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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.210 Lisboa mar. 2014

 

Uma breve nota sobre a falada reforma da política científica

 

António Manuel Hespanha*

*Faculdade de Direito, Universidade Nova de ­Lisboa, Campus de Campolide — 1099-032 Lisboa, Portugal. E-mail: amh@netcabo.pt

 

De um momento para o outro, como de costume a partir de uma questão de “cortes”, vemos aludir a planos de uma “refundação”, agora da política científica.

Como de costume, não se tem tratado de muito mais do que alusões. Não há nenhum estudo, documento ou plano estratégico, nenhuma produção articulada de dados e de critérios. Há uns números e indicadores manhosos, sem pedigree conhecido nem discussão metodológica, variadamente brandidos por intervenientes, em geral sem qualificações, uns slogans sobre “a ciência e a vida”, sobre a produtividade da investigação, sobre a “necessidade de podar”. Tudo de uma grande indigência e amadorismo. E o pior é que estas propostas (?) são apresentadas como evidentemente boas, que as decisões parecem estar tomadas e ameaça-se que a reforma virá, contra tudo e contra todos. Enfim, um processo muito semelhante ao da decantada “reforma do Estado”. O mesmo amadorismo, a mesma superficialidade, a mesma irresponsabilidade, o mesmo dogmatismo dos incompetentes. E, para completar, a mesma demagogia de cavalgar as vagas do senso comum, que está escaldado com o Estado, que vê a investigação científica como um luxo em tempos de penúria. Ou seja, parece que não se quer fomentar a reflexão sobre ideias feitas. Aproveitam-se as ideias feitas, que são manipuladas a favor de objetivos ideológicos.

Seja como for, mesmo estas coisas atabalhoadas devem ser discutidas. Nesta breve nota, abordo apenas os aspetos mais institucionais, deixando para pessoas mais competentes outras vertentes da questão.

 

A POLÍTICA CIENTÍFICA NÃO É PRINCIPALMENTE UMA QUESTÃO DE EMPREGO

 

No contexto da política da última década, a investigação científica foi-se transformando numa cada vez mais importante “área de emprego” de pessoas academicamente qualificadas. Principalmente por duas razões.

A primeira tem sido o progressivo fechamento do recrutamento de docentes universitários, sob o pretexto da diminuição do número de estudantes (que não é inevitável, dado que continuamos com uma permilagem baixa de pessoas com graus universitários).

A segunda é resultado de políticas de economia e austeridade no ensino superior público, bem como do desinteresse do setor privado por trabalhadores altamente qualificados. Ambas as coisas combinadas têm feito da carreira de investigação a única possibilidade de emprego para os melhores estudantes saídos das universidades. E, com isto, a questão da gestão do fundo de bolsas de investigação transformou-se numa questão principalmente “de emprego”, o que não teria que ser, se existisse oferta pública ou privada de trabalho para especialistas avançados.

Se houvesse, portanto, outras vias para encontrar emprego, a questão da dimensão e da vocação da investigação científica desdramatizava-se bastante, vindo ao de cima não o desemprego intelectual ou a fuga de cérebros, mas as questões substanciais das políticas de investigação: adequação a objetivos, formas de institucionalização, dimensão, avaliação.

No que diz respeito à correção dos défices de política de recursos humanos do setor privado (que traduz a sua dificuldade em incorporar a ambição de qualidade e a inovação), o Ministério da Educação e Ciência não pode fazer muito mais do que esperar que fatores externos (potenciados pelas políticas de fomento económico) vão resolvendo o problema. É bom, sobretudo, que não se transfira para as universidades o encargo de se substituírem aos departamentos de investigação e de desenvolvimento das empresas, à sombra de slogans ambíguos do tipo “aproximar a universidade da vida”.

 

O MODELO “DUALISTA” DE GOVERNO DA CIÊNCIA E DO ENSINO

 

Quanto às responsabilidades e possibilidades que tocam ao Ministério da Educação, talvez a situação atual não possa compreender-se sem ter em conta o facto de, na última década, a política de investigação científica ter andado divorciada das universidades, em conformidade com a tese implícita de que se podia ter ciência nova sem ter universidades também novas.

Os governos tiveram, claramente, muito mais dificuldades em lidar com o meio universitário do que com a comunidade científica. E pensaram que podiam puxar por esta sem mexer nas instituições a que a maior parte dos cientistas pertenciam. A “ciência” corresponderia a tudo quanto é dinâmico no ensino superior; o “ensino, a tudo quanto era rotineiro. Quase que se pode dizer que, enquanto se investia na “ciência”, ao mesmo tempo se secava a universidade. À criação de postos para “cientistas” correspondia o quase total fechamento do recrutamento universitário. Os programas “de ensino” não eram financiados senão como decorrentes ou preparatórios da investigação, ou quando disfarçados de “programas de investigação”.

Esta redução da universidade que conta à ciência nem era realista, nem era defensável como política universitária, nem sequer era boa para a ciência, que ficava dependente de programas desenhados arbitrariamente, incertos e descontinuáveis. Como agora se está a ver. A universidade, como instituição que ensina, que investiga e que difunde socialmente o saber, foi reduzida às funções de difusão do saber e, nessas, descapitalizada. Hoje, o projeto de alguns de “voltar à universidade” já nem sequer é realizável porque esta foi transformada numa máquina de dar aulas. Como os melhores e mais dinâmicos procuraram apostar nos centros e projetos de investigação, só “na universidade” ficaram os outros, os mais rotineiros, menos capazes de competir, mais ressabiados pelas mudanças e mais nostálgicos do antigo poder catedrático. Se o mandarinato era mau, este novo mandarinato universitário é pior ainda, porque aqueles para os quais a faculdade, o ensino, é o primeiro mundo são, frequentemente, aqueles para quem a faculdade e o ensino são o único mundo. Nesse sentido, “voltar à universidade”, sem mais, dando aos catedráticos ainda mais poder e de novo algum dinheiro, poderá ser catastrófico.

 

A DERIVA AUTORITÁRIA DO GOVERNO ACADÉMICO

 

Não me custa a aceitar que não se pode fazer uma reforma sem alguma dose de voluntarismo e mesmo de dirigismo. A reforma da ciência que, sem dúvida, se levou a cabo em Portugal nas últimas duas décadas teve disso.

As linhas estratégicas do desenvolvimento da ciência eram pouco debatidas, muitas vezes legitimadas por documentos e diretivas internacionais com aquela conversa tecnocrática de cuja adequação muitos suspeitavam, ou por umas estatísticas e uns indicadores muito formalistas e quase sempre muito longe das realidades que concretamente se sentiam. Os que foram deixando a ciência para se dedicarem à política da ciência deleitavam-se tanto mais com essa formalização da vida académica quanto mais se afastavam desta.

Os critérios de avaliação da atividade científica eram autoritariamente impostos, ignorando as especificidades de cada ramo do saber. Neste aspeto, foi escandalosa a colonização das ciências sociais e humanas: os índices bibliométricos, por exemplo, foram sempre completamente inadequados, pois eram os mesmos das ciências “duras”; o mesmo se diga dos diversos estilos de comunicação pública dos resultados, dos critérios específicos de impacto e até das línguas de comunicação especializada.

Mas, sobretudo, a administração quotidiana era frequentemente dogmática, desrespeitosa e muito burocratizada. A volúpia dos formulários (sempre on line, mas com plataformas informáticas fracas), o detalhe e rigidez da programação, a obsessão do controlo, a irracionalidade de muitas normas contabilísticas, a duplicação frequente dos inquéritos e pedidos de relatórios, tudo acrescentou ao trabalho de investigação uma carga tremenda de burocracia. Desisti de dois projetos, classificados ambos de “excelente”, porque já não aguentava mais sacrificar à intendência o tempo que queria dedicar à investigação. Como todas as burocracias, esta também se alimentou a si mesma e se foi tornando cada vez mais autossuficiente, arrogante, pesada e impessoal.

Mas, sobretudo, este aparelho bastante centralizado, autoritário e pouco participado gerou um enorme desequilíbrio de poder. De um lado, uma administração da ciência, que acumulava em si todas as possibilidades de atribuir financiamento, não apenas à ciência, mas também ao mundo universitário naquilo que não fossem salários. Do outro lado, investigadores ou grupos de investigadores, isolados, privados de quaisquer foros orgânicos institucionalizados, competindo agonicamente uns com os outros, dependentes de financiamentos temporários, postos na ordem por controlos burocráticos disciplinadores, e escrutinados por critérios de avaliação nunca discutidos, alguns deles totalmente formais e pouco racionais.

E, de facto, a comunidade académica foi levada a comer e calar. Uns comendo mais, outros pouco comendo, segundo critérios de distribuição da comedoria que nunca foram objeto de discussão e reflexão públicas. Se houve, sem dúvida, mais dinheiro para a investigação, pagaram-se preços políticos e cívicos que têm que ser levados em conta. Tanto mais que hoje se torna claro de que modo este modelo autoritário de direção da ciência a coloca ­absolutamente à mercê de quaisquer políticos e de qualquer política, como os políticos atuais, incompetentes e arrogantes, que simulam ter grandes planos políticos apenas e apenas quando precisam de justificar… cortes.

Ou seja, se algum dirigismo pode ter sido necessário no arranque, ele deveria ter sido progressivamente atenuado, preparando um governo mais descentralizado e mais consensual. O que pressupunha formas de progressiva institucionalização e estabilização da comunidade científica. Na minha opinião, esta institucionalização tinha que ser feita no quadro da institucionalização da comunidade universitária, e não separada dela (e, subliminarmente, contra ela). Porque ciência e investigação são duas faces de uma mesma função social. A institucionalização da ciência só se estabiliza no quadro da institucionalização da academia (de ensino e de investigação), a que os investigadores pertencem.

Enquanto a ciência era assim disciplinada, a universidade era re-institucionalizada pelo RJIES (Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior, 2007) segundo um modelo neo-napoleónico, baseado no princípio de governo unipessoal e hierarquizado, assente na presunção (pouco refletida e menos discutida) de que a gestão participada era ineficiente. Aqui, como não havia a cenoura do financiamento para compensar o bastão, não pôde ser “come e cala-te”; foi “cala-te senão comes”.

Continuo a pensar que teria sido possível manter o governo da ciência ligado ao governo da universidade, evitando uma separação artificial – tanto do ponto de vista dos respetivos objetivos (já ensino-investigação são um binómio indissociável), como do ponto de vista dos agentes (o docente-investigador) – evitando que um e outro, separados, caíssem sob modelos autoritários de gestão, ineficientes e pouco sustentáveis.

Talvez isto até nem fosse tão difícil de organizar. Podia manter-se o financiamento por projetos. Só que estes seriam projetos “académicos”, envolvendo investigação e ensino, combinados de forma adequada a cada área ou a cada caso. O financiamento até podia continuar a vir de um fundo único, interuniversitário, para evitar a pulverização corporativa. Até podia haver órgãos centrais-comuns de regulação e de normação, participados pelo governo, por universidades e outras instituições de ensino e de investigação, e por “interesses comunitários”. Mas o peso dos pontos de vista periféricos (órgãos da escola ou do departamento) devia poder contrabalançar os pontos de vista do “centro”, porque é na periferia que as circunstâncias de cada caso, do ponto de vista das diferentes funções a desempenhar (ensino, investigação, extensão), se podem avaliar melhor; e também porque o governo das escolas era democrático e inclusivo (coisa que, depois do RJIES já é bastante mais problemática).

 

E AGORA?

 

A política de ciência que foi estabelecida há quase duas décadas (desde 1995, com a nomeação de Mariano Gago como ministro da ciência) produziu resultados assinaláveis em muitos aspetos. Hoje, ela pode, certamente, ser refletida e retificada, mas não pode ser modificada de um momento para o outro, e muito menos deve ser pura e simplesmente destruída. Apenas um exemplo: os seus defeitos de institucionalização, nomeadamente a separação entre governo da universidade e governo da ciência, não podem ser corrigidos agora, como sugere o atual ministro, colocando de novo a investigação sob a tutela dos órgãos de governo das escolas. Isso seria reconstituir, ainda em termos piores, o mandarinato absoluto, imperando sobre o ensino e também sobre a ciência. Não se pode, tão pouco, revolucionar o paradigma de avaliação, substituindo um critério compósito de medida, em que prevalece a opinião que a comunidade científica tem sobre o mérito, pela contagem das patentes registadas e pelo número dos artigos publicados, como, com um simplismo chocante, alguns responsáveis ministeriais têm defendido.

Mas alguma coisa podia ir sendo feita.

Uma delas era ir integrando os investigadores independentes em escolas, dando-lhes mais garantias de emprego institucionalizado contra a sua colaboração nas diferentes tarefas escolares. As escolas ganhariam docentes mais novos e mais dinâmicos, atenuar-se-iam as situações de penúria no ensino, com as consequentes situações degradantes e ilegais de ter pessoas a dar aulas de graça ou contra recibos verdes. Os docentes-investigadores ganhariam estudantes, com o potencial que isso representa de recrutar novos colaboradores. O ensino ganharia a qualidade de pessoas com vocação e empenhadas; e talvez mais alguns recursos e atenção. A ciência ganharia um contacto estimulante com as outras áreas da atividade universitária, o ensino e a extensão. Isto é a abertura à vida de que a ciência precisa.

Uma segunda era a admissão nos projetos de investigação, e consequente valorização na avaliação, de dimensões de ensino e de extensão universitária ou prestação de serviços à comunidade. Os projetos ganhariam realismo, porque a atividade da maioria dos investigadores tem estas várias dimensões. A aproximação entre ensino e investigação – que é um objetivo sempre invocado – seria promovida. As aulas poderiam ir-se transformando em extensões do laboratório, deixando de apenas transmitir saber feito, para também ir fazendo saber novo. Porque, se a ciência deve ser o primeiro investimento no futuro, isso tem que começar por ser realidade na atividade das escolas superiores, mesmo antes de o ser na atividade produtiva. Uma juventude de qualidade é uma juventude que estudou em escolas de qualidade. E escolas de qualidade são apenas aquelas em que se ensina a ser criativo, fomentando o contacto dos estudantes com a própria prática de criar saber. Daqui é que surgem as patentes…

Uma terceira mudança factível seria a de promover a intervenção dos conselhos científicos das escolas na avaliação dos projetos, por meio da elaboração de relatórios acerca do seu retorno para a atividade académica da escola, os quais seriam incorporados no dossiê de cada projeto. Quanto mais não fosse, isso obrigava a comunidade académica de cada escola a discutir, com um conhecimento próximo de causa e na perspetiva da escola, os custos e benefícios de cada projeto.

 

AS FUNÇÕES DO CENTRO

 

Mesmo com esta administração mais descentralizada, parece que deve haver uma função central no governo da ciência, e essa deve pertencer ao governo e à FCT, como organismo de administração central da ciência. À FCT caberá a coordenação do sistema, incluindo o estabelecimento de prioridades de financiamento. De facto, concebo mal uma política científica financiada pelo Estado que não estabeleça e privilegie temas ou áreas, correspondentes a prioridades, do ponto de vista da comunidade. Toda a gente tem o direito de investigar o que quiser. Mas o Estado não deve ser obrigado a pagar, com o dinheiro de todos, senão aquilo que pode ter um interesse público. Escolhas destas, em função de interesses gerais, fá-las o Estado todos os dias. Não vejo porque é que não as pode fazer no domínio da investigação.

E realmente tem-nas feito, embora meio dissimuladas. Parece que as Ciências Sociais e Humanas merecem agora apenas 15 % do financiamento público da ciência (antes, seriam 22 %). O primeiro-ministro disse, em novembro, que apenas seria subsidiada a investigação cientificamente mais rentável, enquanto o ministro da economia disse que não era sustentável o financiamento de investigação que se mantivesse longe das empresas. Só que tudo isto é anunciado assim, dogmaticamente, sem nenhuma discussão, justificação ou, mesmo, clarificação.

Também há os que dizem que o único critério é a “qualidade”. Claro que esta coisificação da qualidade é um disparate. Qualidade, em função de quê? Do progresso da ciência, do avanço do saber? Dando de barato que isso possa ser avaliado e comparado, parece pouco realista supor que um país pequeno e com escassos recursos se possa dar ao luxo de financiar assim, altruisticamente, sem perspetivar a investigação que paga em função de eixos correspondentes a carências estratégicas do país. Estamos tão escaldados com as decisões burocráticas, que já preferimos que nada seja hierarquizado ou ­proposto como prioritário. Porém, é quase inevitável que isso aconteça. A boa regra para hierarquizar é, de novo, a de uma hierarquização refletida, depois de uma discussão participada sobre opções claras e transparentes. Para além disso, a prudência aconselha que, dado o caráter problemático das decisões, estas sejam flexíveis, algo abertas, não concentrando todo o financiamento num único tema, mas apresentando um leque de alternativas, que, de facto, correspondam a diferentes áreas socialmente relevantes.

 

EM SUMA

 

Embora prejudicada por ter surgida amarrada a uma questão “de emprego” e também pela contínua tática do governo de apresentar desculpas estruturais (“as reformas”, “as políticas”) para decisões apenas conjunturais (“os cortes”), a discussão em curso sobre o modelo de financiamento público da investigação é necessária. Na última década, os cientistas viveram melhor do que costumavam, embora talvez não tão bem como fosse necessário. Porém, essa onda de maior facilidade fez-se sem grande reflexão coletiva, nem quanto aos modelos de governo da ciência, nem quanto ao modo de institucionalizar a ciência no seu contexto primordial (a universidade), nem sobre o necessário compromisso político (no sentido mais nobre, claro) e social da ciência. O ideal é que estas questões centrais possam ser discutidas serenamente. Para isso, é preciso que seja resolvido, de forma justa e satisfatória, o problema agora criado do desemprego adicional de cientistas. Depois, desligada a questão “da ciência” desta questão “do emprego”, há muitos ajustes que podem ser feitos, progressivamente. O que é fundamental é que não se repita nesta área o disparate das “destruições criadoras” e que as novas políticas sejam definidas não à margem e contra a comunidade universitária e científica, mas em diálogo franco e transparente com ela.

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