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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.212 Lisboa set. 2014

 

ARTIGO

Desigualdades económicas multi-escalares: Portugal no contexto global

Multi-scalar economic inequalities: Portugal in a global context

 

Frederico Cantante*

*CIES-IUL, ISCTE, Av. das Forças Armadas, s/n - 1649-026 Lisboa, Portugal. E-mail: frederico.cantante@iscte.pt

 

RESUMO

As desigualdades económicas assumem-se como um dos fenómenos mais relevantes das sociedades atuais. Essa relevância emerge quando se tem o mundo como universo de referência, mas também quando a análise é feita à escala nacional. Este artigo promoverá uma análise integrada da magnitude das desigualdades económicas globais e no interior dos países mais ricos. A este nível, dar-se-á destaque ao fenómeno da desigualdade e concentração do rendimento nos países da UE-27 e à análise mais detalhada dos ganhos salariais do topo da distribuição em Portugal. De forma complementar, debater-se-ão duas questões nevrálgicas na análise das desigualdades económicas: as suas causas e os seus impactos potenciais para a vida coletiva.

Palavras-chave: desigualdades económicas multi-escalares; rendimentos do topo; Portugal.

 

ABSTRACT

Economic inequalities are a central phenomenon of contemporary societies. Its relevance emerge both at the global and national level. This paper will promote a comprehensive analysis of the magnitude of global and within country economic inequality. At this level, this paper will analyze income inequality and concentration in EU-27 countries and shed light on top wages in Portugal. Complementarily, two important issues will be discussed: the causes of economic inequalities and its impacts to collective live

Keywords: multi-scalar economic inequalities; top incomes; Portugal.

 

INTRODUÇÃO

 

As desigualdades económicas são uma marca estrutural do mundo em que vivemos. Determinam hiatos de condições de existência e de aspirações sociais entre populações, e assumem-se como uma variável central nos processos de estruturação das sociedades, que têm não só implicações individuais ou categoriais, mas também coletivas. A necessidade de se compreender e medir as desigualdades económicas deve-se ao facto de este fenómeno ser moralmente significante, no sentido em que acerca dele se constroem considerações de admissibilidade valorativa, e de existir uma progressiva consciência da sua relevância enquanto elemento estruturante dos processos políticos, económicos e sociais de constituição das sociedades. Esta dupla relevância das desigualdades económicas favoreceu a emergência de uma vasta literatura que problematiza um leque bastante alargado de eixos e dimensões analíticas, elegendo de forma isolada ou entrecruzada escalas analíticas diferenciadas.

Realizar-se-á neste artigo uma análise multi-escalar das desigualdades económicas, através da apresentação e debate de alguns dos principais eixos de problematização deste fenómeno recentemente desenvolvidos pela literatura especializada. Na primeira parte analisar-se-á a magnitude e principais dinâmicas da desigualdade económica global; na segunda parte, a exposição irá centrar-se sobre as desigualdades económicas internas nos países europeus, com especial ênfase no caso português e no fenómeno da concentração dos rendimentos nos grupos que formam o topo da distribuição; a seguir debater-se-ão as principais formulações em torno das causas explicativas das desigualdades económicas; por último, apresentar-se-á uma síntese de estudos e de contribuições teóricas que defendem a tese de que as desigualdades económicas têm impactos negativos multidimensionais na vida coletiva.

 

DESIGUALDADES ECONÓMICAS GLOBAIS

 

O mundo é cada vez mais um dos referentes empíricos privilegiados do discurso político, mediático e científico. A escassez e distribuição dos recursos, os problemas ambientais, a interação entre as economias ou a fluidez do mercado de capitais são alguns dos fatores que têm potenciado este tipo de enfoque. Num mundo globalizado, baseado em interdependências entre países e organizações internacionais, as relações e processos sociais estruturam-se também a uma escala transnacional e transcontinental. Do ponto de vista analítico, a escala global tem-se vindo a impor como uma tela empírica privilegiada para a decifração e contextualização da realidade. Talvez por isso se tenha assistido nos últimos anos ao aumento e aperfeiçoamento da produção de informação estatística acerca do mundo ou de conjuntos mais ou menos alargados de países, mas também à emergência de perspetivas analíticas cujo esforço de teorização e conceptualização é orientado para essa escala (Costa, 2012a).

Branko Milanovic é um dos investigadores que nos últimos anos mais se tem destacado nesta área. Um dos eixos analíticos que o autor tem desenvolvido prende-se com a medição, a partir de diferentes parâmetros metodológicos, das desigualdades de rendimento globais e sua evolução. De acordo com o autor, se o indicador utilizado for o Produto Interno Bruto (PIB) per capita, as desigualdades que atualmente existem entre os países são mais pronunciadas face ao verificado antes da Revolução Industrial ou há três décadas atrás. Tal decorre essencialmente do baixo crescimento ou mesmo empobrecimento de alguns dos países mais pobres do mundo – principalmente países africanos. No entanto, se se tiver em linha de conta o peso populacional dos países para analisar as desigualdades de rendimento (PIB) que entre eles existem, essa tendência já não se verifica, devido ao crescimento económico da China e da Índia nas últimas décadas – dois países que juntos representam mais de ⅓ da humanidade.

Milanovic avança ainda com uma terceira opção, que consiste numa análise das desigualdades de rendimento entre “cidadãos do mundo” (Milanovic, 2011).1 De acordo com as suas estimativas, o valor do coeficiente de Gini2 para a distribuição do rendimento a nível global é de 70%, o que significa que a desigualdade de rendimento entre os cidadãos do mundo é superior à verificada no plano interno em todos os países do mundo. Apenas a África do Sul tem um nível interno de desigualdade económica próximo deste valor. A amplitude da desigualdade global sugerida por este valor sintético ganha maior inteligibilidade se se recorrer a medidas estatísticas complementares: os 10% e 5% mais ricos do mundo detêm, respetivamente, 56% e 37% do rendimento global, enquanto os 10% e 5% mais pobres apenas 0,7% e 0,2%; o rendimento dos 1,75% mais ricos equivale ao rendimento dos 77% mais pobres; os 5% mais pobres dos Estados Unidos situam-se no percentil 68 da distribuição global do rendimento – ao qual pertencem os 5% mais ricos da Índia; entre o grupo dos 10% mais ricos do mundo 70% provêm da Europa Ocidental, da América do Norte e da Oceânia e dele não fazem parte, em número significativo, indivíduos provenientes da China ou da Índia; entre o grupo dos 1% mais ricos do mundo cerca de 83% provêm destas três regiões – dos 60 milhões de “cidadãos do mundo” que compõem o percentil do topo da distribuição global do rendimento, cerca de metade (29 milhões) provêm dos Estados Unidos (idem, pp. 152, 156 e 157).

Outros autores têm também procurado medir este fenómeno. De acordo com Korzeniewicz e Moran (2009, pp. 93-94), toda a população da Noruega pertence ao decil do topo da distribuição global do rendimento, o mesmo acontecendo com os 60% mais ricos dos Estados Unidos. Por seu lado, os 30% mais pobres dos Estados Unidos integram o segundo decil mais rico da distribuição global do rendimento. Já 90% da população do Zimbabué se inclui nos três decis da base da distribuição global do rendimento – 80% nos dois primeiros decis. Segundo Bourguignon (2012, p. 15), no início da segunda metade da década de 2000, o rendimento dos 10% mais ricos do mundo era 90 vezes superior ao dos 10% mais pobres, ou seja, enquanto os 600 milhões de indivíduos mais ricos do mundo dispunham em média de 27 000 euros por ano, esse valor não ia além dos 300 euros para os 600 milhões mais pobres (idem).

Existe, neste sentido, uma concentração desproporcionada da população dos países ocidentais no topo da distribuição global do rendimento. Se é verdade que nas últimas décadas se assistiu de forma intensa e generalizada ao aumento das desigualdades de rendimento no interior dos países mais desenvolvidos (OECD, 2008 e 2011), a amplitude das desigualdades económicas é bem maior quando se comparam populações pertencentes a países com níveis de desenvolvimento diferenciados:

 

Há menos diferenças entre o nível de vida de um americano rico e o de um americano pobre do que entre o nível de vida de um americano médio e o de um somali médio3 [Bourguignon, 2012, p. 101].

 

As desigualdades globais são, portanto, ainda muito acentuadas e regiões há que não têm acompanhado os progressos gerais. Os países mais pobres dos dias de hoje, quase todos africanos, são mais pobres do que os seus “homólogos” de há vinte anos (idem, p. 22). Apesar da deterioração da situação deste grupo de países mais pobres, vários estudos têm vindo a defender que as desigualdades económicas à escala global tenderam a diminuir (Bourguignon, 2012; UNDP, 2010) ou a estabilizar (Milanovic, 2011), dependendo das metodologias usadas para medir essa evolução. A perspetiva analítica de Milanovic é bastante ilustrativa acerca das dinâmicas em causa neste processo. Segundo defende, as desigualdades económicas entre “cidadãos do mundo” têm estado relativamente estacionárias nos últimos 30 anos, devido à conjugação de tendências de sinal contrário. Tal como foi referido, o aumento do rendimento médio em países muito populosos como a China ou a Índia tem potenciado a redução destas disparidades. No entanto, não só o hiato entre a riqueza agregada dos países tem crescido (PIB), como as desigualdades de rendimento no seu interior se têm aprofundado em muitos casos. Isto verifica-se não só no perímetro da OCDE, mas também em países emergentes como a China, a Índia, a África do Sul ou a Rússia, nos quais o aumento do nível de rendimento médio tem sido acompanhado pela crescente desigualdade na distribuição desse recurso económico.

A amplitude das desigualdades de rendimento continua, portanto, a ser mais pronunciada quando se comparam populações ou grupos populacionais pertencentes a países com diferentes níveis de desenvolvimento. Porém, no médio e longo prazo, se o processo de aproximação das economias emergentes em relação ao nível de riqueza das economias dos países desenvolvidos permanecer constante ou conhecer uma intensificação, é provável que a amplitude das desigualdades se venha a basear essencialmente nas diferenças entre ricos e pobres no interior dos países. Neste sentido, pode equacionar-se um cenário em que “a desigualdade entre norte-americanos e chineses será progressivamente substituída pela desigualdade entre ricos e pobres norte-americanos e ricos e pobres chineses4” (Bourguignon, 2012, p. 27). Esse cenário dependerá, no entanto, da forma como a riqueza gerada vai ser internamente distribuída. No limite, tal como refere Milanovic (2011) a propósito da China, se o crescimento económico dos países em desenvolvimento não atenuar as desigualdades internas bastante pronunciadas atualmente existentes em muitos deles, ou mesmo se as acentuar, há a possibilidade de as desigualdades de rendimento entre cidadãos do mundo virem a aumentar no futuro. Cada vez mais, tanto as desigualdades intranacionais como as desigualdades ­internacionais farão “parte intrínseca da composição das desigualdades globais” (Costa, 2012b, p. 157).

Nesta secção elegeu-se a escala global como o referente empírico privilegiado para uma primeira aproximação ao fenómeno das desigualdades económicas e da concentração do rendimento. No ponto seguinte o enfoque analítico dirigir-se-á para a escala nacional, mais concretamente para as desigualdades económicas internas nos países da União Europeia e para o fenómeno da concentração do rendimento no topo da distribuição desse recurso económico. Esse zoom será intensificado na análise dos ganhos salariais de um dos países mais desiguais do mundo ocidental: Portugal.

 

DESIGUALDADES INTERNAS NOS PAÍSES EUROPEUS E OS GANHOS DO TOPO EM PORTUGAL

 

Tal como foi atrás evidenciado, o fenómeno das desigualdades económicas é bastante pronunciado quando se tem como unidade de análise o globo. Os grandes hiatos na distribuição do rendimento correspondem a “desigualdades categoriais” de nacionalidade (Tilly, 2005), a oposições entre cidadãos de países ricos e cidadãos de países pobres. Apesar desta evidência, vários estudos têm vindo a chamar a atenção para o aumento expressivo, verificado nas últimas décadas, das desigualdades económicas internas no seio dos países mais desenvolvidos do mundo. Entre meados dos anos 80 do século passado e o final da primeira década do século XXI, o aumento médio das desigualdades internas nos países da OCDE foi de cerca de 10% (OECD, 2011). No entanto, nem todos os países seguiram esta tendência nem tão pouco a magnitude das suas desigualdades internas assume a mesma dimensão.

Em relação a esta segunda questão, e circunscrevendo a análise a países europeus, constata-se que o nível de desigualdade interna é, de facto, bastante variável. O valor do coeficiente de Gini5 nos países da UE-27 variava, em 2010, entre 35,2% na Letónia e 23,8% na Eslovénia. Se as desigualdades internas forem medidas através de rácios de quantis, verifica-se igualmente a existência de realidades bastante diferenciadas: enquanto em Espanha o rendimento disponível por adulto equivalente6 (ou familiar) dos 20% mais ricos era quase 6,8 vezes superior ao dos 20% mais pobres, na República Checa e na Eslovénia esse valor era de 3,5; e se em Espanha o rendimento dos 10% mais ricos era quase 15 vezes superior ao dos 10% mais pobres, na Eslovénia esse valor era de 5,1.

As disparidades do nível de desigualdade interna à escala europeia são também bastante pronunciadas quando se analisam porções do rendimento detido por quantil. Veja-se, por exemplo, que enquanto em Portugal a porção do rendimento familiar disponível dos 10% e 5% mais ricos representava, em 2010, 27,2% e 17,1% do total do rendimento dos agregados domésticos, estes valores eram de 19,6% na Noruega e de 11,6% na Suécia e na Eslovénia, respetivamente.

Portugal era, de facto, em 2010, o país da UE que apresentava um nível mais elevado de concentração do rendimento familiar no grupo dos 20%, 10% e 5% mais ricos. Tendo em conta este facto, e dado que o fenómeno da concentração do rendimento no topo da distribuição é uma das mais relevantes dinâmicas que subjazem ao aumento das desigualdades económicas nos países desenvolvidos (OECD, 2011), é interessante do ponto de vista analítico ampliar ainda mais o zoom sobre a distribuição dos recursos económicos, e circunscrever agora a análise apenas a um país (Portugal) e a um tipo de recurso económico particular: os rendimentos do trabalho.

A figura 1 ilustra o volume do ganho mensal ilíquido em Portugal no ano de 2009 por percentil.7 Os 20% com pior remuneração auferiam um ganho mensal inferior a 543 euros, o ganho mediano era de 741 euros e apenas a partir do percentil 70 é que os salários atingiam os 1000 euros mensais. O limite inferior do ganho salarial dos 20% mais ricos era cerca de 1300 euros e o dos 10% de 1874. Estes são valores consideráveis se comparados com o ganho dos quantis da base da distribuição ou com o valor mediano deste indicador, mas ainda assim não descolam drasticamente do panorama remuneratório nacional ilustrado na figura 1. No interior do grupo dos 10% mais ricos há um aumento mais acentuado do volume dos ganhos mensais, especialmente a partir do percentil 95: 2568 euros. Este valor é cerca de duas vezes superior ao ganho da base do percentil 80 e 3,5 vezes superior ao ganho mediano. Ainda assim é nos percentis seguintes que o hiato salarial face ao ganho mediano atinge uma dimensão mais pronunciada: o ganho do percentil 99 (4644 euros), por exemplo, é 6,3 vezes superior ao salário mediano. A ordem de grandeza dos ganhos salariais das frações de percentil que integram o grupo dos 1% mais bem remunerados redimensionam, porém, a magnitude deste hiato económico – isso explica o facto de o valor do ganho mensal do percentil do topo (o percentil 100) não ser apresentado nesta figura.

 

 

 

 

A figura 2 contém informação detalhada para o ganho mensal de várias frações de percentil do grupo dos 1% de trabalhadores mais bem remunerados. O ganho da fração de percentil 99,5 era de 5800 euros. O da fração 99,9 aproximava-se dos 10000 euros. Este valor é duplicado quando se atenta no ganho da fração de percentil 99,99 (19 208 euros), que é cerca de 26 vezes superior ao ganho mediano. O próximo degrau da escada dos ganhos mensais, referente à fração de percentil 99,999, corresponde a uma nova multiplicação da grandeza deste indicador: 58 642 euros, 31,3 vezes superior ao ganho do percentil 90 e 79 vezes superior ao valor do ganho mediano. O ganho da fração de percentil 99,9999 é cerca de três vezes superior ao ganho da fração de percentil 99,999, 37,3 mais elevado do que o ganho do percentil 99 e 234 vezes superior ao ganho mediano.

 

 

Os dados anteriores indicam que existia em 2009 um grande fosso económico entre os grupos de trabalhadores mais bem remunerados, em particular os que integram o percentil do topo da distribuição, e a generalidade dos assalariados. Esse hiato é particularmente desproporcionado em relação à base da distribuição e ao seu ponto intermédio, embora se verifique também uma enorme diferença em relação aos ganhos salariais dos percentis 70 ou 80. Os ganhos do percentil 90, 95 ou mesmo do percentil 99 são comparativamente elevados face ao observado na base e no meio da distribuição, mas é nos limites das frações do percentil do topo que se observa o grande fosso económico na estrutura de distribuição dos ganhos salariais em Portugal.

Estes dados apontam para uma grande concentração dos ganhos salariais na parte superior da distribuição. De acordo com Rodrigues, Figueiras e Junqueira (2012, p. 97), enquanto os 20% com pior remuneração auferiam, em 2009, 9,4% do total deste recurso económico, no caso dos 10%, 5%, 1%, 0,5%, 0,1% e 0,01% mais bem remunerados essa porção era de, respetivamente, 29,83%, 19,33%, 6,64%, 4,16%, 1,40% e 0,34%. Se a porção do ganho total auferido pelos 20% com pior remuneração diminuiu 5,1% entre 1985 e 2009, esse valor aumentou, respetivamente, 24,5%, 31,5%, 44,7%, 50,7%, 60,9% e 126,7% nos quantis do topo mencionados. Ou seja, quanto mais próximo do topo da hierarquia económica está um quantil de ganho, maior é o aumento relativo da porção por si auferida entre 1985 e 2009. No caso da fração de percentil 99,99 essa porção mais do que duplicou.

Os dados até aqui analisados dizem respeito a grupos económicos “descaracterizados” do ponto de vista do seu perfil socioprofissional. É precisamente essa informação que se apresentará nos gráficos seguintes.

Na figura 3 é possível observar a composição de vários quantis de ganho salarial de acordo com o nível de escolaridade dos trabalhadores. Em todos os quantis da parte superior da distribuição do ganho apresentados existe uma predominância dos trabalhadores com habilitações escolares de nível superior. Essa predominância é menos vincada no grupo dos 20% mais bem remunerados, mas intensifica-se nos quatro grupos seguintes. Entre os 0,5% mais bem remunerados, 78,3% concluíram o ensino superior, 15,9% concluíram no máximo o ensino secundário e 5,8% não foram além do ensino básico. ­Curiosamente, o peso relativo dos trabalhadores com o ensino superior diminui nas duas frações de percentil mais próximas do topo da distri­buição apresentadas na figura, o que indicia que o tipo de atividades económicas que desempenham está menos associada à posse de recursos escolares (1/4 dos trabalhadores do grupo dos 0,01% mais ricos concluiu no máximo o ensino básico). Num mercado de trabalho em que cerca de 67% da população média empregada em 2009 não tinha ido além do 9.º ano (Carmo, Cantante e ­Baptista, 2010, p. 60), é bastante interessante verificar que nos grupos da parte superior da distribuição do ganho salarial exista uma clara prevalência dos trabalhadores com habilitações escolares de nível superior.

 

 

Como seria de esperar, além de altamente escolarizados, os trabalhadores que integram estes quantis do topo situam-se nos grupos profissionais mais qualificados e/ou desempenham funções de direção. Esta tendência é menos evidente quando se analisam os “grandes grupos” dos 20% e 10% mais bem remunerados, os quais são constituídos maioritariamente por Técnicos e Profissionais de Nível Intermédio. No grupo dos 5% mais bem remunerados existe já uma ligeira prevalência dos Quadros Superiores da Administração Pública, Dirigentes e Quadros Superiores de Empresas (Quadros Superiores e Dirigentes) e dos Especialistas das Atividades Técnicas e Científicas. Nos quantis seguintes verifica-se um predomínio bastante acentuado dos Quadros Superiores e Dirigentes em relação aos demais grupos profissionais. No grupo dos 0,1% mais bem remunerados representam mesmo 73,3% dos trabalhadores. Tal como foi referido atrás em relação à composição escolar destes grupos, também aqui existe uma clara desproporção do peso relativo dos grupos profissionais mais qualificados e/ou que exercem funções de direção face ao verificado na estrutura nacional dos grupos profissionais: apenas 4,1% dos trabalhadores por conta de outrem do setor privado ou do setor público com contrato individual de trabalho integravam, em 2009, o grupo profissional dos Quadros Superiores e Dirigentes (GEP/MSSS, 2011, p. 112).

 

 

Outra perspetiva analítica passível de ser usada para delinear o perfil socioprofissional dos trabalhadores que auferem ganhos salariais muito elevados consiste em apurar quais as categorias profissionais em que uma parcela significativa dos seus elementos pertence a um quantil do topo da distribuição. Na figura 5 selecionaram-se as categorias profissionais em que pelo menos 15% dos trabalhadores que as integram se situam no grupo dos 1% mais bem remunerados.

 

 

As duas categorias profissionais em que mais de metade dos seus efetivos integra o percentil do topo dos ganhos salariais são os Pilotos de Avião e Trabalhadores Similares e os Controladores de Tráfego Aéreo: 61,7% e 51,5%, respetivamente. Segue-se-lhe a categoria dos Diretores-Gerais (42,1%). Os grupos profissionais que exercem funções de direção-geral ou setorial nas empresas são, aliás, os que registam em maior número elevados níveis de concentração dos seus efetivos no grupo dos 1% mais bem remunerados. Veja-se que dez das quinze categorias profissionais em que pelo menos 15% dos seus efetivos integram o percentil do topo do ganho salarial têm esse perfil funcional. No universo das categorias profissionais em causa na figura 5, importa sublinhar também a presença dos Oficiais de Pilotagem (17,9%), dos Médicos (15,0%) e dos Atletas, Desportistas e Trabalhadores Similares (14,6%).

Se é verdade que as desigualdades económicas a nível global são mais profundas quando comparadas com as desigualdades internas, estas são também bastante expressivas em países como Portugal. O crescente hiato remuneratório entre uma parcela ínfima da população do país e a sua esmagadora maioria cria um fosso económico bastante amplo na sociedade portuguesa, o qual dificilmente é compensado pela ação redistributiva do Estado. Perante a magnitude da desigualdade económica multi-escalar que tem vindo a ser descrita, importa questionar de forma integrada as suas causas explicativas. É isso que se irá levar a cabo no ponto seguinte.

 

AS CAUSAS DA DESIGUALDADE ECONÓMICA

 

Não é fácil definir as causas que explicam as desigualdades económicas, muito menos quando se procuram debater referentes empíricos e escalas analíticas diferenciadas. No plano global, Acemoglu e Robinson (2013) desenvolveram uma interessante proposta institucionalista de explicação das desigualdades existentes entre países ricos e países pobres. De acordo com os autores, os países que têm “instituições políticas e económicas inclusivas”, tendem a prosperar, enquanto os que têm “instituições políticas e económicas extrativas”, o desenvolvimento económico e o bem-estar das populações é condicionado. Em sociedades com Estados centralizados e regimes políticos pluralistas a ordem legal e as orientações políticas dos governos refletem os anseios e interesses dos vários grupos que a compõem, e não apenas os de uma minoria mais ou menos restrita. Essa ordem política e legal potencia e é potenciada por instituições económicas que favoreçam a livre iniciativa e a aposta na inovação tecnológica. Pelo contrário, nas sociedades tipicamente marcadas por instituições extrativas, o poder político é controlado por um elite que tende a limitar não só a expressão da pluralidade de posições políticas, mas também a legitimar e reproduzir as condições de apropriação por uma minoria da riqueza coletiva gerada. Estas dinâmicas são denominadas círculos “virtuosos” e “viciosos” (idem), respetivamente. Os autores rejeitam que as desigualdades globais possam ser explicadas por razões culturais, geográficas ou pela ignorância das elites, propondo, portanto, uma interpretação institucionalista dos processos de produção das desigualdades à escala global, baseada ao mesmo tempo na admissão da contingência desses processos e na defesa das suas ­condições sociais, políticas, económicas e tecnológicas de possibilidade. Essas contingências e condições podem ser eminentemente internas, mas podem também decorrer de processos que se estruturam à escala internacional e que se imbricam com a realidade social, política e económica de um dado país. O colonialismo e as suas diferentes formas de concretização são disso um bom exemplo. Esta teoria opõe, portanto, os países de acordo com a natureza das suas instituições e explica as desigualdades globais a partir da interação da história com a história institucional dos países. Tal como foi anteriormente referido, as desigualdades entre cidadãos de países pobres e de países ricos continuam a ser mais intensas do que as que se verificam ao nível interno, podendo esta aproximação teórica ser uma boa ferramenta analítica para interpretar esse fosso.

Outro fenómeno que também tem merecido o esforço analítico dos cientistas sociais prende-se com as desigualdades económicas internas e sua evolução no passado recente em países que se caracterizam por ter instituições políticas e económicas tipicamente inclusivas. De facto, países com instituições políticas inclusivas têm produzido estruturas sociais cada vez mais desiguais, gerado hiatos de condições de existência cada vez mais pronunciados entre uma minoria da população e a sua grande maioria. Várias têm sido as propostas analíticas para a explicação da evolução das desigualdades económicas internas neste conjunto de países.

Uma das formulações que mais atenção e debate mereceu na literatura especializada foi a da corrida entre tecnologia e qualificações. De acordo com a versão tradicional ou “canónica” desta perspetiva, se as tecnologias aumentarem mais a produtividade dos trabalhadores com qualificações elevadas do que a dos que não têm esse perfil qualificacional, e se o número de trabalhadores altamente qualificados não acompanhar a procura, então o seu prémio remuneratório vai subir, tal como as desigualdades económicas – a tecnologia (potenciadora de desigualdade) avançaria, neste caso, mais do que as qualificações (mitigadoras de desigualdade). Segundo Anthony B. Atkinson (2008), a evolução das desigualdades salariais nos países da OCDE poderá, de facto, ser parcialmente explicada a partir desta perspetiva analítica.

Na sua versão reformulada (“nuanced view”, na denominação de ­Kierzenkowski e Koske, 2012), esta perspetiva defende que os ganhos de produtividade associados aos computadores e às máquinas, tal como os processos de offshoring, implicaram a diminuição da procura de trabalhadores com ­qualificações intermédias que tipicamente desempenham tarefas rotineiras (operariado, trabalho administrativo, contabilidade, vendas), passíveis de serem substituídas por tecnologia ou por trabalhadores de outros países. Pelo contrário, valorizaram do ponto de vista remuneratório os trabalhadores altamente qualificados, capazes de se adaptarem à mudança tecnológica e de desempenharem tarefas abstratas não rotineiras (gestores, profissionais liberais, ocupações técnicas, científicas e criativas), mas também os trabalhadores com poucas qualificações que desempenham tarefas manuais não rotineiras no setor dos serviços, as quais requerem essencialmente capacidades de adaptação interpessoal e ambiental e não são passíveis de ser realizadas por máquinas ou através de offshoring (Acemoglu e Autor, 2010; Autor, Levy e Murnane, 2003).

Subjacente a estas formulações analíticas está a ideia de que a integração comercial, mas também financeira, num mundo globalizado tem implicações no tipo de mão-de-obra procurada a nível interno e nos prémios ou penalizações salariais associadas a esta dinâmica. O estudo Divided We Stand. Why Inequality Keeps Rising (OECD, 2011) conclui que a abertura dos países da OCDE ao comércio internacional e às transações financeiras poucos ou nenhuns efeitos tiveram, em termos agregados, na evolução das suas desigualdades internas. Refere-se, contudo, que o aumento das importações provenientes de países emergentes tende a aumentar as desigualdades nos países da OCDE com legislações de proteção do trabalho fracas, mas também que o investimento direto estrangeiro recebido diminui as desigualdades salariais internas, enquanto o investimento direto no estrangeiro tende a ter um efeito inverso. Embora considere que as mudanças tecnológicas tenham tido algum impacto no aumento das desigualdades económicas internas dos países da OCDE, esse e outros estudos defendem que os principais fatores explicativos são de ordem institucional e qualificacional.

No que aos fatores institucionais diz respeito, importa distinguir, por um lado, as políticas e as instituições que regulam o mercado de trabalho, das questões de redistribuição por via das transferências e impostos, por outro. Em relação às primeiras, o estudo conclui que os baixos níveis de sindicalização e de contratação coletiva, a legislação laboral mais flexível e menor regulação setorial da economia tendem a favorecer o aumento das desigualdades económicas (OECD, 2011, p. 119). Este e outros estudos (ILO, 2008) têm vindo a chamar a atenção para a menor capacidade demonstrada pelas instituições e políticas que regulam o mercado de trabalho (sindicatos, salário mínimo, perfil contratual dos trabalhadores) para reduzir o aumento das desigualdades económicas internas nos países mais desenvolvidos.

Quanto às políticas de redistribuição monetária por via de prestações e dos impostos, interessa também elencar várias tendências e processos. Embora entre meados dos anos 80 e 90 do século passado tenha existido um aumento expressivo das desigualdades económicas de mercado (desigualdades pré-redistribuição) nos países da OCDE, a ação redistributiva do Estado compensou quase 34 desse fenómeno (Immervoll e Richardson, 2011, p. 27; ­Kenworthy e Pontusson, 2005). Na década seguinte as desigualdades de mercado conheceram uma ampliação mais modesta, mas a eficácia da ação redistributiva do Estado diminuiu bastante, o que contribuiu para um aumento significativo das desigualdades de rendimento disponível. De acordo com Immervoll e Richardson (2011), se até meados dos anos de 1990 o aumento das desigualdades económicas decorreu primordialmente da intensificação das desigualdades de rendimento de mercado, na década seguinte tal deveu-se principalmente à ineficácia dos sistemas redistributivos. Em termos gerais, segundo estes autores, o aumento das desigualdades de mercado num conjunto de países da OCDE8 foi duas vezes superior à redistribuição do rendimento.9 No final da primeira década do século XXI, estima-se que as transferências sociais, os impostos sobre os rendimentos e as contribuições para a segurança social permitiam diminuir em cerca de 25% a desigualdade económica de mercado no universo de países da OCDE, sendo que ¾ dessa redução se deve às transferências sociais para os agregados domésticos e o restante aos impostos (Joumard, Pisu e Bloch, 2012).

O aumento das desigualdades de rendimento deveu-se, em grande medida, à crescente concentração desse recurso no topo da distribuição e ao enquadramento fiscal desta tendência. De facto, os sistemas fiscais foram desafiados pelo aumento da magnitude das desigualdades de rendimento bruto ou de mercado, que avolumaram o nível de concentração deste recurso nos grupos que formam o topo da distribuição, nomeadamente no percentil e frações de percentil do topo. Esta tendência foi mais pronunciada nos países anglo-saxónicos, mas verificou-se também, de forma menos intensa, nos do sul e norte da Europa – na Europa central e no Japão esse fenómeno foi menos evidente ou nulo (Atkinson, Piketty e Saez, 2011). Este processo de concentração do rendimento no topo da distribuição deve-se a dinâmicas variadas e nem sempre confluentes no universo dos países ocidentais. Apesar de, no quadro dos rendimentos nacionais, a porção dos rendimentos do trabalho ter diminuído nas últimas décadas face à porção dos rendimentos de capital (ILO, 2013; OECD, 2012a), na maior parte dos países mais desenvolvidos o aumento da concentração do rendimento no percentil do topo da distribuição deveu-se ao incremento da componente salarial e remuneratória. Por esta via, a ­importância relativa dos rendimentos do trabalho no percentil do topo é mais elevada na atualidade do que no início do século XX (Atkinson, Piketty e Saez, 2011, p. 5). Nos países do norte da Europa, por seu lado, a crescente concentração do rendimento no percentil e frações de percentil do topo está principalmente associada aos rendimentos de capital (Atkinson, Piketty e Saez, 2010, p. 692).

As desigualdades económicas têm, portanto, sido potenciadas por duas “forças de divergência” na distribuição do rendimento: as remunerações do trabalho muito elevadas de grupos profissionais restritos; o aumento do valor do capital ou do “património privado” face ao rendimento nacional (Piketty, 2013). De acordo com Piketty, este segundo fenómeno é a força divergente fundamental e baseia-se no facto de, em vários países da OCDE, as taxas de rentabilidade do capital (lucros, dividendos, mais-valias, rendas, património imobiliário…) serem superiores à taxa de crescimento do rendimento nacional. Essa foi a regra até ao século XIX e poderá voltar a ser no século XXI. Tal tem várias implicações perversas, em particular a reprodução intergeracional da riqueza e do rendimento familiar, pela qual “os patrimónios herdados dominam largamente os patrimónios constituídos ao longo de uma vida de trabalho (…)”10 (idem, p. 55).

Se é verdade que o aumento da concentração do rendimento no topo da distribuição coloca desafios aos sistemas fiscais, a fiscalidade é em si um fator incentivador dessa tendência. De acordo com Alvaredo et al. (2013), existe uma forte correlação entre a redução das taxas de imposto marginais aplicáveis aos rendimentos do topo e o aumento percentual da concentração do rendimento no grupo dos 1% mais ricos. De acordo com a análise que estes autores levaram a cabo para um conjunto de 18 países pertencentes à OCDE, verificou-se que os países em que as taxas de imposto marginais aplicáveis aos rendimentos mais elevados registaram uma descida mais significativa desde a década de 1960 (em Portugal a partir de 1976) tendem a ser aqueles em que a porção do rendimento antes de impostos detida pelos 1% do topo mais aumentou. Os autores rejeitam que esta tendência se deva à diminuição da evasão fiscal decorrente da baixa de impostos, ao aumento dos estímulos fiscais à produtividade de certos grupos profissionais, ou à narrativa em torno das mudanças tecnológicas e da procura por mão-de-obra qualificada – em países com níveis tecnológicos e de produtividade semelhante a evolução da concentração do rendimento no topo foi bastante diferenciada. Defendem que um dos fundamentos principais da relação entre a baixa de impostos nos escalões mais elevados e a ampliação dos rendimentos dos mais ricos, se prende com o aumento dos incentivos que esse quadro fiscal mais favorável introduz na negociação de condições ­contratuais vantajosas, por parte dos executivos e dirigentes das empresas e de outros grupos profissionais.

Também a desigualdade no enquadramento fiscal dos rendimentos do trabalho e de capital é um fator que favorece a concentração do rendimento. Por um lado, os rendimentos de capital, auferidos em grande parte pelos quantis mais ricos, têm níveis de taxação mais baixos do que os impostos sobre os rendimentos do trabalho, o que tem limitado a progressividade dos sistemas fiscais (Joumard, Pisu e Bloch, 2012). Por outro, apesar do tendencial aumento da progressividade dos impostos sobre o trabalho – que permitiu reduzir uma parte do rendimento disponível dos rendimentos do topo –, verificou-se uma diminuição da taxação dos rendimentos do capital, da riqueza e das heranças em bastantes países, o que contribuiu para a redução do alcance redistributivo dos sistemas fiscais (idem).

Adicionalmente, a fraude e a evasão fiscal (OECD, 2011), os sistemas de benefícios fiscais em áreas como a saúde, educação, habitação ou dos seguros de reforma – que beneficiam desproporcionalmente os indivíduos ou agregados domésticos da parte superior da distribuição do rendimento (Joumard, Pisu e Bloch, 2012; OECD, 2011) –, bem como os “regimes derrogatórios” e “nichos fiscais” aplicáveis aos rendimentos de capital (Landis, Piketty e Saez, 2011, p. 53), têm contribuído para a diminuição do alcance redistributivo da fiscalidade.

Quanto aos fatores qualificacionais, o estudo Divided We Stand sustenta que o aumento da proporção de trabalhadores com qualificações de nível superior reduz em cerca de 2/3 o aumento da desigualdade económica entre os 10% mais ricos e os 10% mais pobres associado às mudanças institucionais e tecnológicas (OECD, 2011, p. 123). O hiato de desigualdade económica entre trabalhadores qualificados e não qualificados é, na verdade, uma evidência empírica insofismável. Veja-se que, no universo de países da OCDE, a população que concluiu o ensino superior aufere em termos médios uma remuneração do trabalho cerca de 55% superior à auferida por quem concluiu no máximo o ensino secundário ou pós-secundário não superior. E a remuneração desta população é 23% superior à de quem não foi além do ensino básico (ISCED 2) (OECD, 2012b).

Neste sentido, vários são os autores que sublinham a importância do acesso às qualificações como vetor fundamental para igualizar a distribuição interna dos recursos económicos disponíveis e as oportunidades de mobilidade social (Bourguignon, 2012; Savidan, 2007). É consensual que a igualdade de oportunidades nas sociedades do conhecimento se define em grande medida por referência ao capital educativo. A escola é uma instituição nevrálgica na definição das oportunidades que se abrem ao indivíduo no mercado de trabalho e noutras esferas da existência social. Ela está no centro dos processos sociais pelos quais se estruturam de forma interativa as posições e as oportunidades sociais, as dinâmicas de mobilidade ou de reprodução social (Dubet, 2010). De facto, o acesso às posições sociais e profissionais dominantes, ou a reprodução das mesmas, dependem em muito do capital educativo adquirido. Num mercado de trabalho que valoriza as credenciais formais e as competências escolares, este tipo de recursos é cada vez mais central na definição das posições sociais. Distinguem-se no interior dos países os trabalhadores “Apple Mac” dos trabalhadores “Big Mac” (Giddens, 2007) e emergem internacionalmente classes sociais globais que se estruturam em grande medida pelo capital escolar e respetivo perfil profissional dos indivíduos que as integram (Wagner, 2007; Sassen, 2005).

Os processos gerais de estruturação das desigualdades económicas descritos para o conjunto de países da OCDE têm concretizações particulares em cada um dos países de acordo com o seu perfil social, económico, institucional e qualificacional. Promovendo um zoom analítico sobre Portugal, interessa começar por referir que uma boa parte das desigualdades económicas em Portugal se explica pela desigualdade de acesso aos recursos educativos e qualificacionais. Enquanto a média mensal de ganhos salariais em Portugal, no ano de 2009, foi de 1034 euros, esse montante para os trabalhadores que concluíram o ensino superior atingiu os 1938 euros.11 Este é um valor destacadamente acima do apurado para os demais níveis de escolaridade: 1094 euros para os trabalhadores que concluíram o ensino secundário e 787 entre os que não foram além do 9.º ano. Embora não defina qual a posição relativa a ocupar no quintil do topo da distribuição salarial, o ensino superior é um recurso estruturalmente fundamental para se aceder a essa categoria económica. Veja-se que, em 2009, cerca de 60% dos trabalhadores que tinham concluído o ensino superior faziam parte do grupo dos 20% mais bem remunerados em Portugal, enquanto apenas 8,7% dos que tinham concluído um nível básico de ensino e 3,0% dos que não tinham qualquer nível de ensino integravam essa mesma categoria. Inversamente, apenas 2,4% dos trabalhadores com o ensino superior se situavam entre o grupo dos 20% mais pobres, face a 26,4% dos que tinham um nível básico de ensino e 37,7% dos que não tinham qualquer nível de ensino a integravam.12

Esta estreita relação entre o nível de escolaridade e a desigualdade económica em Portugal é reforçada quando se analisam os dados referentes aos rendimentos monetários por adulto equivalente ou familiares. No ano de 2008, cerca de 67% dos indivíduos que concluíram o ensino superior pertenciam ao grupo dos 20% mais ricos (5.º quintil). No caso dos que concluíram o ensino secundário ou pós-secundário e dos que não foram além do 9.º ano esse valor é de 32,8% e 12,8%, respetivamente. Por outro lado, enquanto mais de 40% dos indivíduos que concluíram no máximo o 9.º ano de escolaridade integravam os dois quintis de rendimento mais baixos, apenas 8% dos que concluíram o ensino superior estavam nessa situação (INE, 2010).

Não é por isso de estranhar que as qualificações dos trabalhadores expliquem 50% da desigualdade total na distribuição dos ganhos médios, o que representa um aumento da capacidade explicativa desta variável de 14 pontos percentuais em relação ao verificado em 1994 (Rodrigues, Figueiras e ­Junqueira, 2012, p. 151).

Contudo, tal como foi descrito ao nível internacional, existem em Portugal fatores de natureza institucional que contribuem para a explicação da magnitude da desigualdade económica interna. De entre este tipo de fatores destacam-se as políticas públicas de redistribuição do rendimento.

De acordo com Nuno Alves (2012), embora Portugal fosse, no ano de 2009, um dos países da União em que a redistribuição das prestações socias em dinheiro assumia um cariz mais progressivo, era também um dos que registava um menor impacto dessas prestações na diminuição das desigualdades económicas. Tal deve-se, de acordo com o autor, ao facto de o volume de despesas neste tipo de prestações ser relativamente baixo: representava cerca de 5,8% do rendimento base dos agregados domésticos, contra 8,7% de média nos países da UE-27 (Alves, 2012, p. 51). Embora estas prestações em ­Portugal sejam eficientes, no sentido em que são orientadas principalmente para os grupos mais pobres da população, elas acabam por ter um impacto abaixo do observado nos países da União devido à sua grandeza comparativamente diminuta. Quanto aos impostos, o autor indica que o seu efeito redistributivo é mais elevado do que na média da UE-27. Refere, igualmente, que a “elevada fração do total de impostos sobre o rendimento paga pelos decis de rendimento mais elevados em Portugal – um dos máximos na União Europeia – resulta essencialmente da elevada desigualdade na distribuição do rendimento bruto em Portugal, dado que as taxas médias de imposto nos decis de rendimento mais elevado não diferem substancialmente da média europeia” (idem, p. 56). Conclui assim que as transferências monetárias do Estado para as famílias e os impostos diretos permitiram diminuir em 20% o valor do coeficiente de Gini em Portugal e em 22% na UE, o que corresponde, em ambos os casos, a um decréscimo de oito pontos percentuais do valor dessa medida de desigualdade.

As conclusões deste estudo assentam numa escolha metodológica pela qual se consideram as pensões de reforma como rendimento não redistributivo. Quando se introduzem as pensões de reforma no conjunto de transferências do Estado para as famílias, prestações essas que representam cerca de 20% do rendimento disponível (Rodrigues e Andrade, 2013, p. 17), o impacto redistributivo das transferências sociais em Portugal situa-se abaixo do verificado em termos médios nos países da OCDE (Joumard, Pisu e Bloch, 2012). De acordo com Rodrigues e Andrade (2013), as funções do tipo “Piggy Bank” do Estado Providência em Portugal, tais como as pensões de reforma, o subsídio de desemprego ou de doença, que assentam numa lógica bismarckiana de seguro pessoal, sobrepõem-se às funções do tipo “Robin Hood”, que se associam aos sistemas beveridgeanos, tipicamente caracterizados pelas prestações sociais baseadas em condições de recursos e pela progressividade do sistema fiscal.

Segundo Carlos Farinha Rodrigues, uma das principais razões que explicam que o impacto das políticas redistributivas seja menor em Portugal do que na média dos países da UE-27 prende-se com a inexistência de políticas públicas diretamente vocacionadas para o combate às desigualdades:

 

Nós não temos tido em Portugal políticas efetivas de combate às desigualdades. Nos últimos anos são raras as políticas que tenham sido concebidas e aplicadas para reduzir as desigualdades. Há como que um alheamento político face a este problema. O que aconteceu em Portugal, e que é muito significativo, é que até 2009 tivemos políticas de combate à pobreza e à exclusão social que tiveram impactos positivos, no sentido em que permitiram alguma redução da desigualdade económica. Eu costumo utilizar muito a expressão, “o combate à desigualdade em Portugal foi à boleia das políticas sociais de combate à pobreza”13.

 

Nesta secção do artigo promoveu-se uma análise das causas das desigualdades económicas e da sua evolução no passado recente. No próximo ponto debater-se-ão os seus efeitos.

 

PORQUE É QUE AS DESIGUALDADES ECONÓMICAS IMPORTAM

 

As desigualdades económicas são um fenómeno que, a várias escalas e em múltiplas dimensões, têm efeitos perniciosos para a vida coletiva. Ao nível global, o fenómeno que é porventura mais evidente para ilustrar este facto prende-se com o fluxos migratórios dos países mais pobres para os países prósperos do hemisfério norte. As grandes desigualdades económicas e de condições de vida globais fazem com que a melhor estratégia para um cidadão médio de um país pobre atingir um rendimento ou nível de vida médio de um país rico seja investir na mobilidade territorial internacional e não na mobilidade social intranacional (Costa, 2012b; Milanovic, 2011). De acordo com Branko ­Milanovic (2007), a globalização tem vindo a acentuar a consciência, por parte dos cidadãos dos países mais pobres, das desigualdades de rendimento e de condições de vida existentes à escala planetária. Apesar das dificuldades e do risco muitas vezes associado aos processos migratórios para os países mais ricos, a aposta neste tipo de estratégia de mobilidade é “altamente efetiva” (Korzeniewicz e Moran, 2009). Isto é, a probabilidade de um cidadão médio de um país pobre alcançar o patamar económico médio de um cidadão de um país rico do hemisfério norte é mais elevada se apostar na mobilidade territorial do que na ascensão social interna ou no crescimento económico geral do país de origem (idem). As desigualdades globais potenciam, portanto, os processos migratórios do hemisfério sul para o hemisfério norte, com todos os problemas sociais, ambientais, políticos e económicos que daqui decorrem. A impossibilidade física e a indesejabilidade ética/política de se erigir uma “fortaleza” (Milanovic, 2007) entre estes dois mundos implica que as desigualdades globais sejam combatidas de forma determinada e eficaz.

A análise dos efeitos negativos das desigualdades coloca-se também ao nível dos processos de estruturação social, política e económica dos países. Há muito que as ciências sociais têm investigado os efeitos das desigualdades sociais nas condições de vida e nas oportunidades à disposição de indivíduos ou de categorias sociais mais alargadas (por exemplo, as classes sociais, os grupos étnicos ou o género). As desigualdades sociais tendem a reproduzir-se e a acumular-se (Bihr e Pfefferkorn, 2008; Bourdieu, 1979) e a igualdade de oportunidades é severamente condicionada pelas desigualdades de posição ou condição social (Dubet, 2010). As desigualdades, nomeadamente as desigualdades de recursos económicos, têm impactos na vida e nas possibilidades de existência dos indivíduos e, em termos mais abstratos, das categorias sociais, quer do ponto de vista sincrónico, quer ao nível temporal. Tendem a acumular-se na esfera da existência social dos indivíduos e a reproduzir-se no tempo. Do ponto de vista dos processos de estruturação social, as desigualdades têm, portanto, um efeito potencialmente nocivo ao nível da mobilidade social, do desenvolvimento e aproveitamento de capacidades e talentos, e de reprodução de fenómenos como a pobreza e a exclusão social. Mas até que ponto a análise dos efeitos das desigualdades se pode realizar a uma escala mais vasta, nomeadamente no plano dos seus efeitos para as sociedades enquanto entidades coletivas?

Este é um trilho analítico que tem sido percorrido nos últimos anos por vários investigadores, através da problematização dos impactos dessas disparidades na vida coletiva. Richard Wilkinson e Kate Pickett demonstram no livro The Spirit Level (2009) que os países que apresentam níveis de desigualdades de rendimento mais elevados tendem a ter performances comparativamente negativas em áreas tão diversas como a mortalidade infantil, os níveis de encarceramento, os níveis de felicidade e de confiança da população ou o sucesso escolar. Esta obra chama a atenção para o facto de as desigualdades de rendimento poderem ter consequências negativas multidimensionais para a sociedade como um todo, e não apenas para parcelas mais ou menos bem circunscritas da população.

Uma interessante pista de investigação que tem sido desenvolvida no âmbito mais vasto da problemática dos impactos coletivos das desigualdades económicas, prende-se com as implicações macroeconómicas das desigualdades de rendimento, mais concretamente a relação existente entre este fenómeno e a crise financeira iniciada entre 2007 e 2008 nos EUA. A tese central das várias abordagens a esta problemática é a de que o aumento das desigualdades económicas verificado nos Estados Unidos e noutros países da OCDE nas últimas décadas, aliado à desregulação do setor financeiro, favoreceu a emergência da atual crise financeira e económica.

Num estudo publicado pelo Fundo Monetário Internacional, denominado “Inequality, leverage and crises”, Michael Kumhof e Romain Rancière (2010) chamam a atenção para a crescente concentração da riqueza monetária nos grupos do topo da distribuição do rendimento, verificada nas últimas décadas nos Estados Unidos. Segundo concluem, a porção do rendimento detido pelos 5% mais ricos desse país aumentou de 22% em 1983 para 34% em 2007, tendência semelhante ao verificado entre 1920 e 1928 – período que antecedeu o crash da bolsa de Nova Iorque. Enquanto os 10% mais ricos viram a sua remuneração real por hora de trabalho aumentar 70% entre 1967 e 2005, a remuneração real por hora de trabalho dos trabalhadores com um rendimento mediano e dos 10% mais pobres diminuiu nesse intervalo temporal 5% e 25%, respetivamente. O avolumar da desigualdade de rendimento entre esses dois grupos, que se concretizou na deterioração do poder de compra dos 95% mais pobres e no aumento substancial do rendimento dos 5% mais ricos, implicou uma crescente necessidade de acesso ao crédito por parte do primeiro grupo, e uma maior disponibilidade para emprestar dinheiro por parte do segundo. Entre 1983 e 2007, o nível de endividamento dos mais ricos situou-se de forma consistente nos 70% do rendimento disponível, mas no caso dos 95% mais pobres esse indicador mais do que duplicou, atingindo os 140%. Se em 1983 os 5% mais ricos dos Estados Unidos tinham um nível de endividamento15 pontos percentuais superior ao verificado entre os restantes 95% da ­população, em 2007 o nível de endividamento deste segundo grupo era o dobro do existente entre os mais ricos. A desigualdade económica esteve, portanto, no “coração” da crise financeira, no sentido em que os termos dos empréstimos concedidos a quem não os podia com grande probabilidade pagar criou uma “instabilidade intrínseca” no sistema financeiro (Galbraith, 2012). Segundo esta tese, a diminuição do poder de compra da maior parte da população norte-americana potenciou o endividamento das famílias, tendo esse fenómeno sido favorecido por decisões políticas conducentes à desregulação do mercado financeiro. Essa desregulação e o comportamento irresponsável das instituições financeiras “exacerbaram” a crise, mas a sua causa estrutural prendeu-se com o aumento das desigualdades económicas e, em particular, da concentração do rendimento nos grupos do topo da distribuição (Milanovic, 2011, p. 193).

Esta argumentação é secundada e aprofundada por autores como ­Stockhammer (2012), Lysandrou (2011), Fitoussi e Stiglitz (2009) e Horn et al. (2009). De acordo com estas perspetivas, o aumento das desigualdades económicas no interior dos países tem de ser enquadrada não só no universo restrito da distribuição interna do rendimento e da riqueza, mas também no âmbito mais vasto dos fluxos financeiros internacionais.14 As desigualdades económicas internas e o aumento da concentração do rendimento em grupos minoritários da população dos países implicou uma perda de poder de compra por parte da sua grande maioria e, nesse sentido, uma diminuição potencial da procura agregada. Essa diminuição da procura interna foi, no entanto, mitigada pela desregulação dos fluxos financeiros internacionais, a qual facilitou a acumulação de défices de balança corrente em alguns países. Neste esquema analítico, opõem-se países como os Estados Unidos, o Reino Unido, a Grécia, a Irlanda e Portugal, com um modelo de “crescimento suportado em dívida”, à Alemanha, China, Áustria e Japão, com um modelo de “crescimento suportando pelas exportações” (Stockhammer, 2012). Em ambos os casos, as orientações macroeconómicas dos países estão associadas, segundo este autor, à estagnação da procura doméstica decorrente do aumento das desigualdades económicas internas. Stockhammer defende, porém, que para se perceber, na sua globalidade, a relação entre desigualdade económica e a crise financeira iniciada em 2007/2008 nos Estados Unidos é necessário analisar também o fenómeno do aumento da “propensão para se especular”.

É precisamente esse o prisma analítico desenvolvido por Lysandrou (2011). Segundo este autor, a desigualdade económica pode explicar o aumento da procura de crédito bancário, mas não a securização desse crédito e a sua transformação numa mercadoria passível de ser comercializada, apesar da falta de transparência e opacidade de alguns dos produtos financeiros derivados. Essa explicação deve ser procurada no aumento da concentração da riqueza privada mundial numa pequena minoria da população. Na perspetiva de Lysandrou, essa tendência implicou uma procura excessiva de investimentos financeiros tradicionais (dívida soberana, por exemplo), o que por sua vez pressionou o setor financeiro para criar ou privilegiar “recipientes de riqueza” alternativos, mais atrativos do ponto de vista da sua rentabilidade. Os CDO (Collateralized Debt Obligations), um dos produtos financeiros derivados associados aos empréstimos no crédito à habitação no mercado subprime dos Estados Unidos (o qual desencadeou a crise de 2007/2008), foram criados pelos bancos para satisfazer os ensejos de vários agentes, em particular dos fundos de investimento – que em 2006 detinham 50% desses produtos (Lysandrou, p. 196). Os principais clientes dos fundos de investimento são os investidores institucionais, mas sobretudo os “indivíduos com elevado património líquido” (“high net worth individuals”, HNWI), que Lysandrou define como os detentores de uma riqueza líquida superior a um milhão de dólares ou a 30 milhões de dólares, no caso dos “ultra HNWI”. Ou seja, o tipo de produtos financeiros de alto risco que estiveram na base da crise financeira de 2007/2008 foram delineados para e procurados por um conjunto muito restrito de investidores, nomeadamente privados. De acordo com a estimativa apresentada pelo autor, este grupo restrito da população mundial passou de 7,5 milhões de indivíduos em 2000 para 9,5 milhões em 2007 (0,01% da população mundial), tendo a sua riqueza aumentado cerca de 60% nesse período. Em 2006, embora detivessem “apenas” 15 do total de ativos financeiros, eram proprietários de mais de metade dos ativos financeiros alternativos, tais como os CDS (Lysandrou, 2011, pp. 190, 201).

A relação entre desigualdade económica e o sistema financeiro e económico pode, portanto, ser equacionada a partir de ângulos de análise diferenciados e, em parte, complementares. Importa, contudo, sublinhar que este tipo de formulações têm sido questionadas por vários estudos, que concluem que não existe uma relação direta entre situações de aumento das desigualdades de rendimento ou riqueza nos países e a emergência de crises económicas e financeiras (­Atkinson e Morelli, 2011). Ou seja, a efetivação da relação entre as desigualdades económicas e a emergência de crises financeiras não é linear e depende dos contextos sociais, institucionais e políticos que enquadram esse tipo de dinâmica.

Paul Krugman, por seu lado, defende uma aproximação de cariz político a este fenómeno. Segundo refere, a crescente desigualdade na sociedade norte-americana potenciou a depressão económica e a crise financeira, pois os mais ricos conseguiram impor politicamente a sua agenda e os seus interesses. O “dinheiro compra influência”, refere (Krugman, 2012, p. 85), e tem a capacidade de intervir numa área fundamental dos processos de distribuição do rendimento: as políticas fiscais.

Joseph Stiglitz (2012) concorda também com esta tese. De acordo com o autor, a elite económica dos Estados Unidos tem vindo a impor os seus interesses e a sua visão do mundo no campo político, conseguindo deste modo que as políticas públicas contribuam para a reprodução das desigualdades sociais e para a perpetuação da sua posição dominante na estrutura social. As políticas de favorecimento fiscal dos mais ricos ou a canalização de rendas para estes mesmos indivíduos são exemplos do controlo ideológico dos mais ricos nos centros de decisão política. No entender de Stiglitz, o aumento da concentração do rendimento tem impactos negativos nos níveis de confiança e de coesão social existentes numa sociedade, tende a rigidificar as estruturas sociais dos países, a esbater as dinâmicas de mobilidade social e, caso os rendimentos mais elevados não sejam proporcionalmente taxados, a fragilizar a receita fiscal necessária para o investimento público em educação, infraestruturas ou tecnologia. Mas o efeito mais estruturante das desigualdades materializa-se na criação de condições institucionais, legais, políticas e cognitivas que tendem a garantir a sua reprodução:

 

As sociedades mais igualitárias esforçam-se bastante para preservar a sua coesão social; nas sociedades mais desiguais, as políticas dos governos e de outras instituições tendem a favorecer a persistência das desigualdades15 [Stiglitz, 2012, p. 77].

 

Apesar destes processos e dinâmicas sociais, a estruturação das desigualdades não segue uma direção predeterminada, pois depende da forma como a sociedade lida com elas, mais concretamente do modo como as políticas públicas as enquadram e agem sobre elas. Ou seja, as desigualdades sociais e económicas podem ser política, jurídica e institucionalmente potenciadas ou mitigadas. Aproximações analíticas como as que foram apresentadas nesta secção alertam, no entanto, para o facto de que elevados níveis de desigualdade produzem efeitos que afetam de modo mais ou menos direto toda a estrutura social. Não é por isso de estranhar que a crítica das desigualdades e o reconhecimento dos seus efeitos negativos para a vida coletiva tenham uma crescente adesão no debate público. Por vezes, em contextos institucionais ou editoriais surpreendentes, como o Fórum Económico de Davos e do seu estudo Global Risks 2012 (2011) ou da revista inglesa The Economist.16

 

CONCLUSÃO

 

As desigualdades económicas manifestam e ajudam a reproduzir fossos de oportunidades e de condições de vida em várias áreas e a diferentes escalas. Apesar da melhoria das condições de vida de grande parte da população dos países subdesenvolvidos/em desenvolvimento, o fosso face ao mundo ocidental é ainda imenso. Na Noruega estuda-se, em média, cerca de 13 anos, mas na Etiópia o valor desse indicador é inferior a dois anos (UNDP, 2011). Quem nascer no Japão pode esperar viver mais 35 anos do que quem nascer na Guiné-Bissau, na República Centro Africana ou no Afeganistão. Morrem todos os dias devido a causas passíveis de serem evitadas 19 mil crianças, cerca de metade das quais na África sub-Sahariana (UNICEF, 2012). Estima-se que 868 milhões de pessoas sofressem de problemas de subnutrição no período 2010-2012, valor que representa 12,5% da população mundial – sendo que a esmagadora maioria desta população (852 milhões) vive em países em desenvolvimento, nos quais 14,9% da população enfrenta este problema (FAO, 2012).

Também no denominado mundo ocidental, aquele que habita na sua grande maioria o hemisfério norte, as desigualdades económicas vão-se ­afirmando como um dos principais fenómenos estruturais das sociedades. A amplitude das desigualdades internas que aí emergem não assume a expressão dramática verificada quando a tela de análise é o globo, mas o fosso entre os muito ricos e a restante população é cada vez mais claro.

A atual crise financeira adicionou uma nova dinâmica estruturante ao fenómeno das desigualdades económicas no mundo ocidental, que convém estudar em profundidade no futuro: o desemprego. Segundo as estimativas do Eurostat, mais de 26 milhões de trabalhadores dos países da UE-28 estavam desempregados no final do ano de 2013, o que corresponde a uma taxa de desemprego na ordem dos 11%. Em alguns países este fenómeno assume ­proporções bem mais graves, chegando mesmo a ultrapassar os 25% na Grécia e em Espanha. Em Portugal o valor deste indicador era de 15,4% e o desemprego médio anual para 2013 situou-se em 16,3%, valor que seria bem mais elevado se não fosse o fenómeno da emigração massiva e o número de trabalhadores que embora estejam disponíveis para trabalhar desistiram de procurar trabalho – sendo por isso considerados inativos. Acrescente-se a isto que uma boa parte da população desempregada em ­Portugal não recebe qualquer subsídio de desemprego.

Se até aqui a grande força motriz do aumento das desigualdades económicas de mercado, em Portugal e na grande maioria dos países ocidentais, decorreu da crescente concentração do rendimento nos grupos do topo da distribuição, o desemprego assume-se como um novo mecanismo produtor de assimetrias materiais a partir da base. Tal como tem sucedido com os rendimentos do topo, também o desemprego pressionará a capacidade redistributiva dos Estados e, portanto, o seu papel na diminuição das desigualdades de rendimento disponível. Importa a este nível ter em consideração que as desigualdades económicas não são um elemento neutro nos processos de estruturação social e económica das sociedades. James K. Galbraith (2012, p. 14) defende que as desigualdades devem ser estudadas devido ao seu caráter informativo e não por serem chocantes. Acrescentar-se-ia que a magnitude chocante das desigualdades económicas que se descreveu e analisou neste artigo deve ser um dos elementos informativos a ter em conta na definição de políticas públicas e de respostas institucionais a aplicar às várias escalas de intervenção. Não só por uma questão de justiça, mas também porque as desigualdades têm implicações negativas multidimensionais e multi-escalares para a vida coletiva.

 

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Recebido a 21-12-2012. Aceite para publicação a 18-02-2014.

 

NOTAS

1 Este nível de análise é uma possibilidade relativamente recente e resulta de dados estatísticos referentes às populações da maior parte dos países do mundo, posteriormente agregados e harmonizados.

2 “Indicador sintético de desigualdade na distribuição do rendimento que assume valores entre 0 (quando todos os indivíduos têm igual rendimento) e 100 (quando todo o rendimento se concentra num único indivíduo). O coeficiente pode também variar entre 0 e 1 (…)”. Para mais informação ver glossário de indicadores online do Observatório das Desigualdades.

3 Tradução própria.

4 Tradução própria.

5  O coeficiente de Gini assume o valor 0 quando todos os indivíduos têm um rendimento igual, e 100 (ou 1) quando todo o rendimento se concentra num único indivíduo. Este índice mede, portanto, a dispersão dos rendimentos tendo como cenário hipotético de referência uma situação de igualdade perfeita, sendo “particularmente sensível aos rendimentos mais próximos dos rendimentos médios” (Rodrigues, 2008) e menos sensível às disparidades nos dois extremos da distribuição.

6 V. Cantante (2012).

7 Para uma análise mais desenvolvida acerca dos rendimentos do topo da distribuição em Portugal v. Cantante (2013) e Alvaredo (2010).

8 Austrália, Canadá, Dinamarca, Finlândia, Alemanha Ocidental, Israel, Holanda, Noruega, Suécia, Suíça, Reino Unido e Estados Unidos.

9 Esta conclusão tem como referência empírica a população em idade ativa. Segundo outros autores, se se tiver em linha de conta o total da população, nomeadamente os reformados, a eficácia redistributiva do Estado aumentou entre meados da década de 1990 do século passado e meados da primeira década de 2000 (Caminada, Goudswaard e Wang, 2012).

10 Tradução própria.

11 Os dados acerca do ganho mensal referem-se aos trabalhadores por conta de outrem do setor privado e dos funcionários públicos com regime individual de trabalho. O ganho mensal é referente à remuneração base completa dos trabalhadores a trabalhar a tempo completo.

12 Cálculos do autor a partir dos microdados anonimizados dos Quadros de Pessoal de 2009 (MSSS/GEP).

13 V. “O fim do ciclo de redução das desigualdades económicas em Portugal. Entrevista a Carlos Farinha Rodrigues”, disponível em http://observatorio-das-desigualdades.cies.iscte.pt/index.jsp?page=news&id=234

14 Contrariando uma das conclusões do estudo Divided We Stand (OECD, 2011), segundo o qual, tal como foi já mencionado, a integração financeira teve impactos pouco significativos na evolução das desigualdades económicas internas.

15 Tradução própria.

16  V. The Economist (2012), “Special Report World Economy”, vol. 405, n.º 8806.

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