se tratava de moralizar acerca de como essas sociedades – isentas de um sistema político centralizado - “deveriam” ser, mas de entender como elas “eram” e como, realmente, funcionavam. A partir daquelas descobertas empíricas, foi possível concluir que a inexistência de um Estado centralizado não equivalia à ausência de sistemas políticos. Ao contrário, eles assumiam formas sui generis cuja dinâmica era preciso analisar. A linguagem do parentesco, as acusações de feitiçaria, os chamados sistemas segmentários, a vendetta, os sistemas religiosos e outras tantas gramáticas sociais permitiam ampliar o espectro do político para além das estreitas dinâmicas estatais. Esse é um legado inquestionável da antropologia política britânica. Uma antropologia – para dizê-lo com todas as letras – “social” e não “cultural”.

A etnografia paradigmática desse momento foi Os Nuer. Uma Descrição do Modo de Subsistência e das Instituições Políticas de um Povo Nilota, publicada por Evans-Pritchard em 1940 e resultado do seu trabalho de campo no sul do atual Sudão. O contexto histórico e político em que se desenvolveu a pesquisa de Evans-Pritchard é conhecido: por volta de 1930, os Nuer estavam a ser “pacificados” – obviamente, através da violência – pela administração britânica. Seria necessário, findado esse processo, instaurar um sistema administrativo fundado nos padrões do Indirect Rule, o chamado “governo indireto”, a partir do qual os chefes Nuer teriam um papel fundamental como intermediadores entre as populações locais e os administradores britânicos. Em resumo, era necessário encontrar os “chefes”. A etnografia de Evans-Pritchard é o resultado dessa exigência (Johnson, 1982). Mas a tarefa torna-se árdua. Evans-Pritchard não consegue identificar um poder centralizado, ou uma organização política em torno de um chefe ou de uma figura semelhante. Em contrapardida, as funções políticas são assumidas por linhagens unilineares que operam através de uma espécie de relatividade estrutural: em determinadas circunstâncias, os grupos podem ser solidários e, em outras, hostis. Daí a famosa frase de Evans-Pritchard, segundo a qual os Nuer viviam numa “anarquia ordenada”: “é impossível viver entre os Nuer e conceber a existência de pessoas que os governem” (2002, p. 191). O estudo do sistema de parentesco forneceria a chave para a compreensão dessa aparente ausência de sistema político.

Uma das grandes ausências do ensaio que analisaremos é a referência ao antropólogo sul-africano Isaac Schapera, discípulo de Malinowski e mestre de Max Gluckman2. Schapera instava aos seus alunos que estudassem não apenas os “chefes indígenas” ou a política indígena, mas, também, os missionários, os administradores coloniais, os chefes de posto, os recrutadores de força de trabalho, bem como as respetivas interações entre esses agentes. Portanto, para além das meras inquietações com as dinâmicas da alteridade cultural, importavam as relações sociais concretas construídas no campo. Na África do Sul, a antropologia “social” de inspiração britânica implicava, também, um desafio político contra as violências de uma sociedade segregada. Max Gluckman soube traduzir esse desafio nas suas pesquisas de campo.

Os autores de “Para uma antropologia do político” detêm-se na célebre etnografia, “Análise de uma situação social na Zululandia moderna”, de Max Gluckman, realizada no norte da atual província de KwaZulu-Natal, África do Sul. Gluckman e outros “[…] autores da escola inglesa de origem sul-africana […] passam a colocar a ação política, entendida como conflito e manipulação das regras, no centro de sua análise da ‘cultura’” (p. 156). A “origem sul-africana”, evocada quase en passant, constitui, nesse caso, um ingrediente significativo que merece a nossa atenção. Lembremos que a pesquisa do “sul-africano” Gluckman foi realizada no final da década de 1930 (apesar de ter sido publicada, pela primeira vez, em 1958). As leis segregacionistas do primeiro-ministro boer (afrikâner) Barry Hertzog já haviam começado a vigorar; elas seriam o precedente do apartheid da década de 1950. “Entre as novidades trazidas pela abordagem gluckmaniana” dizem os autores, “[…] está a tentativa de reintroduzir a noção de cultura em seu modelo interpretativo da ação política” (ibidem, o itálico é dos autores). É preciso dizer que, do ponto de vista da trajetória e do pensamento de Gluckman, essa é, na verdade, uma “novidade” ultrapassada. Ou melhor, essa preocupação não representa o cerne do pensamento antropológico e político de Gluckman, para quem a “cultura” (ou os “padrões simbólicos”) se converteriam num perigoso subterfúgio. Agora sim, em pleno apartheid, advertia:

 

Não questionaria o fato de que esta tentativa para entender e interpretar linguagens culturais, ou padrões simbólicos, seja importante, bem como dificultosa. Mas ela se constitui apenas em um dos conjuntos de problemas com os quais a antropologia social está preocupada, e não “o nosso problema”, ou seja, o único. Aliás, a insistência em considerá-lo como o único problema é politicamente perigosa, bem como restritiva do ponto de vista acadêmico [Gluckman, 1975, p. 29].

 

Essa crítica à “cultura” não representa uma simples estratégia metodológica ou teórica mas, sobretudo, uma estratégia política: na África do Sul da segregação racial, a noção de cultura era o dispositivo sine qua non dos antropólogos do Volkenkunde, isto é, daqueles que justificaram “antropologicamente” a ideologia do apartheid. A equação “duas raças=duas culturas”, como sabemos, conduziu à política do “desenvolvimento separado”. Há uma longa genealogia de antropólogos progressistas que, nesse contexto de segregação, enfrentaram as estocadas culturalistas da etnologia afrikâner (Volkenkunde). Uma das reivindicações fundamentais do Volkenkunde era a manutenção da pureza cultural e racial dos diferentes grupos étnicos (era preciso evitar a “destribalização”). Esse imperativo de pureza devia ser aplicado tanto à minoria branca afrikâner quanto à ampla maioria bantu. Max Gluckman e, posteriormente, Adam Kuper pronunciaram-se abertamente contra o fardo desse conservacionismo cultural (e racial): o problema, disseram, não é o da diferenciação “cultural”, mas o da integração “social”.

A genealogia intelectual de Gluckman (a sua semente anticulturalista) pode ser identificada primeiramente em Radcliffe-Brown, que, na década de 1920, funda a primeira cátedra de antropologia social na Universidade de Cape Town. Na segunda metade de 1930, Issac Schapera assume a cátedra de ­Radcliffe-Brown. Ele deixará uma plêiade de discípulos – Max Gluckman, Hilda (Beemer) Kuper, dentre outros – que terão um impacto fulcral na formação de ilustres antropólogos sul-africanos contemporâneos, tais como Adam Kuper, Jean Comaroff e John L. Comaroff3.

O próprio Adam Kuper (2002, p. 14-15) reconheceria mais tarde os riscos do apelo à cultura numa sociedade segregada. Pelo mesmo motivo, ele tem sido particularmente crítico à tradição (multi)culturalista da antropologia norte-americana. Nesse aspeto, segue, pois, os passos de Max Gluckman. Para nós, dizia Gluckman (1975), não é uma simples questão científica, mas de ­sobrevivência como “cidadãos”. Ele sabia que os ideólogos do apartheid tinham incorporado aos seus argumentos ferramentas provenientes não apenas da antropologia cultural norte-americana, mas, também, do ideário romântico alemão do Volk e da sua conseguinte celebração à singularidade do “espírito” (geist) dos povos. Por isso, ao criticar o culturalismo da etnologia afrikâner, clamava pela valorização dos agentes da mudança social a fim de integrá-los na análise antropológica. Gluckman recordava ainda a advertência de Isaac ­Schapera, quando afirmava que “[…] o comissário de distrito e o chefe, o missionário e o mago, são pessoas dentro de um mesmo sistema social” (Gluckman, 1975, p. 24) e devem, portanto, ser objeto da análise etnográfica. A “diferença cultural” passava a um segundo plano, para dar lugar ao estudo da interação entre esses agentes específicos.

 

DA ANTROPOLOGIA POLÍTICA À ANTROPOLOGIA DO POLÍTICO

 

Os autores anunciam, de maneira correta, que a antropologia política da escola britânica, os trabalhos de Georges Balandier na França e os estudos das relações interétnicas de Fredrik Barth inspiraram, no Brasil, a chamada “antropologia do contato”. Essa vertente está associada ao nome de Roberto Cardoso de Oliveira, bem como ao conceito, por ele cunhado, de “fricção interétnica”. Essa antropologia política do contacto procurará apreender a relação do “mundo dos brancos” com os índios. Um desdobramento mais recente dessas preocupações encontra-se marcado pelos trabalhos de João Pacheco de Oliveira. “Essa marca de origem da antropologia brasileira”, dizem os autores, “[…] ajuda a explicar porque o tema do contato entre índios e brancos se impõe à etnologia desde muito cedo independentemente de afiliações teóricas” (p. 160). Como sabemos, esse paradigma da antropologia do contacto manteve-se, no ­Brasil, como um contraponto às vertentes da “etnologia” mais interessadas nas cosmologias do que nas interações, nos sistemas de pensamentos do que nas fricções, nas classificações do que nas disputas, nos “perspetivismos” ameríndios do que nos “contactualismos” de cunho naciocêntrico e estadocêntrico. O debate entre a tradição “contactualista” (inaugurada por Roberto Cardoso de Oliveira e continuada por João Pacheco de Oliveira) e as teorias perspetivistas de Eduardo Viveiros de Castro não passou despercebido nos meios antropológicos brasileiros. Ele culmina com a publicação do ensaio “Etnologia brasileira”, no qual Viveiros de Castro (1999) arremete não apenas contra as teorias da fricção interétnica (ou do “contacto”) mas, sobretudo, contra as variantes “fundamentalistas” – o adjetivo é dele – dessa tradição.

A primeira parte de “Para uma antropologia do político” pretende, pois, dialogar criticamente com os desdobramentos locais da antropologia política britânica e da antropologia política “dinamista” de Georges Balandier. O conceito de fricção interétnica, a antropologia do “contacto colonial”, os trabalhos sobre o campesinato brasileiro são temas e problemas que, como adiantamos, se alimentam daquelas contribuições primordiais.

A certa altura do texto, os autores evocam a comparação, por muitos trilhada, entre o modelo de colonização britânica do Indirect Rule (Governo Indireto) e o “modelo colonial português”. No entanto, mostram-se indiferentes à imensa literatura produzida no Brasil sobre o tema.4 Em contrapartida, preferem procurar contributos numa compilação de textos do historiador Michael Crowder. Vejamos, a título de exemplo, a seguinte afirmação: “Quando os chefes nativos ocupavam cargos políticos ou administrativos coloniais, isso não implicava (na África especialmente depois dos anos 1930) a preservação de qualquer tradição ou forma de legitimação nativa. Eram os administradores portugueses que detinham o poder de coerção e aplicavam a justiça, recolhiam os impostos e controlavam as fronteiras e fluxos de nativos” (p. 160). Uma rápida leitura de qualquer trabalho concernente ao chamado Sistema de Indigenato nas colónias portuguesas evidenciaria a inexatidão dessa afirmação. Para não me estender longamente sobre essa questão5, é preciso lembrar, antes de mais nada, que o Sistema de Indigenato nas colónias portuguesas (denominadas, na altura, de Províncias Ultramarinas) se estendeu até 1961. Apesar do discurso “assimilacionista”, os primeiros formuladores da administração colonial portuguesa possuíam uma grande admiração pelo Indirect Rule (ver, a esse respeito, o livro de Mahmood Mamdani (1996) e a sua noção de “Estado bifurcado”). Mas não se tratava, apenas, de uma admiração. Contrariamente ao que propagam os manuais, o arcabouço jurídico-colonial português inspirou-se, também, nesse modelo. O próprio Sistema de Indigenato – as formas de controlo dos “indígenas”, o recrutamento da força de trabalho nativa, o recolhimento dos impostos, as formas locais de legislar os conflitos entre os indígenas (através do direito costumeiro ou “gentílico”) – possuía muito em comum com o Indirect Rule britânico. Até o término do Sistema de Indigenato, os chefes e funcionários indígenas, vulgarmente chamados de régulos, sipaios, ‘ndunas e “cabos de terras” (dependendo do grau de hierarquia dessas chefias “tradicionais”) cumpriram, sim, um importante papel na “coerção” dos seus próprios conterrâneos.

A primeira parte do ensaio finaliza, pois, com o referido diálogo crítico com a “antropologia política” e com os seus desdobramentos locais. A partir daí, um protagonista, também local, entra em cena: a “antropologia da política”.

No início da década de 1990 é criado, no Rio de Janeiro, o Núcleo de Antropologia da Política (NUAP), no seio do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRJ. Coordenado por Moacir Palmeira, o núcleo reunia pesquisadores de vários programas de pós-graduação em antropologia no Brasil. Numa das suas primeiras publicações, o grupo explicita sua posição programática: “Uma antropologia da política distingue-se, pois, da antropologia política na medida em que consagra a abordagem etnográfica, refina a comparação como enfoque metodológico, reforça o interesse em determinado domínio empírico sem substantivá-lo, e acentua a legitimidade das categorias nativas” (1998, p. 10). Do NUAP resultaram inúmeras pesquisas, teses de doutoramento e livros. Algumas dessas obras já integram a bibliografia fundamental das disciplinas sobre antropologia (da) política nos cursos de graduação e pós-graduação (Comerford e Bezerra, p. 2013). Os nossos três autores reconhecem esse legado, contudo pretendem dar um passo além.

É preciso entender as contribuições do grupo de Moacir Palmeira no contexto, sobretudo, das campanhas eleitorais e das eleições municipais de 1996. “Rituais da política”, “representações da política” e “violência na política” constituíam três dos seus principais eixos temáticos. Essa perspetiva – a política como categoria “nativa” – permite ao grupo cunhar o conceito de “tempo da política”, visto que as eleições não se limitariam ao confronto circunstancial dos candidatos e à conseguinte votação dos eleitores. Haveria, também, um período de rearranjos, de trocas de lealdades e de uma série de microconflitos, cuja dinâmica necessitava ser identificada para além do momento específico do processo eleitoral. Não se trataria simplesmente de apreender “a” política a partir de categorias já cristalizadas e residuais, tais como “mandonismo”, “coronelismo”, ou “clientelismo” (Kuschnir, 2007, p. 165), mas sim através do estudo empírico e etnográfico das categorias nativas que operam no próprio “tempo da política”.

Se quiséssemos resumir a questão a uma simples frase de efeito, poderíamos dizer que “Para uma antropologia do político” comporta um jogo quase previsível de “tese” (antropologia política), antítese (antropologia da política) e “síntese” (antropologia do político). Passemos pois, à parte programática em si: a antropologia “do” político.

O estatuto dessa antropologia do político apoia-se numa “teoria da mediação” de inspiração habermasiana e barthiana. De Habermas, os autores extraem a preocupação com as “estruturas comunicacionais da esfera pública” (p. 177); de Fredrik Barth (e, portanto, também de Max Weber), incorporam uma preocupação interacionista fundada na “antropologia da ação” (p. 157). “O conceito de mediação”, dizem, “nos permitiu abordar o problema dos mecanismos de produção de consenso em torno de certos modos de postular as diferenças, por meio de uma abordagem antropológica menos interessada na constitucionalidade das estruturas políticas e suas funções integrativas ou assimiladoras do que na interação dos agentes” (p. 171, os itálicos são dos autores). A importância dos agentes (mediadores) e das suas sempre situadas capacidades para “categorizar a alteridade” é, ao longo do texto, sublinhada uma e outra vez como condição sine qua non para esta “antropologia do político”.

“O que o trabalho da mediação faz”, dizem os três autores, “[…] é categorizar a alteridade, compará-la e generalizá-la, isto é, projeta as diferenças em um grau de relação mais abstrato para que as alteridades se mantenham em relação e não se expulsem mutuamente” (p. 174). É possível indagar até que ponto o “trabalho da mediação” difere ou não do “trabalho dialético” da reflexividade, ao qual Manuela Carneiro da Cunha se referia no seu livro. De qualquer forma, o pano de fundo tanto da “mediação” como da “reflexividade” introduz-nos num cenário que ultrapassa o nosso saber docto e, portanto, opera na dimensão dos imponderáveis da vida política. O locus desses imponderáveis situa-se, como diria Max Weber, no “momento” em que disputas políticas específicas são capazes de criar sentidos e universos de significados inéditos e imprevisíveis.

O meu comentário sobre essa segunda parte do ensaio – a parte, por assim dizer, “programática” – será necessariamente seletivo, já que privilegia uma oração que parece condensar o núcleo da proposta: a intenção dos autores de “tomar a política de reconhecimento como caso exemplar dos fenómenos de mediação” (p. 183). O contexto que inspira essa reflexão é bem conhecido: as mudanças oriundas da Constituição de 1988 no Brasil que impulsionaram, através do diálogo com os chamados movimentos sociais, a instauração de uma série de medidas jurídicas reparadoras, a fim de atender às demandas de grupos vulneráveis (ou melhor, grupos “vulnerabilizados”).

 

O FALSO PROBLEMA DO “RECONHECIMENTO”

 

No ensaio em questão, “o estudo dos mecanismos de produção de consensos” abrange a reflexão sobre as políticas de reconhecimento a partir da referida teoria da mediação. Não há dúvidas de que o tratamento político da diferença cultural sofreu mudanças. Nesse caso, alegam os autores, não se trata de entender a relação entre cultura e política como simples dimensões que remetem a instâncias de dominação ou de resistência, e tão-pouco de focar – como a antropologia historicamente tem feito – os aspetos positivos ou negativos da mudança e do conflito intercultural. O que eles pretendem é, precisamente, evitar essa perspetiva “externalista”, derivada das antropologias políticas do “contacto” acima referidas. Trata-se, portanto, de indagar sobre as “[…] dinâmicas sociais de produção e apropriação simbólica das diferenças por atores situados e que contracenam” (Montero, et al., 2011, p. 172). Há nessa proposta um esforço louvável de nos livrar – através de um retorno à noção de “agência” – das tentações do essencialismo e do substancialismo cultural. Mas, seria essa antropologia capaz de abranger todo o espectro da experiência “do político”? Ou melhor, o que aconteceria com aquelas dimensões do político que não operam necessariamente na esfera pública habermasiana ou nos espaços de negociação dos “códigos culturais”? É no mínimo um contrassenso, os autores admitirem não estar interessados nas funções integradoras da política quando, ao mesmo tempo, consideram a questão do “reconhecimento” no âmbito da chamada esfera pública como o cerne do seu argumento. Evocarei, a seguir, alguns autores e problemas, não necessariamente considerados no ensaio de Montero, Arruti e Pompa, a fim de inquirir essa aparente aporia.

Lembremo-nos, de passagem, de um dos mais ilustres representantes da teoria do reconhecimento: Charles Taylor. O seu ensaio “A política de reconhecimento” inscreve-se num contexto institucional bastante específico: a inauguração, em 1990, do Centro Universitário para os Valores Humanos da Princeton University. Já a partir dos seus primórdios, a sua diretora, Amy Gutmann, apresentava a questão do reconhecimento como um iniludível problema moral. No entanto, algumas conclusões de Taylor não deixam de ser surpreendentes. Uma delas consiste em aceitar, no final do seu ensaio, a “suposição” de Herder, que consiste em vincular a variedade cultural ao imperativo de uma maior harmonia fundada na “providência divina”. Taylor apresenta dessa maneira o seu decálogo de boas intenções:

 

[…] é sensato supor que as culturas que conceberam um horizonte de significado para muitos seres humanos, com os mais diversos caracteres e temperamentos, durante um longo período de tempo […] possuem, é quase certo, algo que merece a nossa admiração e respeito, mesmo que possuam, simultaneamente, um lado que condenamos e rejeitamos [Taylor, 1998, p. 93].

 

Não deve, pois, surpreender-nos que o filósofo canadiano apele, para alimentar o seu sonho humanista, à conhecida fórmula de H.G. Gadamer sobre a “fusão de horizontes”. Não faltam, na sua investida, acusações contra intelectuais “eurocêntricos”, que supostamente se apressam em emitir juízos de valor sobre culturas que mal conhecem. Mas não nos enganemos: a antropologia no catecismo de Taylor brilha pela sua ausência. Devemos por isso repetir um previsível lamento? Referimo-nos àquele que brada contra o facto de os filósofos políticos abusarem do termo cultura, ao mesmo tempo que ignoram os debates antropológicos elementares sobre o assunto. Terence ­Turner (1994) assume com razão que os próprios antropólogos são, em grande medida, os próprios responsáveis pela indiferença com a qual eles mesmos são tratados.

Como é sabido, aquilo que os filósofos políticos de modo grandiloquente denominaram “políticas de reconhecimento” ocupa o centro do célebre debate de liberais versus comunitaristas. Os autores de “Para uma antropologia do político” não explicitam essa clivagem, mas ela persiste nas entrelinhas. Como honrar, numa sociedade democrática, os acordos de equidade e justiça sem ferir as demandas legítimas de todos os grupos envolvidos? Como criar dispositivos capazes de mediar as tensões entre o altruísmo e o egoísmo? Como alcançar um equilíbrio entre racionalidade e moralidade, entre liberdade e igualdade, e assim por diante? Para superar essas dicotomias, alguns foram buscar as suas receitas ao trabalho de John Rawls. O problema foi, por momentos, apresentado em termos dos benefícios ou dos inconvenientes, ora de um relativismo “cultural” tolerante, ora de universalismo “social” integrador. Mas o dilema das políticas de reconhecimento não se resolve nos falsos imperativos dessa dicotomia abstrata. Charles Taylor, mas sobretudo, Jürgen Habermas e Axel Honneth – dois inspiradores primordiais do ensaio aqui comentado – não se conseguem esquivar desse maniqueísmo. Em virtude dessa limitação, os agentes alvo das “políticas de reconhecimento” são considerados simples sujeitos de direito, enquanto as disputas identitárias e as políticas concretas que os constituem permanecem invisíveis nas amarras de um renovado didatismo moralizador.

Nesta altura, cabe perguntarmos: os autores de “Para uma antropologia do político” conseguem manter-se a salvo deste risco?

O diálogo que Montero, Arruti e Pompa estabelecem com o trabalho de Habermas – e de Axel Honneth – não é em si passível de questionamento. Afinal, a antropologia, desde os seus primórdios sempre dialogou ora ­cordialmente, ora de maneira tensa, com a filosofia (essa mesma cordialidade e tensão é também evidente em relação ao seu diálogo com a história). No entanto, essa busca bem-intencionada possui uma contrapartida irónica. Habermas, por exemplo, interessou-se por um fragmento da antropologia britânica, mas não pelos debates sobre “política” que ela promoveu. O seu conhecimento da obra de Evans-Pritchard advém das suas leituras do filósofo Peter Winch, sobretudo do seu ensaio Understanding a Primitive Society. Na altura, a filosofia britânica promovia um grande debate em torno do problema da “racionalidade” (nele estiveram envolvidos, além do próprio Winch, I.C. Jarvie, Robin Horton, ­Steven Lukes e Alasdair MacIntyre, entre outros). Nesse contexto, a etnografia de Evans-Pritchard sobre bruxaria e magia entre os Azande foi intensamente debatida. Habermas (1989) não se interessou pelo Evans-Pritchard “político” (dos Nuer), mas pelo Evans-Pritchard “filósofo” (dos Azande).6

Retornemos, pois, ao problema do “reconhecimento”. Anthony K. Appiah tem chamado a atenção para o facto de a linha que demarca a diferença entre a “política de reconhecimento” e a “política da compulsão” não ser tão evidente. Também filósofo – o facto de ser negro e homossexual é, nesse caso, secundário – Appiah desabafa contra as tentações da compulsão etnicista: “Se tivesse de escolher entre o mundo do armário e o da libertação homossexual, ou entre o mundo do Uncle Tom’s Cabine e o Poder Negro, eu escolheria, claro, o último de cada caso. Mas gostaria de não ter de escolher. Gostaria de ter outras opções” (Appiah, 1998, p. 179). Esta conceção liberal do sujeito “moderno” aparece, também, em Alain Touraine mas, dessa vez, sob a forma daquilo que poderíamos chamar um multiculturalismo moderado. “Como podemos combinar igualdade e diversidade?”, pergunta Touraine. A resposta a essa indagação exige um esforço para combinar democracia política e diversidade cultural sob a perspectiva da “liberdade do Sujeito”. Essa perspectiva implica que toda referência à “identidade cultural” se legitime mediante “[…] o recurso à liberdade e à igualdade de todos os indivíduos, e não através da apelação a uma ordem social, a uma tradição ou às exigências da ordem pública” (Touraine, 1999, p. 175).

De facto, como sublinha Habermas (1995, p. 852), a problemática incrustada nas chamadas “lutas pelo reconhecimento” já aparecia na obra de Hegel, Fenomenologia do Espírito, no seu capítulo consagrado à dialética do senhor e do escravo. Ora, se em vez de partirmos de uma visão filosófico-normativa da diferença ampliássemos empiricamente o espectro, seríamos obrigados a aceitar que o problema não é o reconhecimento em si, já que posso reconhecer o Outro tanto como amigo ou inimigo, como igual ou diferente, como próximo ou distante, e assim por diante. Aliás, de um ponto de vista empírico, a distinção entre amigo e inimigo é relativa e não absoluta. A constatação parece banal, mas essa lição é ensinada não apenas por uma vasta literatura etnográfica, mas, sobretudo, por exemplos históricos dramaticamente recentes. É preciso, portanto, olhar para as formas positivas – hospitalidade – e negativas – hostilidade – do reconhecimento. Mas não apenas isso. De um ponto de vista concreto, a questão é quando e por que motivo os que hoje são reconhecidos como amigos podem amanhã ser reconhecidos como inimigos (e vice-versa); ou, parafraseando o livro de Mahmood Mamdani (2001) sobre o genocídio ruandês, quando e porquê as vítimas de ontem também poderão ser os assassinos de amanhã. O aspeto fulcral dessa questão não se refere tanto à construção social da confiança e do consenso, mas, sobretudo, a formas micro e macrossociológicas da traição. Ao partirmos dessa perspetiva, não pretendemos fazer um convite de adesão aos postulados de um relativismo ético irresponsável. Tão-pouco é nossa intenção aderir cegamente àquilo que Michel Foucault (1992) denominou “reversibilidade tática do discurso”. Contudo, a crítica de Foucault às visões ontológico-normativas do poder podem auxiliar-nos a pensar a questão a partir de pressupostos menos metafísicos e, portanto, mais empíricos. Do contrário, o binarismo que insiste em apresentar a questão como uma simples disputa entre “liberais” e “comunitaristas” – ou entre la Civilisation do paradigma republicano-universalista e o Volk do paradigma romântico-culturalista – continuará a ofuscar a verdadeira natureza das lutas “reais”, bem como suas implicações concretas.

Axel Honneth (2003), cujo livro traduzido em português assumiu a forma de um novo vade-mécum, também permanece refém de uma filosofia política moralizadora. No entanto, os autores de “Para uma antropologia do político” parecem tomá-lo como uma referência verossímil. As críticas que Honneth faz ao seu predecessor frankurtiano – Habermas – e à própria herança hegeliana pretendem apoiar-se numa crítica à filosofia da consciência, a partir de um retorno aos fundamentos intersubjetivos da vida social. Nessa esfera, Honneth distingue três formas de “reconhecimento” – amor, direitos e solidariedade –, cujas contrapartidas negativas seriam, respetivamente, três formas fundamentais de “desprezo” – abuso e violência sexual, negação de direitos e exclusão e, por fim, desqualificação e insulto. Mas, apesar da repercussão do seu trabalho, a sua “gramática moral” não diz nada de novo sobre a questão política e moral por excelência: o problema, tanto na sua dimensão microssociológica, como na sua dimensão macrossociológica, da traição. Para tanto, torna-se ­também necessário estudar as dinâmicas que revelam a transitoriedade dos laços sociais (pessoais, grupais, étnicos ou nacionais), e não apenas as estruturas que os reproduzem.

 

INIMIGOS, INQUILINOS E TRAIDORES

 

A transitoriedade – e a persistência – dos laços sociais interessou, de forma peculiar, ao escritor britânico Edward Morgan Forster. Em plena Segunda Guerra Mundial, quando o imperativo patriótico era uma questão de vida ou morte, ele escreve um ensaio intitulado What I Believe, que se tornará célebre. Nesse escrito, Forster admite sua preferência não pela grandiloquência das grandes causas, mas pelas relações interpessoais pautadas pelos vínculos de confiança e afetividade. É precisamente nessa microdimensão em que, para ele, se constroem as afinidades duradouras. No entanto, Forster acrescenta a esse argumento uma provocação: num caso hipotético em que tivesse de escolher entre trair um amigo ou trair a nação, admite sem pestanejar que escolheria a segunda opção. Essa confissão, diz, escandalizará o leitor moderno, que, caso deseje, “poderá aproximar sua mão patriótica do telefone e ligar imediatamente à polícia” (Foster, 2008, p. 196). Na Divina Comédia, relembra-nos ­Forster, Dante Alighieri condena Brutus e Cassius ao último círculo do Inferno, já que eles preferiram trair um amigo (Julio César) em vez de trair Roma. O velho problema da traição é um incómodo não apenas para os patriotas circunstanciais ou – utilizando uma categoria de Balibar (1991) – para os Homo Nationalis. Ele interpela, também, as nossas certezas disciplinares, que exigem fronteiras classificatórias mais ou menos claras em relação aos “grupos” e aos agentes sobre os quais refletimos. O perturbador problema da traição – ao amigo, à família, ao grupo étnico, à pátria, ao partido, e assim por diante – converte o debate sobre as políticas de “reconhecimento” num devaneio filosófico estéril, já que ele outorga primazia ao problema da confiança, do contrato, do consenso. Por que não fitá-lo a partir da sua contrapartida?

Nesse caso, torna-se necessário distinguir nas análises empíricas concretas as dinâmicas que envolvem o par “adulação/acusação”. Esse amplo espectro, em cujos extremos se situam ambos os polos, mostra-nos que o reconhecimento (do amigo ou do inimigo) depende também das formas categoriais que delimitam a construção política da simpatia ou, dependendo do caso, da ameaça. Trata-se de uma gramática em que as acusações, as suspeitas e os boatos convivem, no mesmo registro da linguagem política, com as adulações, as afinidades e a invenção do aliado. A questão conduz-nos, por um lado, ao tema fulcral das afinidades eletivas, cuja problemática – nunca é demais relembrar – nasce de uma ciência eminentemente empírica (a química), é incorporada pela literatura e, finalmente, chega às ciências sociais (Löwy, 2004). O problema da construção dos amigos e dos inimigos remete-nos também para a análise dos pequenos e dos grandes ritos de agregação e separação. Os ritos de comensalidade, de fraternidade, de saudação que Arnold Van Gennep (2008) estuda na sua obra vão ao encontro (uma compatibilidade impensada?) daquilo que Thomas Hobbes, no capítulo X do Leviatã – “Do poder, valor, dignidade, honra e merecimento” – chama de formas ou “maneiras de honrar” (ways of Honouring): elogiar, oferecer grandes dons, louvar, exaltar, felicitar, acreditar, confiar, apoiar-se no outro…

É claro que a distinção entre Nós e os Outros é decidida pelos escritórios de migrações, pelas leis de nacionalidade, pelas polícias de fronteira, pelos documentos de identidade, bem como através de todos os outros dispositivos que contribuem para a reprodução do exercício do monopólio legítimo da violência de um Estado. Mas essa distinção também se processa nos pequenos e cotidianos rituais de incorporação e separação. Ou seja, para além das ideologias e das categorizações que se têm ensaiado para explicar o orgulho étnico e os marcadores da diferença (primordialismo, etnicismo, nativismo, “essencialismo estratégico”), haveria uma dimensão microssociológica na qual o “reconhecimento” – do amigo ou do inimigo – assume sua forma empírica e observável: é nesse espaço em que podemos identificar os pequenos e grandes ritos de hospitalidade e hostilidade. Diante desses imponderáveis, o conceito de “mediação” – sempre relativo e residual – torna-se inoperante. A pesquisa etnográfica fornece-nos, sob a forma de um caleidoscópico jogo de tensões, a possibilidade de verificar in loco essas dinâmicas. De maneira peculiar, essas tensões também têm sido retratadas pelo cinema. Gostaria de evocar um exemplo paradigmático: a densa metáfora apresentada por Roman Polanski no seu filme O Inquilino7. O protagonista, um francês de origem judaico-polonesa, ao tentar refazer sua vida na Paris do pós-guerra, não consegue escapar à “identidade” que os seus interlocutores e vizinhos, através de pequenos gestos quase inconscientes, exigem que ele assuma. O desenlace para essa situação sem saída, à qual poderíamos aplicar o conceito de “duplo vínculo” cunhado por Gregory Bateson (1998), é tão grotesca quanto dramática. Afinal, quem é esse inquilino, um ser ambíguo, transitório e liminar cujo alter ego (uma ex-inquilina do mesmo apartamento) é uma mulher? Na ausência dos rituais que deveriam encurtar a distância social entre anfitriões e hóspedes, a identidade da personagem dilui-se. Essa diluição chega a um extremo tal que o espetador já não sabe se está diante de um complô contra o protagonista ou de uma alucinação de perseguição paranoica da qual esse “estrangeiro” é vítima. O desenlace funciona como uma profecia que se autorrealiza: tudo começa com uma perceção falsa acerca do Outro, a qual, através dos comportamentos que ela mesma gera, se torna “verdadeira”. Tal como o feiticeiro do célebre ensaio de Lévi-Strauss8, o protagonista acaba por construir progressivamente a personagem que através de pequenos rituais de (des/re)conhecimento lhe impuseram os seus anfitriões: apesar de nunca tê-la conhecido, o inquilino assume a identidade da inquilina anterior, ou melhor, passa a ocupar, literalmente, o seu “lugar”. Para que o estigma imaginário seja consumado, é preciso, pois, construí-lo previamente a partir de relações de sociabilidade “reais”, mas expressadas subtilmente em mecanismos quotidianos negadores da identidade do “Outro”. A versão bem-humorada desse drama identitário pode ser encontrada num outro filme, Zelig, dirigido por Woody Allen. Apelando à técnica do “falso documentário”, o filme (a preto e branco) debruça-se sobre o caso de Leonard Zelig. A personagem apresenta um distúrbio peculiar: conforme o momento e a situação, Zelig metamorfoseia-se, involuntária e camaleonicamente, para adquirir a aparência dos seus próximos. A psicanalista que o trata descobre que as causas desse estranho sintoma resultam da sua virulenta e irreprimível necessidade de ser “reconhecido” pelos Outros. Num dado momento, o protagonista converte-se em inimigo público número um da sociedade: afinal, de que lado está Zelig? De quem ele é amigo? E de quem ele é inimigo? Somente após a cura da sua estranha doença ele se torna um indivíduo digno de confiança e, como tal, um cidadão que merece ser reconhecido. Com uma sensibilidade que nos remete às teorias interacionistas de Erving Goffman, ambos os filmes nos advertem que algo de errado acontece quando uma humanidade “mínima” – recorrendo a uma evocação levistraussiana – não pode ser mantida.

Há, também, exemplos históricos que nos convidam a pensar relacionalmente o problema do reconhecimento – do amigo ou do inimigo – sob essa perspetiva interacionista. Albert Soboul, o historiador da revolução francesa, descreve com habilidade goffmaniana o quotidiano do uso de determinados signos externos e rituais de reconhecimento utilizados entre os militantes populares das secções revolucionárias parisienses: os sans-culottes. As discussões em torno do uso ou não de determinadas vestimentas, símbolos e diacríticos foram, a partir de 1792, cada vez mais intensas entre os revolucionários franceses. Nessa época aconteceram debates acalorados quando os revolucionários pretenderam substituir, na linguagem do dia-a-dia, “senhor” por “cidadão”. Essas novas formas não hierarquizadas de reconhecer o Outro provocaram inúmeros equívocos e violências. Algumas dessas tensões aconteceram inclusive nos cafés parisienses, espaços que se tornariam um lugar de sociabilização por excelência. Soboul relata duas dessas situações microssociológicas, metáforas incontornáveis do novo ambiente igualitarista que se espraiava pela sociedade. Numa ocasião, um velho garçon, ainda socializado nos antigos costumes, chamou a dois cidadãos “senhores” (vous). Os dois jovens revolucionários não demoraram em reagir diante dessa linguagem submissa, acusando o garçon de se comportar como um “escravo”. Noutro local, que passaria a ser um famoso espaço de discussão entre os revolucionários – o café de Foy – uma briga ocorreu após um simples cidadão haver tratado um general por “tu” (toi) (Soboul, 1987, p. 210). Salut citoyen! Era essa a saudação ritual que entre os revolucionários franceses funcionava como um mecanismo de agregação e de “reconhecimento” de um semelhante, de um cidadão. Assim, os laços primordiais (Shils, 1957) e as distinções entre Nós e os Outros são também suscetíveis de ser produzidas no confronto desses microuniversos de significados que Forster – o “traidor” da pátria – denominava “personal relationships”, isto é, aquilo que os sociólogos e os antropólogos chamariam de sociabilidade (Simmel, 2006) e que os filósofos, de Plutarco a Montaigne, denominariam “amizade”9. A noção de “re(des)conhecimento” é, pois, empiricamente multívoca. Ela apresenta-nos um desafio análogo ao que acontece com o “conceito global de ‘étnico’”, tal como anunciado por Max Weber: trata-se de um “[…] termo genérico completamente inoperante para toda investigação rigorosamente exata […]” (Weber, 1964, p. 324). Diante desta encruzilhada, seria prudente aceitarmos o facto de estarmos a lidar, pura e simplesmente, com um falso problema: o “problema” do reconhecimento.

Voltemos ao ensaio em questão. A proposta de Montero, Arruti e Pompa é fazer da análise da política de reconhecimento um aspeto inerente à “antropologia do político”, e considerar essa política como “caso exemplar dos fenômenos de mediação” (p. 183). Tal proposta assume, por momentos, objetivos pretensiosos: “[…] refazer o percurso conceitual e político do projeto de construção da nacionalidade […]” (p. 181). Mas a pretensão seria um detalhe menor, não fosse pelo facto de se apoiar na quimera do “reconhecimento”. Apesar das declarações de boas intenções sobre a importância dos agentes, da historicidade, da mediação etc., essa antropologia do político não consegue emancipar-se das aporias criadas pelos filósofos políticos aos quais nos referimos. Vejamos, a título de exemplo, o seguinte parágrafo:

 

Buscando uma primeira síntese da abordagem aqui proposta, diríamos que os atores se constituem (ou não) em agentes políticos na lógica do jogo político das controvérsias quando, a partir delas, elaboram demandas por direitos, tendo em vista constituírem-se como sujeitos de direitos (p. 179).

 

Quer dizer que os atores só se constituem em agentes políticos enquanto “sujeitos de direito”? Em que essa proposta difere das abordagens que pretende criticar? Qual a diferença entre essa “antropologia do político” e as perspetivas “jurídicas” – e “externalistas” – da antropologia política contatualista? Os três autores pretendem expulsar o instrumentalismo pela porta principal, que no entanto regressa sigiloso e reconfortado pela porta dos fundos.

 

COMENTÁRIOS FINAIS (OU…“EINSTEIN E OSSELVAGENS…”10)

 

A missionary blamed his African flock for walking undressed.

—“And what about yourself?” they pointed to his visage, “are not you, too, somewhere naked?”

—“Well, but that is my face”

—“Yet in us,” retorted the natives, “everywhere it is face”11.

Roman Jakobson [1960, p. 277].

 

A teoria da mediação convida-nos a pensar a política de reconhecimento como um “caso exemplar” de uma antropologia do político. O convite pode resultar tentador quando pensamos a mediação à luz, por exemplo, das relações entre missionários e indígenas (Montero, 2012), ou entre agentes do Estado e movimentos sociais (Arruti, 2006). Mas as outras dimensões – menos “negociáveis” – da experiência do político também não mereceriam entrar no nosso campo observacional? Ao mesmo tempo, parece-nos que o risco dessa crítica – legítima e necessária – à antropologia política “contactualista” e “contratualista” consiste em atribuir ao dualismo “nós-eles” um viés externalista produzido apenas pelo pensamento dicotómico do analista. No entanto, o que acontece quando esse dualismo é produzido pelas próprias categorias nativas suscetíveis de autorizar, por sua vez, as mais variadas práticas exclusivistas e, por que não, “culturalistas”? Trata-se, mais uma vez, da construção e, portanto, do “reconhecimento” do inimigo. Eis quando, da perspetiva dos atores, a distinção “Nós-Eles” se torna significativa e merecedora de atenção. Recentemente, alguns trabalhos, pautados, também, pelos enfoques microssociológicos e etnográficos da agência [agency], vêm transitando por caminhos que nos conduzem a esses problemas (Lubkemann, 2008; West, 2009; Thiranagama e Kelly, 2010). Entretanto, resta saber se aquela antropologia “do político” – e a sua teoria da mediação – poderá fornecer-nos subsídios para pensarmos as formas elementares da violência, da hostilidade, do conflito, do genocídio, do massacre. Elas são a dimensão constitutiva de uma “outra sociabilidade”, cuja dinâmica é preciso entender. Se não nos ajudar a pensar um dos aspetos incontornáveis do político (a guerra e a sua contrapartida mais perturbadora, a traição), a teoria da mediação converte-se numa panaceia.

Não é possível, pois, uma antropologia “do político” convincente se não atentarmos no facto de que a matéria que vincula amigos (hospitalidade) e inimigos (hostilidade) possui a mesma raiz etimológica e sociológica. Etimologicamente, tal como nos anuncia Émile Benveniste, hostilidade deriva de hostire, que significa “intercambiar”. Graças a uma imensa literatura antropológica, sabemos que a guerra é, na verdade, a outra face do intercâmbio e vice-versa. Intercambio ou me caso com os meus inimigos para não guerrear com eles, diria Lévi-Strauss em As Estruturas Elementares do Parentesco (um “cunhado”, diz David Webster na sua etnografia sobre os Chope de Moçambique, “[…] não deixa de ser um inimigo potencial que o casamento transformou num amigo”). Recordemos também que o potlatsh, esse grande ritual de intercâmbio imortalizado por Franz Boas, não é apenas uma guerra sublimada, mas a própria guerra assumindo outras linguagens. A etimologia de hostire também remete para hostis (do latim “inimigo”) e, ainda, para um termo bastante familiar aos cristãos católicos: hóstia. Na tradição romana, essa palavra identifica “a vítima que serve para aplacar a ira dos Deuses” (Benveniste, 1969, p. 93). Trata-se, em ambos os casos, de um intercâmbio simbólico com os deuses para evitar o conflito. Através desse arti-fício – ou, literalmente, desse sacri-fício  – passa-se do social ao simbólico, da hostilidade à hospitalidade. A “vítima” (como no O Inquilino de Polanski?) também se pode tornar um convidado ambiguamente desejável. Lembremos, além disso, que “autel” (homófono de “hotel”), do francês “o altar onde se sacrificam os deuses”, provém de “alter”. O problema da “alteridade” condensa e reúne esse duplo sentido reciprocamente excludente. Eis um paradoxo impossível de resolver, mas que envolve um problema antropológico e sociológico fundamental. De um ponto de vista estritamente histórico, ainda não sabemos como a conotação positiva de hostire (reciprocar ou intercambiar) assumiu uma forma negativa (hostilidade). Estamos, sem dúvida, em face do que Benveniste (1969, p. 87) denomina “palavras reveladoras de uma instituição”, cujos traços se deixam entrever apenas de forma fugidia. Por detrás dessa opacidade da língua, vislumbra-se uma relação metonímica entre a reciprocidade e a guerra, entre a amizade e a inimizade, entre a hospitalidade e a hostilidade. A identificação etnográfica dessa incómoda contiguidade vai a contrapelo do falso problema do reconhecimento.

Esse esforço – o estudo da tensão dissémica entre hospitalidade/hostilidade – não nasce de uma tábula rasa antropológica. Sabemos que entre as décadas de 1950 e 1960, a chamada antropologia mediterranista (aquela que se especializou nos trabalhos etnográficos no “sul” da Europa) trouxe contribuições pioneiras sobre o assunto.12 Mais tarde, os trabalhos de Michael Herzfeld (2001; 2005) veicularam uma renovada imaginação teórica para repensar essas tensões. Ultimamente, uma das mais importantes revistas científicas de antropologia – Journal of the Royal Anthropological Institute – dedicou um dossiê ao tema sob o sugestivo título “The return to hospitality: strangers, guests, and ambiguous encounters”13 (Candea e Col, 2012). Compartilhando essas mesmas preocupações, propus em trabalhos recentes um retorno ao problema das “afinidades eletivas” e ao estudo daquilo que chamei de “construção colonial da simpatia” (Macagno, 2012a, 2012b).

Retomemos, para terminar, o pequeno diálogo da epígrafe, evocado por Roman Jakobson, entre um missionário e um grupo de africanos. O trecho pertence a um ensaio no qual o linguista discute a noção de “poética”, enquanto movimento de ampliação e de revalorização do discurso e não como sua mera ornamentação retórica. Entendida dessa maneira, a poética – tal como acontece quando a antropologia nos convida a ampliar o registo empírico da experiência humana – provoca, nesse movimento de ampliação, um efeito político: o desafio crítico às nossas certezas mais arraigadas e, ao mesmo tempo, frágeis. “Pois, para nós tudo é rosto” replicavam os nativos nus ao missionário escandalizado. Essa resposta – poética e política – aciona o disparador do relativismo. Mas o problema do relativismo, somado à questão da demanda de tolerância e “reconhecimento”, restringe-se a um segundo plano se olharmos para um facto universalista que, à primeira vista, esse (des)encontro parece eclipsar: o rosto do nativo e o do missionário são, por assim dizer, constituídos pela mesma “matéria”. Tal constatação é mais perturbadora do que o suposto escândalo cognitivo envolvido nessa hipotética “situação colonial” ou “choque cultural”. Em tais circunstâncias, o etnólogo possivelmente nos convidará a indagar sobre as noções de corpo – ou de pessoa – envolvidas nessa situação, enquanto os políticos do reconhecimento nos proporão legislar e intervir nesse aparente diálogo de surdos, a fim de evitar a anulação recíproca de ambas as faces, rostos… ou “culturas”. Sem embargo, não conseguimos vislumbrar como os promotores dessa intervenção poderiam conciliar a tão alardeada agency com as estocadas normativistas e moralistas que suas políticas de reconhecimento promovem.

Para além do falso problema do “reconhecimento” e do seu embaraçoso reverso – nascido da instabilidade dissémica evidenciada no par hospitalidade/hostilidade – resta, por ora, um corolário e uma pergunta inevitáveis: é possível que, como almejava Pierre Clastres (2003), a antropologia política tenha finalmente conseguido realizar a sua “revolução copernicana”; poderá no futuro realizar a sua “revolução quântica”? A julgar pela proposta programática aqui comentada, parece que essa tarefa – a ruptura com o velho paradigma – não será realizada imediatamente.

 

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NOTAS

1 Vários dos temas e problemas abordados neste artigo foram tratados de forma mais extensa no meu livro O Dilema Multicultural (Macagno, no prelo).

2 V., a esse respeito, o volume em homenagem a Issac Schapera (Fortes, Patterson, 1975). V. também a iluminadora entrevista a Issac Schapera, realizada por Jean Comaroff e John L. Comaroff (1988).

3 Para entender as tensões entre a antropologia segregacionista do Volkenkunde e a antropologia social, v. Sharp (1980 e 1981); West (1979); Gordon (1988a e 1988b); Kuper (1987 e 1999). Também vale a pena consultar a entrevista com Adam Kuper (2000), realizada por Carlos Fausto e Federico Neiburg.

4 A tese de doutoramento de Valdemir Zamparon (2000), defendida em 1998 no Programa de Pós-Graduação em História da USP, é um dos trabalhos pioneiros sobre o tema. No campo da antropologia, a partir, sobretudo, de 2000, as pesquisas e publicações sobre essa questão vêm crescendo. V. entre outros: Fry (2005); Macagno (2001); Cabaço (2009), este livro foi, também, prémio de melhor tese de doutoramento na ANPOCS em 2008). O livro de Omar Ribeiro Thomaz (2002), mesmo que não aborde questões referentes à construção de um sistema jurídico-colonial, privilegia temas vinculados à “representação” do Império colonial é, também, uma referência obrigatória (curiosamente, este livro é resultado da sua tese de doutoramento orientada por um dos autores de “Para uma antropologia do político”).

5 V., por exemplo, Macagno (2000).

6 V. Winch (1964). O “debate inglês” sobre a racionalidade foi amplamente abordado por Habermas no item 3 do capítulo 3, vol. 1, da sua Teoria da Ação Comunicativa (1989). A partir de uma perspetiva antropológica, a obra mais completa que conheço sobre esse debate foi aquela escrita por Ulin (1984).

7 O filme é baseado no romance Le locataire chimérique, de Roland Topor, publicado pela primeira vez em 1964.

8 “O feiticeiro e sua magia”, publicado em Antropologia Estrutural (1970).

9 Ver, a respeito, o inspirador comentário de Marilena Chaui (2011, p. 116) sobre o “Discurso da Servidão Voluntária”, em que a autora nos convida, através de Étienne de la Boétie, a pensar a “dimensão política da amizade”.

10 Parafraseio aqui o conhecido capítulo “Copérnico e os selvagens”, com o qual Pierre Clastres abre o seu livro A Sociedade contra o Estado. Pesquisas de Antropologia Política (2003 [1974]); esperamos que o “corolário” que emitimos no final deste ensaio justifique essa evocação clastriana.

11 Um missionário censurava os seus seguidores africanos pelo facto de andarem nus. “E você?”, contestaram-no, apontando a sua face, “você também não está um pouco nu?”. “Sim, mas isto é o meu rosto”, diz o missionário. “Mas para nós tudo é rosto”, replicaram os nativos.

12 Um marco dessas contribuições está representado no ensaio de Julian Pitt-Rivers “The law of hospitality”, publicado em 1977, no volume The Fate of Shechem or The Politics of Sex: Essays in the Anthropology of the Mediterranean; republicado, recentemente, em HAU: Journal of Ethnographic Theory, 2 (1): 501-517, 2012.

13 O retorno da hospitalidade: estranhos, hóspedes e encontros ambíguos.

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