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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.210 Lisboa mar. 2014

 

Notícias da ciência em Portugal em 2014

 

José Mariano Gago*

*IST (Instituto Superior Técnico) e LIP (Laboratório de Instrumentação e Física Experimental de Partículas), LIP — Avenida Elias Garcia, 14, 1.º — 1000-149 Lisboa, Portugal. E-mail: gago@lip.pt

 

Nos últimos meses, a política científica esteve em debate público.

Reativou-se, assim, uma forma especial de apropriação social da ciência que marcou o desenvolvimento científico português das últimas décadas, em que o debate político (de política científica) se trava publicamente e os cientistas procuram o apoio da opinião pública.

O debate atual nasce da oposição a decisões de rutura tomadas pelo governo: (1) Deixar terminar em 2012-2013 os cerca de 1200 contratos de investigadores (40% estrangeiros) selecionados em concurso internacional cinco anos antes, e abrir apenas 400 lugares. Cerca de 1000 doutorados abandonaram possivelmente a investigação ou o País, na sequência desta decisão; (2) Reduzir drasticamente o número de bolsas de pós-doutoramento atribuídas anualmente pela FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia (200, em vez das 700 habituais); (3) Reduzir para metade o número de novas bolsas de doutoramento financiadas pela FCT com inversão das regras: doravante a FCT avalia e financia programas doutorais, não candidatos individuais, aos quais fica reservado um concurso de dimensão “residual”.

Face à contestação, o governo parece ter finalmente aceitado recuar ligeiramente, anunciando novos financiamentos para a ciência, mais bolsas e mais contratos, embora ainda muito inferiores aos níveis de partida.

As decisões governamentais não respondem a uma redução orçamental da FCT, pelo menos em 2014. Acontecem, pelo contrário, em momento favorável, no início de um novo quadro comunitário de apoio. Ora em 2013, por exemplo, um terço das verbas pagas pelas FCT provieram de fundos estruturais do FSE e do FEDER. Sabemos, contudo, que só tardiamente o governo entregou a Bruxelas a sua proposta de “Acordo de Parceria” para a aplicação dos fundos estruturais em 2014-2020 e que, na área da ciência e do ensino superior, o documento não foi objeto de consulta pública. Apenas em setembro de 2013, fruto de uma intervenção externa de emergência, se vem a saber que, desde há mais de um ano, se colocava em questão serem sequer atribuídos novos fundos estruturais para ciência.

No decurso da discussão, o campo da governação apresentou, no essencial, os seguintes argumentos: (1) Investiu-se muito, mas ainda não chegámos ao nível dos outros países: temos pois de mudar de política; (2) Investimos, doutorou-se gente, mas para quê, se as empresas não os contratam? (3) Investiu-se, mas só em quantidade, agora temos de promover a “excelência” (e reduzir quantidade). Concentremo-nos no que é verdadeiramente excecional, “excelente” (variante: no que é “verdadeiramente útil”).

Pelo seu lado, o campo científico fez valer: (1) A importância cultural, social, económica da ciência e do desenvolvimento científico; (2) O caminho excecional percorrido e a gravidade de inversão desse caminho; (3) A importância do impacto económico da ciência, visível nas exportações, na modernização de setores tradicionais, nas comunicações e na informatização das empresas e dos serviços, na qualidade da saúde e de outras políticas públicas; (4) A necessidade de assegurar condições de emprego científico em Portugal e a gravidade, para o futuro do País, de forçar a emigrar um ou dois milhares de doutorados. Esses argumentos foram, no essencial, retomados pela opinião pública.

A discussão sobre a dotação orçamental para a ciência pouco aflorou no debate, já que o governo garantia não a ter diminuído, o que tornava a decisão de forçar à emigração ou ao desemprego grande número de cientistas ainda mais dificilmente sustentável. A explosão da mobilização do campo científico vai finalmente assentar na desconfiança nos processos de avaliação da FCT, após denúncias de classificações dos júris terem sido alteradas por via administrativa.

Estes acontecimentos ocorrem passados quase exatamente 40 anos desde o final da ditadura, momento simbólico de balanço dos progressos sociais. Ora o atual debate sobre a ciência em Portugal permite tomar consciência do progresso que representa a extraordinária e imprevisível superação do nosso secular atraso científico.

A rápida elevação do nosso nível de desenvolvimento científico e tecno­lógico parece hoje solidamente implantada: em 30 anos, o número de investigadores científicos em Portugal multiplicou-se por 17, a intensidade do investimento em investigação científica e desenvolvimento experimental por 5, e a produção científica por 32. A balança de pagamentos tecnológica torna-se positiva. E Portugal, os seus cientistas, e as suas empresas, contribuem para o esforço internacional, da Agência Espacial Europeia ao CERN, ou da investigação em cancro ao estudo dos fenómenos sociais.

Eis as “notícias científicas” do dia, completadas com estatísticas e duas conclusões sumárias:

 

(1)  Vulnerabilidade: os cientistas portugueses constituem um reservatório bem preparado e jovem que, sendo forçado a emigrar em massa, tem para onde ir.

 

(2)  Bifurcação: as políticas públicas contam. Sem persistência no desenvolvimento científico (hoje em debate) é fatal o retrocesso do País.

 

O feito histórico da superação do atraso científico nacional nas últimas décadas é, a meu ver, indissociável das condições políticas e sociais criadas desde o fim da ditadura, da formação de uma cultura de proximidade e solidariedade entre cientistas e não cientistas na sociedade portuguesa, do contexto novo de mobilidade social pela educação e de afirmação das mulheres na sociedade. Mas enquanto se não enraizar ainda mais profundamente na cultura e na economia, e no pensamento político de todos os quadrantes, o desenvolvimento científico estará sempre ameaçado de retrocesso.

Já Anastácio da Cunha, então penitenciado pela Inquisição, expulso da Universidade, e retido na Casa Pia, em carta descoberta e publicada por Joel Serrão (1971), sob o título “Notícias literárias de Portugal em 1780”, registava a decadência depois de um período de progresso:

 

Antes desse tempo desditoso já tínhamos logrado alcançar, ainda que com o auxílio dos estrangeiros, e imitando-os, lugar honroso na república das letras. Os nossos sábios eram conhecidos, respeitados, solicitados pelo estrangeiro […]. Fomos alguma coisa, fomos aquilo a que os ingleses chamam “good scholars”, bons estudantes […]. Porém, a partir desse século XVI até hoje que é que temos feito? Ai de mim! Escasseia-me a coragem para dizê-lo.

 

Dir-me-ão: Nunca mais tal acontecerá! Talvez. Por certo, não. Mas de nós depende.

 

 

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

SERRÃO, J. (org.) (1971), Notícias Literárias de Portugal, 1780, Lisboa, Seara Nova.         [ Links ]

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