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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.210 Lisboa mar. 2014

 

Ciência: a excelência do empreendedorismo?

 

Ana Cordeiro Santos*

*CES, Universidade de Coimbra, colégio de S. Jerónimo, Largo D. Dinis, Apartado 3087 — 3000-995 Coimbra, Portugal. E-mail: anacsantos@ces.uc.pt

 

Está em curso uma alteração da política científica em Portugal que vai muito para lá da redução do financiamento público. Esta transformação está bem patente na visão de ciência recentemente apresentada assente nas ideias de excelência, empreendedorismo e mercadorização do conhecimento que importa sublinhar.1

Ninguém questionará que a ciência se deve pautar por critérios de excelência, isto é, que se deve orientar por padrões exigentes de produção e validação do conhecimento. Como ninguém porá em causa que a ciência deve desempenhar um papel social e económico relevante. No entanto, a anunciada redução do financiamento público introduz um entendimento muito particular de excelência e de qual deverá ser o seu papel na sociedade. Este associa, cada vez mais, a ideia de excelência à capacidade individual de captação de financiamento, e privilegia a ligação da investigação à criação de valor para as empresas, importando critérios do mundo empresarial para a organização da atividade científica.

Esta visão baseia-se no pressuposto de que os que acederão ao financiamento serão os melhores e mais capazes, considerando que estes serão selecionados por um virtuoso mecanismo resultante da escassez de recursos financeiros e da, consequente, concorrência de tipo mercantil. Fica claro que está aqui em causa uma estratégia de mercadorização da ciência, subordinando-a aos objetivos económicos e políticos dos patronos empresariais, passando a apoiar-se com fundos públicos uma investigação que serve os seus interesses específicos. A indústria farmacêutica oferece uma esclarecedora ilustração de como estes interesses podem estar fortemente desalinhados com uma noção de interesse público ou de bem comum, em que a viabilidade financeira do investimento se sobrepõe à produção de novo conhecimento, por exemplo, através do fabrico de novos e mais dispendiosos fármacos que não se repercutem, necessariamente, numa melhor capacidade de tratamento de determinadas patologias.2

Daqui decorre que o mimetismo mercantil que se procura imprimir na política de ciência, isto é, a importação para a área da ciência do tipo de práticas organizacionais e de valores que vigoram nos mercados, como a concorrência e a mensuração comercial dos seus resultados, põe em causa o que lhe é específico e o seu valor social. Embora as fronteiras não sejam sempre muito fáceis de traçar, esta discussão replica a tradicional dicotomia entre ciência aplicada e ciência fundamental, que opõe a investigação que se direciona mais diretamente para a resolução de problemas práticos (eventualmente com valor de mercado, mas não só) à investigação que se rege predominantemente por lógicas internas à própria atividade científica, ocupando-se com a geração de novo conhecimento sem ter como preocupação central a sua aplicação ou uso no curto-prazo. As duas são, no entanto, indissociáveis, dependendo a investigação aplicada da ciência fundamental que sustenta a produção de novo conhecimento e, assim, a capacidade de se encontrar soluções para novos problemas práticos.

As comunidades científicas, para que possam levar a cabo a sua missão, devem assim orientar-se por princípios consentâneos com a especificidade da sua atividade, dispondo de um elevado grau de autonomia para definir as agendas de investigação que, à luz do conhecimento vigente, mas também do contexto no qual se inserem, sejam científica e socialmente relevantes. Isto, por sua vez, requer a preservação do pluralismo na ciência, do ponto de vista epistemológico, garantindo diversidade teórica e metodológica, bem como do ponto de vista da composição social da própria comunidade científica, garantindo a participação dos interesses e pontos de vista dos vários grupos sociais. Com efeito, historiadoras/es, epistemólogas/os e outras/os estudiosas/os da ciência há muito identificaram que a própria composição sociológica das comunidades científicas não é neutra, influenciado tanto as agendas como os próprios resultados da investigação.3

Por fim, importa realçar que a autonomia da ciência não implica isolamento e alheamento da sociedade. Pelo contrário, a autonomia é condição necessária para a afirmação do poder social e político da ciência, sem o qual esta não será capaz de assumir cabalmente as suas responsabilidades públicas. A ciência tem reconhecidamente um papel único de promoção da capacidade individual e coletiva de reflexão sobre o bem comum, da qual depende a proposta de soluções eficazes e justas para os problemas sociais.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

GIGERENZER, G., GRAY, J.A.M. (2011), Better Doctors, Better Decisions: Envisioning Health Care 2020, Cambridge, MA, MIT Press.         [ Links ]

HARDING, S. (1991), Whose Science? Whose Knowledge?, Ithaca, NY, Cornell Univeristy Press.         [ Links ]

LONGINO, H. (2001), The Fate of Knowledge, Princeton, Princeton University Press.         [ Links ]

 

NOTAS

1 Consulte-se, a este propósito, a entrevista do presidente da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, Miguel Seabra, ao jornal Público (http://www.publico.pt/ciencia/noticia/queremos-que-a-ciencia-portuguesa-esteja-cada-vez-menos-dependente-do-orcamento-do-estado-1620191) e as declarações do primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho, sobre a política para a ciência. ( http://www.publico.pt/ciencia/noticia/passos-coelho-critica-anterior-politica-para-a-ciencia-1622381).

2 Consulte-se, por exemplo na área da saúde, a crítica de Gigerenzer e Gray (2011).

3 Veja-se, a este respeito, as posições das epistemólogas feministas Harding (1991) e Longino (2001).

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