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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.211 Lisboa jun. 2014

 

ARTIGOS

Do trauma à recuperação: os gestores de recursos humanos e o processo revolucionário

From trauma to retrieval: human resources managers and the revolutionary process

 

José Nuno Matos*

*ICS, Universidade de Lisboa, Av. Professor Aníbal de Bettencourt, 9 — 1600-189 Lisboa, Portugal. E-mail: mor_furtado@yahoo.com

 

RESUMO

O objetivo deste artigo é analisar a contestação e a resposta dos gestores de recursos humanos à crítica dos modelos de organização do trabalho preconizada pelo movimento operário ao longo de 1974 e 1975. Com base quer na documentação produzida por sindicatos e comissões de trabalhadores, quer no boletim Pessoal, editado pela Associação Portuguesa de Gestores, procuraremos demonstrar a relevância deste conflito na emergência de um novo discurso em torno do trabalhador e da empresa.

Palavras-chave: Movimento de maio; gestão de recursos humanos; trabalho; empresa.

 

ABSTRACT

The purpose of this article is to analyze the protest and the response of human resource managers to the critic on the models of work organization made by the labor movement throughout 1974 and 1975. Based on the documents produced by both unions and workers committees or on the newsletter published by the Portuguese Association of Managers, we will seek to demonstrate the relevance of this conflict in the emergence of a new discourse around the worker and the company.

Keywords: May movement; human resources management; work; company.

 

INTRODUÇÃO

 

Em abril de 1974, o número 554 da revista Indústria Portuguesa abre com o editorial “Corresponder à esperança”. Assinado pela direção da Associação Industrial Portuguesa (AIP), a peça declara o “completo e incondicional apoio à Junta de Salvação Nacional e ao Governo Provisório”, cujos princípios de ação “se ajustam ao que tem sido sempre propugnado por esta Coletividade”. Todavia, apenas três meses depois, a recém-criada Confederação da Indústria Portuguesa (CIP), resultado da coligação entre as associações industriais portuguesa e do norte, afirmará o seu ceticismo em relação à evolução dos acontecimentos.

O clima entre empresários, segundo a CIP, era o de uma constante pressão psicológica e política, inclusivamente exercida pelos meios de comunicação social e pelo próprio governo. A preocupação central decorre, contudo, das ocupações de propriedade pública e privada, as quais “geram um forte sentimento de insegurança que paralisa os empresários, mesmo os mais conscientes”, e da “desproporcionalidade entre as exigências dos trabalhadores e as reais possibilidades das empresas” (CIP, 1974, p. 625).

O período entre abril de 1974 e janeiro-março de 1975 será marcado pelo fim do bloqueamento das lutas, anteriormente imposto pelo Estado Novo. A conjuntura de protesto, já verificada antes do 25 de Abril, conduz a uma explosão reivindicativa, concretizada pela greve. As principais exigências, com base nos dados compilados1 por Marinús Pires de Lima, Vítor Matias Ferreira e Maria Lima dos Santos, prendem-se com a defesa da instituição de um salário mínimo (45,9%), do saneamento de dirigentes industriais (43,3%), de aumentos salariais (42%), do direito a férias (35%), de um horário máximo semanal (31%) e do subsídio de alimentação (17%). Com as medidas de cariz quantitativo, dada a premência das necessidades imediatas, articula-se a reivindicação de políticas igualitárias, geralmente relativas às condições remunerativas – a abolição do prémio, a redução do leque salarial entre trabalhadores, a revisão das categorias profissionais –, colocando assim em causa “um certo número de elementos característicos do processo de produção capitalista” (Lima, Ferreira, Santos, 1976, p. 49).

Nas unidades produtivas de maior dimensão (químicas e petróleo; metalúrgicas e metalomecânicas; material elétrico e transporte), o nível de combatividade atingido permitiu que o caderno de medidas ultrapassasse a base quantitativa, incluindo referências à “segurança e higiene” (10,2%) e “ritmos e normas” (7,7%). O estudo refere ainda a existência de reivindicações “de natureza ‘reformista’” (idem, p. 46), como a divisão dos lucros pelos trabalhadores, em particular nas indústrias químicas, do petróleo e do comércio, e a participação dos mesmos na gestão das empresas (mais nos serviços do que nas indústrias).2

Numa grande parte dos casos estudados, os aspetos relativos à gestão surgirão inseparáveis do fenómeno do saneamento. Se bem que as suas causas sejam diversas (suspeitas de ligação entre dirigentes e PIDE/DGS; circulação de pessoas entre altas esferas públicas e cargos administrativos nas empresas; ajustes de contas pessoais), quase metade dos processos de saneamento (32 em 68) indiciam o “controlo operário” sobre a empresa (Lima, Ferreira, Santos, 1976, p. 51), tendência que se intensificará a partir de janeiro-março de 1975. De facto, o derrubar das fronteiras que delimitavam o papel de cada categoria na empresa ocorreu desde inícios do Movimento de Maio, em particular através da ocupação dos locais de trabalho durante as greves (com recurso, inclusive, ao sequestro da direção).

A manifestação dos trabalhadores da Lisnave contra a lei da greve3, em setembro de 1974, acabou por traduzir mais do que um protesto dos operários de uma empresa contra uma iniciativa legislativa em particular. Ilegalizada pelo governo e alvo de críticas por parte do PCP e da Intersindical, a greve constituiu expressão de uma dinâmica mais alargada, encabeçada por comissões de trabalhadores de empresas como a LISNAVE, a TAP, a Messa, a Timex ou os CTT, cujo poder contestatário visava a espinha dorsal do próprio sistema, transitando da “mera luta reivindicativa à questão do poder” (idem, p. 42). As conjunturas, quer de crise económica, agravada pelo aumento do desemprego, quer de instabilidade política, visíveis na frustrada mobilização da direita a 28 de setembro de 1974 (a “maioria silenciosa”)4, ou na aproximação entre autoridades (como o COPCON) e os movimentos sociais, contribuirão para um alargamento do campo de oportunidades políticas favoráveis a um “poder operário” (Palacios, 2003).

O despertar dos antagonismos não irá poupar os gestores de recursos humanos (RH), setor então associado aos poderes dominantes na fábrica e na sociedade. Percorrendo os comunicados editados por comissões de trabalhadores (CT), por um lado, e a imprensa editada pela Associação Portuguesa de Técnicos e Gestores de Recursos Humanos (APG), este artigo compreende dois objetivos essenciais. Num primeiro momento, concentrando-se sobre os acontecimentos verificados ao longo de 1974 e 1975, analisar-se-á a posição das CT e do governo em relação quer à gestão das empresas, quer aos seus responsáveis. Em segundo lugar, já no período pós-revolucionário, procurar-se-á compreender o teor das representações do Movimento do Maio produzidas pelos gestores, em particular dos elementos considerados como eventuais contributos para um novo paradigma de organização empresarial.

 

O MOVIMENTO DE MAIO E AS EMPRESAS

 

Perdida a vantagem repressiva, indutora de um congelamento salarial de facto, os empresários vêem-se confrontados com dificuldades estruturais, situação que impede a introdução de novos métodos de produção e de organização; e conjunturais, geradas pelo aumento do preço das matérias-primas nos mercados mundiais e pelo fim da economia de guerra. A análise realizada pelo jornal Tempo Económico (TE, 1974a e 1974b), editado durante 1974 e 1975, consegue resumir a posição estática em que a grande parte das empresas permaneceu. Crítico da “relativa ingenuidade de reivindicações dos trabalhadores, consequências do espontaneísmo da sua ação, da deficiente organização do sistema sindical e do aproveitamento oportunista das suas ambições materiais por parte de movimentos políticos”, o jornal alude à “total impreparação dos órgãos de direção empresarial no que se refere às formas de tratamento destas questões”. Esta é sinal da “inexistência de órgãos internos à empresa através dos quais se possa resolver este tipo de conflito que é comum a todos os sistemas industriais capitalistas”. Face ao novo processo que se iniciava,

 

[…] a única resistência possível será uma adaptação às novas condições. Se essa adaptação não existir ou se não for suficientemente rápida, o choque de forças contraditórias provocará imediatamente uma situação de conflito aberto que anuncia o desaparecimento ou o enfraquecimento [TE, 1974a, p. 9].

 

Tais prognósticos acabaram por se tornar realidade, visível na fuga de capitais e dirigentes industriais para o estrangeiro, na descapitalização dos meios de produção e na oposição às reivindicações das comissões (Ferreira, 1997, p. 286). Para muitos trabalhadores, a manutenção dos empregos obrigou à ocupação e autogestão das empresas por parte de comissões de trabalhadores (CT), passando a ser responsáveis pela organização do trabalho. Noutros casos, a prática do “controlo operário” partiu da oposição aos despedimentos e a suspeitas de atos de “sabotagem económica” por parte das administrações (Noronha, 2011, p. 420). Os problemas decorrentes da compra de matéria-prima e da distribuição dos produtos num mercado que continuava a obedecer aos preceitos essenciais de uma economia capitalista5, e a consequente necessidade de coordenação dos esforços de luta, conduzirá, mais tarde, à formação da Interempresas, uma federação de CT que se assumia como “a expressão organizativa do movimento operário extrassindical” (idem, p. 344).6

Conscientes do terreno movediço em que a atividade empresarial se movia, os representantes de alguns dos principais grupos económicos, entre os quais António Champalimaud, António Carlos Champalimaud, José Manuel de Mello ou Manuel Ricardo Espírito Santo, reúnem-se, ainda em 1974, no Movimento Dinamizador Empresa e Sociedade (MDE/S). O seu programa, o qual incluía a apresentação de projetos e respetivos montantes de investimento, apostava no poder económico dos seus constituintes, capaz de concretizar a curto-prazo um conjunto de propostas factíveis e de, assim, “modificar a ‘imagem’ do ‘capitalismo’ português”7. O movimento enfatiza, contudo, a inserção do projeto num modelo de “exercício controlado da liberdade de iniciativa, complementado por ações governamentais” (MDE/S 1974, p. 11), ou seja, reconhecendo o papel interventivo do Estado na economia e sociedade. Elegendo como prioridade o combate à inflação e ao desemprego, o MDE/S defenderá o fomento da agricultura, construção civil, têxtil, vestuário, calçado, metalurgias e metalomecânicas. O cumprimento dessas metas dependeria da adaptação das pequenas e médias empresas (PME) às novas condições económicas, através da sua viabilização (controlo de custos, alterações de dimensão e apoio à gestão via sociedades de management) e da sua inserção em esquemas de subcontratação; do fomento do sistema financeiro; e, finalmente, de uma política de obras públicas e de habitação social.

Subjacente a estas medidas, estaria uma nova mentalidade empresarial, construída a partir das ruínas dos antigos negócios de vão de escada:

 

A Empresa tradicional está morta. Precisamos de uma Empresa Nova para uma Sociedade Nova. A Empresa tem de estar ao serviço do Homem – e não o Homem ao serviço da Empresa [MDE/S, 1974, p. 13].

 

Em alternativa ao paternalismo autoritário, o movimento advogava novas formas de organização interna, baseadas no princípio da humanização do trabalho:

 

A empresa não pode ser um local de trabalho penoso. A capacidade inovadora da empresa deve servir para defender os homens […]. O respeito pelos trabalhadores exige que estes tenham uma informação completa sobre a situação da empresa e os seus projetos. A participação de todos os trabalhadores na vida da empresa exige que à informação completa corresponda uma crítica permanente, transformando as tensões numa condição de progresso. As pessoas participam nas empresas através do debate dos seus problemas profissionais e não só através da eleição de representantes […]. As grandes empresas deverão procurar organizar-se em unidades produtivas que não ultrapassem uma dimensão compatível com as exigências do trabalho humano e criador, onde o espírito de grupo possa existir [MDE/S, 1974, p. 14].

 

Além da criação de uma equipa de investigação, a Empresa e Desenvolvimento Social (com o apoio de consultores da Mckinsey), o MDE/S propunha um modelo específico de organização empresarial. Este seria composto por um núcleo central responsável pela definição das suas metas e pela nomeação dos gestores dos núcleos sectoriais, constituídos, cada um, por grupos de trabalho autónomos coordenados entre si. A gestão seria complementada por um núcleo de apoio, onde as informações sobre a atividade dos núcleos e dos trabalhadores seriam reunidas (CCITGC8, 1977, p. 155). A vantagem do modelo residia na promoção do trabalho de equipa e da “realização pessoal e profissional dos colaboradores da EMPRESA” (idem, p. 159).

Não obstante o reconhecimento das tensões como “elementos dinamizadores fundamentais de uma sociedade democrática” (idem, p. 13), o MDE/S não deixava de alertar para os perigos representados pelo “ambiente anormal de reivindicações”, próprias não de uma economia como a portuguesa, mas de “países com um nível de desenvolvimento muito superior ao nosso” (idem, p. 25). Para Eugénio Rosa, economista próximo da Intersindical e do Ministério do Trabalho, as propostas do MDE/S representavam uma tentativa de reproduzir o poder dos monopólios sobre a economia nacional, não só por destacarem uma grande parte dos investimentos público e privado para setores dominados por grupos ligados ao movimento, mas por tentarem estender tal domínio às PME (por via de empresas de comercialização e sociedades de gestão) e à própria poupança nacional, através do fomento da Bolsa de Valores, de fundos de investimento, ou da atividade das seguradoras. Em suma, “um autêntico plano monopolista, orientado pelo critério do máximo lucro, que teria inevitavelmente como consequência, no caso de ser aceite e posto em execução, por um lado, um maior domínio da Economia portuguesa por meia dúzia de monopólios e, por outro, a eliminação acelerada de muitos milhares de pequenas e médias empresas” (Rosa, 1974, p. 151). A transição para o socialismo, meio e fim da resolução dos problemas da economia portuguesa, obrigava à execução de uma “nova política económica”, cumprindo-se assim o programa delineado pelo Movimento das Forças Armadas (MFA). Ao nível das PME, a adoção destes princípios deveria ultrapassar o trabalho então realizado pela Comissão de Apoio à Pequena e Média Empresa (mais tarde renomeada Instituto de Apoio à Pequena e Média Empresa – IAPMEI), com pouca margem de manobra financeira, passando por uma mais forte e eficaz intervenção do Estado. Esta, contudo, deveria evitar o financiamento de empresas “mal dimensionadas, mal organizadas, mal geridas”, com prejuízo tanto para trabalhadores, como para consumidores. Associadas em cooperativas de produção, as PME poderiam transformar-se “depois de devidamente organizadas e modernizadas, em secções especializadas daquelas sociedades” (Rosa, 1974, pp. 100-101), dotadas “de um sistema de gestão moderno dirigido por pessoas minimamente qualificadas” (idem, p. 102).

O desenrolar da situação política, marcada pelo fracasso das tentativas de golpe a 28 de setembro e a 11 de março e, sequencialmente, pela fuga e prisão de elementos afetos ao MDE/S, irá confirmar a hegemonia do campo “antimonopolista”, nomeadamente após a nacionalização de setores estratégicos da economia portuguesa.9 A impossibilidade de se separar a construção de uma sociedade socialista da “batalha de produção” nas terras e indústrias, conduzirá os IV e V Governos Provisórios, dirigidos por Vasco Gonçalves, a proporem formas de institucionalização do controlo operário, nomeadamente nas unidades produtivas a serem nacionalizadas (Patriarca, 1976; Noronha, 2011). Em agosto de 1975, o Conselho de ministros aprova o projeto de Decreto-lei sobre controlo de produção10, com o objetivo de “criar as condições para a crescente participação organizada dos trabalhadores na batalha da economia, contra a sabotagem, pela melhoria quantitativa e qualitativa da produção” (Patriarca, 1976, p. 792). Reconhecendo o importante papel desempenhado pelas CT, a lei propõe-se regular o exercício de tais competências. Além de sugerir uma nova composição das CT, passando a integrar no seu seio delegados sindicais (dada a maior afinidade entre Intersindical e o Governo Provisório de então) e, nos casos de inexistência de CT ou de processos de formação das mesmas, a sua substituição por comissões ou delegados sindicais, o projeto visa um enquadramento das suas responsabilidades. Estas devem ser ponderadas, em primeiro lugar, de acordo com a atividade da empresa, garantindo a não interferência “no exercício de funções de natureza administrativa cometidas aos órgãos competentes” e na “melhoria qualitativa e quantitativa da produção, designadamente nos campos de racionalização do sistema produtivo, formação e aperfeiçoamento profissional, simplificação administrativa e aumento de produtividade” (Patriarca, 1976, p. 792). Em segundo, deverão ser conformes às normas legais e aos programas de governo, seja ao nível da unidade, do setor, ou ainda do âmbito nacional, como a “de medidas de austeridade económica que o Governo adote, designadamente em matérias de poupança de recursos importados de energia e eliminação de formas de desperdício” (idem, p. 792).

O plano de institucionalização das práticas de controlo operário esteve longe de obter um consenso generalizado entre o “campo antimonopolista”, originando tensões no seio do próprio IV Governo Provisório entre a visão mais centrípeta de Carlos Carvalhas, secretário de Estado do Trabalho11, e a posição mais descentralizadora de João Martins Pereira, da Secretaria de Estado da Indústria e Tecnologia.12 O registo de um dissenso entre as próprias autoridades é elucidativo do ambiente vivido nas empresas, em particular naquelas onde o número de trabalhadores e a perspetiva de nacionalização parecem reforçar a posição das CT. A consolidação desta etapa do processo revolucionário, conforme se pode ler num documento publicado pela CT da Sociedade Central de Cervejas, implicava “a afirmação de um outro poder – o poder operário”, a impor “face a interesses que lhe são estranhos, quer sejam os dos capitalistas, quer os dos tecnocratas ou burocratas” (Patriarca, 1976, pp. 776-777). Em termos práticos, como elabora o documento, as relações de produção ao nível da empresa passariam a ser decididas e aplicadas pelas próprias CT, após deliberação em assembleia, e não por órgãos de Estado, sindicatos ou comissões de técnicos especializados, estes últimos classificados como agentes reprodutores de uma “divisão capitalista do trabalho na empresa”. A existir a necessidade de um saber técnico, este é remetido a “uma função de acompanhamento técnico diário da vida da empresa, e não poderes de decisão”. Tais preceitos, segundo o comunicado, pretendem lutar “contra os critérios burgueses da organização do trabalho na empresa”, em especial “a divisão entre o trabalho intelectual e o trabalho manual” (Patriarca, 1976, p. 778).

Enquanto princípio, e na visão do conselho de defesa dos trabalhadores da Lisnave, a divisão do trabalho não era necessariamente incompatível com a nacionalização socialista da indústria. A questão, sob o seu prisma de análise, não era tanto de forma, mas de conteúdo, ou seja, a existência de uma direção não teria de ser um problema, caso os seus membros fossem “homens dotados de espírito lúcido e de bom senso prático”, não mais orientados pelas lições emanadas dos cursos de gestão, mas sim por uma meritocracia revolucionária, com o conveniente “devotamento ao socialismo científico” (idem, p. 781).

Nos mesmos meses do “verão quente”, dirigentes sindicais do setor têxtil aprovam em encontro nacional o documento “Em frente pelo controlo operário”, definindo as nacionalizações como uma etapa e não como o fim do processo revolucionário. O cumprimento do alegado desígnio histórico da classe operária é atribuído ao domínio das rédeas do sistema produtivo, “considerando como contrarrevolucionárias as diminuições do ritmo de trabalho e as greves” (idem, p. 783). Identificando o sindicato como a estrutura mobilizadora do controlo operário, o esboço dos novos órgãos de empresa nega a participação de representantes do patronato e de seus “empregados superiores, por muito reconhecida que seja a sua competência” (idem, p. 783), a serem substituídos por técnicos afetos ao sindicato. O seu papel não seria reproduzir a “divisão burguesa do trabalho”, mas “ultrapassar os limites da especialização” (idem, p. 783). Se, até então, os operários haviam sido tratados como “‘máquinas’ sem cérebro para pensar na defesa dos seus interesses”, subjugados por capatazes e gestores, “ ‘sábios’ que escondem ociosamente os seus conhecimentos só porque estudaram nas escolas burguesas” (idem, pp. 789-790), doravante teriam o poder de “controlar os ritmos de trabalho e inclusivamente substituir a hierarquia estabelecida na organização da produção e na transformação dos objetivos desta” (idem, p. 789). O documento termina com um alerta para as “falsas soluções”, criticando a autogestão, cúmplice inocente da descapitalização capitalista em imóveis e gastos luxuosos, e a cogestão, meio pelo qual “os capitalistas pretendem fazer uma conciliação de classes” (idem, p. 791).

Nas suas diversas variantes, numa amálgama de versões muitas vezes contraditórias entre si, o controlo operário nas empresas originou uma inversão das relações de poder no seu seio e, com ela, uma explosão discursiva. Os comunicados de CT, as propostas de decretos ou as fervorosas (mesmo caóticas) assembleias revelaram, com todas as suas incoerências e inconsequências, uma “abertura à discutibilidade” (Trindade, 2004, p. 24), subversiva da relação entre o operário e o capataz, o gestor, o patrão e o próprio trabalho.

 

OS GESTORES DE RECURSOS HUMANOS E O PROCESSO REVOLUCIONÁRIO

 

A contestação dos modelos de gestão capitalista da empresa, dos mais tradicionais aos mais humanizantes, terá óbvias repercussões sobre a condição dos profissionais responsáveis por essa área. Ao percorrermos os primeiros números do boletim Pessoal, publicado pela APG13, bem como as entrevistas com os seus precursores, e as edições comemorativas (APG, Venda, 2004), deparamo-nos com um ressentimento e sentimento de injustiça em relação ao processo revolucionário, derivado de uma atribuição de culpas que, segundo os próprios, haviam sido responsabilidade de outros que não eles.

Fundada em 1963, a então Associação Portuguesa dos Diretores e Chefes de Pessoal nasce da iniciativa de quadros de grupos como a CUF do Barreiro (Raúl Caldeira), a SACOR (Henrique Santa Clara Gomes), a SONAP (Pedro Cabo Fernandez), a Central de Cervejas (Manuela Mota e Cláudio Teixeira), a Lisnave (Manuel Bidarra) ou a Tabaqueira (Manuel Tavares da Silva), pretendendo responder, segundo o então presidente Raúl Caldeira, à “falta de ligação entre os profissionais da área do pessoal” (apud APG, Venda, 2004, p. 10). Sem sede, o grupo reunia ou nas empresas em que os seus dirigentes trabalhavam, ou no Instituto Nacional de Investigação Industrial, organismo público classificado como sendo “um bocado talvez contra a coisa dominante…” (idem, p. 19)14. Entre o trabalho desenvolvido pela associação, podemos nomear a realização de vários encontros nacionais, dedicados a temas como a função pessoal ou a participação na empresa, e, a partir de 1975, a edição da Pessoal. Inicialmente sob a forma de boletim, a publicação reúne traduções de revistas estrangeiras, artigos da autoria dos seus membros, e os textos das intervenções nos vários colóquios organizados pela associação.

Além de procurar um maior contacto entre os gestores de recursos humanos, o principal objetivo da associação reside na divulgação dos princípios da “humanização da empresa”, cuja aplicação à altura se encontrava limitada aos grupos de maior dimensão. Referimo-nos não apenas à defesa de uma formação intelectual e moral, dentro e fora da fábrica, mas igualmente à introdução de contrapartidas materiais, passíveis de gerar uma maior produtividade. A prossecução destas metas estaria, contudo, dependente da existência de um novo tipo de autoridade na empresa, cujo poder assentasse mais no conhecimento técnico e no empreendimento próprio – de uma “auto-ajuda”, como sublinha Fernando Ampudia de Haro (2011) – do que na capacidade de se fazer obedecer. Os gestores de recursos humanos constituíram, justamente, uma parte do escol responsável pela garantia de tal empreendimento.

Embora a associação não tenha sofrido represálias políticas da parte do Estado Novo, a narrativa dos acontecimentos desenvolvida pelos “homens de pessoal” destaca o conflito de ideias com o antigo regime e a vigilância exercida pela polícia política15:

 

Receio da associação não tinham, porque nós éramos pessoas conhecidas, alguns contra o regime vigente; toda a gente sabia que muitos não éramos ativistas, não éramos ativistas partidários nem nada que se parecesse…Mas éramos de certa forma pessoas que assumíamos o nosso papel, com responsabilidade, de cabeça levantada, e portanto aquela gente não gostava muito de nós na altura […]. Fizemos um encontro, os primórdios dos encontros de hoje, uma vintena de pessoas, uma sala, apresentava-se meia dúzia de temas e por aí adiante. Fizemos um escaparate com os livros de cada um, para divulgar os livros profissionais que havia, os que cada um tinha, mas a certa altura começámos a ver que havia lá um parceiro a meter o nariz nos livros. Quem é? Quem não é? Viemos a saber que era um inspetor da PIDE [apud APG, Venda, 2004, p. 20]16.

 

Algumas das suas principais figuras, em particular Henrique Santa Clara Gomes (eleito presidente da associação em 1969) e Manuel Bidarra17, foram membros da SEDES – Associação para o Desenvolvimento Económico e Social, um grupo com raízes democratas cristãs, cujos dirigentes e sócios constituirão, futuramente, um “excelente alfobre para os mais cotados partidos democráticos” (Bidarra, 1989, p. 14).

A eclosão do Movimento de Maio, após o 25 de Abril, e o saneamento das empresas não pouparão, contudo, os gestores, conforme o relato de Henrique Santa Clara Gomes,

 

No 25 de Abril, com a chamada revolução democrática, parece que o odioso das empresas, ou seja, quem foi colocado em xeque, questionado, foram os diretores de pessoal, quando não eram mais do que mandatados, procuravam fazer o melhor em termos de respeito humano, consideração, respeito pelo trabalho, valorização das funções de cada um, racionalização do trabalho. Mas o 25 de Abril tinha de encontrar forçosamente alguém, e foram os diretores e chefes de pessoal [apud APG, Venda, 2004, p. 40].

 

As demissões, perseguições e até prisões que foram realizadas eram, segundo o gestor Álvaro Barreto, fruto de assembleias “na maioria das vezes minoritárias e orientadas por demagogos oportunistas, especialistas na criação de estados emocionais”, ao invés “de um processo cuidadosamente levado, com regras de atuação bem definidas e dando garantias integrais de julgamento isento e imparcial” (Barreto, 1976, p. 59). Os excessos cometidos, expressão para sempre associada ao processo revolucionário (Trindade, 2004), parecem, contudo, ter raízes mais profundas (e menos psicológicas) que o mero estado emocional dos seus agentes.

A descrição realizada por Manuel Alarcão e Silva, membro da APG, apresenta os gestores de RH como constituindo um corpo maioritariamente recrutado entre diplomados “quase sempre pertencentes à considerada média e alta burguesia, pois eram também essas classes que mais alimentavam as nossas universidades” (Alarcão e Silva, 1976, p. 89). Às diferenças de classe entre gestores e operários associava-se a posse de “vários privilégios desde o estatuto de remuneração diferente até aos sinais exteriores de prestígio e uma certa liberdade com o patrão, perante o qual, por sua vez, por virtude das suas próprias limitações e pela referida falta de solidariedade de classe, se encontrava bastante desprotegido e, logo, dependente” (idem, p. 90). Nesta lógica, segundo o historiador João Bernardo (1991), os gestores poderão ser encarados como uma classe distinta dos proprietários, mas também dos próprios trabalhadores. Algo identificado não só pelo nível salarial, bastante superior ao auferido pelos operários, mas também pelo acesso a um conjunto de regalias, prémios e títulos de propriedade, muitas vezes já depois da reforma. Um dado que leva o autor a concluir que “os gestores, tal como os burgueses, embora por formas jurídicas diferentes, apropriam-se da mais-valia extorquida” (Bernardo, 2001, p. 207). Compondo uma classe com interesses específicos, a sua condição não impede a aproximação ao patronato, em particular ao seu escol mais esclarecido e com maior poder económico, ao contrário do verificado com outros grupos socioprofissionais, como os bancários18 ou os militares. Neste caso, o reconhecimento do papel desempenhado na deposição do antigo regime e a própria origem de classe (os “soldados, filhos do povo”)19 levam a que os interesses específicos da corporação, construídos a partir de “mecanismos que asseguram o isolamento coletivo em relação à população civil” (Palacios, 2003, p. 73), se esbatam no contacto com populações que, como eles, haviam sido vítimas da ditadura20. Nasce assim uma nova identidade, corporificada em cabelos compridos, barbas por fazer e, essencialmente, numa “solidariedade com os mobilizados proactivos e a sua subordinação da disciplina ao sentido das ordens” (idem, p. 74).

Desorganizados e colocados em posições que lhes conferiam um estatuto social elevado, perigosamente próximos dos seus superiores, os gestores não se revelaram capazes de reformular as bases da sua identidade – à semelhança do que foi conseguido pelos militares –, o que implicaria a concomitante alteração dos seus poderes e funções ao nível da organização do trabalho, reduzindo-se a sua competência, quando muito, à mera consulta, nunca ao exercício de uma posição subordinante sobre o operário. Neste sentido, conforme sugerido pelos próprios comunicados das CT anteriormente analisados, mesmo aqueles considerados insuspeitos de filiações reacionárias viram a sua autoridade ser questionada por uma dinâmica que afrontava a própria ideia de uma gestão profissionalizada, adjudicada a um conjunto de técnicos, então remetidos a uma desvalorização tanto simbólica, quanto material. Num contexto em que a complexidade social se definia por “polos simples e abstratos, como ‘fascista’ ou ‘democrata’;” (Palacios, 2003, p. 65), os gestores foram integradas na primeira, aquela, precisamente, cujo poder da palavra havia perdido qualquer legitimidade.

 

O ENSAIO DE RECUPERAÇÃO

 

Face a essa perda, procuram adaptar-se à realidade. A 22, 23 e 27 de novembro de 1974, a APG organiza o seu VII Encontro Nacional subordinado ao tema “Reflexões sobre as lutas de classes e a gestão do pessoal”. Embora os convites à participação de representantes da Intersindical e de diplomatas da URSS, da Roménia, da Checoslováquia e da Hungria, tenham sido goradas, a associação contou com a presença da professora Stanislava Borkoswka, da Universidade de Lodz (Polónia), e do sindicalista italiano Mario Uria (APG, 2004, p. 41). Meses mais tarde, Dragoljub Kavran, filósofo e membro da Associação de Cientistas de Administração Pública Jugoslava, realizaria dois colóquios, em Lisboa e Coimbra, sobre a experiência da autogestão no seu país. Publicada no número 17 do boletim Pessoal, já em 1976, a sua intervenção destacará a relevância dos gestores neste processo. Embora fossem os trabalhadores a tomar as decisões básicas relativas ao funcionamento das fábricas, por meio de “um referendo por exemplo, ou através de um conselho de trabalhadores, que é eleito de dois em dois anos” (Kavran, 1976, p. 21), tais poderes não dispensavam a existência de uma divisão de trabalho. Nela, o gestor

 

[…] é o ponto principal de um grupo humano. A sua autoridade já não se baseia na posição que ocupa numa estrutura hierárquica ou numa corrente de comando, ele é eleito e controlado por aqueles que conduz. A sua posição baseia-se mais nas realizações do que no status atribuído [Kavran, 1976, p. 24].

 

Uma conceção que nasce do contributo “não só de pensadores jugoslavos, mas também de pensadores de outros países e de outras épocas históricas” (Kavran, 1976, p. 33), nomeadamente dos Estados Unidos.

Um ano depois, em 1975, o VIII Encontro Nacional da APG seria organizado em torno do tema “As relações de trabalho numa sociedade em evolução para o socialismo”. A urgência na reposição das suas competências leva a que, anos depois, artigos como “A empresa na China”, de A. Castilho Soares, presidente da assembleia-geral da APG entre 1975 e 1978, possam ainda ser lidos nos números do boletim Pessoal. Esta peça, em particular, analisa os principais contributos e vicissitudes da revolução cultural, acontecimento que determinou um novo tipo de diretório fabril, composto por operários, membros da milícia e quadros, pelo menos os “que souberam admitir os seus erros” (Soares, 1977, p. 11), mantendo, a título de exemplo, a atribuição de prémios de produção. No fundo, argumenta-se que a gestão pertence a um domínio que ultrapassa a natureza do regime: seja ele capitalista, seja ele socialista, terá sempre que contar com o saber de técnicos e especialistas.

O fim da “feira de ilusões” (Fernandes, 1989, p. 16) de 1974 e 1975, como viria a defender mais tarde o deputado Furtado Fernandes21 (PSD/ASDI) numa sessão da APG dedicada à evolução da GRH em Portugal, dará lugar ao restabelecimento das funções então perdidas, isto apesar da existência de “quadros seriamente traumatizados […] a quem se tem de dar a possibilidade de recuperação” (Ribeiro, 1978, p. 16). A afirmação é de Manuel Van Hoff Ribeiro, futuro presidente da APG (1980-1981) e chefe de gabinete de Manuel Tito de Morais, secretário de Estado do Emprego do VI Governo Provisório, uma nomeação que, à altura, refletia a importância das posições da APG sobre matérias laborais (Venda, 2003, p. 56)22 e assinalava ventos a favor da normalização, confirmados pelo golpe militar de 25 de novembro de 1975.

No encerramento do IX Encontro Nacional da APG, um ano depois, o discurso de encerramento do seu presidente René Cordeiro concentrar-se-á em torno da importância do fator “conflito”. Ao invés das abordagens tradicionais, que viam na repressão a solução para o problema, o gestor começa por o interpretar como “um ingrediente necessário em todas as formas de organização social” (Cordeiro, 1976, p.155). Aceitando-se a sua existência, há que tratá-lo de forma adequada, cabendo aos profissionais da GRH “a responsabilidade de compreenderem como podem eles [os conflitos] ser reconhecidos nas suas aparências, reduzidos, alterados ou transformados em fatores positivos” (Cordeiro, 1976, p. 157). A ideia subjacente é a de uma potencialidade inerente ao conflito, a realizar mediante o estudo da miríade de causas que o provocam e da resposta a dar a cada uma delas.

Ao longo do colóquio serão várias as intervenções a perfilhar este tipo de metodologia, à luz da qual as lutas sociais de 1974 e 1975 irão adquirir todo um novo sentido. A sua origem nas empresas, não em setores de atividade económica, por comissões de trabalhadores, e não por sindicatos, revela, segundo o jurista Bernardo Xavier, a “riqueza extraordinária da intervenção dos trabalhadores nas empresas” (Xavier, 1976, p. 19), expressa por várias vias, entre as quais o saneamento:

 

A verdade é que a própria pessoa, o empresário […] passou a depender ainda da aceitação, quando não da confiança, da comunidade dos trabalhadores. Eu não vou discutir se estão bem ou mal, ou se o caminho pelo qual se avançou neste sentido foi certo ou errado […]. Basta consultar o Diário do Governo para se ver que, nas múltiplas intervenções do Estado nas empresas, se diz que se nomeiam os senhores A, B e C porque merecem a confiança dos trabalhadores, porque foram eleitos pelas comissões de trabalhadores, por aí fora. Os exemplos são muitos e poderíamos multiplicá-los. O que aconteceu ao escalão superior portanto na própria entidade gestora da empresa passa, por maioria de razão, a acontecer nos próprios quadros da empresa. Todo o enormíssimo movimento a que se chamou saneamento, corresponde ainda a essa realidade, a uma influência direta da comunidade de trabalho em relação aos quadros da empresa. Continuo a dizer que não faço aqui uma exposição crítica deste tipo de problemas, apenas aponto factos [Xavier, 1976, p. 20].

 

Independentemente do seu grau mais ou menos colaborativo, a comissão de trabalhadores “é um órgão da empresa para a empresa” (idem, p. 19), cuja dinâmica se desenvolverá de acordo com as circunstâncias ao redor. Logo, o abandono de uma “imagem caduca da empresa” e a compreensão da crítica que subjaz a reivindicação laboral, que já não reside “na privação da parte do valor que se cria (teoria marxista da mais-valia) mas sobretudo na privação que os trabalhadores têm de influenciar os seus próprios atos” (idem, p. 21), terá consequências distintas das verificadas no período pós-25 de Abril.

A fratura entre trabalhadores, de um lado, e quadros, de outro, não se deveu a uma barreira técnica, mas sim ao “facto de parecerem estar em grupos diferentes defendendo interesses diferentes” (Aníbal e Teixeira, 1976, p. 144). Uma divisão que, na visão de Cláudio Teixeira e Anselmo Aníbal (deputado do PCP entre 1980 e 1987 e dirigente da APG), poderia vir a ser atenuada pelo alargamento do acesso escolar às classes menos privilegiadas. A menor desigualdade permitiria que quadros e trabalhadores se viessem a identificar como colegas, unidos por objetivos comuns. De um lado, e ao contrário de “alguns grupos de intenso fervor e instabilidade revolucionária”, os operários deveriam compreender que “assim como não se destrói o capital fixo-material de um País, não se deve também destruir o investimento efetuado em capital humano nas áreas cultural e técnica” (Aníbal e Teixeira, 1976, p. 145). De outro, a posse de conhecimento não poderia justificar a concentração de poderes, identificada na atitude dos que procuraram “no dia-a-dia e hora a hora, desacreditar, não acompanhando o empenhamento dos outros trabalhadores” (Aníbal e Teixeira, 1976, p. 146). Uma alternativa, portanto, aos extremismos revolucionário e tecnocrata que, ao longo do processo revolucionário, foi regra entre as “camadas mais esclarecidas do operariado e dos trabalhadores em geral”, capazes de identificar no quadro a “mesma situação de assalariado, o mesmo interesse global numa política antimonopolista” (Aníbal e Teixeira, 1976, p. 147).

Embora a proximidade cronológica ainda justificasse o frequente uso do termo “socialismo”, então indicador de todo o rumo a empreender, a sua abrangência acabou por lhe proporcionar os mais diversos sentidos, como se pode observar no seguinte excerto:

 

Se queremos criar um socialismo […] teremos de conquistar o povo português que, como se sabe, já tem tido contactos diretos com formas de organização da sociedade baseadas em polos de atração diferentes. Não é com chaimites, nem com artigos na Constituição que se irá construir uma sociedade socialista em Portugal […]. Só um sistema que corresponde aos interesses políticos da maioria terá viabilidade. No plano da sua eficácia e não no da sua existência. Evidentemente [Antunes, 1977, p. 5].

 

A ênfase do “plano da eficácia” resume, de certa forma, o espírito do IX Encontro Nacional da APG. Num contexto em que se falava de “socialismo” ao mesmo tempo em que se pensava na adesão à CEE, a questão social por excelência não parecia mais localizar-se no conflito geopolítico entre superpotências, mas em problemas internos a ambas as realidades, aqui apontados por Castilho Soares, presidente da assembleia-geral da associação:

 

A desafetação dos jovens pelo trabalho manual é já um dos mais graves problemas atuais e a causa de um conflito social dos mais graves. Acentua-se o mal-estar dos quadros, que se lançam em plena contestação social […]. Nas sociedades modernas engrossa um novo sub-proletariado, constituído por emigrantes, mulheres sem qualificação profissional e trabalhadores sem esperança. O trabalho é contestado […]. No trabalho o homem quer fazer prova de iniciativa, tomar responsabilidades, manifestar-se como pessoa que age, ser informado, sentir-se em segurança. Mas nas sociedades modernas, onde as necessidades de todos estão esgotadas, os desejos tornam-se cada vez mais sofisticados, subtis, imateriais, tão difíceis de exprimir, como de satisfazer [Soares, 1976, p. 4].

 

CONCLUSÃO

 

Em 1975, a Comissão Trilateral, um think tank fundado pela família Rockefeller, publica o relatório A Crise da Democracia, da autoria de Michel Crozier (Europa), Samuel P. Huntington (EUA) e Joji Watanuki (Japão). Centrado na evolução política, económica e social do Ocidente desde o final da Segunda Guerra Mundial, o documento procura analisar as causas da “desintegração da ordem civil, do colapso da disciplina, da debilidade dos líderes e da alienação dos cidadãos” (Huntington, Crozier, Watanuki 1975, p. 2), uma referência aos movimentos sociais que, desde finais da década de 60, haviam originado “uma sobrecarga reivindicativa sobre o governo, a qual excedeu a sua capacidade de resposta” (idem, p. 8).

No capítulo dedicado à Europa, Crozier (1975) responsabiliza o modelo burocrático pela criação das oportunidades de desenvolvimento dessas tendências. De forma indireta e não inusitada, foi a distanciação entre representantes (seja este o Estado ou o sindicato) e representados que levou os últimos a enveredar por novas formas de associação política (organizações estudantis, a título de exemplo). Neste processo, o autor destaca o papel desempenhado por “intelectuais, pretensos intelectuais e para-intelectuais” (Crozier, 1975, p. 31) que, da literatura aos meios de comunicação social, têm espalhado uma cultura adversária aos valores então dominantes. Os desafios, contudo, não surgem apenas deste segmento. Nas empresas, “a força conservadora, eventualmente paralisante” da classe gestora tem contribuído para “uma relutância generalizada, entre a população mais nova, em aceitar os trabalhos humilhantes e mal pagos dos colarinhos azuis” (idem, p. 29). Tal crítica, por mais radical que fosse a sua manifestação, não deixava de expor as contradições e disfunções das formas tradicionais de dominação. Ao fazê-lo, substancia a procura por “modelos que produzem um maior controlo social com menor pressão coerciva” (idem, p. 55), os quais, em termos práticos, devem passar pela:

 

[…] modernização do processo educativo, pela improvisação do sistema de decisão ao nível das comunidades e regiões, pela radical alteração das condições de trabalho, pela recuperação do estatuto do trabalho manual, pelo desenvolvimento de programas de rendimento garantido, pela responsabilização das burocracias públicas perante os cidadãos e das burocracias privadas perante os consumidores [Crozier, 1975, p. 55].

 

Dez anos depois, Daniel Cohn-Bendit, proclamado líder das revoltas estudantis de 68, publica uma série de entrevistas a figuras emblemáticas do Movimento de Maio. Um dos eleitos é Jerry Rubin, um dos principais vultos do movimento contra a guerra do Vietname e, à data, organizador de eventos e mentor do movimento Yuppie, “‘Young’, ‘Urban’ e ‘Professionnal’”;. Jovens porque continuam sãos, urbanos porque se apoderaram das grandes cidades e ocupam os postos importantes, e profissionais porque são ativos e competentes” (Rubin e Cohn-Bendit, 1988, p. 39). Questionado sobre a sua atual atividade política, Rubin responde da seguinte forma:

 

Não, já não luto contra o Estado. Já não vale a pena, já não é o bom combate. É preciso que, doravante, eu me torne no Estado. Não eu pessoalmente, é evidente. Nós todos. Todas as pessoas da geração dos anos 60, que nos tornámos as massas dos anos 80. A melhor, a única maneira de, hoje em dia, combater o Estado, é substituí-lo. E nós somos bastante numerosos para o fazer. Nós, os banqueiros – os dentistas, os médicos, os patrões –, somos o Estado. […]. Nós precisamos de homens como o Abbie23, mas em que o seu estilo de vida, as suas preocupações, têm a ver com as classes médias? Com todos aqueles que têm uma família, […] que vivem, na América, e são felizes assim? E os operários? E os pobres? Vai hoje falar com os pobres, e o que é que eles querem? Triunfar! Eles querem o êxito, não a revolução. Eles nem sequer pensam na revolução! O que querem é triunfar como os outros. Cabe-nos a nós inventar uma filosofia do êxito que integre a democracia e o idealismo [Rubin e Cohn-Bendit, pp. 38-39].

 

Embora não o afirme taxativamente, Rubin é ele próprio o exemplo de uma renovação ideológica que recupera alguns dos princípios e metas da esquerda contestatária dos anos 60.

Este novo olhar, exemplificado pelas análises realizados pela APG, corresponderá a uma subversão dos subversivos, ou, como afirma Paolo Virno, de uma “revolução ao contrário” (Virno, 2006, p. 641). Refletindo a partir do caso italiano, o filósofo defende que o segredo do sucesso desta contra-revolução foi “ter transformado em requisitos profissionais, em ingredientes da produção de mais-valia e fermento do novo ciclo de desenvolvimento capitalista, as inclinações coletivas que, no ‘Movimento de 77’, se apresentavam, pelo contrário, como antagonismo intransigente” (Virno, 2006, p. 643). O problema do trabalhador, conforme a análise do gestor João Botequilha, não residia na “alegria espontânea de ser livre” ou na “possibilidade de se reunir e de se expressar sem inibições”, mas sim no ter-se deixado arrastar “para utopias e entusiasmos quiméricos” (Botequilha, 1977, p. 60). Desta forma, havia, por um lado, que aproveitar essa alegria e entusiasmo, essa riqueza extraordinária expressa por Bernardo Xavier, e canalizá-la para a empresa; e, por outro, que desenvolver um esforço de aproveitamento do conflito, encarando-o como um meio de diagnóstico das relações de trabalho e, nessa senda, de eventual reformulação das suas bases.

Imbuído de um novo espírito, evocando a expressão proposta por Boltanski e Chiapello, o capitalismo desencadeia “uma rutura com os anteriores modelos de controlo” por via da “assimilação das reivindicações de autonomia e responsabilidade anteriormente encaradas como subversivas” (Boltanski e Chiapello, 2007, p. 191): observa os seus críticos, estuda as suas propostas e, no final, aproveita as que constituirão o motor do novo regime de acumulação.

 

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Recebido a 14-11-2013. Aceite para publicação a 27-03-2014

 

NOTAS

1 Referentes aos conflitos de 158 empresas noticiados na imprensa diária.

2 Relacionadas com o controlo sobre a gestão, os autores mencionam ainda a reivindicação da abolição de testes e concursos; a suspensão de castigos; a eleição dos chefes por parte dos trabalhadores; ou a reestruturação interna da empresa (Lima, Ferreira, Santos, 1976, p. 54).

3  Devido ao seu cariz limitado, não contemplando, por exemplo, “greves por solidariedade ou por motivos políticos e permitindo à parte patronal o recurso ao lock-out em caso de prolongamento da paralisação dos trabalhos” (Noronha, 2011, p. 243).

4  Organizada por forças afetas ao marechal Spínola, a manifestação da “maioria silenciosa” visava a afirmação do poder da presidência da República e dos seus intentos normalizadores. Acusada de constituir parte de um plano golpista, o acesso à capital será impedido pela esquerda e extrema-esquerda. Na sequência dos acontecimentos, Spínola demitir-se-á.

5 Ao ponto de obrigar um grande número de operários “a trabalhar muito mais do que antes, inclusive trabalhando sábados e domingos” (Ferreira, 1997, p. 292).

6 Fora da órbita do PCP e da Intersindical e com ligações a grupos de extrema-esquerda, a Interempresas contribuirá para uma radicalização de oposições, ilustrada pela manifestação contra os despedimentos e contra a presença de tropas da NATO em Portugal: “Em 7 de fevereiro de 1975, data marcada para a chegada das forças da NATO em Lisboa, o Governo proibiu todas as manifestações, explicando que a visita era puramente de rotina e tinha sido organizada um ano antes. A Interempresas não ficou convencida […] ‘Não podemos separar despedimentos e imperialismo. A questão dos despedimentos não é uma questão de má gestão. É o resultado directo dum sistema – o sistema capitalista – apoiado pelo imperialismo. Não podemos permitir que a NATO, tropa de choque do imperialismo, desembarque tranquilamente no nosso solo’ […]. No exterior do Ministério do Trabalho (abandonado pelo seu responsável, do PCP), um trabalhador da Efacec-Inel leu um manifesto. Chamava à Intersindical organização para a colaboração de classes e dizia: ‘A tarefa da classe operária não é negociar com a classe dirigente, mas destruí-la’. Aplausos dos presentes. Esse trabalhador fez então uma descrição minuciosa do que estava a acontecer: ‘As reivindicações nas fábricas estão a aumentar e os trabalhadores estão a começar a relegar as suas organizações sindicais para um segundo plano. As comissões de trabalhadores criaram-se como meio escolhido pelos trabalhadores para avançarem na sua luta de classe. Organizações reformistas e revisionistas estão a tentar apoderar-se dos sindicatos e enfraquecer as comissões’” (Mailer, 1978, pp. 93-94).

7 A grandeza do seu objetivo não podia depender da CIP, “sendo difícil imaginar como uma tão grande organização irá ter a possibilidade de promover conceitos progressivos nas relações industriais” (CCITGC, 1977, p. 28). Nos documentos analisados pela comissão coordenadora das intercomissões dos trabalhadores do grupo CUF (CCITCG), refere-se, inclusivamente, a possibilidade de se promover um “conflito aparente entre a posição da EDS (Empresa e Desenvolvimento Social) e a posição de uma fração da CIP, de modo a reforçar a sua credibilidade” (CCITCG, 1977, p. 30).

8 Comissão coordenadora das intercomissões dos trabalhadores do grupo CUF.

9 De acordo com um inquérito realizado pelo INII para o período de 1974 e 1975, das 77 empresas que responderam ao mesmo, 50% haviam-se deparado com a formação de comissões de trabalhadores entre abril de 1974 e março de 1975. A outra metade, durante março e novembro de 1975. Algo que “espelha bem que a movimentação dos trabalhadores teve sempre clara e inequívoca ligação à movimentação verificável no macrossocial e na macropolítica, sendo as épocas de formação de mais CT identificáveis com épocas de predomínio político de forças de esquerda” (AAVV, 1979, p. 8).

10 O documento foi aprovado pelo Conselho da Revolução, não tendo, no entanto, sido promulgado pelo presidente da República (Patriarca, 1976, p. 792).

11 E futuro secretário-geral do PCP (1992-2004).

12 A 7 de maio de 1975, Carvalhas apresenta um primeiro projeto de atribuição de competências e de um modelo de composição das comissões de controlo da produção. Este documento confrontar-se-á com a visão de João Martins Pereira. Começando por propor uma definição genérica do conceito de controlo de produção, Martins Pereira defende que só a sua prática conseguirá superar todos os conflitos e contradições que lhe são próprios: o produto a desenvolver, as tecnologias a utilizar, o conflito entre a necessidade particular da empresa e a necessidade geral do movimento (o que pressupunha uma maior articulação entre as unidades económicas) e “a gradual transposição dos conceitos tradicionais de rendibilidade empresarial para o da oportunidade social” (Patriarca, 1976, pp. 769-770). Ao contrário do anterior projeto, enfatiza-se “a importância da dinâmica democrática no interior das empresas” (Noronha, 2011, p. 459), propondo-se, dada a “;‘vocação’ profissional” das estruturas sindicais, comissões de controlo eleitas em assembleia de trabalhadores. Estas, no entanto, poderiam deixar-se substituir por comissões sindicais, caso os trabalhadores assim o desejassem.

13 Inicialmente, a associação adotou a designação de Associação Portuguesa de Diretores de Pessoal.

14 Criado em 1959 e então presidido pelo Eng.º Magalhães Ramalho, ex-subsecretário de Estado do Comércio e da Indústria, o Instituto Nacional de Investigação Industrial, nas palavras do seu diretor, nascia do reconhecimento de que “o progresso e bem-estar modernos passam cada vez mais através dos laboratórios” (apud IP, 1959, p. 55), sendo seu principal objetivo “promover, auxiliar e coordenar a investigação e a assistência que interessem ao aperfeiçoamento e desenvolvimento industrial do País”. Para tal, conforme a peça publicada na Indústria Portuguesa, contaria com a “colaboração de especialistas, técnicos e instituições nacionais e estrangeiras qualificadas para o efeito” (IP, 1959, p. 55). A sua atividade seria realizada a partir de dois gabinetes técnicos, um dedicado a questões de natureza técnica (relativas ao capital fixo das empresas) e outro subordinado a assuntos relacionados com a organização do trabalho. A este nível, o Instituto será responsável pela organização de diversos cursos e jornadas de produtividade, com vista à formação de quadros.

15 Em parte, relacionada com os contactos internacionais da associação, membro da European Association for Personnel Management.

16 Declarações do então presidente Raúl Caldeira.

17 O último, ex-militante da Juventude Operária Católica (JOC), foi um dos autores da carta a Salazar de 1959, em denúncia das violações de direitos humanos perpetradas nas colónias e nas prisões portugueses (igualmente assinado por figuras como Alçada Baptista, Nuno Teotónio Pereira, Gonçalo Ribeiro Telles ou Sofia de Mello Breyner). Interrogado pela PIDE e submetido a julgamento, viria a ser amnistiado no ano seguinte. Em 1963, participa na fundação da Pragma – Cooperativa de Difusão Cultural e Acção Comunitária, ligada a grupos católicos oposicionistas (entre os seus membros podemos referir, mais uma vez, Nuno Teotónio e Mário Murteira). Em 1967, a PIDE encerrará a sua sede, prendendo alguns dos seus dirigentes. Das suas cinzas nascerá a SEDES (Bidarra, 1989).

18 No Portugal do Estado Novo, a ocupação bancária é marcada pela inexistência das condições materiais e simbólicas necessárias à afirmação do seu colarinho-branco: baixos índices remuneratórios, reduzida diferença salarial entre pessoal técnico e não especializado (Gonçalves, 1991, p. 145), mas também pela relativa concentração de trabalhadores, propulsora de uma maior dinâmica associativa (Noronha, 2010).

19 Segundo os dados apresentados pelo historiador Rui Ramos, entre 1920 e 1960 a percentagem de militares com origens urbanas ter-se-á reduzido de 51% para 31%. Ao mesmo tempo, o serviço militar obrigatório contribuiu para que as Forças Armadas, através dos seus oficiais milicianos, importasse uma cultura política estudantil e contestatária (Ramos, 2012, p. 60). Ao mesmo tempo, a Academia Militar há muito que havia deixado de ser o espaço de reprodução de uma burguesia latifundiária e industrial, incorporando elementos da pequena burguesia a partir das décadas de 50 e 60 (Afonso, Costa, 1985).

20 A relação entre forças armadas e sociedade é, na aceção de Boaventura Sousa Santos, incorporada por diversos tempos históricos interligados. O tempo segundo, o da “aliança Povo/MFA”, aqui descrito, resulta de uma continuidade (não linear) com o tempo primeiro, marcado pelo serviço militar obrigatório, um fenómeno de duas faces: uma de sedução, outra de repulsa (Santos, 1985, p. 15). Existe, portanto, um sentimento ambíguo em relação ao “ir à tropa” suscitado “tanto pelo distúrbio que ela provoca no círculo familiar e comunitário, como pela libertação que ela proporciona para fora desse círculo” (idem, p. 19). Se, por um lado, a instituição militar é significante de disciplina e de hierarquia, por outro, surge no imaginário social das camadas sociais mais subalternizadas como oportunidade de mobilidade social ascendente.

21 Segundo José Barreto, “o dirigente dos ‘socioprofissionais’ do PSD” (Barreto, 1991, p. 351), grupo dedicado à intervenção nos locais de trabalho.

22 Será mais tarde presidente da Brisa (1997) e da SGPS José de Mello, em 2001 (Venda, 2003).

23 Referência a Abbie Hoffmann, outra das figuras emblemáticas do movimento Yippie. Expressão construída a partir da sigla YIP (Youth International Party), organização política fundada por Hoffmann e Rubin.

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